Acessibilidade / Reportar erro

Raça ou classe? Sobre a desigualdade brasileira

Race or class? On the Brazilian inequality

Resumos

O tema da desigualdade no Brasil só pode ser compreendido à luz da especificidade de nosso processo de modernização. Isso significa dizer que a determinação do peso específico da variável racial exige um quadro de referência teórico amplo, inclusivo e totalizador. A construção, ainda que tentativa, desse referencial teórico exige resgatar o debate brasileiro acerca dessa questão em meados do século passado. Defende-se aqui que o problema da classe social tem sido injustamente relegado no contexto do debate acerca da singularidade de nossa desigualdade.

Raça; Classe Social; Desigualdade; Pensamento Social Brasileiro


The subject of inequality in Brazil can only be understood in the light of the particularity of our modernization process. This means that the catching of the specific weight of the race factor requires a large, inclusive and holistic theoretical framework. It also requires a reassessment of the Brazilian debate about that issue occurred in the middle of the last century. This article argues that the social class problem has been unfairly underestimated, if we take in account the context of the debate about our inequality.

Race; Social Class; Inequality; Brazilian Social Thought


Raça ou classe? Sobre a desigualdade brasileira

Race or class? On the Brazilian inequality

Jessé Souza

Professor de Ciências Sociais da Universidade Estadual Norte Fluminense (UENF)

RESUMO

O tema da desigualdade no Brasil só pode ser compreendido à luz da especificidade de nosso processo de modernização. Isso significa dizer que a determinação do peso específico da variável racial exige um quadro de referência teórico amplo, inclusivo e totalizador. A construção, ainda que tentativa, desse referencial teórico exige resgatar o debate brasileiro acerca dessa questão em meados do século passado. Defende-se aqui que o problema da classe social tem sido injustamente relegado no contexto do debate acerca da singularidade de nossa desigualdade.

Palavras-chave: Raça; Classe Social; Desigualdade; Pensamento Social Brasileiro.

ABSTRACT

The subject of inequality in Brazil can only be understood in the light of the particularity of our modernization process. This means that the catching of the specific weight of the race factor requires a large, inclusive and holistic theoretical framework. It also requires a reassessment of the Brazilian debate about that issue occurred in the middle of the last century. This article argues that the social class problem has been unfairly underestimated, if we take in account the context of the debate about our inequality.

Keywords: Race; Social Class; Inequality; Brazilian Social Thought.

O tema da relação entre preconceito racial e desigualdade social entre nós tem longa e venerável tradição. Ao mesmo tempo, como mostra a recente discussão pública sobre cotas nas universidades, confusão, insegurança e desorientação demonstram que este tema está longe de ser assunto pacífico. A meu ver essa confusão se relaciona também ao modo como o assunto vem sendo tratado no debate acadêmico1 1 . Parto do pressuposto de que a esfera política reagiu, nesta questão como em tantas outras, à problematização do tema por parte de intelectuais seja em articulação seja em oposição ao movimento negro organizado. . Refiro-me à confusão entre as dimensões empíricas e teóricas do tema e as conseqüências deletérias para a compreensão deste fenômeno nas práticas daí decorrentes. Dois aspectos saltam aos olhos de quem analisa o debate corrente sobre este tema entre nós.

O primeiro diz respeito à ênfase em trabalhos empíricos destinados a demonstrar a sobre-representação dos negros em todos os índices sociais negativos. Embora seja necessário, antes de tudo, reconhecer a importância, oportunidade e pioneirismo deste tipo de investigação2 2 . Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle e Silva são dois expoentes desta tradição, que ajudaram a repor a questão racial na ordem do dia entre nós. , também se faz necessário circunscrever os seus limites. A concomitância entre os dois fenômenos mostra, sem dúvida, uma correlação entre eles, mas não "explica" por que e como esta correlação se dá, nem tampouco esclarece o papel relativo da variável racial na produção da desigualdade. O resultado deste tipo de investigação empírica representa, portanto, uma questão em aberto, que exige trabalho interpretativo posterior, e não, o que acredito seja a suposição de muitos, a "resposta", a explicação analítica e conceitual do fenômeno. A confusão entre estes dois níveis de análise, no entanto, confusão esta dominante na grande imprensa, na mídia em geral, na discussão política e até no ambiente acadêmico, cria a ilusão de que a causa da desigualdade social brasileira é racial e ponto final3 3 . Os exemplos desta confusão são cotidianos e repetitivos. Lembro-me de um artigo, por exemplo, na coluna semanal do cientista político Sérgio Abranches na Veja, cujo conteúdo era a interpretação da nossa desigualdade como tendo como causa principal o dado racial. Essa interpretação, por sua "visibilidade", aliada à carência de um debate teoricamente sofisticado sobre as causas da desigualdade social no contexto periférico, que possa superar as ilusões do empiricismo meramente quantitativo – o que obviamente não deve ser confundido com uma crítica à intenção empírica que marca a sociologia – torna-se cada vez mais dominante nas ciências sociais brasileiras e por extensão também no debate público. . Como não existe aporte interpretativo que especifique uma hierarquia das causas da desigualdade, a variável racial é percebida, tendencialmente, como um dado absoluto e não como um dos elementos que explicam a especificidade de nossa desigualdade.

Em segundo lugar, ainda que intimamente relacionado ao primeiro aspecto, causa espécie a ênfase no tema das "relações raciais" desvinculadas de um quadro interpretativo mais amplo. Ainda que seja defensável a divisão de trabalho intelectual que este tipo de fragmentação implica, o que não me parece defensável é isolar a variável racial do estudo das causas da desigualdade como fenômeno mais geral. Nesse sentido, acredito que o tema da desigualdade só adquire compreensibilidade se vinculado ao tema da especificidade de nosso processo de modernização. Isso significa dizer que a determinação do peso específico da variável racial no tema maior da desigualdade social como um todo exige um quadro de referência teórico amplo, inclusivo e totalizador.

A construção ainda que parcial e tentativa deste referencial teórico exige, a meu ver, o resgate do debate acerca da opção classe/raça, que marcou o debate brasileiro acerca desta questão em meados do século passado. O tema da importância da classe social tem sido injustamente colocado em um papel secundário entre nós, no contexto do debate sobre a singularidade de nossa desigualdade, como uma espécie de "resíduo do marxismo mecanicista e redutor"4 4 . Parece ser geral entre nós a impressão de que a alusão à classe, como componente principal do pertencimento social, envolve necessariamente o ranço reducionista do marxismo. A excelente recensão desta tradição por Antônio Sérgio Guimarães parece apontar na mesma direção. Guimarães, Antônio Sérgio, (2002), p. 13/45. , e relegado a um segundo plano de análise. Ainda que concorde com a crítica ao reducionismo marxista em toda a sua extensão, esse tipo de crítica esquece muito facilmente que Marx não é o único teórico das classes sociais e que certamente não é o mais criativo e atual neste tema.

