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O conceito de hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe

The hegemony's concept: from Gramsci to Laclau and Mouffe

Resumos

O artigo tem por objetivo discutir a noção de hegemonia nos pensamentos de Antônio Gramsci e de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, assinalando as semelhanças e as diferenças entre as duas perspectivas. O conceito de hegemonia surge no seio da tradição marxista como resposta às novas configurações sociais. Apesar de ter suas origens na social-democracia russa e de estar presente no pensamento de Lênin, esse conceito foi desenvolvido de modo mais elaborado por Gramsci. Nas últimas décadas, Laclau e Mouffe desenvolveram uma nova abordagem de hegemonia para pensar a configuração social do capitalismo tardio observar como se desenvolvem as disputas hegemônicas nesse novo espaço social.

Hegemonia; Teoria do discurso; Teoria social marxista; Pós-marxismo


The article aims to discuss the notion of hegemony in the thought of Antonio Gramsci and of Ernesto Laclau and Chantal Mouffe, pointing out the similarities and differences between both perspectives. The concept of hegemony arises within the Marxist tradition as a response to the new social configurations and was better developed by Gramsci. In the last decades, Laclau and Mouffe developed a new approach of hegemony, in which they expand the gramscian notion for thinking the social configuration of late capitalism and for observing how the hegemonics struggles grow in the new social space.

Hegemony; Discourse theory; Social marxist theory; Post-marxism


O conceito de hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe

The hegemony's concept: from Gramsci to Laclau and Mouffe

Ana Rodrigues Cavalcanti Alves

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE e bolsista do CNPq

RESUMO

O artigo tem por objetivo discutir a noção de hegemonia nos pensamentos de Antônio Gramsci e de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, assinalando as semelhanças e as diferenças entre as duas perspectivas. O conceito de hegemonia surge no seio da tradição marxista como resposta às novas configurações sociais. Apesar de ter suas origens na social-democracia russa e de estar presente no pensamento de Lênin, esse conceito foi desenvolvido de modo mais elaborado por Gramsci. Nas últimas décadas, Laclau e Mouffe desenvolveram uma nova abordagem de hegemonia para pensar a configuração social do capitalismo tardio observar como se desenvolvem as disputas hegemônicas nesse novo espaço social.

Palavras-chave: Hegemonia; Teoria do discurso; Teoria social marxista; Pós-marxismo.

ABSTRACT

The article aims to discuss the notion of hegemony in the thought of Antonio Gramsci and of Ernesto Laclau and Chantal Mouffe, pointing out the similarities and differences between both perspectives. The concept of hegemony arises within the Marxist tradition as a response to the new social configurations and was better developed by Gramsci. In the last decades, Laclau and Mouffe developed a new approach of hegemony, in which they expand the gramscian notion for thinking the social configuration of late capitalism and for observing how the hegemonics struggles grow in the new social space.

Keywords: Hegemony; Discourse theory; Social marxist theory; Post-marxism.

A noção de hegemonia foi criada no seio da tradição marxista para pensar as diversas configurações sociais que se apresentavam em distintos pontos no tempo e no espaço. Apesar de ter suas origens na social-democracia russa e em Lênin, é Gramsci que apresenta uma noção de hegemonia mais elaborada e adequada para pensar as relações sociais, sem cair no materialismo vulgar e no idealismo encontrados na tradição. A noção de hegemonia propõe uma nova relação entre estrutura e superestrutura e tenta se distanciar da determinação da primeira sobre a segunda, mostrando a centralidade das superestruturas na análise das sociedades avançadas. Nesse contexto, a sociedade civil adquire um papel central, bem como a ideologia, que aparece como constitutiva das relações sociais. Deste modo, uma possível tomada do poder e construção de um novo bloco histórico passa pela consideração da centralidade dessas categorias que, até então, eram ignoradas.

Entretanto, nas últimas décadas surgiu uma nova abordagem da hegemonia que tem como objetivo expandir a noção gramsciana para pensar a configuração social do capitalismo tardio e observar como se desenvolvem as disputas hegemônicas nesse novo espaço social. Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, em Hegemonia e estratégia socialista, apontaram os limites e ambiguidades da noção de hegemonia em Gramsci e formularam um novo conceito a partir da junção da lógica política gramsciana e um conjunto de categorias do pós-estruturalismo. Desse modo, o presente trabalho tem como objetivo central discutir o conceito de hegemonia em Gramsci e em Laclau e Mouffe, apresentando as semelhanças e diferenças das duas perspectivas.

De acordo com Anderson (1989), Gramsci está situado no momento de transição entre a primeira geração do marxismo e o marxismo ocidental1 1 Esta segunda geração do marxismo é caracterizada principalmente pelo seu distanciamento do proletariado e por uma postura mais acadêmica e próxima da universidade. É importante enfatizar que Gramsci teve um afastamento forçado da vida política, já que foi preso pelo governo Mussolini em 1926 devido à sua atividade política como um dos fundadores e dirigente máximo do Partido Comunista Italiano, bem como à sua oposição aberta ao fascismo. . O problema central que perpassa a tradição do marxismo ocidental é a tentativa de responder por que a revolução proletária não aconteceu no Ocidente e quais as condições que favoreceram a eclosão de uma revolução na Rússia. Gramsci aponta as diferenças estruturais nas formações sociais do Oriente e do Ocidente e a necessidade de adotar estratégias políticas distintas das que foram adotadas na Rússia, já que o capitalismo avançado nos países ocidentais possibilitou também o fortalecimento das superestruturas (Coutinho, 1992). A partir destas reflexões, Gramsci elabora sua noção de hegemonia, sendo considerado o teórico marxista que mais insistiu nessa questão e que deu uma grande contribuição ao marxismo (Gruppi, 1978; Macciochi, 1976).

