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O caso da Viena Vermelha

The Case of Red Vienna

Resumos

O artigo apresenta uma análise da experiência democrática realizada na cidade de Viena entre os anos de 1919-1934. O experimento conhecido como Viena Vermelha, fundado com grande participação popular (em especial, das massas operárias organizadas fortemente pelo Partido Social Democrático Austríaco) sob a liderança do marxista austríaco Otto Bauer, realizou transformações urbanas, por meio de maciça política habitacional de amplo sentido democrático. Seguiram-se inovações pedagógicas, sanitárias, organizacionais, como a formação de conselhos de cidadãos que atuavam em espaços públicos, construídos para a deliberação sobre as questões públicas e para definição de políticas de gestão da cidade. A transformação política e democrática gerada nesse processo foi profunda, resultando na metamorfose da cidade de Viena de aristocrática em uma cidade de forte cultura democrática. O autor atribui tal experiência, admirada e imitada em todo mundo, como o maior trunfo do chamado austro-marxismo.

Viena Vermelha; Cidade Democrática; Austro-marxismo; Partido Social Democrático Austríaco; Democracia de Conselhos


The article presents an analysis of the democratic experiment performed in Vienna between the years 1919-1934. The experiment known as Red Vienna - which was founded with great popular participation (especially of the working masses strongly organized by the Austrian Social Democratic Party) under the leadership of the Austrian Marxist Otto Bauer - held urban transformations through massive housing policy with broad democratic sense. It was followed by pedagogical, sanitarian, organizational innovations, as the formation of councils of citizens who act in public spaces, which was built for public deliberation about issues and for definition of policies to city management. The political and democratic transformation generated in this process was profound, resulting in the metamorphosis of the city of Vienna from an aristocratic city to one with a strong democratic culture. The author attributes this experience, admired and emulated around the world, as the greatest trump of the so called Austro-Marxism.

Red Vienna; Democratic City; Austro-Marxism; Austrian Social Democratic Party; Councils' Democracy


DOSSIÊ DEMOCRACIA EM DEBATE

O caso da Viena Vermelha* * Tradução de Milton Camargo Mota.S

The Case of Red Vienna

Siegfried Mattl

Professor do Instituto de História da Universidade de Viena

RESUMO

O artigo apresenta uma análise da experiência democrática realizada na cidade de Viena entre os anos de 1919-1934. O experimento conhecido como Viena Vermelha, fundado com grande participação popular (em especial, das massas operárias organizadas fortemente pelo Partido Social Democrático Austríaco) sob a liderança do marxista austríaco Otto Bauer, realizou transformações urbanas, por meio de maciça política habitacional de amplo sentido democrático. Seguiram-se inovações pedagógicas, sanitárias, organizacionais, como a formação de conselhos de cidadãos que atuavam em espaços públicos, construídos para a deliberação sobre as questões públicas e para definição de políticas de gestão da cidade. A transformação política e democrática gerada nesse processo foi profunda, resultando na metamorfose da cidade de Viena de aristocrática em uma cidade de forte cultura democrática. O autor atribui tal experiência, admirada e imitada em todo mundo, como o maior trunfo do chamado austro-marxismo.

Palavras-Chave: Viena Vermelha; Cidade Democrática; Austro-marxismo; Partido Social Democrático Austríaco; Democracia de Conselhos.

ABSTRACT

The article presents an analysis of the democratic experiment performed in Vienna between the years 1919-1934. The experiment known as Red Vienna – which was founded with great popular participation (especially of the working masses strongly organized by the Austrian Social Democratic Party) under the leadership of the Austrian Marxist Otto Bauer – held urban transformations through massive housing policy with broad democratic sense. It was followed by pedagogical, sanitarian, organizational innovations, as the formation of councils of citizens who act in public spaces, which was built for public deliberation about issues and for definition of policies to city management. The political and democratic transformation generated in this process was profound, resulting in the metamorphosis of the city of Vienna from an aristocratic city to one with a strong democratic culture. The author attributes this experience, admired and emulated around the world, as the greatest trump of the so called Austro-Marxism.

Keywords: Red Vienna; Democratic City; Austro-Marxism, Austrian Social Democratic Party, Councils' Democracy.

Nas últimas eleições vienenses, jornais da Áustria e da Alemanha comentaram o atual conflito entre o governo municipal social-democrata e o populista e direitista Partido da Liberdade com o bordão: "Dessa vez trata-se da luta pelo programa de habitação municipal". O bordão tinha dois significados. De um lado, queria dizer que os conjuntos habitacionais de Viena, construídos nas décadas de 1920 e 1930, haviam se tornado cenário real para acalorados debates sobre migração – o dominante e controverso tópico da política tanto vienense como europeia desde meados da década de 1990. De fato, o acesso de moradias públicas a imigrantes tem alimentado um descontentamento social local, não só por causa do diferente estrato cultural de diversos grupos migrantes, mas também em virtude de questões triviais. Enquanto os imigrantes são constituídos de famílias jovens e com filhos, os moradores antigos são, na maioria, idosos sem laços familiares. Isso provoca diferenças significativas nos hábitos de vida, até mesmo com relação ao ritmo do dia a dia e ao uso do espaço público dentro dos conjuntos habitacionais como o playground, aceito em épocas mais remotas. O populista Partido da Liberdade tentou sistematicamente fazer dessas diferenças o pivô de sua política xenófoba e uma camada de sua campanha eleitoral. De outro lado, é preciso reconhecer o significado político e simbólico do bordão da luta pelos conjuntos habitacionais. Entre 1920 e 1933, a cidade de Viena construiu nada menos que 60 mil residências para 200 mil pessoas, sobretudo provenientes da classe trabalhadora. Esse programa de habitação social serviu como núcleo de um vasto programa de bem-estar social municipal, que incluía a construção de jardins de infância, playgrounds, bibliotecas, policlínicas e muito mais. Os grandes conjuntos habitacionais erguidos por toda a cidade receberam nomes homenageando Karl Marx, Friedrich Engels ou o poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe e atravessaram épocas como símbolo de um extraordinário experimento urbano socialista. Esses edifícios formam um mito moderno e vivo de Viena como a cidade do bem-estar social, da classe operária, como uma cidade igualitária. Além do mais, esse mito, nutrido pela figura monumental das habitações sociais, tornou-se parte de uma duradoura hegemonia social-democrata ao representar o partido e a prefeitura como gêmeos inseparáveis e lançar uma mentalidade genuinamente local em que a política se confunde cada vez mais com uma mera administração boa. Ousamos dizer que hoje o mito da Viena Vermelha e de seus conjuntos habitacionais municipais é caracterizado por ambiguidade política, uma vez que as ideias igualitárias originárias desapareceram e deram lugar a uma espécie de lobby. Principalmente por causa dessa ambiguidade deveríamos ampliar nosso conhecimento acerca dos princípios e dos programas políticos da Viena Vermelha.