A crítica weberiana ao conceito de classe marxista já nega o vínculo direto estabelecido por Marx entre "situação de classe" (Klassenlage) e certo "interesse de classe". Para Weber é sempre uma questão empírica e aberta saber-se se esta correspondência efetivamente se verifica, não podendo ser decidida a priori. Para que esta correspondência ocorra é necessário que exista suficiente transparência em relação às causas da desigualdade para quem a sofre negativamente (Weber, 1964). Sabidamente, Weber também acrescenta ao aspecto econômico da situação de classe o tema da "situação estamental" (Ständische Lage) para dar conta de características, para ele ainda marcadas por contextos pré-modernos (Kreikel, 1992), marcados pela valorização social da "honra" (Weber, 1964).

Pierre Bourdieu vincula criativamente as heranças marxista e weberiana no tema, conferindo-lhes um tom original e pessoal. De Marx ele retira a tese da determinação de classe do comportamento humano em sociedade. De Weber, a noção da bidimensionalidade da estratificação social sob o capitalismo, substituindo o aspecto da honra pelo tema do prestígio associado ao conhecimento, ou "capital cultural", como ele prefere. Ao unir ambos os princípios e inter-relacioná-los, ao contrário de Weber, por exemplo, que cria uma disjuntiva entre a estratificação por status e pela situação econômica, Bourdieu constrói uma noção de estratificação social que combina os aspectos econômicos e sócio-culturais e vincula a situação de classe a uma "condução da vida" específica. Esta "condução da vida" representa uma dada atitude em relação ao mundo em todas as dimensões sociais, não se restringindo, portanto, à subesfera econômica. Será esta condução da vida específica, ou seja, a dimensão weberiana do status, que permitirá constituir laços objetivos de solidariedade, por um lado, e de preconceito, por outro. Será também esta condução da vida, ou atitude em relação ao mundo que propiciará a justificação de privilégios ao permitir que estes "apareçam" como qualidades inatas dos indivíduos e não como socialmente determinados.

Esta concepção "sócio-cultural" (Peter-Müller, 1997) de classe faz toda a diferença, por oposição a um conceito economicista de classe, precisamente por apontar para fatores "extra-econômicos", existenciais, morais e políticos, subliminares e subconscientes que constroem e permitem um padrão de desigualdade que é o único possível no contexto de igualdade formal e de democracia aberta, típicos da moderna sociedade capitalista: um padrão que pressupõe opacidade e intransparência ao esconder a fonte social e portanto "construída" da desigualdade. A desigualdade passa a ser justificada e naturalizada na medida em que é percebida como resultado do "mérito" e, portanto, como produto de qualidades individuais.

A questão central aqui parece-me, portanto, se referir a uma discussão dos pressupostos culturais e socias da hierarquia moral, efetivamente prevalecentes nas sociedades ocidentais, tanto centrais quanto periféricas como veremos, aquém e além da apregoada centralidade da categoria da igualdade como fundamento da legitimação política explícita dessas sociedades. Em Charles Taylor, a reconstrução desta herança teórica e histórica se consuma sob a forma de uma genealogia da hieraquia moral subjacente ao racionalismo ocidental. Embora este substrato moral esteja presente em todas as comunidades humanas, importa perceber em cada caso a especificidade de cada horizonte cultural ou civilizacional particular. Este é o desafio que se impõe Taylor (1989) no seu As fontes do self. A estratégia de Taylor é vincular as idéias e visões de mundo destinadas a se tornarem dominantes no Ocidente à sua institucionalização. Ou seja, longe de fazer uma "história das idéias", o que lhe interessa é perceber as condições que lhe permitem eficácia social. Daí seu empreeendimento ser, a meu ver, central para as ciências sociais.

Ao tentar reconstruir a hieraquia valorativa subjacente ao racionalismo ocidental e às suas instituições fundamentais, Taylor, na verdade, está penetrando terreno pioneiro. Karl Marx foi o primeiro a se referir, não a uma hieraquia valorativa implícita ao capitalismo, mas às suas conseqüências, ou seja, à produção de uma "ideologia espontânea" como seu efeito peculiar. Mas, em Marx, a ideologia espontânea do capitalismo é produto da descontinuidade entre produção e circulação de mercadorias, criando a ilusão da venda da mercadoria força de trabalho pelo seu justo valor. Inexiste, no entanto, em Marx a tematização do horizonte moral e simbólico que serve de substrato e legitimação às instituições fundamentais do capitalismo, muito especialmente do mercado. O enfoque marxista é sistêmico e se concentra nas virtualidades e contradições da própria esfera econômica.

Em Max Weber, apesar de sua questão central ser precisamente a especificidade do racionalismo ocidental, tanto no seu arcabouço material quanto simbólico, este autor jamais consegue teorizar cristalizações morais para além das éticas religiosas materiais que estuda na sua sociologia das religiões. Formas de dotação de sentido social de caráter não religioso não são consideradas até mesmo por conta de seu ponto de partida categorial, prisioneiro do individualismo metodológico, que o impele a perceber o indivíduo ator como fonte última de toda atribuição de significado e moralidade.

Nesse contexto, se as contribuições dos clássicos são escassas, também as percepções dominantes na ciência social contemporânea negam a densidade simbólica e valorativa da dinâmica institucional. O novo aparato institucional coercitivo e disciplinador do mundo moderno, antes de tudo representado pelo complexo formado por mercado e Estado, é percebido como incorporando um princípio abstrato medido por critérios de eficiência. É deste modo que tanto Parsons quanto Habermas, por exemplo, irão perceber, a partir do conceito de sistema, a ação conjunta desse complexo institucional e pleitear uma lógica normativamente neutra como fundamento de seu funcionamento. Esse "naturalismo" de grande parte da tradição sociológica repete, na dimensão da reflexão sistemática, o mesmo efeito de desconhecimento ao qual estamos submetidos na vida cotidiana sob efeito da ideologia espontânea do capitalismo, através da extraordinária eficácia de suas instituições fundamentais como mercado e Estado.

Para se avançar neste tema fundamental, há que se recuperar o sentido de busca de significados opacos implícita na discussão marxiana da ideologia espontânea do capitalismo, para além do que o próprio Marx foi capaz de perceber. Desse modo, passa a ser fundamental recapitular a noção ocidental hegemônica de virtude para a quase totalidade dos pensadores modernos e contemporâneos: controle da razão sobre emoções e pulsões irracionais, interiorização progressiva de todas as fontes de moralidade e significado e entronização concomitante das virtudes do autocontrole, auto-responsabilidade, vontade livre e descontextualizada e liberdade concebida como auto-remodelação em relação a fins heterônomos. O que está em jogo aqui é uma noção historicamente construída e culturalmente contingente de personalidade e de condução da vida que vai separar e unir, por vínculos de solidariedade e preconceito, pessoas e grupos sociais em superiores e inferiores, segundo critérios que passam a dever sua objetividade incontestável ao fato de estar inscritos na lógica opaca e intransparente de funcionamento de Estado e mercado.

