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Introdução

DOSSIÊ HEMISFÉRIO AMERICANO EM TRANSFORMAÇÃO

Introdução

Tullo VigevaniI; Eric HershbergII; Andrés SerbinIII

IProfessor na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pesquisador no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu) e no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec)

IIProfessor do Department of Government, diretor do Center for Latin American and Latin Studies na American University e ex-presidente da Latin American Studies Association (2007-2009)

IIIPresidente da Cries (Coordinadora Regional de Investigaciones Económicas y Sociales), coordenador da International Coalition for the Responsability to Protect (ICRtoP), membro da diretoria do Global Partnership for the Prevention of Armed Conflict (GPPAC) e conselheiro do CARI

Nesta edição de Lua Nova debatem-se as relações interamericanas em sentido amplo, ao se analisarem as novas organizações que parecem vir debilitando o sistema tradicional, iniciado com a União Pan-Americana ainda no final do século XIX e continuado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) a partir de 1948. Os textos dedicados aos casos nacionais (Argentina, Brasil, Estados Unidos e México) permitem entender melhor como os Estados vêm se posicionando perante essa questão. Em outros artigos discutem-se as relações entre os Estados e a reconfiguração em curso, particularmente o papel das novas organizações latinas e sul-americanas. O tema dos direitos humanos ganhou peso na OEA, na Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), na União de Nações Sul-Americanas (Unasul), no Mercado Comum do Sul (Mercosul), na Aliança Bolivariana para as Américas (Alba). Alguns artigos concentram-se no estudo desse aspecto. Esta edição visa à compreensão da interação do tema dos direitos humanos com o debate sobre sua compatibilidade com as novas formas de cooperação e integração em curso na região. Atenção especial é dada aos Estados Unidos, tentando ver como esse país se move nos terrenos das relações continentais e dos direitos humanos. Não é nosso objetivo chegar a conclusões comuns. Entendemos ser necessário o exame crítico desses temas, crescentemente inseridos nas agendas nacionais, regionais e multilaterais.

Importantes mudanças estão em curso nas relações interamericanas. Tradicionalmente, as Américas têm sido vistas como exemplo de um sistema com um Estado claramente hegemônico, com os Estados Unidos como a principal potência e líder inconteste das relações hemisféricas. Não obstante, esse regime de facto, caracterizado pela predominância política e econômica dos Estados Unidos, está sendo aos poucos substituído no século XXI por uma ordem mais multipolar. É digno de nota o crescimento econômico que tem impulsionado alguns países, inclusive o Brasil, nos assuntos regionais e até mesmo globais. Deve-se considerar o declínio da influência econômica dos Estados Unidos em meio à crescente importância do comércio e investimento asiáticos na América Latina, e a maior importância do comércio e investimento inter-regionais e da cooperação em amplo conjunto de áreas abrangendo desde segurança e meio ambiente até assistência para o desenvolvimento (Cruz, 2007; Bitar e Hershberg, 2012; Sabatini, 2012). A influência desses fatores está longe de ser homogênea, incidindo de formas bem diversificadas.

Ao mesmo tempo, países como Canadá, México e Venezuela têm mostrado maior assertividade diplomática, buscando tornar as Américas um foco significativo de suas políticas externas, com objetivos muito diferentes. Ao lado desses desdobramentos relativos a cada Estado, um sem-número de inovações está ocorrendo na esfera intergovernamental. Os últimos cinco anos testemunharam a criação de diferentes organizações, entre as quais a Unasul, fundada em maio de 2008 em Brasília, incluindo todos os Estados sul-americanos, e a Celac, consolidada em fevereiro de 2010 em Cancún por todos os governos da América Latina e do Caribe, em torno da proposta de estabelecer um órgão interamericano que excluísse os Estados Unidos e o Canadá. A Celac, com efeito, torna realidade o Grupo do Rio, ainda que seu mandato continue a carecer de plena definição. De todo modo, relevante para os objetivos da pesquisa desenvolvida e que justifica esta edição de Lua Nova, registra-se que a VI Cúpula das Américas, em abril de 2012, em Cartagena, pareceu sugerir um cenário de impasse altamente significativo nas relações interamericanas. Esses temas foram objeto de dois seminários que organizamos em outubro de 2011 em Washington e em novembro de 2012 em São Paulo.