Um breve panorama sobre os princípios do programa habitacional, com algumas referências implícitas a outros conceitos modernos de planejamento urbano (como o "Cidade Jardim"), parece necessário para avaliar o sucesso das Vienas Vermelhas:

• O que importa em primeiro lugar é a categoria de classe como uma particularidade das Vienas Vermelhas. O programa habitacional vienense tinha como foco explícito a camada mais baixa das famílias da classe trabalhadora. Critérios objetivos serviam para controlar o acesso às habitações sociais de acordo com necessidades econômicas, e os aluguéis baixos permitiam até mesmo aos muito pobres participar do programa.

• A modernidade serve como outro ponto de referência. O programa habitacional vienense estava comprometido com um ambiente saudável e higiênico, prescrevendo para as plantas dos apartamentos padrões de circulação de ar fresco e um mínimo de luz diurna e luz solar direta. Embora a Viena Vermelha compartilhasse esse objetivo com o famoso manifesto Carta de Atenas, soluções locais convincentes foram criadas para evitar cidades-satélite isoladas, como propunham planejadores hipermodernos.

• A próxima coisa a mencionar seria o conceito de urbanismo. Embora nos últimos anos os assim chamados superblocos com até 2 mil apartamentos constituíssem um tipo de cidade à parte, a política habitacional das Vienas Vermelhas se manteve dentro do modelo da cidade histórica. Os conjuntos foram construídos com fachadas ao longo das ruas e seguindo o modelo da cidade tradicional, integrando pequenas lojas, teatros e cinemas, restaurantes baratos e outros espaços funcionais ligados à densidade e diversidade da metrópole.

• Por fim, eu gostaria de mencionar o aspecto estético: o programa habitacional não estava comprometido com um estilo arquitetônico específico como o estilo Bauhaus em Frankfurt ou em Berlim. A arquitetura romântica se uniu a conceitos funcionais, e escolas arquitetônicas concorrentes produziram uma aparência polifônica para a nova face da cidade.

Dentro de dez anos, a começar por 1923, 350 conjuntos habitacionais haviam sido erguidos, oferecendo mais de 60 mil apartamentos. Além disso, a prefeitura subsidiava 5.250 centros comunitários [settlement houses], a maioria deles construída nos anos anteriores à declaração do programa habitacional em 1923. Mas os social-democratas não gostavam desses centros por razões políticas e financeiras. Em 1933, ano do golpe de Estado fascista na Áustria, as autoridades municipais contabilizavam um total de 554 mil casas em Viena. Em comparação com 1914, as novas construções da Viena Vermelha aumentaram em 10% o número de moradias. Se levarmos em conta a perda natural de edifícios mais velhos ao longo de duas décadas, esse número passa para quase 15%. Mas houve um aumento qualitativo também: em 1914, três quartos dos apartamentos vienenses consistiam em apenas um ou dois cômodos. As moradias dos conjuntos habitacionais normalmente ofereciam três cômodos além de uma cozinha por família; e pessoas solteiras também podiam habitar unidades menores. Antes da guerra, abrigos para sem-teto podiam acolher 1,8 mil pessoas. Em 1925, esse número havia caído para menos da metade. Diante desses números impressionantes, é preciso levar em conta o declínio populacional, já que nos anos 1918-1919 cerca de 200 mil habitantes – tchecos, eslovacos, croatas – deixaram a antiga capital dos Habsburgos em direção às respectivas capitais dos Estado-nação recém-fundados. No entanto, podemos observar uma melhoria substancial das condições de moradia, que mudaram a vida cotidiana do trabalhador. Juntamente com a regulamentação dos aluguéis, que explicaremos depois, o aumento do espaço para viver patrocinado pelo município diminuiu a dependência das famílias dos trabalhadores, tanto do mercado de trabalho como do mercado imobiliário, e fortaleceu seu poder social.

A política habitacional na Viena Vermelha se baseava em diferentes tipos de edifícios municipais, dependendo do lugar da construção e segundo o conceito de reterritorializar a cidade como um todo. Os tipos de edifícios variavam do seguinte modo:

• Conjuntos habitacionais que consistiam em vários edifícios diferentes, ligados por jardins e pátios irregulares (um exemplo é o Sandleitenhof);

• Prédios esquemáticos com extensas fachadas ao longo da rua e com uma nítida forma quadriculada (Jean-Jaurès-Hof);

• Conceitos axiais e monumentais de superblocos (Karl-Marx-Hof);

• Megablocos menos definidos;

• Por fim, o preenchimento de espaços vazios entre prédios.