Às gerações que nascem já sob a égide das práticas disciplinarizadoras já consolidadas institucionalmente, esse modelo contingente assume a forma naturalizada de uma realidade auto-evidente que dispensa justificação. Responder aos imperativos empíricos de Estado e mercado passa a ser tão óbvio quanto respirar ou andar. Não conhecemos nenhuma outra forma de ser e desde a mais tenra infância fomos feitos e continuamente remodelados e aperfeiçoados para atender a estes imperativos. É essa realidade que permite e confere credibilidade às concepções científicas que desconhecem a lógica normativa contingente desses "subsistemas". Ela assume a forma de qualquer outra limitação natural da existência, como a lei de gravidade, por exemplo, contra a qual nada podemos fazer.

Mas se quisermos ir além das aparências e das ilusões objetivas da vida cotidiana, devemos suspeitar do discurso legitimador que essas instituições fazem sobre si mesmas, ou seja, como se as mesmas fossem estruturas objetivas e neutras que expressam princípios meritocráticos e igualitários. Afinal, será a noção de disciplina e controle do corpo e de suas emoções e necessidades, que passará a diferenciar imperceptivelmente, classes sociais, gênero, etnias, etc.

A luta entre classes e frações de classe vai ser decidida por essa oposição entre a alma ou razão – como lócus das virtudes das classes dominantes e o corpo – como lócus das virtudes dominadas e ambíguas das classes inferiores –, como fica claro na oposição entre trabalho intelectual e trabalho manual, que torna legítimo que em sociedades como a brasileira o trabalho intelectual seja remunerado até 50 vezes mais que o trabalho manual. Por que jamais nos perguntamos acerca da legitimidade de tamanha desigualdade? Precisamente o fato da questão jamais chegar a ser formulada, o que demonstra seu caráter naturalizado, ilustra a eficácia da hierarquia moral a qual estamos aludindo. Ilustra também de que modo uma concepção não-economicista de classe permite abranger os aspectos sócio-culturais de classificação no capitalismo e nos confrontar com realidades e máscaras incomuns da desigualdade. Também todas as outras hierarquias sociais que pressupõem superioridade e inferioridade ou a noção de melhor ou pior como a oposição homem/mulher e branco e negro adquirem eficácia a partir da mesma hierarquia, como veremos mais tarde.

Esse conjunto articulado e referido mutuamente de virtudes passa a ser, com seu crescente ancoramento institucional, o Alfa e Ômega da atribuição de respeito e de reconhecimento social, por um lado, e pressuposto objetivo da própria auto-estima individual, por outro. Ele é o pressuposto da noção moderna de dignidade tanto no sentido da noção jurídica de cidadania, como é o pressuposto oculto e opaco também do respeito atitudinal (Taylor, 1989), o qual é pré e ultrajurídico e decide acerca do prestígio relativo entre indivíduos e classes. Isso significa que Estado e mercado, a partir de seus estímulos específicos, ao perfazerem o virtual monopólio das chances de vida de qualquer indivíduo ou classe social, decidem, de forma opaca e intransparente, nessa nova leitura da produção de uma "ideologia espontânea do capitalismo", quem são os classificados e os desclassificados sociais. Classificados com os prêmios equivalentes em salário, status ocupacional e prestígio relativos, são os indivíduos que logram se adaptar às demandas implícitas do complexo estado/mercado. Desclassificados, por outro lado, são todos aqueles que não atendem a essas demandas adequadamente e são castigados por baixos salários e baixo respeito social.

Ao pleitearmos que o mecanismo de classificação ou reconhecimento social opera a partir de estruturas pré-reflexivas e opacas à consciência cotidiana, estamos tomando partido por concepções anti-racionalistas e antiintelectualistas que percebem a produção da solidariedade social e a atribuição de reconhecimento como um código cifrado. O conceito de habitus em Bourdieu permite, ao contrário da tradição racionalista e intelectualizante, enfatizar todo o conjunto de disposições culturais e institucionais que se inscrevem no corpo e que se expressam na linguagem corporal de cada um de nós transformando, por assim dizer, escolhas valorativas culturais e institucionais, formadas no contexto familiar e escolar, em signos de carne e osso.

O pressuposto dessa concepção revolucionária no âmbito das ciências sociais permite unir, assim como faz Taylor em texto particularmente brilhante (Taylor, 1993), Wittgenstein e Bourdieu. Taylor, na realidade, aproxima Bourdieu e Wittgenstein tendo em vista um aspecto fundamental de sua própria teoria, que é a tentativa de romper e superar a concepção mentalista da experiência social. Essa concepção mentalista é representada pelo dualismo mente-corpo, ou seja, pela idéia de que a mente é uma entidade distinta do corpo, embora de algum modo "habite" o corpo como um "fantasma dentro de uma máquina" (Smith, 2002). Desde Descartes essa concepção tornou-se algo como a doutrina oficial sobre a relação mente/corpo. Para Taylor, tanto Wittgenstein quanto Bourdieu lograram desenvolver concepções que ajudam a perceber essa relação fundamental de um outro modo. Taylor (1993) diz "se Wittgenstein nos ajudou a quebrar a servidão filosófica do intelectualismo, Bourdieu começou a explorar como a ciência social deve ser refeita, desde que livre de seu ponto de partida distorcido". Aqui, o inimigo comum é a tendência racionalista e intelectualista, dominante seja na filosofia seja nas ciências sociais. Enquanto a tradição intelectualista nesses dois campos do conhecimento tende a perceber a compreensão de uma regra social, por exemplo, como um processo que se consuma no nível das representações e do pensamento, abstraindo seu componente corpóreo e contextual, tanto Wittgenstein quanto Bourdieu enfatizam o elemento da "prática".

Obedecer a uma regra é antes de tudo uma prática aprendida e não um conhecimento. A "prática" pode ser articulável, ou seja, ela pode explicitar razões e explicações para o seu ser deste modo e não de qualquer outro, quando desafiada a isto, mas, na maior parte das vezes, esse pano de fundo inarticulado permanece implícito, comandando silenciosamente nossa atividade prática e abrangendo muito mais que a moldura das nossas representações conscientes. Esse ponto de partida semelhante dos dois autores não é um aspecto contingente, secundário ou superficial. Ele representa, ao contrário, o âmago mesmo da novidade radical destes autores no debate contemporâneo. Todo o esforço crítico de ambos é dirigido à crítica das concepções filosóficas ou sociológicas que abstraem indevidamente do componente radicalmente situado e contextual da ação humana.

O que Bourdieu tem em mente é a formação de um habitus de classe, percebido como um aprendizado não intencional de disposições, inclinações e esquemas avaliativos que permitem ao seu possuidor perceber e classificar, numa dimensão pré-reflexiva, signos opacos da cultura legítima. Esses fios invisíveis interligam e cimentam tanto afinidades e simpatias, constituindo tanto as redes de solidariedades quanto rejeições por antipatias soldadas pelo preconceito de classe, cor ou gênero (Bourdieu, 1990).