A reconfiguração das relações hemisféricas ora em curso desafia nossa compreensão acerca dos assuntos da região e traz questões novas para acadêmicos e responsáveis por políticas públicas, bem como para as organizações da sociedade civil. Que fatores determinam as mudanças de estratégia dos governos para as Américas? Como diferentes atores – nos governos e na sociedade civil – influenciam as políticas hemisféricas adotadas pelos governos ou por instituições intergovernamentais, e de que maneira e por que essas mudanças estariam ocorrendo? Em que medida objetivos comuns, como maior segurança, desenvolvimento econômico ou preservação ambiental, são propostos pelas atuais correntes atuantes nas relações hemisféricas e o que podemos concluir sobre as consequências dessas correntes para o fortalecimento da democracia ou a proteção dos direitos humanos? Essas questões são importantes não apenas porque elas podem servir de marco para uma reavaliação de conceitos fundamentais dos estudos das relações internacionais com foco nas Américas, mas ainda mais significativamente porque acarretam consequências bastante concretas para o bem-estar dos povos do hemisfério.

Dessa forma, evidenciamos um objetivo central na pesquisa que está sendo desenvolvida e agora apresentada em Lua Nova: dimensionar o grau de erosão (ou não) que o sistema interamericano vem sofrendo, bem como de sua organização de referência, a OEA. Busca-se avançar na construção dos novos cenários, partindo da avaliação das consequências dos processos em curso, e compreender as mudanças em curso no continente, suas razões.

O Dossiê Hemisfério Americano em Transformação, inclui duas áreas de pesquisa principais, que, embora inter-relacionadas, permitem uma separação analítica para efeito de facilitar a compreensão.

A primeira área, Estratégias e Potencialidades de alguns Países para as Organizações Regionais, é dedicada a entender e analisar como cada governo do hemisfério está formulando políticas para a região e compreender os fatores que os motivam a adotar as estratégias que buscam implementar as relações bilaterais, sub-regionais e multilaterais. São apresentados os resultados relativos a Argentina, Brasil, Estados Unidos e México.

A segunda área de pesquisa, Instituições Intergovernamentais e a Sociedade Civil, versa sobre o crescente papel das organizações intergovernamentais, da OEA à Unasul, passando pelo Mercosul, Celac e Alba. Acreditamos que muito se possa ganhar com a análise do potencial e das limitações dessas entidades. Estamos especialmente interessados em compreender o significado de novas e velhas instituições e como elas enfrentam os temas que têm sido historicamente tratados pela OEA. De particular interesse é a análise dos intensos debates ocorridos nos Estados americanos depois do fim das ditaduras militares, que imperaram nesses países até os anos 1980. Esses temas referem-se à promoção da democracia, considerando a Cláusula Democrática, e a proteção dos direitos humanos, inclusive por meio da Comissão Interamericana. Os trabalhos dessa segunda área da pesquisa analisam como os temas que foram paulatinamente elaborados no contexto do sistema interamericano nos últimos trinta anos mantiveram sua importância fora do contexto da OEA e numa situação de difusão de instituições que competem pelo e tiram espaço dessa organização. Discute-se também como a OEA poderia atingir seus objetivos em um contexto de virtual competição com as novas instituições. Foca-se também o papel da sociedade civil na formulação de políticas hemisféricas, nas esferas nacional e intergovernamental, sobretudo com relação à prioridade atribuída à proteção dos direitos humanos e ao aprofundamento democrático.