Todos esses diferentes tipos ofereciam amplos jardins ou pátios que não só serviam de espaço para recreação, mas também continham as escadas para gerar laços estreitos entre os inquilinos. Por essa razão, a orientação da vida social em torno do pátio se tornou significativa para as habitações sociais das Vienas Vermelhas. Os críticos não se cansavam de apontar o efeito do estrito controle social dentro da comunidade de moradores, bem como o isolamento do mundo exterior e da vida nas ruas.

Os conjuntos habitacionais municipais se tornaram o principal símbolo da Viena Vermelha, e toda campanha eleitoral, às vezes com o reforço de filmes de ficção, apresentava os monumentos arquitetônicos como a peça central da política municipal socialista. Mas o âmbito da Viena Vermelha se estendia a outros campos da vida cotidiana.

Um dos pontos da política social era a prioridade dada ao cuidado público das crianças e jovens. Juntamente com as despesas na área da saúde pública, os gastos com o cuidado de crianças e jovens subiram um terço do total das despesas orçamentárias. Vale mencionar em primeiro lugar a criação de jardins de infância. Cada criança entre três e seis anos em Viena devia ter o direito de assistência num jardim de infância. Havia aporte de verbas do serviço social municipal para crianças de famílias mais pobres. Compreenderemos melhor a importância desse tipo de assistência se levarmos em conta que, ao final da Primeira Guerra, 90% das crianças abaixo de 15 anos eram consideradas desnutridas. Nos jardins de infância, as crianças recebiam café da manhã, almoço e lanche. Exames médicos periódicos identificavam e preveniam potenciais riscos à saúde. Enfermeiras trabalhavam em prol de novos modelos educacionais que priorizavam brincadeiras e atividades físicas. Baseando-se na pedagogia experimental de Maria Montessori, os jardins de infância vienenses focavam no desenvolvimento da personalidade individual das crianças.

Crianças mais velhas com problemas familiares podiam ficar em creches. Os custos se baseavam na renda familiar, porém mais da metade dos jovens recebiam cuidados e alimentação gratuitos. Órfãos e crianças abandonadas pelas famílias eram incluídos nos assim chamados Kinderübernahmstellen, sob salvaguarda especial do município. Delinquentes juvenis eram enviados para reformatórios municipais, onde o espírito experimental da Viena Vermelha era particularmente claro. A ordem militar que havia prevalecido nessas instituições foi dissolvida. Os jovens eram organizados, conforme seus talentos e interesses, em pequenos grupos que formavam a espinha dorsal da administração em vários níveis da vida nesses lares. Embora esses novos princípios não fossem baseados em ideias socialistas tradicionais, mas nas ideias do assim chamado Jugendbewegung ou movimento da juventude da Boêmia, eles condiziam com o foco dado pelas Vienas Vermelhas ao trabalho e à classe, mesmo que às vezes fossem criticados como um modo sutil de normalização e também de disseminação de valores pequeno-burgueses da vida familiar ordeira.

Até mesmo a assistência à saúde era centrada nas crianças e jovens. O assim chamado enxoval infantil, entregue a todo recém-nascido, era de extrema importância. Seu valor monetário correspondia aproximadamente ao salário semanal de uma família de trabalhadores. Seu valor social se devia ao fato de fazer parte do aconselhamento pré e pós-natal às mães. Nesse ponto, devemos retornar à ambivalência das políticas de reforma. Especialmente os trabalhos teóricos que serviram de base para o sistema de assistência à saúde se tornaram foco de intensa crítica. O motivo disso foram os axiomas biopolíticos estabelecidos pelo conselheiro de saúde municipal e médico Julius Tandler. Por meio do conceito de custos produtivos e improdutivos, ele legitimou a instituição de centros de aconselhamento familiar e matrimonial, o estabelecimento de instituições para alcoólatras e o monitoramento da saúde escolar. As despesas com saúdes eram permitidas contanto que capacitassem as pessoas para um trabalho produtivo, não porque simplesmente melhoravam a vida dos indivíduos. Segundo os conceitos de Tandler, instituições como aconselhamento matrimonial deveriam, antes de tudo, evitar que pessoas com doenças hereditárias trouxessem uma criança ao mundo. As críticas à orientação biopolítica de Tandler são totalmente justificadas. Mas o fato é que, na prática da Viena Vermelha, ideias como essas foram substituídas por conceitos abertos e experimentais. Por exemplo, os centros de aconselhamento sexual e matrimonial sob a influência de marxistas radicais como Wilhelm Reich deram lugar a terapias psicanalistas livres, que antes estavam disponíveis apenas a clientes ricos da sociedade psicanalítica de Sigmund Freud.