Mas falta à noção de habitus em Bourdieu qualquer caráter diacrônico e histórico e, portanto, qualquer preocupação com o tema fundamental do aprendizado valorativo, apenas possível de ser tematizado em perspectiva histórica. Assim, gostaria de propor uma subdivisão interna à categoria do habitus de tal modo a conferir-lhe um caráter histórico mais matizado, inexistente na análise bourdieusiana, e acrescentar, portanto, uma dimensão genética e diacrônica à temática da constituição do habitus. Assim, ao invés de falarmos apenas de habitus genericamente, aplicando-o a situações específicas de classe num contexto sincrônico, como faz Bourdieu, acho mais interessante e rico, para meus propósitos, falar de uma "pluralidade de habitus", que se constituem historicamente.

Este foi certamente o caso do que gostaria de chamar de "habitus primário". A burguesia, como a primeira classe dirigente na história que trabalha, logrou romper com a dupla moral típica das sociedades tradicionais baseadas no código da honra e construir, pelo menos em uma medida apreciável e significativa, uma homogeneização de tipo humano a partir da generalização de sua própria economia emocional, como vimos – domínio da razão sobre as emoções, cálculo prospectivo, auto-responsabilidade, etc. – transformando o comportamento econômico em modelo para todo o comportamento humano digno de respeito e reconhecimento.

É esta economia emocional muito específica que chamo de habitus primário, para aludir ao conjunto de disposições que funcionam como referência objetiva ao valor diferencial dos seres humanos de forma opaca e intransparente, e que, a partir da sua generalização efetiva, permite, por exemplo, a efetividade social da noção de cidadania nessas sociedades homogeneizadas em medida significativa. Apesar deste habitus se referir a "indivíduos", ele não implica obviamente em qualquer defesa do "individualismo", como valor ou em aportes "liberais" que percebem o indivíduo como a fonte de todo sentido e moralidade. Muito ao contrário, são consensos sociais e morais inarticulados que estipulam, independentemente da vontade individual, seu valor relativo. O sujeito aqui é toda a sociedade e seu núcleo normativo inarticulado e não os indivíduos atores5 5 . O uso que faço da categoria bourdiesiana de habitus é conscientemente heterodoxo e não pleiteio qualquer relação de "fidelidade" em relação ao aparato conceitual deste autor, com o qual, inclusive, não compartilho diversos pressupostos analíticos. .

A partir daí torna-se compreensível porque é o trabalho útil, produtivo e disciplinado que parece estar por trás da "avaliação objetiva do valor relativo" de cada qual também na dimensão política da cidadania. Para além da letra legal da regra da igualdade, é apenas a percepção, na dimensão pré-reflexiva em que estamos nos movimentando neste texto, mediada por signos opacos, mas imediatamente compreensíveis por todos, posto que inscritos no corpo, na forma de andar, falar, etc., de que estamos tratando com sujeitos que são suportes de uma "ética do desempenho" adequada ao trabalho útil e produtivo, que garante seu reconhecimento social não só na esfera econômica, mas em todas as outras dimensões da vida social. Isso explica por que uma dona de casa, por exemplo, passe a ter um status social objetivamente "derivado", ou seja, sua importância e reconhecimento social dependem de seu pertencimento a uma família ou a um "marido". Ela se torna, neste sentido, dependente de critérios adscritivos, já que no contexto meritocrático da "ideologia do desempenho" ela não possuiria valor autônomo (Kreckel, 1992).

O mesmo fenômeno explica também que vai ser o poder legitimador dessa "ideologia do desempenho" que irá determinar, aos sujeitos e grupos sociais excluídos de plano, pela ausência dos pressupostos mínimos para uma competição bem sucedida na dimensão econômica, objetivamente, também seu não-reconhecimento social e sua ausência de auto-estima, seja na dimensão política seja na dimensão existencial e privada. É esse fenômeno que gostaria de chamar de constituição social de um "habitus precário" que atinge proporções de fenômeno de massas em sociedades perifericamente modernizadas como o Brasil. Esta parece-me constituir a efetiva distinção entre sociedades centrais e periféricas: a produção em massa de um enorme contingente de inadaptados percebidos enquanto tais por mecanismos de avaliação social pré-reflexivos e opacos, mas, ao mesmo tempo, perceptíveis por todos numa dimensão corporal e pré-reflexiva.

Isso implica que a "ideologia do desempenho" funcionaria assim como uma espécie de legitimação subpolítica incrustada no cotidiano, refletindo a eficácia de princípios funcionais ancorados em instituições opacas e instransparentes como mercado e Estado. Ela é intransparente posto que "aparece" à consciência cotidiana como se fosse efeito de princípios universais e neutros, abertos à competição meritocrática. Se minha análise é correta, esse esquema interpretativo permitiria explicitar tanto a hierarquia valorativa e normativa subjacente, ainda que de forma subliminar e intransparente, ao funcionamento de mercado e Estado, quanto a forma peculiar através da qual esses signos opacos adquirem visibilidade social ainda que de modo pré-reflexivo.

Esse tipo de abordagem permitiria também discutir a especificidade de sociedades periféricas como a brasileira, sem apelar para explicações intencionalistas e subjetivistas, como nos paradigmas personalistas ou patrimonialistas, que são obrigadas a defender a existência um núcleo pré-moderno para essas sociedades de modo a tematizar suas mazelas sociais. Essa explicação alternativa parece-me mais convincente, na medida em que permite tematizar mazelas sociais como a naturalização da desigualdade ou a produção social massificada da subcidadania sem negar implicitamente, como fazem as explicações personalistas ainda dominantes, a complexidade e dinamismos inegáveis de uma sociedade periférica como a brasileira. É precisamente o dinamismo de instituições impessoais, que reproduzem uma hieraquia implícita do valor diferencial dos seres humanos, que permite compreender a naturalização secular de uma desigualdade abissal como a brasileira.

A idéia simples que percorre todo meu argumento neste texto é que mercado e Estado não são apenas grandezas materiais regidas por critérios de eficácia formal, mas sim materializações de "concepções de mundo" com uma hierarquia material peculiar, e que esta é a forma especificamente moderna de construir distinções sociais e de legitimá-las. Apesar da idéia central ser simples, suas conseqüências teóricas são inúmeras e decisivas. A partir dela podemos, por exemplo, ter acesso a uma nova concepção do processo de modernização de sociedades periféricas como a brasileira. Max Weber, no final do seu estudo acerca da religião da Índia, avança uma intuição, a qual me parece fundamental para o nosso tema. Ao analisar o caso do desenvolvimento do capitalismo no Japão, por comparação com o caso hindu, Weber salienta que a expansão do capitalismo, ou do racionalismo ocidental como ele preferia, para a periferia, dá-se tanto mais profundamente quanto mais o modelo assume a forma da exportação das instituições fundamentais do Ocidente, como mercado competitivo e Estado centralizado, sob a forma de "artefatos prontos" (Weber, 1999).