A literatura sobre os determinantes da política exterior nas Américas é relativamente escassa, bem como pouco atenta ao impacto da sociedade civil sobre as políticas adotadas pelos governos nacionais dessa região. Nesta edição de Lua Nova, alguns dos artigos analisam a institucionalização das relações entre sociedade civil e organizações internacionais promovida pela OEA, seus limites, violações e instrumentalização. Desde o início do século XXI, alguns Estados vêm questionamento esse espaço, uma vez que ele interferiria nos princípios de soberania nacional. As consequências desse conflito são tratadas abordando-se a influência da economia, comércio e investimentos nas relações hemisféricas e, particularmente, nos direitos humanos e no papel da sociedade civil. No momento em que a OEA está enfraquecida, e mesmo em crise, e um leque crescente de espaços paralelos surge para diálogos intergovernamentais relacionados a desafios políticos comuns, a prioridade para o aprofundamento democrático nas Américas será desenvolver mecanismos que facilitem uma participação significativa da sociedade civil nos assuntos hemisféricos (Serbin, 2011). Pela histórica importância do papel dos Estados Unidos no sistema interamericano, é dada especial atenção à política desse país, cuja ação no plano internacional, de modo geral, e no plano regional, em particular, sobretudo nos anos 2000, pode também estar contribuindo para o enfraquecimento do sistema hemisférico. Focando nossa atenção no papel dos atores sociais tanto nas políticas externas de países-chave como nas ações das organizações intergovernamentais, acreditamos que esta Lua Nova apresenta contribuições que podem ser inseridas no debate sobre a democratização das relações internacionais nas Américas.

Acadêmicos e formuladores de políticas necessitam entender melhor como a dinâmica de poder está mudando nas Américas e como cada país contribui e ao mesmo tempo responde às reconfigurações de poder emergentes. Afirmações sobre a ascensão do Brasil tornaram-se lugar-comum no discurso diplomático e acadêmico, e até mesmo em círculos econômicos internacionais, mas a magnitude total e as implicações regionais ainda não estão suficientemente claras. A importância crescente do Brasil na cena mundial, à medida que sua estratégia de "autonomia pela diversificação" (Vigevani e Cepaluni, 2009) e o peso econômico repercutem em toda a região e além dela, é um dos dados do problema. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos não deixarão de ser um ator central nos assuntos regionais. Conquanto muitos observadores condenem a "negligência" dos Estados Unidos com relação à América Latina, esse país continua sendo o principal parceiro comercial da região, o mais importante fornecedor de armas aos países americanos, assistente em questões de segurança, além de ator-chave em inumeráveis campos, quer em ações bilaterais ou multilaterais. A discussão sobre o papel dos Estados Unidos vem se centralizando na crítica à sua impotência em reconstruir laços modernos de relações, particularmente com alguns países (Lowenthal, Piccone e Whitehead, 2011) e no seu reproduzido unilateralismo. Apesar do fracasso das últimas administrações do país em estabelecer a Alca, sobretudo durante o governo de George W. Bush (2001-2008), os Estados Unidos firmaram vários acordos bilaterais de livre-comércio, com isso ensaia-se a criação da Aliança do Pacífico, que sugere uma nova forma de cooperação, na perspectiva de inserção liberal no mercado internacional, o que tende a se chocar com o Mercosul, com os países voltados a políticas de desenvolvimento com preocupação pelo combate à pobreza. É possível que os Estados Unidos venham a firmar novos acordos em breve e mantenham a liderança em uma série de entendimentos bilaterais e multilaterais de cooperação em áreas que vão desde cooperação para o desenvolvimento e sobretudo de segurança. Com respeito a esta última área, alguns desses acordos são, além de significativos, muito financiados, a exemplo do Plano Colômbia, a Iniciativa Mérida, a Iniciativa Centro-Americana de Segurança Regional e a Iniciativa de Segurança da Bacia do Caribe. Com isso, aprofunda-se o choque com aqueles que não colocam o tema no centro da agenda.