A maior dificuldade de conquista do poder nas sociedades capitalistas avançadas já havia sido observada por Lênin e, muito embora ele nunca tenha falado diretamente sobre hegemonia, Gramsci atribui a ele a origem deste conceito e tem grande influência em seu pensamento e em sua ação política (Coutinho, 1992). Segundo Luciano Gruppi (1978, p. 1), "o ponto de contato mais constante e mais enraizado de Gramsci com Lênin seria o conceito de hegemonia".

Hugues Portelli (1977, p. 63) cita um artigo de Luciano Gruppi, "Lenin e il concetto di egemonia", que chama a atenção para os pontos de aproximação do conceito de hegemonia em Gramsci e Lênin, como a sua base de classe, a sua organização intelectual, a necessidade de ampliar a base social da classe fundamental e a análise da correlação de forças na disputa pela hegemonia. No entanto, Portelli aponta diferenças fundamentais nas noções de hegemonia destes autores. Enquanto Lênin se refere apenas à ditatura do proletariado ao falar de hegemonia, enfatizando seu caráter coercitivo, Gramsci destaca a importância de formar uma classe dirigente que se mantenha pelo consentimento das massas e não apenas pela força coercitiva. Ademais, Gramsci sublinha a importância da direção cultural e ideológica, o que é considerado por Portelli como o maior ponto de ruptura entre os dois autores; afinal, Lênin insiste no caráter puramente político da hegemonia. Nas palavras de Portelli (1977, p. 65),

o problema essencial para ele [Lênin] é a derrubada, pela violência, do aparelho de Estado: a sociedade política é o objetivo e, para atingi-lo, uma prévia hegemonia política é necessária: hegemonia política porque a sociedade política é mais importante, em suas preocupações estratégicas, do que a civil [...] Gramsci, ao contrário, situa o terreno essencial da luta contra a classe dirigente na sociedade civil: o grupo que a controla é hegemônico e a conquista da sociedade política coroa essa hegemonia, estendendo-a ao conjunto do Estado (sociedade civil mais sociedade política). A hegemonia gramscista é a primazia da sociedade civil sobre a sociedade política.

Apesar dessa diferença fundamental, Gramsci tenta dar continuidade à noção de hegemonia leninista a partir do princípio teórico-prático que, segundo ele, foi a grande contribuição de Lênin à filosofia da práxis, na medida em que fez progredir a doutrina e a prática política. Deste modo, a consolidação de um aparato hegemônico remete à necessidade de unificação entre teoria e prática, à formulação de uma nova concepção do mundo.

Gramsci afirma que é muito comum um determinado grupo social, que está numa situação de subordinação com relação a outro grupo, adotar a concepção do mundo deste, mesmo que ela esteja em contradição com a sua atividade prática. Ademais, ele ressalta que esta concepção do mundo imposta mecanicamente pelo ambiente exterior é desprovida de consciência crítica e coerência, é desagregada e ocasional. Dessa adoção acrítica de uma concepção do mundo de outro grupo social, resulta um contraste entre o pensar e o agir e a coexistência de duas concepções do mundo, que se manifestam nas palavras e na ação efetiva. Gramsci (1978a, p. 15) conclui, portanto, que "não se pode destacar a filosofia da política; ao contrário, pode-se demonstrar que a escolha e a crítica de uma concepção de mundo são, também elas, fatos políticos".

Ele afirma que o problema de toda concepção do mundo que se transformou em um movimento cultural, produzindo uma atividade prática, é justamente conservar a unidade ideológica de todo bloco social. A Igreja Católica, por exemplo, sempre lutou pela unidade doutrinal de toda a "massa religiosa" para que, em seu seio, os estratos intelectuais não se destacassem dos "homens simples" e não se formassem duas religiões. Neste sentido, um movimento filosófico que pretenda ter alguma solidez cultural deve evitar essa separação entre os intelectuais e a massa. Este princípio de unidade é semelhante ao que deve existir entre teoria e prática: os intelectuais devem participar da vida prática do grupo social que representam e do qual fazem parte, tornando coerentes os problemas levantados pelo grupo em sua atividade prática e formando um bloco social e cultural, constituindo o que Gramsci chama de intelectual orgânico (1978a, p. 16). Entretanto,

diferentemente da posição católica, a posição da filosofia da práxis não busca manter os "simplórios" na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca conduzi-los a uma concepção de vida superior. Se ela afirma a exigência do contato entre os intelectuais e os "simplórios" não é para limitar a atividade científica e para manter a unidade no nível inferior das massas, mas justamente para forjar um bloco intelectual-moral, que torne politicamente possível um progresso intelectual de massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais (Gramsci, 1978a, p. 18).

Para Gramsci, a consciência crítica é obtida através de uma disputa de hegemonias contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no âmbito político, culminando, finalmente, numa elaboração superior de uma concepção do real. Por isso, ele enfatiza a necessidade de se conceber o desenvolvimento político do conceito de hegemonia não apenas como progresso político-prático, mas também

um grande progresso filosófico, já que implica e supõe necessariamente uma unidade intelectual e uma ética adequadas a uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda restritos (Gramsci, 1978a, p. 21).

Em outra passagem afirma que

a realização de um aparato hegemônico, enquanto cria um novo terreno ideológico, determina uma reforma das consciências e dos métodos de conhecimento, é um fato de conhecimento, um fato filosófico (Gramsci, 1978a, p. 52).

Assim como Lênin, Gramsci acredita que a classe operária não chega a essa consciência crítica de maneira espontânea, não se torna independente "por si" sem se organizar; esta organização deve partir "de fora" e remete diretamente à questão política dos intelectuais, na medida em que, para Gramsci, não existe organização sem intelectuais. Estes representam o elemento de ligação teórico-prática, o nexo que liga a estrutura à superestrutura. A importância de uma orientação externa ao grupo social se deve à necessidade de que a nova concepção do mundo não se limite à relação imediata operário-patrão, mas que possa abranger as relações de todas as classes sociais entre si e suas relações com o Estado; que proporcione uma visão global da sociedade e não a experiência imediata do proletariado (Gruppi, 1978, p. 36).