Além do programa habitacional do município, da assistência de saúde pública e juvenil, o terceiro pilar do socialismo municipal era o sistema escolar. Aqui também a categoria "classe" desempenhou um papel crucial. O sistema escolar das Vienas Vermelhas tinha como foco três princípios: participação, emancipação e acesso à educação. Os experimentos eram restritos às escolas de ensino primário, já que o programa de ensino médio ainda era a prerrogativa do ministro da educação de linha conservadora. Dentro desses limites, a administração municipal democratizou as escolas com a introdução de conselhos participativos. Os estudantes, professores e pais eram encorajados a eleger seus representantes. Juntamente com os alunos, os professores e pais formavam a comunidade escolar que discutia assuntos gerais, como os regulamentos das escolas. Para romper com o velho sistema baseado em classes e sua divisão entre educação secundária para famílias mais abastadas e escolas primárias para as camadas mais baixas, a Viena Vermelha ergueu novos tipos da assim chamada Allgemeine Mittelschule, como um tipo geral de escola para estudantes entre 10 e 14 anos. Ela possibilitava aos jovens da classe trabalhadora continuar os estudos nas instituições de ensino secundário. Os materiais didáticos eram gratuitos, para não excluir ninguém por motivos financeiros. Os princípios pedagógicos mudaram. As salas deixaram de seguir as antigas regras de aprendizado repetitivo e se encaixaram na estrutura de objetivos educacionais gerais para os interesses e as questões das crianças. A participação ativa e criativa dos alunos em experimentos físicos e artísticos foi o ponto de partida da nova abordagem pedagógica. A realidade da vida e os problemas das pessoas deviam ser a matéria de ensino, e as crianças deviam desenvolver o conteúdo de conhecimento em harmonia com seu próprio desenvolvimento psíquico. Por fim, a média de alunos por sala de aula foi reduzida de 49 para 29. Não podemos deixar de mencionar aqui a influência de cientistas como Anna Freud, Charlotte e Karl Bühler, Alfred Adler, que representavam – embora de uma maneira diferente e altamente controversa – o que foi chamado de fortaleza da psicologia vienense. Todos eles cooperavam intensamente com o conselho educacional da Viena Vermelha e dirigiam a educação dos professores no instituto pedagógico municipal.

As despesas com programas sociais e habitacionais eram custeadas quase exclusivamente pela receita fiscal de Viena. O modo como a cidade organizava as receitas ainda parece ter um impacto sobre os desafios para uma política urbana radical nos dias de hoje.

Antes de 1914, as receitas da cidade de Viena eram baseadas na suplementação dos tributos estaduais indiretos e nas receitas de empresas municipais, como as companhias de água e energia. Os dois pilares da receita tributária foram os aumentos dos aluguéis e os impostos sobre alimentos. Eles representavam um fardo desproporcional para a população mais pobre. No entanto, a Viena Vermelha desenvolveu um novo sistema tributário que aliviou a pressão financeira dos gastos com necessidades diárias e onerou o consumo de artigos de luxo como também as rendas mais altas. A cidade introduziu até mesmo novos tributos, como o imposto predial, que eram reservados para despesas sociais. Por outro lado, as tarifas de companhias municipais não deviam se basear em lucro, mas tinham de atender a demanda. A fim de facilitar a compreensão desse sistema, explicaremos brevemente alguns tipos de tributos, como:

• O novo tributo de bem-estar social ou Fürsorgeabgabe: companhias industriais e comerciais tinham de pagar 4% dos salários como tributo de bem-estar social para a cidade.

• O novo Lustbarkeitsabgabe (taxação de espetáculos): peças teatrais, operetas, eventos esportivos comerciais, aulas de dança e muitos outros estabelecimentos de puro entretenimento tinham de pagar uma média de 20% da arrecadação da bilheteria. Quanto mais tarde começavam os eventos, maior era o aumento do tributo, como também era o caso onde se servia bebida alcoólica.

• O novo imposto sobre alimentos e bebidas ou Nahrungs- und Genußmittelabgabe: bares, cabarés, variétés e restaurantes que haviam sido identificados como companhias de luxo por causa da clientela burguesa tinham de pagar 15% de suas vendas de alimentos e bebidas.

• Taxação sobre empregados domésticos ou Hauspersonalabgabe: o emprego de quaisquer trabalhadores domésticos particulares era onerado com um pesado imposto progressivo.

• Impostos sobre apostas ou Wett-Steuer: uma sobretaxa de 60% dos tributos estaduais sobre vendas e lucros relativos a apostas (como corridas de cavalos e outros eventos esportivos).

Esses novos tributos foram usados exclusivamente para financiar gastos com bem-estar social. No entanto, foi de suprema importância o assim chamado

• Tributo predial ou Wohnbausteuer: onerava os aluguéis existentes com um imposto que era reservado para a construção municipal. Dois fatores devem ser levados em conta aqui. Durante a guerra, foi aprovada uma lei que proibia o aumento dos aluguéis existentes. Em virtude da inflação nos anos posteriores à guerra, esses aluguéis estavam extremamente desvalorizados. Com a tributação progressiva, inquilinos de residências pequenas foram, em grande medida, poupados de contribuições substanciais, embora também tivessem de subsidiar o programa habitacional municipal.

O "tributo predial" não era lançado sobre a renda do proprietário, mas no aluguel da propriedade, com uma acentuada gradação de 2 a 37% de acordo com o tamanho do apartamento ou espaço comercial alugado. Isso significava que inquilinos de apartamentos ou lojas pequenos, que representavam 86% dos aluguéis da cidade, pagavam apenas 23,6% do tributo total coletado. Os inquilinos das maiores e mais luxuosas residências e estabelecimentos, que constituíam menos de 0,5% da propriedade alugada da cidade, pagavam 41,7% do tributo. Desse modo, o ônus do Wohnbausteuer, cujo total de receitas era reservado para as novas habitações sociais, era posto sobre os ricos.

O imposto predial fornecia aproximadamente 10% da receita total da cidade. Os tributos de bem-estar social representavam quase 15%. Para financiar o ambicioso programa municipal, era obviamente necessário contar com outros recursos. Entre esses recursos estavam as parcelas dos impostos estaduais transferidas à cidade. Essas parcelas eram ligeiramente superiores à soma dos autônomos tributos de bem-estar social e predial. Vale mencionar esse fator porque uma redução nas transferências de impostos estaduais para Viena, iniciada em 1930, mergulhou a habitação social numa verdadeira crise. Ao mesmo tempo, esse fato nos faz perguntar como o experimento da Viena Vermelha foi institucionalizado.