Nossa hipótese geral é a de que as relações interamericanas anteriores, tal como existentes no final do século XX, estão se modificando, seja pela nova configuração do sistema internacional, seja pela nova estrutura de relações entre os países latino-americanos e de alguns deles com os Estados Unidos (Bitar e Hershberg, 2012; Cruz, 2012a).

Enquanto o Brasil e os Estados Unidos se voltam para o restante do hemisfério, concentrando o interesse em subáreas, o primeiro na América do Sul, o segundo na América do Norte e Central, os governos dos outros países também buscam exercer influência na dinâmica hemisférica em mutação nos campos político, econômico, institucional e até mesmo ideológico (Gardini e Lambert, 2011). O presidente Hugo Chávez, da Venezuela, liderou a criação da Alba, em dezembro de 2004, descrita como uma alternativa em escala menor à Alca. Venezuela e Cuba foram os membros fundadores da Alba; a eles somou-se a Bolívia em abril de 2006, seguida de Equador, Nicarágua, Dominica, Antígua e Barbuda, além de São Vicente e as Granadinas.

O México, por sua vez, voltou a se preocupar com a América Latina após quase um quarto de século em que dedicou pouca atenção em ressaltar sua presença nos assuntos regionais, como consequência de sua estreita vinculação aos Estados Unidos, acentuada pela assinatura do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta, na sigla em inglês), em 1992. Ainda assim, o México desempenhou importante papel na criação do Grupo do Rio e na elaboração da proposta de transformar esse Grupo em órgão regional mais abrangente dos Estados latino-americanos e caribenhos. O Grupo do Rio é um desdobramento do Grupo de Contadora, criado por México, Colômbia, Panamá e Venezuela em 1983 para mediar conflitos centro-americanos. Em 1986, com o Peru e o Uruguai, os membros originais do Grupo de Contadora criaram o Grupo do Rio como um fórum regional alternativo à OEA. O novo grupo excluiu os Estados Unidos e o Canadá; em 2008, aceitava-se a participação de Cuba. Além disso, ao sediar a Segunda Cúpula da Celac em Cancún, em 2010, o México evidenciou sua preocupação com uma política de maior aproximação com a América Latina, a despeito de seus laços com os Estados Unidos e o Canadá.

Embora não se possa afirmar que os países latino-americanos tenham políticas convergentes, reconhecem-se traços comuns de afirmação de sua maior autonomia perante os Estados Unidos. No contexto das instituições interamericanas, a questão é da maior importância, e certamente explicativa de parte das dificuldades que encontra a OEA, ao menos a partir da crise de Honduras, de julho de 2009, no sentido de continuar como referência institucional importante no continente. Outros Estados também vêm buscando exercer influência em determinadas esferas e instituições, com concentração do foco de interesse regional em perspectiva externa à OEA. A Argentina, por exemplo, teve destacado papel na criação da Unasul, enquanto a Colômbia, embora mantendo seu "relacionamento especial" com os Estados Unidos, busca também desempenhar um papel ativo naquela organização (Dominguez e De Castro, 2010).

O interesse pelos assuntos hemisféricos não se restringe aos países latino-americanos. No caso do Canadá, manteve-se o interesse na agenda interamericana anterior, de apoio ao papel das instituições continentais, isto é, da OEA. A política externa canadense do governo Harper, de 2006 até hoje, tem atribuído importância à região, como indicado pela Iniciativa para as Américas adotada por sua política externa, englobando ambas as dimensões econômica e política e enfatizando o compromisso com a expansão da democracia, a consolidação das instituições de mercado e o aumento da segurança. Embora os negócios canadenses continuem a se expandir pela América Latina, sobretudo na indústria extrativa, e embora o país reafirme sua ênfase no fortalecimento das instituições democráticas e de proteção dos direitos humanos, não há razão para esperar maior envolvimento do Canadá com o hemisfério (Dosman, 2012).