Nesse contexto, Gramsci (1978c) ressalta a importância do partido político no mundo moderno, pois, segundo ele, no partido, os elementos de um grupo social econômico superam o momento do seu desenvolvimento histórico e se tornam agentes de atividades gerais, de caráter nacional e internacional. O partido político é visto por ele como o moderno príncipe de Maquiavel, responsável pela formação de uma vontade coletiva. No entanto, diferentemente do que propôs Maquiavel, o príncipe do mundo moderno não pode ser um indivíduo concreto, mas um elemento complexo da sociedade que manifeste a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e fundamentada parcialmente na ação. Segundo Gramsci, este organismo complexo já é determinado pelo desenvolvimento histórico e é o partido político; "a primeira célula na qual se aglomeram germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais" (Gramsci, 1978b, p. 6).

As razões dos sucessivos fracassos na tentativa de formação de uma vontade coletiva nacional-popular se devem à predominância de uma postura econômico-corporativista por parte de determinados grupos sociais, o que impede a ampliação da sua base social (Gramsci, 1978b). Lênin já havia mostrado que a tarefa básica do partido operário era justamente contribuir para a superação de uma consciência sindicalista na classe operária e fornecer os elementos teóricos para que essa consciência se elevasse ao nível da totalidade (Coutinho, 1992, pp. 103-104). Gramsci segue, mais uma vez, a linha leninista e define como condições necessárias ao surgimento de uma vontade coletiva nacional-popular não apenas a existência de grupos urbanos desenvolvidos no campo industrial que alcançaram certo nível de cultura histórico-política, mas também a adesão das massas camponesas e sua participação na vida política. Nesse sentido, o moderno príncipe tem como função não apenas criar uma vontade proletária, mas uma vontade coletiva nacional-popular, e também organizar uma reforma intelectual e moral que possibilite, assim, a superação dos princípios corporativos (Gramsci, 1978b, pp. 7-9).

Ademais, Gramsci afirma que o partido político é a forma mais adequada de aperfeiçoar os dirigentes e a sua capacidade de direção. Muito embora cada partido político seja expressão de um único grupo social, em determinadas condições ele deve exercer uma função de equilíbrio entre os interesses do seu grupo e de outros grupos sociais, ampliando a sua base social e fazendo com que o seu desenvolvimento se processe com o consentimento e o apoio dos grupos aliados, e até mesmo de grupos antagônicos (Gramsci, 1978b, p. 22).

A ampliação da base social da classe fundamental, através de um sistema de alianças e a conquista de outros grupos pelo consenso, constitui aspectos fundamentais para o estabelecimento de um aparato hegemônico. Desse modo, Gramsci aponta que a questão da hegemonia não deve ser entendida como uma questão de subordinação ao grupo hegemônico; pelo contrário, ela pressupõe que se leve em conta os interesses dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida, que estabeleça uma relação de compromisso e que faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa. Entretanto, ele aponta que esses sacrifícios nunca envolvem os aspectos essenciais do grupo hegemônico, pois se a hegemonia é ético-política, ela é também econômica (Gramsci, 1978b, p. 33).

Outro ponto importante na discussão sobre o estabelecimento de um aparato hegemônico é que

o recurso às armas e à coerção é pura hipótese de método e a única possibilidade concreta é o compromisso já que a força pode ser empregada contra os inimigos, não contra uma parte de si mesmo que se quer assimilar rapidamente e do qual se requer o entusiasmo e a boa vontade (Gramsci, 1978b, p. 33).

Portelli (1977) observa, no entanto, que a hegemonia não é exercida sobre toda a sociedade, mas somente sobre as classes aliadas, e para conter as classes opositoras a classe dirigente usa da força. É por isso que se pode falar de uma classe dirigente e dominante ao mesmo tempo. Nas palavras de Gramsci (2002, pp. 62-63),

a supremacia de um grupo se manifesta de dois modos, como "domínio" e como "direção intelectual e moral". Um grupo social domina os grupos adversários, que visa a "liquidar" ou a submeter inclusive com a força armada, e dirige os grupos afins e aliados. Um grupo social pode e, aliás, deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental (esta é uma das condições fundamentais inclusive para a própria conquista do poder); depois, quando exerce o poder e mesmo se o mantém fortemente nas mãos, torna-se dominante, mas deve continuar a ser também [dirigente].

Portelli (1977, p. 69) aponta que o aspecto essencial da hegemonia é justamente a criação de um bloco ideológico que permite à classe dirigente manter o monopólio intelectual, através da atração das demais camadas de intelectuais. Ele ressalta, no entanto, que esse monopólio ideológico garante não apenas que a classe fundamental exerça sua função dirigente, mas também sua função dominante, como no caso do "transformismo", o qual seria a absorção dos intelectuais dos grupos inimigos e a decapitação da sua direção política e ideológica. Gramsci (2002) exemplifica o processo de transformismo ao falar do Risorgimento na Itália, que ele percebe como uma "revolução passiva". Segundo ele, o Partido de Ação não conseguiu imprimir ao movimento do Risorgimento um caráter popular, porque foi atraído e influenciado pelo partido dos moderados.

Nesse sentido, se as classes subalternas pretendem criar um novo bloco histórico, devem desenvolver seu próprio aparato hegemônico, com uma direção política e ideológica própria. Portanto, o primeiro passo seria romper com o sistema hegemônico da classe dirigente e a ideologia dominante (Portelli, 1977). Além disso, o novo grupo social em emergência deve formar sua própria camada de intelectuais, que está ligada à vida prática do grupo, e por isso, pode fornecer uma concepção do mundo coerente com essa prática e dar clareza da função histórica desse grupo - seus intelectuais orgânicos. Gramsci (1978c) aponta que todo grupo social que se desenvolve no sentido do domínio deve tentar assimilar os intelectuais tradicionais, os representantes da estrutura econômica anterior e elaboradores do sistema hegemônico da classe dominante.