Como capital e sede do Império Habsburgo, Viena antes da guerra era apenas parcialmente autônoma, sem leis tributárias autônomas. A cidade fazia parte da província da Baixa Áustria e enviava seus representantes para a Dieta da Baixa Áustria. Como a Baixa Áustria era uma região predominantemente agrária, a influência do movimento trabalhista vienense permanecia insignificante. O ano 1918, com o término revolucionário da guerra, provocou uma mudança radical a esse respeito. Em consequência da introdução do sufrágio universal, a Baixa Áustria e Viena ganharam uma maioria social-democrata. O partido católico conservador, que a partir de 1920 passa a governar a recém-fundada República da Áustria, pediu a separação de Viena da Baixa Áustria, em nome dos camponeses e de sua clientela pequeno-burguesa.

Viena obteve uma base constitucional única. Era uma municipalidade e uma província ao mesmo tempo. De acordo com a constituição federal da Áustria, os nove estados federais e as municipalidades locais participavam da arrecadação tributária do Estado federal da Áustria. Receitas, como os impostos de renda, eram divididas entre o Estado, as províncias e as municipalidades onde foram originalmente arrecadadas, na proporção de 50 para 25 e 25 respectivamente. A cidade de Viena se beneficiou desse esquema, pois recebia duas cotas tributárias: como província federal e como municipalidade. Embora Viena cobrisse menos de um terço da população total da Áustria, sua parcela dos tributos federais era de 50%. Além disso, estava autorizada a cobrar impostos de modo autônomo. Isso foi um pré-requisito para a introdução do tributo predial descrito acima.

Não é de surpreender que a questão tributária tenha sido um ponto de disputa constante na política austríaca, e temos de reconhecer que a genuína posição de Viena dependia dos desenvolvimentos no nível da política federal. Em 1931, sob pressão de uma aliança conservadora fascista, os social-democratas concordaram com uma emenda constitucional que reduzia a participação de Viena na arrecadação federal de 50% para 30%. Isso ocorreu bem na época em que o desemprego acelerado diminuía a receita fiscal federal como também a renda tributária autônoma de Viena. Nesse ponto, a Viena Vermelha foi obrigada a interromper o programa habitacional municipal e simplesmente terminar a construção de moradias em andamento.

Numa tradição historiográfica particular, o termo "socialismo municipal" significava um vasto espectro de atividades da administração municipal. O termo não apenas resumia a política de bem-estar social, mas se estendia aos fundamentos econômicos da cidade. Com o socialismo municipal, a própria administração da cidade assumiu os empreendimentos econômicos vitais para seu desenvolvimento, no intuito de limitar os danos causados pela economia de mercado. Toda a rede de infraestrutura passou para o poder e administração públicos, a começar pelo transporte público, eletricidade e gás. Além disso, a cidade de Viena estabeleceu sua própria companhia de seguros, que ainda hoje é um grande e bem-dirigido instituto de seguros, embora parcialmente privatizado na década de 1990. Para limitar ainda mais o poder da economia de mercado, a cidade de Viena estabeleceu um instituto bancário municipal para emitir obrigações hipotecárias mais baratas e seguras do que as oferecidas por instituições financeiras privadas. Essas intervenções municipais básicas não eram resultantes de uma invenção social-democrata. Embora, a longo prazo, a maioria das cidades europeias tenha convertido a infraestrutura privada em pública, Viena foi a primeira capital a fazer isso. No entanto, ela começou na virada do século XIX para o XX sob gestão do prefeito cristão-social Karl Lueger, um dos mais ferrenhos opositores do movimento trabalhista e que hoje goza de má-reputação por causa de seu populismo e antissemitismo. A historiografia, porém, considera Lueger o paradoxal inventor do socialismo municipal, decorrente de suas atitudes antiliberais. Ademais, assumir o controle municipal da infraestrutura pública servia como uma fonte de poder para o partido social-cristão, à medida que este utilizava as receitas dos empreendimentos municipais para estabelecer um sistema de clientelismo e baseava a máquina partidária nos milhares e milhares de novos empregados municipais recrutados para os empreendimentos do município. A Viena Vermelha abraçou essa esfera econômica e até expandiu o âmbito de empreendimentos. Novos monopólios foram criados, como, por exemplo, no campo de serviços funerários e propaganda pública. A construtora municipal recém-criada, Gesiba, se destinava a construir os assentamentos e os conjuntos habitacionais municipais, seguindo, portanto, as diretrizes do governo municipal e mantendo métodos tradicionais de construção para estimular o mercado de trabalho. No entanto, houve uma mudança drástica na política de empreendimentos municipais. Eles eram obrigados a cobrir custos, não a fazer lucro. A provisão de serviços municipais devia ser acessível a qualquer um ao menor custo possível. Desse modo, se nos limitarmos apenas à consideração da política municipal, veremos que a Viena Vermelha guarda alguma semelhança com conceitos de esquerda da assim chamada cidade fordista que pipocaram pela Europa depois da Segunda Guerra Mundial. Os sociais-democratas costumavam empregar dois termos diferentes, dependendo de quem era o destinatário de sua propaganda: de um lado, falavam sobre a Viena Vermelha quando se dirigiam ao seu próprio eleitorado e à esfera pública internacional do trabalho. De outro, ao promover a cidade de Viena para o público internacional mais amplo, a administração social-democrata falava da "Nova Viena", dando ênfase a novas técnicas de governo.