Esta edição de Lua Nova apresenta quatro estudos de casos relativos às políticas de Argentina, Brasil, Estados Unidos e México, com o objetivo de documentar as estratégias particulares que cada um deles emprega para lidar com a multipolaridade em expansão e para assegurar um lugar nela. Pretendemos entender as mudanças no poder e na liderança da região, e também investigar os processos decisórios específicos que vêm configurando a formulação de políticas. Em cada um desses países, inclusive nos Estados Unidos, existe complexa gama de espaços institucionais onde são definidas e implementadas as políticas prioritárias, espaços esses que, invariavelmente, sofrem o impacto de uma constelação de múltiplos interesses domésticos que acabam por delimitar o debate sobre dada política e seus resultados (Ayerbe, 2011).

Os cientistas políticos latino-americanos fizeram importantes avanços nos últimos anos para desvendar as chaves de entendimento dos processos de formulação de políticas em um conjunto cada vez maior de esferas. Da mesma forma, não é de hoje que as relações entre os Estados Unidos e a América Latina vêm sendo objeto de estudo; entretanto, são poucas as publicações que empreenderam a análise de como os papéis de Washington no hemisfério estão sendo redefinidos em um contexto de maior pluralismo e de enfraquecimento do papel norte-americano. Ao se estudarem os processos de tomada de decisão, quer-se entender os fatores domésticos e externos específicos que produzem abordagens particulares nas políticas direcionadas aos assuntos hemisféricos. Ao se levar a cabo essa busca, visa-se obter um retrato bastante mais preciso do que o que temos hoje das complexidades das relações internacionais das Américas do início do século XXI.

É necessário, além de levantar as políticas dos principais Estados da região, produzir um quadro analítico para conceituar o terreno em que essas políticas foram implementadas, sobretudo no que se refere às relações interamericanas. Gardini e Lambert (2011) identificam uma combinação de "ideologia e pragmatismo" como motivando as estratégias individuais de cada país. Provavelmente não seja suficiente essa resposta para permitir desenhar os novos cenários em formulação. As questões às quais se quer responder incluem quem são os atores, quais são seus interesses e quais são as instituições através das quais operam. Não se afirma que esta publicação resolva plenamente essas questões, mas que abra caminhos para isso.

Esta edição inclui também a discussão sobre o tema Instituições Intergovernamentais e a Sociedade Civil. Embora as políticas externas de cada país da região, inclusive as interamericanas, tenham sido, por concordância ou por discordância, por muitas décadas, determinadas em alguma medida pela liderança dos Estados Unidos e de suas agendas econômica e de segurança, no século XXI depara-se com importantes espaços para tomada de decisão em âmbito regional sob a liderança de outros países, bem como um número cada vez maior de organismos regionais que excluem os Estados Unidos. Inegavelmente, ao lado da transformação na abordagem das relações hemisféricas evidente no comportamento dos diversos Estados, vem se presenciando ampla reconfiguração das organizações multilaterais do hemisfério, processo esse que suscita várias questões, por exemplo: há ambiguidades com relação às competências, por vezes conflitantes, de fóruns regionais de diálogo, resolução de controvérsias e mediação? Ao mesmo tempo, os processos decisórios dessas novas instituições, algumas das quais estão definindo suas missões e formas organizacionais e ainda estão por institucionalizar componentes importantes de suas atividades, não chegaram a formulações definitivas.