Se estou correto, então a questão passa a ser: identificar que concepção de mundo é esta, que é importada das instituições fundamentais do mundo moderno para a periferia. Que estas instituições tenham imposto sua dinâmica apenas no longo prazo não invalida o argumento. O raciocínio sociológico se diferencia precisamente por permitir captar dinâmicas de desenvolvimento de longo prazo. Se estou certo, isto significa que toda uma cultura e concepção de mundo contingente está associada à lógica institucional do capitalismo moderno. Perceber este aspecto central é superar o tipo de "essencialismo culturalista", também ainda dominante entre nós, que desvincula cultura da eficácia institucional, que é a única instância que pode explicar de que modo cultura e valores podem influenciar o comportamento humano.

A concepção de mundo exportada para a periferia do capitalismo é aquela que analisamos detidamente acima, mas que sempre vale a pena repetir: controle da razão sobre emoções e pulsões irracionais, interiorização progressiva de todas as fontes de moralidade e significado e entronização concomitante das virtudes do autocontrole, auto-responsabilidade, vontade livre e descontextualizada e liberdade concebida como auto-remodelação em relação a fins heterônomos. É precisamente esta noção historicamente construída, altamente improvável e culturalmente contingente de personalidade e de condução da vida, que se constitui na Europa entre os séculos XVII e XVIII, que passa a ser o núcleo duro da hierarquia valorativa incrustada de forma opaca e intransparente no funcionamento destas instituições fundamentais. Em outras palavras e weberianamente: o protestantismo ascético, que constrói essa noção contingente e única de agência humana, passa a ter agora como suporte secular à lógica impessoal de mercado e Estado que reproduz, através de estímulos empíricos como dinheiro e coerção legal, o mesmo tipo de indivíduo que antes a fé produzia.

É esta concepção de ser humano e economia emocional peculiar à cultura européa, que portanto nada tem a ver com o preconceito naturalista que vincula a "europeidade" a um fenótipo ou tipo físico do indivíduo de olhos azuis e cabelos loiros, e que pode, portanto, ter como suporte material mulatos ou negros, como efetivamente acontece no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX6 6 . Ver a dimensão descritiva deste argumento em Freyre, Gilberto (1990). , que se irá transformar na concepção dominante do valor diferencial entre os seres humanos e grupos sociais inteiros e separar e unir por vínculos de solidariedade e preconceito pessoas e grupos sociais em superiores e inferiores, segundo critérios que passam a dever sua objetividade incontestável ao fato de estarem inscritos na lógica opaca e intransparente de funcionamento de Estado e mercado.

O leitor a esta altura pode muito bem estar se perguntando, coberto de razão, o que precisamente esta reconstrução argumentativa tem a ver com a especificade do preconceito racial no Brasil e com o peso relativo da variável "cor da pele" no tema da singularidade de nossa desigualdade. É que considero que, apenas a partir desta reconstrução, podemos levar nossa discussão para além das pseudo-evidências do empiricismo no tema racial. Foi a falta deste trabalho conceitual anterior que determinou, por exemplo, as ambigüidades e as contradições insolúveis que marcam a reflexão de Florestan, no seu fundamental A integração do Negro na Sociedade de Classes (Fernandes, F., 1978), que ele próprio considera seu "melhor trabalho" (Fernandes, F., 2003).

Este ponto é central, posto que, se é a reprodução de um "habitus precário" a causa última da inadaptação e marginalização desses grupos, como o próprio Florestan parece acreditar, pelo menos na parte inicial de seu livro7 7 . Florestan, na realidade, é indeciso em relação ao peso específico das variáveis que estou chamando de classe (Habitus precário da "ralé" negra e mulata) e de "raça". Essa ambigüidade, no entanto, é extremamente interessante para meus propósitos de uma reconstrução crítica de seu argumento. Para uma apreciação crítica em detalhe da fundamental contribuição de Florestan a essa discussão, ver: Souza, Jessé 2003 (a) e 2003 (b). , não é "meramente a cor da pele", como certas tendências empiricistas acerca da desigualdade brasilera tendem, hoje, a interpretar. Se há preconceito neste terreno, e certamente há, e agindo de forma intransparente e virulenta, não é, antes de tudo, um preconceito de cor, mas sim um preconceito que se refere a certo tipo de "personalidade", ou seja, de um habitus específico, julgada como improdutiva e disruptiva para a sociedade como um todo.

Nosso caminho até aqui nos permite agora perceber que a hieraquia moral incrustrada na dinâmica institucional do capitalismo baseada, como vimos, na oposição mente/corpo, não determina e legitima simplesmente o preconceito e a desigualdade de classe através da oposição entre trabalho intelectual e manual. Ela comanda todas as classificações e distinções sociais no contexto da legitimação impessoal e opaca do capitalismo. Também a oposição entre os gêneros segue o mesmo padrão da discriminação de classe. O homem é definido como superior em relação à mulher por ser visto como portador das virtudes intelectuais e morais superiores que caracterizam o domínio da mente ou alma sobre as necessidades animais inferiores típicas da corporalidade.

A mulher, por oposição, é percebida como repositária da sensualidade, dos afetos e do mundo emocional associado às virtudes ambíguas da corporalidade. É essa associação inconsciente e pré-reflexiva que a torna suspeita, ainda hoje, para exercer cargos de comando por exemplo. Do mesmo modo, a "raça branca" é associada à europeidade e sua herança cultural de controle dos instintos e necessidades corporais em favor do auto-controle e disciplina. A "raça negra" é considerada inferior pela associação ao "primitivismo" africano que é percebido como repositário de valores ambíguos como força muscular e sensualidade.

Não é, portanto, se estou certo, o apego à hierarquia anterior que produz o racismo, como termina sendo a conclusão de Florestan, no seu livro citado anteriormente, e o transfere como "resíduo" à ordem social competitiva. Afinal, a ordem competitiva também não é, como vimos antes, "neutra", nesta dimensão do ponto de partida meritocrático, como parece estar implícito no argumento de Florestan. A ordem competitiva também tem a "sua hierarquia", ainda que implícita, opaca e intransparente aos atores, e é com base nela, e não em qualquer "resíduo" de épocas passadas, que tanto negros quanto brancos sem qualificação adequada são desclassificados e marginalizados de forma permanente.