A importância de se combater a classe dirigente, primeiramente, no campo ideológico, decorre da percepção de Gramsci da centralidade que a sociedade civil assumiu nos Estados avançados. Na sua análise sobre as formações econômico-sociais do Oriente e do Ocidente, Gramsci percebe que a sociedade civil se mostra pouco estruturada no primeiro caso e com uma estrutura muito poderosa no segundo. Desse modo, a estratégia utilizada pelos bolcheviques na tomada do poder na Rússia, marcada pela predominância da coerção, por uma "guerra de movimento", não poderia ocorrer no Ocidente. Portanto, as batalhas no Ocidente devem ser travadas no âmbito da sociedade civil, numa "guerra de posição" em que se visa à conquista

de posições e de espaços, da direção político-ideológica e do consenso dos setores majoritários da população, como condição para o acesso ao poder de Estado e para a sua posterior conservação (Coutinho, 1992, p. 89).

Essa relação equilibrada que se observa no Ocidente entre Estado e sociedade civil impossibilita a superestimação do papel das catástrofes econômicas imediatas no processo de desagregação do bloco dominante e uma estratégia baseada na guerra de movimento (Coutinho, 1992, p. 92). Neste sentido, a criação de um novo bloco histórico, por parte das classes subalternas, pressupõe não apenas a criação de um novo sistema hegemônico, mas também uma crise de hegemonia da classe dirigente, que pode ocorrer quando esta classe falha em algum empreendimento ou quando amplas massas saem da passividade e se inserem na vida política, apresentando certa organização e uma série de reivindicações, ainda que em condições limitadas (Gramsci, 1978b, p. 55).

Na crise de hegemonia, a classe dominante perde a direção das classes subordinadas, já que estas rompem com os intelectuais que as representam; é o caso dos intelectuais que controlam a sociedade civil e, mais particularmente, os partidos políticos tradicionais (Portelli, 1977, p. 104). Nas palavras de Gramsci (1978b, p. 54),

num determinado momento da sua vida histórica, os grupos sociais se afastam dos seus partidos tradicionais, isto é, os partidos tradicionais com alguma forma de organização, com determinados homens que o constituem, representam e dirigem, não são mais reconhecidos como expressão própria da sua classe ou fração de classe.

Gramsci aponta, no entanto, que mesmo em meio a uma crise de autoridade, a classe dirigente ainda apresenta vantagens com relação às classes subalternas, na medida em que possui um pessoal numeroso e preparado que pode mudar seu programa e retomar o controle com maior rapidez do que a classe subalterna (Gramsci, 1978b, p. 55). Ademais, Portelli (1977, p. 109) observa que a crise de hegemonia afeta essencialmente a sociedade civil e a classe dirigente torna-se classe dominante conservando o controle da sociedade política, ou seja, do aparelho de Estado e da coerção. Portanto, depois de elaborada a direção ideológica do novo bloco histórico, as classes subordinadas devem organizar uma direção político-militar contra o sistema hegemônico da classe dominante.

De acordo com Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2004), a teorização do conceito de hegemonia no pensamento de Gramsci constitui umas das tentativas mais elaboradas de responder à chamada "crise do marxismo". Segundo eles, essa crise tem suas origens na Segunda Internacional e resulta das crescentes dificuldades de adequar as categorias teóricas do marxismo às transformações da sociedade capitalista, caracterizadas pela fragmentação das classes sociais e pela contingência e opacidade do social. Essa nova configuração social contrastava com as premissas de Marx acerca da crescente proletarização e polarização das classes sociais, além da sua consideração da unidade e universalidade da classe operária, destinada a fundar uma sociedade socialista através da revolução. A teoria marxista, ao invés de sistematizar as tendências históricas observáveis, tenta interromper as tendências fragmentadoras do capitalismo e garantir o que seria o "curso natural da história". Essa separação entre teoria e prática no interior da corrente marxista é sintoma da crise (Burity, 1997).

Nesse contexto, as principais respostas à crise do marxismo surgem na ortodoxia, no revisionismo de Bernstein e no sindicalismo revolucionário de Sorel. A resposta do marxismo ortodoxo consistiu, de um modo geral, na afirmação do caráter transitório das tendências observadas no capitalismo, uma vez que as suas premissas teóricas seriam garantidas, no futuro, pelo movimento evolutivo da economia, encarregada de superar a dispersão e a fragmentação (Laclau e Mouffe, 2004).

É possível afirmar que o revisionismo de Bernstein dá um passo à frente, na medida em que defende que a unidade de classe só pode ser garantida através de uma intervenção política autônoma, garantindo, dessa forma, a autonomia do político em relação à infraestrutura2 2 Para Laclau e Mouffe (2004, p. 62), o que permitiu a mudança de estratégia de Bernstein em favor da articulação política foi sua compreensão de que nem a evolução da economia conduzia à protelarização e à polarização crescente e de que não se podia esperar a transição para o socialismo após uma crise econômica. . Contudo, os autores ressaltam que o revisionismo também apresenta limitações teóricas, uma vez que, ao afirmar que a unidade se constrói autonomamente no nível político, não explica como essa unidade política conduz necessariamente a uma identidade de classe. Segundo eles, a política não pode assegurar o caráter classista dos sujeitos unitários (Laclau e Mouffe, 2004).