De que forma a multiplicidade de instituições multilaterais reforçará, transformará ou enfraquecerá os atuais regimes de monitoramento e cumprimento de padrões relacionados à proteção dos direitos humanos e que tentam incorporar a participação cidadã nos assuntos hemisféricos são questões também analisadas nesta Lua Nova. Está clara, no entanto, a variedade de formas assumidas por essas novas organizações multilaterais, bem como o alcance de seus efeitos sobre uma série de esferas decisórias. Alianças como o Mercosul e a Comunidade Andina, a exemplo do Nafta, estão preocupadas sobretudo com comércio e integração econômica, ainda que o antigo vigor da Comunidade Andina esteja em rápido processo de enfraquecimento. O Mercosul pretendeu fortalecer nos anos 2000 seu viés político e social, inclusive sua preocupação democrática e pelos direitos humanos, ampliando seus objetivos significativamente. A Unasul e a organização nascida em Cancun – a Celac –, por outro lado, são agrupamentos político-diplomáticos, tal como a Alba, embora esta tenha uma forte missão econômica. A Unasul tem atuado nos temas de segurança, da estabilidade institucional e há programas em andamento visando à integração física e ao desenvolvimento econômico. Nestas últimas organizações, parte do desenho institucional e dos objetivos ainda estão sendo traçados.

Essas entidades regionais político-diplomáticas podem vir a desempenhar papel relevante na mediação de tensões em determinadas condições. Sua ação em algumas circunstâncias indica que poderiam tornar-se o ator principal no que se refere a ações relativas à manutenção da paz e garantes da ordem democrática. Isso já ocorreu, como quando a Unasul ajudou a mediar um conflito entre a Colômbia e a Venezuela no final do governo do presidente Uribe. O Mercosul e a Unasul tiveram papel importante na estabilização democrática no Paraguai em 2012 e 2013 e em ocasiões anteriores, desde os anos 1990. Ainda está em elaboração o grau em que organizações como a Unasul consolidarão marcos institucionais decisórios de políticas de defesa e segurança, regimes para a garantia de governança constitucional, ou mecanismos que permitam aos Estados-membros articular políticas em matérias abrangendo desde meio ambiente a energia e migração. Alguns avanços são evidentes, mas indefinições permanecem. Enquanto as regras do jogo e os processos decisórios estão relativamente claros nos grupos mais convencionais voltados à integração econômica (Mercosul e Nafta), carecem de estudo aquelas regras e processos decisórios que norteiam as atividades de outros tipos de organizações.

É necessário um trabalho de conceitualização para esclarecer o relacionamento das novas organizações regionais (Unasul, Alba, Celac) com as visões tradicionais de regionalismo. Embora seja razoável afirmar que as novas organizações refletem uma abordagem distinta de regionalismo – a que alguns observadores rotularam de pós-liberal (Sanahuja, 2009) –, a questão clama por aprofundamento analítico em termos de teoria das relações internacionais. Não só as novas organizações se afastam da lógica econômica e política de suas antecessoras, como também adotam novos procedimentos de construção institucional cujas bases queremos identificar. É verdade que essa construção muda rapidamente, como o demonstram as polêmicas relativas à reincorporação do Paraguai, após a eleição do presidente Horacio Cartes. Nessas organizações há, de modo geral, relevante incorporação dos conceitos de soberania nacional, de autodeterminação e da ideia de multilateralismo. Compreender como se insere o papel das organizações da sociedade civil nas instituições e como, de algum modo, aquelas compõem os processos decisórios é também objeto dos artigos. O grau desse papel e sua institucionalização varia e suas perspectivas de consolidação estão longe de ser uniformes.