O que, afinal, fez da Viena Vermelha uma das referências na política socialista do entreguerras? Em nenhum outro lugar a cidade e a classe trabalhadora demonstravam tão alto grau de entrelaçamento de atividades, nem se via uma densidade de filiação ao partido socialista tão forte como na Viena Vermelha. Vale a pena, portanto, reexaminar alguns fatos e números para tornar mais transparente essa constelação única.

Uma pesquisa de 1934 nos informa a respeito da relevância quantitativa de trabalhadores e de funcionários administrativos em Viena. De um total de cerca de 1 milhão de pessoas ativas, trabalhadores e operários respondiam por mais ou menos 50%. Empregados, autônomos e servidores públicos somavam cerca de 25%. Das pessoas economicamente ativas, 16% eram empresários e 5,2% trabalhavam em serviços domésticos (infelizmente não há dados sobre a relevância do trabalho feminino em domicílios particulares). Quando observamos os detalhes, percebemos que a maior parte da classe trabalhadora encontrava ocupação em pequenas companhias e lojas. O tipo industrial de companhia nunca obteve grande significância, com exceção de algumas empresas de larga escala como a multinacional eletrotécnica Siemens. Pequenas lojas, trabalhos artesanais, serviços e transportes desempenhavam um papel significativo no mercado de trabalho. Negócios e serviços empregavam mais de um terço da força de trabalho; o setor têxtil, focado na indústria modista, ocupava a maior parte da força de trabalho industrial, como também os setores de alimentos, bebidas e tabaco. Para dar um exemplo mais detalhado: hotéis, cafés e restaurantes, dependentes do turismo, absorviam 5% dos empregos disponíveis. Nos negócios comerciais, temos de imaginar uma estrutura em pequena escala semelhante. A produção de roupas e sapatos reivindicava cerca de 15% da força de trabalho, com a média de 3 a 4 trabalhadores empregados por estabelecimento. Em comparação com o restante do país, ficava claro que era desproporcional a quantidade de trabalhadores vienenses em ocupações especializadas, como também em serviços pessoais como a assistência em saúde. Nas ocupações dos ramos metálico e de carpintaria, a atividade se concentrava em profissões altamente especializadas como fabricantes de instrumentos. Tipógrafos e marceneiros representavam grupos centrais da força de trabalho da cidade, em decorrência do papel histórico de Viena como um lugar de produção de artigos de luxo e confeccionados por artífices.

As tradições da subcultura artesanal do século XIX construíram a imagem do trabalho na Viena Vermelha. Como Helmut Gruber disse nas linhas introdutórias de seu influente livro sobre a Viena Vermelha:

Se os projetos culturais do partido social-democrata tivessem se limitado ao programa socialista municipal em Viena, isso teria sido uma proeza única em e por si mesma. Embora reformas sociais semelhantes tenham sido executadas sob iniciativa socialista em Berlim, Frankfurt, Hannover, Bruxelas, Paris, Lyon, Londres, Estocolmo e outras cidades importantes, em nenhum outro lugar os socialistas aspiraram a um objetivo tão abrangente de transformar o ambiente municipal ou conseguiram dar tantos passos iniciais para sua realização como em Viena. Mas os socialistas foram ainda mais audaciosos. O sucesso na reforma municipal os encorajou a empreender a mais vasta transformação cultural da vida dos trabalhadores, implícita em sua perspectiva austromarxista. Afinal de contas, uma "revolução na alma humana" implicava uma sondagem nos recônditos da vida na esfera privada – uma expansão da noção da cultura para abarcar a vida total dos trabalhadores, desde a arena política e o local de trabalho até os cenários mais pessoais e íntimos (Gruber, 1991).

O campo social-democrata era constituído por grupos e federações, que se estendiam das áreas educacional e esportiva até meras atividades para o tempo livre como construir aparelhos de rádio e outros equipamentos técnicos similares. Festivais e celebrações eram o foco das atividades culturais do movimento socialista para criar, em adultos e crianças, laços emocionais com as ideias socialistas. Cerimônias e rituais formavam um calendário de tipo especial, destinado a acompanhar a vida proletária desde a tenra infância até a morte. Celebrações da República no 12 de Novembro, a comemoração do Primeiro de Maio e as comemorações da revolução democrática europeia de 1848 eram os destaques recorrentes do calendário proletário.

Os ritos de passagem tinham de afetar diretamente os apoiadores socialistas de várias maneiras. A estrutura artística era garantida pelos diversos grupos corais, que apresentavam um programa mesclado de canções do classicismo e romantismo alemães e canções operárias. Grupos teatrais recitavam poesias do movimento de liberdade democrático alemão. Grupos de várias organizações profissionais, como a dos ferroviários, entoavam hinos e versões reduzidas do repertório da música clássica democrático-revolucionária. De modo semelhante ao rito católico, o principal discurso político ou, em termos do serviço religioso cristão, a leitura apresentada por uma pessoa proeminente da liderança partidária representavam a culminação dos eventos. A organização profissional dos festivais e celebrações cresceu ao longo dos anos. Havia desfiles da milícia do partido em uniformes e manifestações em massa das diversas organizações esportivas em seus trajes para tornar radicalmente visíveis a força e o poder do movimento.

No começo da década de 1930, tiveram início as gigantescas performances coletivas, organizadas de uma forma conhecida apenas na antiga União Soviética. A maior delas foi a peça de festival representada em 1931 na inauguração do estádio em Prater, o extenso distrito de recreação e entretenimento de Viena. O festival encenou a história da luta de classes, traduzindo o esquema materialista de Marx numa série de cenas de sofrimento, opressão, rebelião e insurreição. Mais de 4 mil atores das fileiras da juventude socialista e de organizações culturais, com figurinos de época, encenaram a peça quatro vezes para um total de 260 mil espectadores no estádio. No meio do gramado do estádio, foi erguida uma cabeça "capitalista" gigante, que desmoronava com grande ruído no auge do espetáculo histórico sob o ataque furioso do proletariado. O festival terminava com todos cantando a Internacional.