Não é à toa, nesse sentido, que a legitimação da marginalização, nos depoimentos colimados em todo o livro pelo autor, venha sempre acompanhada da menção a aspectos conspícuos da hierarquia valorativa do racionalismo ocidental moderno: ausência de ordem, disciplina, previsibilidade, raciocínio prospectivo, etc. O critério operante de classificação/desclassificação era tão colado na hierarquia valorativa implícita e impessoal da nova ordem social, que se reconhecia em vários depoimentos, inclusive, a cor como aspecto secundário. Concebia-se, por exemplo, que o negro se "misturasse com o branco atrasado, que está à sua altura moral, intelectual" Florestan (1978), no entanto, permanece preso à explicação dos "resíduos", e não consegue incorporar vários desses depoimentos ao seu quadro explicativo, que se torna crescentemente ambíguo, impreciso e inconclusivo.

Um outro ponto de imprecisão que no fundo duplica a ambigüidade em relação a opção cor/habitus, é a menção a coisas como "mundo branco" e "mundo negro" como se fossem, ambos, realidades essenciais e independentes, e como se a hierarquia valorativa que articulasse essa disjuntiva não fosse, na realidade, única, e subordinasse tanto "brancos" quanto "negros". Apenas a partir da explicitação da hierarquia moral opaca e intransparente, a qual reconstruímos acima, que é operada pela dinâmica das instituições fundamentais do capitalismo, é que podemos perceber precisamente em qual contexto valorativo e classificatório a cor da pele funciona como índice de primitividade para além de qualquer "culturalismo essencialista" – posto que desvincula produção de valores de eficácia institucional – que percebe a cor como "resíduo" de outras épocas.

No contexto estamental e adscritivo da sociedade escravocrata, a cor funciona como índice tendencialmente absoluto da situação servil, ainda que esta também assumisse formas mitigadas como fica claro na exposição de Florestan. Na sociedade competitiva, a cor funciona como índice "relativo" de primitividade – sempre em relação ao padrão contingente do tipo humano definido como útil e produtivo no racionalismo ocidental e implementado por suas instituições fundamentais – que pode ou não ser confirmado pelo indivíduo ou grupo em questão. O próprio Florestan relata sobejamente as inúmeras experiências de inadaptação ao novo contexto, determinadas em primeiro plano por incapacidade de atender às demandas da disciplina produtiva do capitalismo (Fernandes, F., 1978).

Na realidade, portanto, não é a continuação do passado no presente "inercialmente" que está em jogo, realidade esta destinada a desaparecer com o desenvolvimento econômico (Fernandes, F., 1978), mas a redefinição "moderna" do negro (e do dependente ou agregado brasileiro rural e urbano de qualquer cor) como "imprestável" para exercer qualquer atividade relevante e produtiva no novo contexto, que constitui o quadro da nova situação de marginalidade. No pólo positivo, é o mesmo fato que torna possível o – "embranquecimento" de indivíduos negros ou mulatos "europeizados" no sentido preciso de adoção e internalização de uma economia moral – que não se confunde com meros "bons modos" – que é resultado histórico e contingente da Europa enquanto civilização específica. É precisamente porque em condições modernas o preconceito racial é "relativo", posto que dependente e secundário em relação ao dado primário e mais importante da internalização da economia emocional que caracterizam as classes sociais produtivas e úteis no contexto do capitalismo moderno, que é possível literalmente, em sociedades como a nossa, "embranquecer".

É o mesmo fenômeno que torna compreensível a tese de Oracy Nogueira acerca do "preconceito de marca" como nosso modo específico de manifestar preconceito racial, por oposição à dinâmica do preconceito racial de origem norte-americano. No texto clássico de Oracy sobre o tema (Nogueira, 1985), o "preconceito de marca" já amalgama traços físicos como a cor com características sociais de pertencimento grupal, como comportamento social e instrução. Apenas o resultado combinado dos dois fatores decide acerca da existência ou não da discriminação racial (Nogueira, 1985). Nesse caso, o do preconceito de marca, trata-se de uma preterição relativa, que permite portanto fenômenos de "embranquecimento social", para os indivíduos que, embora tenham cor negra, são "europeizados" no sentido da internalização da economia emocional que é produto histórico contingente da cultura européia já discutida neste texto. No caso americano, o embranquecimento é impossível, dada a exclusão incondicional de todo indivíduo que tenha "sangue negro" em sua ascendência sem qualquer referência a traços físicos.

A estratégia correspondente ao "embranquecimento" (whitening) no caso americano é a "passagem" (passing)8 8 . Nogueira, Oracy, (1985) p. 81. Um belo filme recente, intitulado "revelações" e estrelado por Anthony Hopkins no papel de um professor universitário que fez o passing, mostra exemplarmente o drama existencial e social do personagem principal. , quando o indivíduo de cor branca de ascendência negra nega sistematicamente sua origem. Uma das causas históricas para a diferença na percepção do negro em cada uma das sociedades analisadas por Oracy, parece-me decorrer do distinto processo histórico de modernização no Brasil e nos EUA e da influência deste na formação dos respectivos "mitos nacionais". O "mito nacional", cujo objetivo primordial não é seu conteúdo de verdade, mas sim sua capacidade de criar vínculos de pertencimento grupal (Bellah, 1992), é talvez o componente central de todo processo de Nation-building, dado precisamente seu potencial de construir e cimentar solidariedades a partir do compartilhamento de uma "história comum", ainda que fabricada mais ou menos intencionalmente com este objetivo.

No caso americano, o negro não faz parte do "mito nacional" daquele país que se percebe, com toda justiça, como uma das nações fundadoras da modernidade – juntamente, com França, Inglaterra e, um pouco mais tardiamente, a Alemanha – como matriz civilizatória autônoma. No mito fundador americano os negros são percebidos como participantes tardios e marginais (Marx, 1998) o que explica que até hoje sejam tratados por intelectuais conservadores e liberais como membros apartados da história e dinâmica social daquele país. No caso brasileiro, país de modernização tardia e exógena, os negros e mulatos sempre puderam ser aceitos como membros da comunidade nacional desde que contribuidores efetivos ou potenciais do esforço modernizador, o grande elemento galvanizador da solidariedade interna brasileira desde a independência nacional. Por isso, o negro ou mulato "europeizado", sempre no sentido específico que uso este termo neste trabalho, pode, no contexto brasileiro "embranquecer", ou seja, desfrutar do reconhecimento social que é atributo específico dos indivíduos que são percebidos como produtivos, disciplinados e socialmente úteis.

Quase desnecessário dizer, se este campo de reflexão não fosse um exemplo clássico de pensamento científico colonizado por elementos emocionais, políticos e irracionais de toda espécie, que aqui procuro apenas tentar explicar por que fenômenos sociais acontecem como acontecem e não de qualquer outro modo, e não julgá-los avaliativamente. Meu interesse não é, portanto, "adaptar" a realidade social a certas visões políticas e menos ainda deformar a realidade histórica a partir delas. Estou convencido que a sociologia realmente crítica não se constrói sob o núcleo de ressentimento e de fantasias compensatórias, que são hoje apanágio de certas abordagens "politicamente corretas", as quais substituem efetivo aporte analítico por indignação moral, não acrescentando em nada para a compreensão do fenômeno e portanto das suas causas efetivas9 9 . Muito ilustrativo a este respeito é a crítica de Jessica Benjamin, uma das mais importantes e brilhantes feministas contemporâneas, à postura ressentida de abordagens feministas que celebram e idealizam o oprimido às custas da investigação criteriosa das causas profundas do sexismo. Ver Benjamin, Jessica, (1988), p. 9. . A crítica social não deve celebrar o oprimido ou romantizar seu passado e seu presente, mas vê-lo em sua miséria (e na grandeza possível dentro dela) de modo a que se possa, o que é apenas possível neste contexto, tematizar as condições para sua redenção social e política.