Um componente das relações hemisféricas a ser observado de perto, uma vez que enfrenta o desafio colocado pelas perspectivas avançadas pelos novos regionalismos, é o sistema interamericano de salvaguarda dos direitos humanos, incluídas aí a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana. Esta última criou um corpo de jurisprudência que tem capacidade potencial de enfraquecer a impunidade relacionada à violação de direitos e que avançou a causa da responsabilização em numerosos países da região. Juntas, a Comissão e a Cláusula Democrática vêm sendo instrumentos parciais na promoção do respeito aos direitos humanos no hemisfério. Em diversas ocasiões, a Comissão desempenhou importante papel no monitoramento de violações de direitos humanos que se seguiram a tentativas de interrupção da democracia e na denúncia de fraudes e outras condições que viessem a tornar as eleições não livres. Ao mesmo tempo, não se desconhece o forte significado político desse seu papel, que não se desprende plenamente, e não poderia fazê-lo, dos interesses políticos envolvidos, inclusive dos interesses nacionais presentes, que determinam visões às vezes contrapostas do que sejam as formas democráticas e mesmo os direitos humanos. Por isso, há interesse especial no estudo e na compreensão das causas da tensão existente entre alguns Estados e essas instituições, entendendo que a proteção dos direitos humanos está há muito consolidada, inclusive por instrumentos internacionais amplamente aceitos: pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de dezembro de 1948, reafirmada em 1993 na Conferência das Nações Unidas em Viena. Nessa Conferência foi ampliado seu compartilhamento como valor no plano internacional mais geral.

Temos artigos que se voltam mais especificamente ao tema dos direitos humanos. Ao longo dos seus 54 anos de existência, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), criada formalmente em 1959, contribuiu para a democracia e os direitos, desde o enfrentamento, às vezes bem tímido, de ditaduras nos anos 1970 à elaboração de importantes instrumentos multilaterais contra a tortura e os desaparecimentos. Em particular, a CIDH foi pioneira na proteção dos direitos humanos ao conduzir visitas locais aos países e publicar relatórios específicos. Tais relatórios são posteriormente acompanhados ano a ano, de forma a encorajar mudanças positivas. Os relatórios da Comissão a respeito de reclamações individuais, aceitas após a consideração dos argumentos do Estado e das provas, servem também para fornecer interpretações precisas acerca das obrigações do Estado no quadro da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e outros tratados. Por sua vez, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, criada em 1979, firmou-se como a intérprete de última instância do conteúdo dos tratados de direitos humanos no hemisfério. As decisões da Corte têm sido anunciadas sobre questões sensíveis, tais como a responsabilização por atrocidades de massa, os direitos de comunidades indígenas à terra e aos recursos naturais, a eliminação da discriminação contra mulheres e crianças, a liberdade de expressão e associação, e a independência das cortes e outras instituições de controle. Embora tais decisões tenham tido largo alcance e ousado na determinação de penalidades aos Estados por violações comprovadas, elas apresentam altos níveis de cumprimento.

Significativo ainda é que, por meio desses mecanismos, a participação da sociedade civil no sistema interamericano tem acontecido. De fato, esses mecanismos foram responsáveis pelo surgimento dos primeiros espaços de diálogo entre a sociedade civil e a OEA. A partir da década de 1990, com a criação de espaços de diálogo entre a sociedade civil e os ministérios das Relações Exteriores no contexto das Assembleias Gerais da OEA e das Cúpulas das Américas, abriram-se caminhos para organizações da sociedade civil exercerem influência em atividades da OEA.

Pode-se argumentar que essa é uma característica pouco estudada da cena política das Américas e que coincide com a ampla consolidação de regimes democráticos. Há discussões nos governos e no plano regional no sentido de permitir às novas organizações regionais, particularmente a Unasul e a Celac, desenvolver instrumentos semelhantes: cláusula democrática, proteção dos direitos humanos e acesso da sociedade civil. No Mercosul, eles existem e mostraram-se eficazes, sobretudo a partir da assinatura do Protocolo de Ushuaia, em 1998. A análise das consequências que o enfraquecimento da OEA podem trazer, eventualmente debilitando os regimes de proteção e suas correspondentes instituições, é um tema subjacente aos artigos apresentados.

Ainda não está claro de que forma a redução da importância da OEA teria impacto sobre a influência de suas duas instituições (a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana), mas não há dúvida de que a eventual redução constituiria um desafio ao cenário institucional interamericano, tornando urgente o debate sobre instrumentos substitutivos, eventualmente inseridos no quadro das novas organizações. O sistema interamericano de proteção, caso a Comissão e a Corte perdessem apoio político, seria a sinalização de que elas podem ser substituídas por outros organismos em uma nova organização regional ou em outras instituições multilaterais. Neste número da revista, em alguns artigos estudam-se as razões do enfraquecimento centradas nos Estados Unidos, enquanto outros textos consideram como a lógica anti-hegemônica fortalece as novas organizações.