Por ocasião dos festivais, as diversas organizações podiam se concentrar em atividades que normalmente eram consideradas banais. Festivais e cerimônias produziam uma síntese de atividades geralmente desarticuladas e definiam um objetivo mais elevado para as atividades de voluntários em clubes de trabalhadores, ou seja: contribuir para a visibilidade desse impressionante movimento social mesmo com meios modestos. No âmbito das atividades dos clubes, o partido recrutava um exército de funcionários e ativistas que estavam em contato constante com as organizações centrais e envolvidos numa ampla rede de publicações socialistas. Mesmo quando se interessavam apenas por passatempos, os membros dos clubes podiam imaginar como contribuir para a identidade do movimento socialista. A diversidade dentro desta rede cultural não pode ser apropriadamente expressa senão pelo catálogo de organizações. Elas eram realizadas principalmente no nível do distrito.

Os membros do partido, membros das organizações juvenis e da organização das mulheres muitas vezes estavam comprometidos com dois ou mais desses clubes. Eles podiam gastar todo seu tempo livre no âmbito das organizações socialistas. Para a maioria deles, os clubes de trabalhadores e seus subsídios ofereciam possibilidades únicas para criar ou fazer algo significativo. Para citar mais uma vez Helmut Gruber, a rede de clubes devia criar "uma revolução na alma humana". Na teoria austromarxista contemporânea, nos deparamos com um termo ainda mais enfático: "os novos homens". "Os novos homens" também foi o título do livro do sociólogo Max Adler sobre os conceitos da educação socialista. Esse livro tornou-se o que podemos chamar de a bíblia dos experimentos culturais da Viena Vermelha. Neste, Adler, referindo-se ao conceito marxista de alienação, negou qualquer desenvolvimento espontâneo da consciência de classe. Segundo Adler, o véu ideológico gerado pelo regime de exploração capitalista só poderia ser rasgado fora da vida cotidiana. Mas onde esse autêntico "fora" humano pode ser encontrado? A ideia genuína de Adler consistia na extensão da filosofia de Immanuel Kant. Tomando o esquema kantiano do a priori, que definia os princípios dados da razão para perceber as leis naturais, Adler foi mais longe ao aplicar um princípio similar da razão para a área social. O que ele chamou de a priori social, ou a capacidade intelectual dada para conceber padrões solidários como estruturas formativas da vida humana, devia orientar os avanços no conhecimento das regras da sociedade. "Homens novos" nasciam da disseminação desse conhecimento, não da experiência cotidiana ou da luta de classes. O movimento socialista e a reforma social tinham de preservar a estrutura para que razão se tornasse autorreflexiva, de modo que era importante a luta por segurança social e por mais tempo livre. Mas eles eram apenas meios para permitir aos intelectuais socialistas espalhar suas ideias dentro do movimento por meios educativos. Os clubes eram o terreno natural para esse tipo de educação. Para citar Helmut Gruber mais uma vez:

Embora o tom exortativo [no livro de Adler] fosse claro, Adler não disse quase nada sobre traduzir esses aforismos vagos em trabalho cultural prático, salvo que o proletariado não podia aprender com sua própria experiência e tinha de renegar interesses materiais e profissionais no esforço para alcançar o objetivo socialista. O guia mais certo para isso, ele conclui, poderia ser encontrado nos livros dos grandes mestres socialistas, bem como nos clássicos da filosofia alemã, juntamente com a ciência natural, a história e as leis econômicas do processo social.

Os radioclubes, cineclubes, clubes de futebol, Atores Vermelhos e cabarés eram uma resposta à emergente cultura de massa e às atividades de lazer comerciais após a Primeira Guerra Mundial. Abolicionistas, livres-pensadores, os clubes de cremação, os coros de trabalhadores e os clubes de ginástica, por outro lado, eram arraigados numa longa tradição, que remonta aos tempos áureos do liberalismo democrático progressivo. Os Amigos das Crianças e Colonos correspondiam ao movimento de reforma da vida boêmia do fin-de-siècle. Colecionadores de selos, clubes de esperanto, ativistas dos direitos dos animais e jogadores de xadrez respondiam ao desejo de organizar cada interesse particular segundo as linhas do partido, já que depois da revolução de 1918-1919 a sociedade tinha se dividido em um campo socialista e um campo burguês. Ciclistas e clubes desportivos de atletismo estavam vinculados a determinados grupos profissionais, como de tipógrafos e trabalhadores do transporte, pelo menos em seu início. Em vista disso tudo, não podemos dizer que os clubes compartilhavam um conceito estrito e unificado. Eles refletiam a diversidade na cultura moderna e apresentavam por si mesmos uma imagem multiforme da classe trabalhadora, que dependia de critérios sociológicos como idade, gênero, ocupação e singularidades históricas. Os clubes desportivos eram o domínio dos rapazes socialistas, enquanto antigos clubes de ginastas masculinos foram amplamente abertos para as mulheres após a guerra. O radioclube, por exemplo, foi fundado por veteranos da Primeira Guerra Mundial que serviram como técnicos e operadores de rádio, enquanto os clubes de futebol tornaram-se populares nos conselhos revolucionários de soldados em 1919. Cineclubes, cabaré político e Atores Vermelhos representavam intelectuais com maior grau de organização e estavam inclinados à arte de vanguarda, enquanto o movimento de assentamento atraía trabalhadores expostos a alto risco de desemprego, bem como oficiais de baixa patente e funcionários públicos prejudicados pela dissolução do exército e da burocracia imperiais.