O sindicalismo revolucionário, por sua vez, encontra-se à frente das outras teorizações por ter dado mais importância à contingência, ao rejeitar o evolucionismo e ao substituir a totalidade social pela ideia de mélange; ele concebe as classes sociais como polos de agregação de forças, em contraste direto com a ideia estrutural da classe. Ademais, a unidade das forças em luta é vista como de natureza imaginária. No entanto, sua reconstituição mítica do sujeito também remete a um caráter classista (Burity, 1997). A respeito de todas essas respostas, Joanildo Burity (1997, p. 11) afirma que

em todas estas alternativas, a despeito de suas claras diferenças, permanece o mesmo dilema: a insuficiência da infraestrutura como garantia da unidade de classe no presente não é superada pela política, a qual, se é capaz de construir a unidade no presente, não pode garantir que esta unidade venha a ter um caráter de classe. Em todas elas permanece um elemento dualista que só consegue dar conta da relação entre necessidade e contingência como limitação de uma pela outra, numa relação de fronteiras. Só que os dois polos não estão no mesmo nível: a determinação (ao estabelecer sua especificidade - enquanto determinação pelo econômico - como necessária) é que define os limites da indeterminação, tornando-a um mero suplemento.

Joanildo Burity (1997, p. 8) ressalta ainda que, apesar das limitações de todas essas tentativas de respostas à crise do marxismo, elas se destacam pela crescente sensibilidade para com a contingência do processo histórico e político e porque seus discursos desconstroem o marxismo pouco a pouco. Nesse contexto, o conceito de hegemonia surge para preencher o vazio deixado pela categoria marxista de necessidade histórica e responder às situações concretas de contingência.

A noção de hegemonia surge na social-democracia russa para descrever as limitações da burguesia, insuficientemente desenvolvida, em exercer suas próprias tarefas, o que obrigou a classe operária a sair de si mesma e assumir tarefas que não lhe eram próprias. O problema central era o de saber como dotar de um máximo de eficácia política as lutas operárias, num contexto histórico de contingência. Laclau e Mouffe (2004, p. 80) apontam que, na perspectiva da social-democracia russa, o conceito de hegemonia corresponde a uma relação anômala, uma vez que há uma separação entre a natureza de classe de uma tarefa e o agente histórico que a executa. Desse modo, surge a oposição entre um interior necessário, que corresponde ao desenvolvimento normal na execução de uma tarefa de classe, e um exterior contingente, em que uma classe assume tarefas que não são suas. Entretanto, os autores destacam que, enquanto a noção de hegemonia assumiu um caráter positivo na social-democracia russa, já que proporcionou a tomada do poder político pelo proletariado, nas demais teorizações posteriores a hegemonia assume uma conotação negativa.

A concepção da exterioridade do vínculo hegemônico também está presente em Lênin, para quem a hegemonia é vista como direção política fundada numa aliança de classes. Essa aliança, contudo, não conduz à transformação das identidades de classe a partir da incorporação das reivindicações de outros grupos. Ao invés disso, as relações entre vanguarda e massa têm um caráter puramente externo e manipulatório e há uma clara separação entre setores dirigentes e dirigidos, marcada por uma prática política crescentemente autoritária. É possível perceber que Lênin reproduz a distinção entre tarefa normal e classe hegemônica observada na social-democracia russa (Laclau e Mouffe, 2004, pp. 86-88).

De acordo com Laclau e Mouffe (2004, pp. 100-102), a concepção de hegemonia de Gramsci representou um verdadeiro divisor de águas no pensamento marxista, na medida em que amplia o terreno atribuído à recomposição política e à hegemonia para além da aliança de classes, afirmando a necessidade de uma liderança intelectual e moral que permita aos grupos sociais se distanciarem de uma postura corporativista e se unirem aos interesses de outros grupos. Essa liderança intelectual e moral pressupõe o compartilhamento de ideias e valores por vários grupos sociais e é a base da formação de uma vontade coletiva que, através da ideologia, passa a ser o cimento orgânico unificador do bloco histórico.

Segundo os autores, a concepção gramsciana de liderança intelectual e moral permite pensar que certas posições de sujeito cortam transversalmente vários setores de classe3 3 A noção de posições de sujeito no interior de uma estrutura discursiva se contrapõe diretamente ao privilégio das classes sociais e à garantia de sua unidade devido aos interesses comuns determinados pela posição nas relações de produção. Nesse sentido, toda posição de sujeito é uma posição discursiva, que participa do caráter aberto do discurso e que não fixa totalmente essas posições em um sistema fechado de diferenças (Laclau e Mouffe, 2004, p. 156). . Ademais, os conceitos de Gramsci representam um deslocamento em relação ao pensamento leninista que permite dar visibilidade e teorizar a especificidade relacional do vínculo hegemônico, até então escamoteada. A conceituação de uma série de novas relações sociais é possibilitada pela introdução da concepção gramsciana de ideologia, que assinala o terreno preciso de sua constituição (Laclau e Mouffe, 2004, p. 101). Laclau e Mouffe percebem a teoria da ideologia de Gramsci como uma ruptura em relação à concepção negativa de ideologia e ao modelo determinista da ideologia pautado na base-superestrutura em favor de uma concepção material da mesma (Barret, 1996, p. 246). A ideologia é definida pelos autores como

um todo orgânico e relacional, encarnado em aparatos e instituições, que solda em torno a certos princípios articulatórios básicos a unidade de um bloco histórico (Laclau e Mouffe, 2004, p. 101).

Outro deslocamento possibilitado por Gramsci corresponde à ruptura com a problemática reducionista da ideologia, uma vez que nem os sujeitos políticos são percebidos como classes, nem os elementos ideológicos articulados pela classe hegemônica têm uma pertinência de classe necessária. Os sujeitos políticos correspondem às vontades coletivas, resultantes de articulações políticas e ideológicas das forças históricas dispersas e fragmentadas. Também a noção de contingência aparece mais ampliada em Gramsci, já que os elementos sociais perdem a conexão com o paradigma etapista e o seu sentido depende das articulações hegemônicas, que não estão garantidas por nenhuma lei histórica; "os distintos elementos e as tarefas carecem de toda identidade à margem de sua relação com as forças que os hegemoniza" (Laclau e Mouffe, 2004, pp. 101-103).