Desse modo, esta edição de Lua Nova visa contribuir para a compreensão do estado do debate entre os órgãos de direitos humanos e os mecanismos que possibilitam a participação da sociedade civil. Desde os anos 1980, agências da OEA consolidaram-se como instrumentos de proteção de direitos. Não se desconhece que sua ação está sujeita à assimetria de poder. Daí a importância da conjugação dos direitos com o princípio de soberania. O equilíbrio se sustenta com base nos princípios da não intervenção e da resolução pacífica das disputas. A pergunta a que se busca responder, partindo do pressuposto de não existir resposta a priori, é se as novas organizações debilitarão, manterão ou reforçarão os instrumentos de proteção. Leva-se em consideração a ideia de que a proteção dos direitos humanos depende da capacidade e da disposição de agir dos entes políticos – os Estados (O'Donnell, 2010; Smith, 1997), que, por seu lado, se democráticos, devem conviver com valores universais. As tensões que surgem desses parâmetros paralelos, os valores chamados universais e a soberania referem-se a todos os países, indistintamente, inclusive aos Estados Unidos. Em perspectiva de longo prazo, a existência de padrões duplos, diferenciados, debilita o sistema interamericano, inclusive o dos direitos humanos. A presença fundante norte-americana e, ao mesmo tempo, sua não submissão às regras referendadas pelos próprios Estados Unidos, explicada por razões históricas e constitucionais, como discutido no texto de Debora A. Maciel, Marrielle M. A. Ferreira e Andrei Koerner, evidencia a sensação de desequilíbrio e da existência de "dois pesos e duas medidas", por sua vez resultantes da assimetria de poder e do mesmo princípio de soberania (Cruz, 2012a).

É importante notar que vários governos da América Latina e do Caribe fizeram dos direitos humanos pilar fundamental de suas políticas externas e que alianças como o Mercosul instalaram comissões de direitos humanos. Novas organizações regionais têm expressado compromissos tanto com a proteção dos direitos como com a participação da sociedade civil (como é o caso da Unasul), mesmo que os mecanismos formais para monitoramento do cumprimento e aplicação das normas e para consecução dos objetivos proclamados ainda tenham de ser definidos. Quer-se saber quais são os atores que mais influenciam a formulação de políticas não apenas com relação às práticas de determinados países do hemisfério, mas também no nível regional. Isso é importante porque, no que se refere aos direitos humanos em particular, a participação da sociedade é frequentemente operada por meio de Redes Transnacionais de Advocacia, as TAN (Transnational Advocacy Networks), e não por entidades específicas dos países (Risse, Ropp e Sikkink, 1999).

Esta Lua Nova dá atenção ao papel dos Estados Unidos por se tratar, histórica e concretamente, de ator central e decisivo no sistema. A partir de 2001, a política norte-americana de "guerra contra o terror" evidenciou, entre outras consequências, crescente desmobilização do interesse pela América Latina e pelo sistema interamericano, aumentando ao mesmo tempo o número de violações de direitos, com o consequente forte aumento das contestações internas, externas e por algumas TAN. Esse aspecto incide bastante no enfraquecimento do sistema interamericano e da OEA. O artigo de Philip Brenner e Eric Hershberg, ao analisar o novo enfoque da política de Washington para a região, mostra como a concentração das atenções na Aliança do Pacífico, no quadro maior do interesse pela área Ásia-Pacífico, tende a consolidar a desmobilização e o possível enfraquecimento do sistema interamericano.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jan 2014
  • Data do Fascículo
    Dez 2013
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