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Pensamento social brasileiro, um campo vasto ganhando forma

DOSSIÊ PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO

Pensamento social brasileiro, um campo vasto ganhando forma

Nos últimos trinta anos, pesquisas sobre as tradições intelectual, cultural, social e política brasileiras, ao se identificarem e serem identificadas como "pensamento social brasileiro", contribuíram para dar forma a esta área de pesquisa que, hoje, tem apresentado uma dinâmica muito particular e amplas condições de afirmação no âmbito das ciências sociais praticadas no Brasil. Condições, porém, que não tornam autoevidentes as fronteiras entre o pensamento social e outras áreas de pesquisa, ou mesmo outros campos do conhecimento nas ciências humanas. Longe de ser uma limitação, tal aspecto parece, antes, constituir vantagem em meio ao labirinto da especialização acadêmica contemporânea.

Observa-se, assim, o próprio alargamento da noção de "pensamento social", operado, em parte, pelo caráter multidisciplinar da área de pesquisa, que compreende não apenas as três disciplinas básicas das ciências sociais – a antropologia, a ciência política e a sociologia –, como ainda a história, a teoria literária e a filosofia política, entre outras disciplinas. E um dos principais efeitos dessa orientação recente, e mais flexível e ampla, tem sido o de reverter a imagem, algo difundida no passado não tão remoto das ciências sociais brasileiras, que via a pesquisa em torno do pensamento social como um tipo de conhecimento antiquário, sem maior significação para a sociedade e para as ciências sociais contemporâneas. Hoje, aproximando questões do passado às indagações contemporâneas, a área compreende pesquisas voltadas tanto para as grandes temáticas de estudo da formação da sociedade brasileira nas várias dimensões desse processo, que se irradiam pelas questões da modernização, modernidade e mudança social, construção e transformação do Estado-nação, cultura política e cidadania; quanto para as diferentes modalidades de produtores e de produção intelectual e artística em sentido amplo (literatura, artes plásticas, fotografia, cinema, televisão e teatro) e da própria cultura como sistema de valores e formas de linguagem.

Em consonância com a produção e o debate internacionais no domínio das ciências sociais, podem-se assinalar, ainda, algumas alterações importantes nesse campo de pesquisas, como o interesse pelos processos sociais não apenas de produção, mas também de aquisição, transmissão e recepção das diferentes formas de conhecimento; a visão dos detentores do conhecimento como um grupo maior e mais variado do que antes; o interesse pela vida intelectual cotidiana de pequenos grupos, círculos ou redes vistas como unidades fundamentais que constroem e difundem o conhecimento; e o interesse por novas clivagens como as de gênero, idade, região e raça e suas inflexões no pensamento social e na produção cultural.

Essa maior pluralização das abordagens não se tem feito, no entanto, desacompanhada da avaliação e busca de novas e consistentes visões sintéticas de alguns dos dualismos conceituais e metodológicos característicos não apenas da área de pesquisa, mas das ciências sociais em geral. É o caso, para permanecer num plano mais geral, da busca de sínteses entre as abordagens que, de modo mais ou menos disjuntivo, ora privilegiam análise de textos, identificada genericamente à história das ideias e da arte, ora a reconstrução de contextos, identificada à história intelectual ou cultural. Não se trata obviamente de questionar a validade dessas abordagens. Muito pelo contrário, representa antes o reconhecimento de que a busca de novas visões sintéticas significa, entre outros, condição para que se possa aperfeiçoar e até mesmo completar movimentos analíticos próprios. Antes centrado quase exclusivamente na pesquisa dos processos de constituição social das ideias, das artes ou da intelligentsia, interessa também especificar como estas, levando em conta as relações mais ou menos condicionadas que mantêm com os grupos sociais e as sociedades que as engendram, participam reflexivamente da construção do próprio social. Ou seja, como a vida social envolve não apenas estruturas e recursos materiais, como também imateriais – culturais, simbólicos e políticos –, é preciso agora avançar no conhecimento de como estes últimos, em interação histórica contingente com os primeiros, podem ou não influenciar a ordem social de que fazem parte e também serem elementos relevantes para as possibilidades de ação coletiva e mudança social. Não mais apenas condicionadas por determinantes políticos e sociais, análises mais propriamente culturais ganham nova relevância na área, agora como elementos explicativos fundamentais.

Essas são questões cruciais que abrem novas frentes de reflexão e de pesquisa, bem como desafios teórico-metodológicos para a área de pensamento social brasileiro, cujas diferenças e relações de continuidade com outras especialidades acadêmicas, como a sociologia do conhecimento, da cultura ou a teoria social, ou as teorias culturais e simbólicas, passam a ser, então, mais sistematicamente problematizadas e exploradas. Mas são questões importantes acima de tudo porque suscitadas pela articulação e tensão entre as diversas formas de conceber e apreender o próprio pensamento social brasileiro, tal como ele vem sendo praticado e ganhando forma nas últimas três décadas. Essas e outras problemáticas, como os leitores poderão constatar, estão presentes de diferentes modos no dossiê que organizamos. Com ele procuramos estimular a reflexão sobre, de um lado, as conquistas cognitivas do pensamento social como área de pesquisa e sua consolidação; e, de outro, sobre a abertura de novas frentes de investigação e o enfrentamento consistente de desafios mais recentes, teórico-metodológicos, que se colocam à área e às ciências sociais de uma maneira geral. Entendemos que essas são condições para aprofundar e aperfeiçoar o conhecimento da formação da sociedade brasileira, nas várias dimensões desse processo, bem como dos próprios instrumentos de análise da área de pesquisa.