Uma abordagem baseada em estudos culturais seria capaz de mostrar em detalhes como a diferenciação social ajudou a gerar diferentes gostos e hábitos. Vejamos, por exemplo, o esporte. Jogar futebol era algo predominantemente da classe trabalhadora, assim como o handebol e as artes marciais orientais, com sua exigência de autocontrole e equidade. Mas esgrima, patinagem, dança, automobilismo eram da classe média. Desse modo, no crescente campo de esportes e jogos, poderíamos facilmente reconhecer o que Pierre Bourdieu chamou de competição do "capital simbólico". Os clubes desportivos de trabalhadores se opunham fortemente à introdução do profissionalismo e do esporte para público pagante, alegando que isso era uma forma de colonização capitalista do tempo livre. Os clubes de futebol dos trabalhadores, por exemplo, jogavam em sua própria liga, em paralelo à liga profissional estabelecida em 1922.

Retomando os clubes e federações que haviam sido fundados em 1870 e mais tarde, percebemos que meras explicações sociológicas tornam-se mais difíceis. Os coros de trabalhadores, os clubes de ginástica, as bandas de marcha tinham seus modelos de referência no movimento revolucionário pangermânico. O movimento operário inicial, composto de artesãos, participou durante décadas da frente democrática radical. Eles compartilhavam ideias românticas estipuladas pelo poeta nacionalista alemão Friedrich Schiller, segundo o qual a unidade do povo poderia ser alcançada somente pela educação estética, não por instituições políticas como o Estado-nação. Quando a facção dessa fronte radical capitulou em favor de um império alemão unificado estabelecido sob Bismarck, a facção trabalhista contrária e oprimida reivindicou para si a tradição romântica cultural, expressa na música e na cultura física. Mais tarde, os clubes socialistas garantiram a memória cultural da filosofia romântica revolucionária, incorporada em corais, ginásios de esportes e bandas, como um meio de deslegitimar a hegemonia burguesa e exigir respeito como verdadeiros herdeiros da cultura alemã.

Abolicionistas, livres-pensadores, os clubes de cremação, que foram fundados cerca de vinte anos mais tarde, eram parte do que é chamado iluminismo tardio de Viena. Iluminismo tardio significa o movimento intelectual que lutou contra as prerrogativas da Igreja e do Estado. A sociedade civil deveria ser baseada no progresso científico e no discernimento, sendo a ciência concebida como fornecedora de verdade objetiva e atemporal. Certa ambivalência caracterizava o iluminismo tardio, pois a busca de um único princípio guia na natureza e na sociedade produzia respostas simples para constelações complexas. Assim, por exemplo, "raça" se tornou um dogma de iluministas tardios para legitimar movimentos radicais. Sistemas morais conservadores e a legislação matrimonial foram atacados como contraditórios às leis darwinianas de reprodução dos mais aptos. A reforma social era justificada pela extensão das leis econômicas de produtividade para a sociedade, propondo tratar as pessoas como um empreendimento econômico. Os investimentos em educação e segurança social deviam ser calculados de acordo com a capacidade de indivíduos.

Clubes de trabalhadores, de abolicionistas e livre-pensadores, bem como clubes de cremação, desde a virada do século preencheram o vácuo entre o movimento operário socialista e os intelectuais burgueses do iluminismo tardio. Teorias obscuras abordavam a semântica do movimento operário socialista. Esses conceitos, no entanto, abriram o caminho para experiências radicais em educação e reforma social. O status científico desses intelectuais e seus excelentes serviços humanitários enquanto médicos ou advogados foram reforços adicionais para conquistas importantes da Viena Vermelha. A rede de iluministas tardios se estendia da Associação Austríaca Feminista à Sociedade Fabiana, à Sociedade Ética e aos fundadores da filosofia analítica, mais conhecidos como Círculo de Viena.

Essa gama de clubes também não compartilhava um método uniforme, embora compartilhasse alguns valores comuns. Clubes socialistas serviram a milhares de ativistas que muitas vezes atravessavam as linhas do partido, dos clubes e dos sindicatos. Ao organizar atividades de lazer, informando e moldando o gosto baseado em classes, os clubes geravam uma forte identidade socialista. Além disso, embora cooperassem com intelectuais públicos (como no caso dos clubes do "iluminismo tardio"), os clubes socialistas contribuíram substancialmente para a hegemonia austromarxista na Viena Vermelha. A vida nos clubes inspirou até mesmo o trabalho de jovens arquitetos progressistas, pois dirigiu seus objetivos para a criação de espaços propícios à atividade comunitária, um aspecto tão difícil de integrar no planejamento. Para citar Margarete Schütte-Lihotzky, inventora da mundialmente famosa "cozinha de Frankfurt", ao comentar sua decepção ao sair de Viena para Frankfurt: a vida em Viena, escreveu ela, estava carregada com ativismo político e um sentido de utopia social. Nem mesmo um arquiteto podia ignorar a predominância da questão social e a importância das classes. Em Frankfurt, acrescentou ela, a reforma municipal foi promovida por tecnocratas bastante talentosos, mas não inspirados. O motivo para isso pode ser encontrado nas redes de agentes que fizeram a Viena Vermelha, uma rede formada por militantes partidários, ativistas de clubes, profissionais e intelectuais, ligados pela semântica particular do austromarxismo.

  • GRUBER, H. 1991. Red Vienna: experiment in working class culture, 1919-1934. New York: OUP.
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    Tradução de Milton Camargo Mota.S
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Dez 2013
    • Data do Fascículo
      2013
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