Apesar de seu avanço em relação aos outros discursos marxistas, Gramsci não supera totalmente o dualismo do marxismo clássico, pois sustenta dois princípios que não estão sujeitos à luta hegemônica porque se formam na infraestrutura econômica e esta esfera não está sujeita à lógica da hegemonia. Esses princípios correspondem à unicidade do princípio unificante e seu caráter necessário de classe. Disto decorre que a hegemonia de classe não resulta inteiramente da luta política, mas pressupõe, em última instância, um fundamento ontológico. Essa ambiguidade pode ser percebida claramente nos conceitos de Gramsci como o de guerra de posição, que se constitui, por um lado, como um avanço em relação ao marxismo clássico, na medida em que a identidade não aparece fixada desde o começo e se constitui no processo, por outro, afirma que o núcleo de classe da nova hegemonia se mantém durante todo o processo (Laclau e Mouffe, 2004, pp.103-105).

Deste modo, Laclau e Mouffe (2004, pp. 22-23) apontam que o pensamento de Gramsci constitui apenas um momento transicional na desconstrução do paradigma político essencialista do marxismo clássico e que é necessário ir além do seu pensamento, em direção à desconstrução da própria noção de classe social, fundamental à compreensão das sociedades contemporâneas. Em Hegemonia e estratégia socialista, o objetivo teórico dos autores é justamente preen-cher as lacunas deixadas pelo marxismo clássico, a partir de uma reflexão que tem como ponto de partida o arcabouço conceitual elaborado por Gramsci, especialmente a sua teorização sobre hegemonia. Eles tentam ligar a lógica político-interpretativa de Gramsci à crítica filosófica radical, ancorando-se, para tanto, nas reflexões da corrente pós-estruturalista, principalmente na teoria lacaniana e no desconstrucionismo de Derrida.

Eles são considerados pós-marxistas, uma vez que fazem uma releitura da tradição marxista e questionam a adequação das suas principais categorias à sociedade contemporânea, desconstruindo algumas de suas categorias centrais. Entretanto, afirmam que só concordam com essa denominação se ela for entendida como processo de reapropriação de uma tradição intelectual. Enfatizam ainda que o desenvolvimento desta tarefa não pode ser considerado como uma história interna do marxismo, pois sua importância está no fato de que problemas cruciais à compreensão da sociedade contemporânea - tais como a emergência de novos antagonismos sociais - não estão incluídos no discurso marxista e são fundamentais à postulação de novos pontos de partida para a análise social (Laclau e Mouffe, 2004, p. 10).

Segundo Joanildo Burity (1997), o pós-marxismo consiste num acerto de contas com o legado marxista no sentido de se contrapor ao seu objetivismo, essencialismo e determinismo e, mais ainda, demonstrar que o progressivo abandono destas categorias tem uma história interna no marxismo, que pode ser percebida na evolução de conceitos como o de hegemonia. Desse modo, o novo enfoque se funda no privilégio do momento da articulação política e tem como categoria central dessa análise política o conceito de hegemonia (Laclau e Mouffe, 2004, p. 10).

Laclau e Mouffe (2004, pp. 10-12) afirmam que nessa transição para o pós-marxismo se faz necessário assumir uma perspectiva ontológica distinta, na qual rejeitam o modelo da sociedade como totalidade que determina todo tipo de arranjo estrutural através de suas leis internas. Em contraposição, consideram a abertura do social como constitutiva; como

"essência negativa" do existente [...] não existe um espaço suturado que possamos conceber como uma "sociedade", já que o social careceria de essência (Laclau e Mouffe, 2004, p. 132).

Ademais, o caráter aberto e incompleto do social é precondição de toda prática hegemônica e, consequentemente, nenhuma lógica hegemônica consegue dar conta da totalidade do social, pois neste caso se produziria uma nova sutura e o próprio conceito de hegemonia se autoeliminaria (Laclau e Mouffe, 2004, p. 186).

Nesse sentido, a indecibilidade estrutural é condição de possibilidade da hegemonia. Sem indecibilidade e contingência não é possível pensar as rearticulações hegemônicas contingentes e a política como atividade autônoma. Assim é que a hegemonia é vista como a tomada de decisão em bases indecidíveis. Burity (1997, p. 17) ressalta que a indecibilidade não impede a tomada de decisão, mas define a ausência de uma lei imanente ou necessidade lógica.

A noção althusseriana de sobredeterminação também assume um importante papel na constituição do terreno em que se constrói um conceito adequado de articulação. A sobredeterminação se constitui no campo do simbólico e carece de toda significação fora dele. Quando Althusser afirma que não há nada no social que não esteja sobredeterminado significa que o social se constitui como ordem simbólica. O caráter sobredeterminado das relações sociais aponta que elas carecem de uma literalidade última e que não se podem fixar um sentido literal último. Deste modo,

a sociedade e os agentes sociais careceriam de essência e suas regularidades consistiriam tão só nas formas relativas e precárias de fixação que têm acompanhado a instauração de uma certa ordem (Laclau e Mouffe, 2004, p. 134).

Althusser desenvolveu este conceito com o intuito de romper com o essencialismo ortodoxo a partir da crítica de todo tipo de fixação e do caráter aberto e incompleto de toda identidade. Muito embora não tenha conseguido romper totalmente com o marxismo, já que remete à determinação pela economia em última instância, ele proporciona o arcabouço teórico para pensar a identidade como relacional (Laclau e Mouffe, 2004, p. 142). A identidade de um termo não está dada nele mesmo, mas depende da relação que ele estabelece com outros termos num sistema de diferenças. Além disso, toda identidade é considerada instável e historicamente situada, na medida em que estruturas discursivas, inassimiláveis ou antagônicas, impedem o fechamento de uma totalidade. Neste sentido, a objetividade de qualquer tipo de sutura ou fechamento pode ser questionada, "dada a negatividade inerente ao 'exterior constitutivo' de toda identidade" (Burity, 1997, p. 10).