O dossiê compõe-se de duas partes. Para a primeira, convidamos quatro pesquisadores com inscrições muito diferentes na área de pensamento social brasileiro, um deles sequer podendo ser associado a ela, para desenvolverem artigos sobre temas emergentes, talvez pouco ortodoxos e/ou provocativos. Assim, Renato Lessa desenvolve uma abordagem cognitiva crítica, alternativa à institucional, para compreender a formação da ciência política no Brasil, as demarcações implicadas nesse processo e seus efeitos sobre a distinção entre "intérpretes do Brasil" e "cientistas". O autor examina ainda a experiência norte-americana como fonte para essa reorientação do conhecimento político sistemático no Brasil, sustentado especialmente nas vertentes do neoinstitucionalismo e da rational choice, a partir de fins da década de 1980.

O artigo de Esther Hamburger traz importante balanço acerca da produção recente, e nem tanto, em torno da televisão, especialmente da telenovela como produtora de interpretações do Brasil, e discute suas possibilidades heurísticas, campos de atuação e especificidades de sua produção e veiculação no Brasil.

Pedro Meira Monteiro apresenta artigo instigante acerca de como a área de pensamento social reage, reflete e produz conhecimento a partir de um olhar mais distanciado, já que visto do exterior: de fora para dentro mas também o contrário; de dentro para fora.

Já Arcadio Díaz Quiñones, esse professor porto-riquenho radicado em Princeton, referência das mais importantes na área de humanidades de maneira geral, nos presenteia com uma bela reflexão sobre os begginnigs de Fernando Ortiz e a influência inesperada do kardecismo. Partindo do conceito criado por Edward Said, Díaz Quiñones explora de que maneira Ortiz tomou de empréstimo uma noção precisa para ampliá-la e associá-la à ideia de transculturação.

Temos em mãos, pois, um excelente balanço de diferentes temáticas, locais de observação ou perspectivas renovadas, as quais, em conjunto, mostram a vitalidade e as possibilidades da área, que, como antes afirmamos, não se encerra em um recorte ou uma só problemática.

Já a segunda parte, "Simpósio: cinco questões sobre o pensamento social brasileiro", que dialoga de perto com essa primeira, traz os resultados do simpósio – sob a forma de questionário – que organizamos para esse número da revista. Propusemos cinco perguntas diretas a alguns dos mais renomados pesquisadores de várias regiões do país, e também com diferentes inscrições na área, mas todos de reconhecida influência e liderança, que objetivavam formar um panorama do pensamento social brasileiro com base nas suas experiências pessoais e institucionais. A ideia que nos orientou foi explorar não só concepções teóricas sobre a área, mas também adiantar maneiras de atuar em pesquisa, lecionar, formar programas ou elaborar cursos. O resultado, tendo em vista os doze pesquisadores que nos devolveram o questionário respondido, oferece uma bela visão de conjunto da constituição e do desenvolvimento contemporâneo dessa área de pesquisa e permite esboçar o seu perfil e desafios de modo bastante definido e consistente. Os seguintes pesquisadores responderam as cinco questões propostas: Angélica Madeira e Mariza Veloso, da UnB; Elide Rugai Bastos, da Unicamp; Glaucia Villas Bôas, da UFRJ; Lucia Lippi Oliveira, do CPDOC/FGV-RJ; Luiz Werneck Vianna, do Iesp/Uerj; Maria Arminda do Nascimento Arruda, da USP; Renan Freitas Pinto, da Ufam; Ricardo Benzaquen de Araújo, da PUC-RJ e Iesp/Uerj; Roberto Motta, da UFPE; Rubem Barboza Filho, da UFJF, e Sergio Miceli, da USP.

Na verdade, pesquisadores da área de pensamento social no Brasil vêm anotando o seu crescimento no país, assim como a existência de uma demanda crescente de textos básicos, mas também programas de leituras e formas de ensino. Esperamos, portanto, com esse dossiê, colaborar para que a área ganhe a expansão e penetração nacional, que bem merece, como que encontre desafios no sentido de incentivar a formação de novos núcleos pelo país, bem como sedimentar os já existentes.

Jorge Luis Borges, em Torre de babel, afirmou que "tudo que existe tem nome, ou ganha um". Não se trata de nomear uma área que já possui grupos tradicionais e longevos, ou intelectuais identificados a ela. Mas vale a pena explicitar modelos, métodos, perspectivas e mesmo variações e ruídos com o intuito de mostrar como anda vivo e atuante esse nicho das ciências sociais que ganha o nome de "pensamento social no Brasil".

Lilia Moritz Schwarcz e André Botelho,

fevereiro de 2011

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2011
  • Data do Fascículo
    2011
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