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Panteras e locas dissidentes: o ativismo queer em Portugal e Chile e suas tensões com o movimento LGBT

Panthers and dissident "locas": queer activism in portugal and chile, and its tensions in relation to the lgbt movement

Resumos

O texto realiza uma análise de dois coletivos de ativismo queer existentes em Portugal e Chile. Após retomar a história dos movimentos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) e as suas principais conquistas, em especial em relação aos marcos legais, o artigo apresenta e analisa o ativismo queer do grupo Panteras Rosa e do Coletivo Universitário de Dissidência Sexual (CUDS). O objetivo é, ao demonstrar como esses grupos se diferenciam e entram em confronto com o movimento LGBT, apontar quais são as principais características desse ativismo nesses países.

Estudos Queer; Políticas; Movimento LGBT


The paper conducts an analysis about two collectives of queer activism from Portugal and Chile. After summarizing the history of LGBT (Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender) movements and their main achievements, especially regarding legal frameworks, the article presents and analyses the queer activism conducted by the groups Panteras Rosa and the Coletivo Universitário de Dissidência Sexual (CUDS). The objective is, by demonstrating how these groups differentiate themselves from and clash against the LGBT movement, to indicate the main characteristics of such activism in these countries.

Queer Studies; Policies; LGBT Movement


Panteras e locas dissidentes: o ativismo queer em Portugal e Chile e suas tensões com o movimento LGBT

Panthers and dissident "locas": queer activism in portugal and chile, and its tensions in relation to the lgbt movement

Leandro Colling

Professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC) e do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBa). Criador e coordenador do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade e criador e editor da revista acadêmica Periódicus

RESUMO

O texto realiza uma análise de dois coletivos de ativismo queer existentes em Portugal e Chile. Após retomar a história dos movimentos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) e as suas principais conquistas, em especial em relação aos marcos legais, o artigo apresenta e analisa o ativismo queer do grupo Panteras Rosa e do Coletivo Universitário de Dissidência Sexual (CUDS). O objetivo é, ao demonstrar como esses grupos se diferenciam e entram em confronto com o movimento LGBT, apontar quais são as principais características desse ativismo nesses países.

Palavras-chave: Estudos Queer; Políticas; Movimento LGBT.

ABSTRACT

The paper conducts an analysis about two collectives of queer activism from Portugal and Chile. After summarizing the history of LGBT (Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender) movements and their main achievements, especially regarding legal frameworks, the article presents and analyses the queer activism conducted by the groups Panteras Rosa and the Coletivo Universitário de Dissidência Sexual (CUDS). The objective is, by demonstrating how these groups differentiate themselves from and clash against the LGBT movement, to indicate the main characteristics of such activism in these countries.

Keywords: Queer Studies; Policies; LGBT Movement.

O que é, como funciona e o que faz o ativismo queer existente em países como Portugal e Chile? Em que medida ele se diferencia do movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) mais institucionalizado e conhecido e quais têm sido as principais tensões? Essas são algumas perguntas às quais pretendo começar a responder neste texto. Em um primeiro momento, farei uma síntese da história dos movimentos LGBT de cada país para, em seguida, tratar de algumas vozes e coletivos queer mais representativos e atuantes.

Portugal

Em um dos seus textos, Miguel Vale de Almeida (2010) faz um resumo cronológico sobre o movimento LGBT em Portugal, iniciando o seu percurso logo após o 25 de abril de 1974, data máxima da história contemporânea do país, a Revolução dos Cravos, que deu fim à ditatura. A democracia, no entanto, não imediatamente permitiu o surgimento de movimentos sociais LGBT pois, assim como ocorreu em vários países, a esquerda da época via (e em alguma medida ainda vê) a homossexualidade como um "assunto problemático e secundário, quando não mesmo perigoso" (Almeida, 2010, p. 47).

O movimento social LGBT institucionalizado, a rigor, em Portugal, surgiu a partir da década de 90 do século XX e já muito ligado com o combate ao HIV/Aids. Mas esse fato não significa que não existiu, antes disso, qualquer manifestação sobre o tema no país. Ana Cristina Santos (2004b) informa que, logo após o abril de 1974, começaram a aparecer manifestações esparsas com temática homossexual em alguns protestos, e, em 25 de outubro de 1980, foi criado o Coletivo de Homossexuais Revolucionários (CHOR), que durou apenas dois anos.

Esse grupo assistiu, em 1982, à retirada da homossexualidade do Código Penal, que datava de 1886 e, em seu artigo 71, "punia com medidas de segurança – internamento em manicômio criminal, casa de trabalho ou colônia agrícola (por período de seis meses a três anos, para trabalhos forçados), liberdade vigiada, caução de boa conduta e interdição do exercício da profissão – quem se entregasse habitualmente à ‘prática de vícios contra a natureza’" (Almeida, 2010, p. 47). No entanto, o mesmo Código criou um novo crime, constituído como "homossexualidade com menores", prevendo pena de até três anos para o maior de idade que fizesse sexo com um menor de 16 anos. Pena equivalente não existia para os heterossexuais.