Depois de apresentar o caráter relacional de toda identidade, Laclau e Mouffe (2004, pp. 142-143) definem a articulação como

toda prática que estabelece uma relação tal entre elementos que a identidade destes resulta modificada como resultado desta prática. A totalidade estruturada resultante da prática articulatória a chamaremos de discurso.

A categoria discurso tem por intuito ressaltar que toda configuração social é significativa e que o sentido de um dado evento social não está dado de antemão, não lhe é inerente, só aparece num sistema de relações. Esse sistema de relações que dá sentido ao objeto seria o discurso (Burity, 1997, pp. 7-8).

Laclau e Mouffe (2004) ressaltam que, apesar de atribuírem à sua concepção de formação discursiva um tipo de coerência interna muito próxima à da elaborada por Foucault - de regularidade na dispersão - distanciam-se deste último na distinção que ele faz entre práticas discursivas e extradiscursivas. Para eles, todo objeto se constitui como objeto do discurso e nenhum objeto se dá à margem de toda superfície discursiva de emergência. Nas palavras de Burity (1997, p. 7),

ambas as dimensões, palavras e ações, fazem parte de uma configuração mais ampla que lhes dá sentido e estabelece as relações entre elas - um jogo de linguagem no sentido wittgensteiniano, um discurso.

Apesar da impossibilidade de fixação de um sentido, o social só existe como esforço de produzir este objeto impossível através de fixações parciais de sentido, pois sem isso não há possibilidade de um fluxo de diferenças nem mesmo como diferir ou subverter um sentido. Desse modo, o discurso se constitui com o intuito de dominar o campo da discursividade, de deter o fluxo das diferenças e constituir um centro. Os pontos discursivos privilegiados na fixação parcial de sentido são denominados pontos nodais. Laclau e Mouffe (2004, p. 154) apontam que

a prática da articulação consiste, portanto, no caráter parcial dessa fixação; e o caráter parcial dessa fixação procede da abertura do social, resultante por sua vez do constante extravasamento de todo discurso pela infinitude do campo da discursividade.

A noção de antagonismo também desempenha um papel central na nova abordagem do conceito de hegemonia. A relação antagônica impossibilita a constituição de identidades plenas, na medida em que a presença do Outro impede a constituição do eu. Por outro lado, a força que antagoniza também não possui uma presença plena, mas apenas se constitui como um símbolo do não ser. Deste modo, o antagonismo constitui os limites de toda objetividade, a experiência do limite do social e sua impossibilidade de se constituir plenamente, uma vez que nunca consegue instituir a sociedade (Laclau e Mouffe, 2004, pp. 168-169). A importância do antagonismo se deve ao fato de que ele fecha toda possibilidade de uma reconciliação final e de um nós plenamente inclusivo; a ideia de uma esfera pública sem exclusões, dominada pela argumentação racional, constitui uma impossibilidade conceitual. O conflito e a divisão são necessários mesmo à formação de uma política democrática e plural (Laclau e Mouffe, 2004, p. 18).

Nesse sentido, o projeto democrático deve reconhecer que não há possibilidade de uma resolução final e que toda forma de consenso é resultante de uma articulação hegemônica. Os autores ressaltam ainda que essa articulação deve se desenvolver a partir de um enfrentamento com práticas articulatórias antagônicas; caso contrário não se pode falar de hegemonia. Desse modo, as condições necessárias ao estabelecimento de uma articulação hegemônica correspondem à presença de forças antagônicas e a instabilidade das fronteiras que as separam. Diante de um campo cercado por antagonismos e da abertura do social, são os fenômenos de equivalência e os fenômenos de fronteira que possibilitam a relação hegemônica (Laclau e Mouffe, 2004, p. 179).

A lógica de equivalência corresponde a uma simplificação do espaço político em dois campos antagônicos e inconciliáveis, enquanto a lógica da diferença tende a expandir e tornar complexo esse espaço. Já que uma identidade negativa não pode ser representada de forma direta, positivamente, ela é representada de forma indireta pela equivalência de seus momentos diferenciais. Na relação de equivalência, as diferenças mútuas são canceladas ou redefinidas devido à centralidade do que é idêntico a todas elas, mas que não podem ser construídos de maneira positiva. Através da equivalência, certas formas discursivas anulam a positividade de um objeto e dão uma existência real à negatividade enquanto tal (Laclau e Mouffe, 2004, pp. 171-174).

Segundo os autores, a dialética que se estabelece entre a lógica da diferença e a lógica da equivalência possibilita a universalidade da relação hegemônica, concebida de maneira bem particular e específica, uma vez que o vínculo hegemônico transforma a identidade dos sujeitos. Segundo eles,

os meios de representação só podem consistir em uma particularidade cujo corpo se divide, dado que, sem cessar de ser particular, ela transforma seu corpo na representação de uma universalidade que o transcende - a da cadeia equivalencial. Esta relação, pela qual uma certa particularidade assume a representação de uma universalidade inteiramente incomensurável com a particularidade em questão, é o que chamamos uma relação hegemônica (Laclau e Mouffe, 2004, p. 13).

Consequentemente, essa universalidade está em constante tensão com a particularidade e é sempre reversível. Os autores sublinham que este tipo de universalidade hegemônica é a única que a comunidade política pode alcançar. Além disso, dada a nova configuração do social, em meio à fragmentação e ao aparecimento de novos antagonismos sociais, os autores defendem a necessidade de criação de uma nova hegemonia através de uma cadeia de equivalências entre as várias lutas contra as diferentes formas de subordinação (Laclau e Mouffe, 2004).