Embora o trabalho de Oracy, ainda que pioneiro e brilhante, seja descritivo, ou seja, ele elenca as diferenças num caso e noutro sem analisar as razões estruturais que permitiriam explicar as diferenças de resultado nos dois casos, suas conclusões são imediatamente compreensíveis a partir da discussão que empreendemos acerca do habitus como elemento classificador entre nós independentemente da cor. O preconceito no Brasil seria de marca precisamente porque a cor da pele ou traços físicos são índices de primitividade passíveis de serem "tornados invisíveis socialmente", desde que o indivíduo de cor seja portador do habitus adequado ao trabalho produtivo nas condições do mercado competitivo moderno. Um negro ou mulato instruído, disciplinado, inteligente e produtivo, nesse contexto, tende a receber uma avaliação social positiva do meio independentemente de sua ascendência ou traços físicos.

Este fenômeno não nega, obviamente, a existência ou a virulência do preconceito racial. Ele apenas indica que o mesmo é relativo e dependente de uma escala de valores que existe, por assim dizer, por trás da cor, permitindo separar entre pessoas de cor dignas de reconhecimento social de outras indignas do mesmo reconhecimento. O que me parece importante aqui, em termos analíticos, é perceber a existência de um código social que sobredetermina o preconceito racial, demostrando seu caráter secundário vis a vis a hierarquia valorativa principal que tem a ver com um conceito sócio-cultural de pertencimento de classe que constituem habitus respectivamente valorizados e desvalorizados socialmente.

Nesse sentido, e esta é a principal tese deste trabalho, a cor da pele é um dado secundário, no caso específico da formação social brasileira, em relação ao habitus de classe. Isto, obviamente, não significa dizer que o preconceito racial não exista ou que seja de importância secundária. O preconceito racial é virulento e perverso, posto que funciona como índice de primitividade antes de qualquer contato social. O preconceito racial deve ser combatido como política específica em qualquer esforço dirigido e conseqüente de inclusão social de setores marginalizados entre nós. É de extrema importância, no entanto, por razões teóricas e práticas, que se tenha clareza com relação à hieraquia das causas da desigualdade. A confusão entre estes dois aspectos da desigualdade, da classe, no sentido sócio-cultural que estamos defendendo, e do preconceito racial, é muitas vezes obscurecida por motivos "políticos", dado que, acredita-se, a atribuição da marginalidade do negro a causas outras que não a cor e o racismo, equivaleria a atribuir a "culpa" da mesma à sua vítima.

O conteúdo populista do "politicamente correto", que na realidade coloniza e subordina o valor central da ciência de busca incondicional da verdade em favor de interesses políticos que se supõem indiscutíveis e acima de qualquer crivo crítico, mostra-se aqui em toda sua essência reativa, ressentida e conservadora. Ora, é precisamente o abandono secular do negro e do dependente de qualquer cor à própria sorte, a "causa" óbvia de sua inadaptação. Foi este abandono que criou condições perversas de eternização de um "habitus precário", que constrange esses grupos à uma vida marginal e humilhante, à margem da sociedade incluída.

Por outro lado, é necessário ter-se clareza teórica e prática acerca das causas reais da marginalização. É precisamente o tipo de explicação que enfatiza como causa primeira da desigualdade o dado secundário da cor – que permitiria, supostamente, atribuir a "culpa" da marginalização unicamente ao preconceito – que joga água no moinho da explicação economicista e evolucionista de tipo simples, que supõe ser a marginalização algo temporário, modificável por altas taxas de crescimento econômico, as quais, de algum modo obscuro, terminaria por incluir todos os setores marginalizados10 10 . A meu ver existe uma relação interna entre a ausência de aportes interpretativos que atentem para a importância dos fatores sócio-culturais e o "fetichismo da economia", que grassa entre nós tanto na academia quanto no debate político. É o fetichismo da economia que faz com que esperemos do desenvolvimento econômico aquilo que ele nunca deu – o Brasil mesmo foi o país de maior desenvolvimento econômico do globo entre 1930 e 1980 sem mudança efetivamente significativa nos seus padrões de desigualdade social que continuou excluindo a maior parte da população dos benefícios da modernização– nem vai dar. É claro que isso torna tarefa de economistas – que pela mesma razão são os interlocutores privilegiados entre nós da relação especialistas/público – explicar o que eles não sabem nem foram preparados para saber, contribuindo, ao fim e a cabo, para a pobreza do debate político entre nós. É interessante notar que o argumento de que tudo depende do crescimento econômico é raciocínio dominante também entre cientistas sociais – lembro-me de uma intervenção de Wanderley Guilherme dos Santos precisamente com este título "tudo depende do crescimento econômico" no jornal O Globo de alguns meses atrás. . Esta explicação ainda é francamente dominante nos nossos meios intelectuais e políticos fazendo com que a única resposta à desigualdade e à "questão social" entre nós seja de conteúdo tópico e assistencialista. Afinal, se não existe um fosso existencial, moral e político entre incluídos e excluídos basta uma pequena ajuda econômica permanente ou passageira para que se resolva a situação. Ou ainda, se a desigualdade é "racial" e ponto final basta uma política de cotas para combatermos a desigualdade11 11 . Não à toa o Estado mais populista da federação, o Rio de Janeiro, é o campeão das políticas de cotas. . Assistencialismo e populismo estão de mãos dadas neste caminho.

Esse tipo de explicação descura dos aspectos morais e políticos que são imprescindíveis a uma real estratégia inclusiva. Em nenhuma das sociedades modernas, que logrou homogeneizar e generalizar, em medida significativa, um tipo humano para todas as classes, como uma pré-condição para uma efetiva e atuante idéia de cidadania, conseguiu este intento como efeito colateral unicamentre do desenvolvimento econômico. Dentre as sociedades desenvolvidas, inclusive, é a mais rica dentre elas, os EUA, a que apresenta maior índice de desigualdade e exclusão (Scalon, 2004). As sociedades que lograram de forma eficaz homogeneizar suas condições sociais em medida significativa o fizeram a partir da disseminação efetiva de concepções morais e políticas inclusivas e igualitárias, que passam a funcionar como "idéias-força" nessas sociedades. É a explicação que atribui a marginalidade dos grupos excluídos a "resíduos" a serem corrigidos por variáveis economicamente derivadas – dominantes, não só em Florestan, mas em todo o debate nacional teórico e prático acerca do tema das causas e dos remédios da desigualdade ainda hoje – que melhor contribui para sua permanência e naturalização. Nesse sentido, o esclarecimento teórico e analítico das hieraquias da desigualdade, pode ajudar e iluminar políticas públicas concretas que tenham efetivamente interesse de superar o binômio assistencialismo/populismo.