Esta é uma das condições para redefinir o projeto socialista em termos da radicalização da democracia. Neste contexto, "o tema da democracia surge como horizonte de possibilidade da luta hegemônica na direção de uma concepção plural e aberta do social" (Burity, 1997, p. 17). O projeto de uma democracia radical e plural, proposto como meta da nova esquerda, tem como objetivo radicalizar a "revolução democrática" iniciada no século XVIII, que inseriu os ideais de igualdade e liberdade no imaginário social a fim de estendê-los a esferas cada vez mais numerosas da sociedade e do Estado4 4 Ao falar de revolução democrática, os autores se referem ao movimento iniciado no século XVIII que tinha por objetivo se contrapor às relações hierárquicas através da generalização da igualdade e da liberdade. Apesar de afirmarem a impossibilidade de realização plena desse projeto, os autores entendem que esses ideais foram incorporados ao senso comum através da ideologia liberal-democrática e de alguns discursos de matriz socialista. (Laclau e Mouffe, 2004, p. 23). Joanildo Burity (1997, p. 18) aponta a ressalva feita pelos autores de Hegemonia e estratégia socialista, no sentido de que a lógica democrática, entendida como tentativa de eliminação das relações de subordinação, não é suficiente para o estabelecimento de um aparato hegemônico. Faz-se necessária também a criação de uma política construtiva que possibilite a instituição de uma nova ordem social.

Michèle Barret (1996, p. 250) afirma que Laclau e Mouffe abordam importantes problemas para se pensar a sociedade contemporânea, tais como o deslocamento do privilégio da classe social como categoria ontológica em favor de outras divisões sociais proeminentes, como o sexo e a etnia. Deste modo, ela aponta que há um crescente interesse em torno da obra destes autores não apenas no âmbito acadêmico, mas também na atividade política prática em todo tradicional espectro direita/esquerda.

Na breve exposição acerca da abordagem da hegemonia em Laclau e Mouffe, é possível perceber os pontos em que eles se aproximam de Gramsci e também os pontos de ruptura. As duas abordagens privilegiam o momento da articulação política e concebem as relações sociais em torno da disputa pela hegemonia. Ademais, reconhecem que a hegemonia não é exercida sobre toda a sociedade. As duas perspectivas defendem a criação de uma nova hegemonia baseada na aliança dos grupos subalternos, ou na criação de uma cadeia de equivalências, no caso de Laclau e Mouffe. Contudo, no caso de Gramsci, a prática articulatória remete a uma classe social fundamental. A ideologia assume um papel central em ambas as perspectivas, concebida como constitutiva do social. Além disso, os elementos ideológicos articulados pela classe hegemônica não têm uma pertinência de classe necessária.

Contudo, o principal ponto de ruptura entre as duas perspectivas é que, enquanto em Gramsci a hegemonia remete à unidade de todo bloco histórico, Laclau e Mouffe questionam todo tipo de sutura, pois consideram que isso seja impossível. Toda tentativa de fechamento e de fixação de sentido é ideológica. Essas posturas refletem diretamente no projeto de sociedade defendido por esses autores. Enquanto Gramsci considera possível a instauração do socialismo e de uma sociedade sem classes, em que o próprio partido e a atividade política desapareceriam, para Laclau e Mouffe não há possibilidade de uma reconciliação final, uma vez que o antagonismo é constitutivo do social e que ele apresenta um caráter aberto e incompleto. Deste modo, afirmam que a democracia não tem lugar num terreno neutro e "o estabelecimento de uma nova hegemonia requer a criação de novas fronteiras políticas e não a sua desaparição" (Laclau e Mouffe, 2004, p. 16).

Outros materiais

  • ANDERSON, P. 1989. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Brasiliense.
  • BARRÈT, M. 1996. "Ideologia, política e hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe". In: ZIZEK, S. (org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto.
  • COUTINHO, C. 1992. Gramsci: um estudo sobre o seu pensamento político. Rio de Janeiro: Campus.
  • GRAMSCI, A. 1978a. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • ____. 1978b. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • ____. 1978c. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • ____. 2002. Cadernos do cárcere. Vol. 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
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  • LACLAU, E. 1993. "Discourse". In: GODDIN, R.; PETTIT, P. (orgs.). The blackwell companion to political philosophy. Oxford: Blackwell.
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  • 1
    Esta segunda geração do marxismo é caracterizada principalmente pelo seu distanciamento do proletariado e por uma postura mais acadêmica e próxima da universidade. É importante enfatizar que Gramsci teve um afastamento forçado da vida política, já que foi preso pelo governo Mussolini em 1926 devido à sua atividade política como um dos fundadores e dirigente máximo do Partido Comunista Italiano, bem como à sua oposição aberta ao fascismo.
  • 2
    Para Laclau e Mouffe (2004, p. 62), o que permitiu a mudança de estratégia de Bernstein em favor da articulação política foi sua compreensão de que nem a evolução da economia conduzia à protelarização e à polarização crescente e de que não se podia esperar a transição para o socialismo após uma crise econômica.
  • 3
    A noção de posições de sujeito no interior de uma estrutura discursiva se contrapõe diretamente ao privilégio das classes sociais e à garantia de sua unidade devido aos interesses comuns determinados pela posição nas relações de produção. Nesse sentido, toda posição de sujeito é uma posição discursiva, que participa do caráter aberto do discurso e que não fixa totalmente essas posições em um sistema fechado de diferenças (Laclau e Mouffe, 2004, p. 156).
  • 4
    Ao falar de revolução democrática, os autores se referem ao movimento iniciado no século XVIII que tinha por objetivo se contrapor às relações hierárquicas através da generalização da igualdade e da liberdade. Apesar de afirmarem a impossibilidade de realização plena desse projeto, os autores entendem que esses ideais foram incorporados ao senso comum através da ideologia liberal-democrática e de alguns discursos de matriz socialista.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      2010
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