  • BELLAH, Robert. The broken covenant: American civil religion in a time of trial Chicago: The Chicago University Press, 1992.
  • BENJAMIN, Jessica. The bonds of love: psychoanalysis, feminism and the problem of domination Nova York: Pantheon Books, 1988.
  • BOURDIEU, Pierre. The logic of praxis Stanford: Stanford University Press, 1990.
  • FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes Vol I e II. São Paulo: Ática, 1978.
  • FERNANDES, Florestan. 100 entrevistas do MAIS São Paulo: Publifolha, 2003.
  • FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos Rio de Janeiro: Record, 1990.
  • GUIMARÃES, Antônio Sérgio. Classes, raças e democracia 34. ed., São Paulo, 2002.
  • KRECKEL, Reinhad. Politische soziologie der sozialen ungleichheit, Frankfurt, Campus, 1992.
  • MARX, Anthony. Making race and nation: A compariisonof the United States, South Africa and Brasil Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
  • NOGUEIRA, Oracy. "Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem". In: Tanto preto quanto branco: Estudos de relações raciais São Paulo: Queiroz, 1985.
  • PETER-MÜELLER, Hans. Sozialstruktur und lebensstille Frankfurt: Suhrkamp, 1997.
  • SCALON, Celi. "Wahrnehmung von ungleichheiten: eine international vergleichende analyse" (no prelo). In: BRUNKHORST, Hauke; COSTA, Sérgio; SOUZA, Jessé (eds.). Die peripheren moderne Frankfurt: Campus, 2004.
  • SMITH, Nicholas Charles Taylor: Meaning, morals and modernity Cambridge: Polity Press, 2002.
  • SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania: Para uma sociologia política da modernidade periférica Minas Gerais: UFMG, 2003(a).
  • _____________. (Não)reconhecimento e subcidadania, ou o que é "ser gente?, In: Lua Nova, n 59, 2003(b).
  • TAYLOR, Charles. "To Follow a Rule". In: Craig Calhoun, Edward LiPuma; Moishe Postone (eds.). Bourdieu: critical perspectives Chicago: University of Chicago Press, 1993.
  • _____________. Sources of the self: The making of the modern identity Cambridge: Harvard University Press, 1989.
  • WEBER, Max Die wirtschaftsethik der weltreligionen: Hinduismus und buddhismus Tübingen: J.C.B. Mohr, 1999.
  • _____________. Wirtschaft und gesellschaft Berlin: Kiepenheuer und Witsch, 1964.
  • 1
    . Parto do pressuposto de que a esfera política reagiu, nesta questão como em tantas outras, à problematização do tema por parte de intelectuais seja em articulação seja em oposição ao movimento negro organizado.
  • 2
    . Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle e Silva são dois expoentes desta tradição, que ajudaram a repor a questão racial na ordem do dia entre nós.
  • 3
    . Os exemplos desta confusão são cotidianos e repetitivos. Lembro-me de um artigo, por exemplo, na coluna semanal do cientista político Sérgio Abranches na
    Veja, cujo conteúdo era a interpretação da nossa desigualdade como tendo como causa principal o dado racial. Essa interpretação, por sua "visibilidade", aliada à carência de um debate teoricamente sofisticado sobre as causas da desigualdade social no contexto periférico, que possa superar as ilusões do empiricismo meramente quantitativo – o que obviamente não deve ser confundido com uma crítica à intenção empírica que marca a sociologia – torna-se cada vez mais dominante nas ciências sociais brasileiras e por extensão também no debate público.
  • 4
    . Parece ser geral entre nós a impressão de que a alusão à classe, como componente principal do pertencimento social, envolve necessariamente o ranço reducionista do marxismo. A excelente recensão desta tradição por Antônio Sérgio Guimarães parece apontar na mesma direção. Guimarães, Antônio Sérgio, (2002), p. 13/45.
  • 5
    . O uso que faço da categoria bourdiesiana de
    habitus é conscientemente heterodoxo e não pleiteio qualquer relação de "fidelidade" em relação ao aparato conceitual deste autor, com o qual, inclusive, não compartilho diversos pressupostos analíticos.
  • 6
    . Ver a dimensão descritiva deste argumento em Freyre, Gilberto (1990).
  • 7
    . Florestan, na realidade, é indeciso em relação ao peso específico das variáveis que estou chamando de classe (Habitus precário da "ralé" negra e mulata) e de "raça". Essa ambigüidade, no entanto, é extremamente interessante para meus propósitos de uma reconstrução crítica de seu argumento. Para uma apreciação crítica em detalhe da fundamental contribuição de Florestan a essa discussão, ver: Souza, Jessé 2003 (a) e 2003 (b).
  • 8
    . Nogueira, Oracy, (1985) p. 81. Um belo filme recente, intitulado "revelações" e estrelado por Anthony Hopkins no papel de um professor universitário que fez o
    passing, mostra exemplarmente o drama existencial e social do personagem principal.
  • 9
    . Muito ilustrativo a este respeito é a crítica de Jessica Benjamin, uma das mais importantes e brilhantes feministas contemporâneas, à postura ressentida de abordagens feministas que celebram e idealizam o oprimido às custas da investigação criteriosa das causas profundas do sexismo. Ver Benjamin, Jessica, (1988), p. 9.
  • 10
    . A meu ver existe uma relação interna entre a ausência de aportes interpretativos que atentem para a importância dos fatores sócio-culturais e o "fetichismo da economia", que grassa entre nós tanto na academia quanto no debate político. É o fetichismo da economia que faz com que esperemos do desenvolvimento econômico aquilo que ele nunca deu – o Brasil mesmo foi o país de maior desenvolvimento econômico do globo entre 1930 e 1980 sem mudança efetivamente significativa nos seus padrões de desigualdade social que continuou excluindo a maior parte da população dos benefícios da modernização– nem vai dar. É claro que isso torna tarefa de economistas – que pela mesma razão são os interlocutores privilegiados entre nós da relação especialistas/público – explicar o que eles não sabem nem foram preparados para saber, contribuindo, ao fim e a cabo, para a pobreza do debate político entre nós. É interessante notar que o argumento de que tudo depende do crescimento econômico é raciocínio dominante também entre cientistas sociais – lembro-me de uma intervenção de Wanderley Guilherme dos Santos precisamente com este título "tudo depende do crescimento econômico" no jornal
    O Globo de alguns meses atrás.
  • 11
    . Não à toa o Estado mais populista da federação, o Rio de Janeiro, é o campeão das políticas de cotas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Nov 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 2005
    CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: luanova@cedec.org.br