Com a epidemia da Aids no país, no início da década de 1990, os coletivos LGBT começaram a surgir e se organizar. Em 1991, foi criado um dos coletivos pioneiros, o Grupo de Trabalho Homossexual (GTH), dentro do Partido Socialista Revolucionário. Em 1995, foi fundada a seção portuguesa da Ilga (International Lesbian and Gay Association), mas o seu reconhecimento legal ocorreu em novembro de 1997, com a inauguração do Centro Comunitário Gay e Lésbico, em espaço concedido pela Câmara Municipal de Lisboa1 1 Em janeiro de 2014, o Centro foi fechado porque o teto corria o risco de desabar. Até o término deste artigo, o Centro permanecia fechado. .

Em janeiro de 1996, as lésbicas criaram o Clube Safo (formalizado em 15 de fevereiro de 2002). Outros grupos que mantém atividade e representatividade são: Opus Gay (desde 1997); Não te prives, de Coimbra (criado em 2001); e Ex aequo – grupos de jovens LGBT (fundado em 2003) (Santos, 2004b). Em 2004, fruto de uma dissidência com a Ilga Portugal, um grupo de militantes antigos e novos criou o coletivo Panteras Rosa, sobre o qual tratarei com mais profundidade a seguir.

Nos últimos 15 anos, Portugal avançou em alguns marcos legais que dizem respeito diretamente às questões LGBT. Em março de 2001, o Parlamento aprovou as chamadas "uniões de fato", o que permitiu o reconhecimento de uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo. Esse avanço, entretanto, se restringia mais às questões econômicas de quem já possuía uma união estável, e isso fez com que o movimento se mobilizasse para a aprovação do casamento, o que ocorreu em janeiro de 2010. Entretanto, simultaneamente a essa aprovação, foi criada uma separação entre parentalidade e conjugalidade, o que impediu a adoção de crianças por casais de gays e lésbicas.

Em 22 de abril de 2004, foi aprovada a inclusão da orientação sexual no artigo 13 da Constituição, que proíbe várias discriminações (Lei Constitucional n.º 1/2004, de 24 de julho – a primeira do tipo na União Europeia). Apesar disso, a identidade de gênero não foi incluída na lista. Em 2007, foi aprovado, por referendo, o direito ao aborto.

O Código Penal Português, que foi alterado em setembro de 2007 e em fevereiro de 2013, em seu artigo 240, criminaliza a discriminação racial, religiosa e sexual através do chamado discurso do ódio. Assim, esse artigo estabelece que é crime: "Fundar ou constituir organização ou desenvolver atividades de propaganda organizada que incitem à discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo, orientação sexual ou identidade de género, ou que a encorajem"2 2 Disponível em: < https://dre.pt/application/dir/pdf1sdip/2013/02/03700/0109601098.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2014. . Além disso, as motivações homofóbicas são relevantes também em casos de difamação, injúria, ameaças e atos de violência, enquanto circunstâncias agravantes.

Entre as principais lacunas legais para os plenos direitos de pessoas LGBT, apontadas por Almeida (2010), estão a falta de leis específicas para a população trans. Não existe lei de identidade de gênero no país. As pessoas que se identificam como transexuais só podem realizar a cirurgia genital para mudança de sexo mediante o diagnóstico de disforia de gênero. Além disso, devem ter mais de 18 anos, ser solteiros/as e ter realizado o tratamento hormonal por dois anos em hospitais públicos.

Para mudar o nome, as pessoas trans devem iniciar um procedimento legal para processar o Estado. "Os tribunais aceitam a mudança de nome desde que os/as requerentes tenham mais de 18 anos, não tenham filhos, não tenham possibilidade de criar, tenham concluído o processo cirúrgico de resignação de sexo com mudanças irreversíveis, e vivam há um ano com nova identidade" (Almeida, 2010, p. 53). As pessoas trans que não realizaram a mudança de sexo ou que possuem filhos podem requerer a modificação no nome para nomes dúbios, aqueles podem ser utilizados tanto para homens como mulheres.

Entre as outras lacunas legais apontadas por Almeida estão a falta do reconhecimento explícito dos casamentos entre portugueses e estrangeiros do mesmo sexo, da possibilidade de concessão de asilo às pessoas perseguidas por orientação sexual, o fim da proibição da doação de sangue por homossexuais e a permissão da adoção. Nesse texto, o pesquisador também detecta que a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Gênero (CIG), que tem uma trajetória que se inicia na década de 1970 mas que, no atual formato e nome, existe desde 2007 para coordenar, no âmbito do Governo Federal, ações de combate aos preconceitos, tem priorizado a identidade de gênero de mulheres e menosprezado as questões de orientação e diversidade sexual e gênero. Também aponta a falta de dados oficiais por crimes de ódio, de uma agência que investigue as denúncias de discriminação na esfera do trabalho (desde 2003 o Código do Trabalho proíbe a discriminação do trabalhador com base na orientação sexual) e nas escolas e do acesso das mulheres solteiras e lésbicas aos programas de maternidade assistida.

Apesar das lacunas, é inegável que Portugal conta com marcos legais bem mais avançados para a população LGBT do que outros países, como Brasil ou Chile. Como essas leis foram aprovadas? Que estratégias foram utilizadas? Que condições sociais, culturais e políticas permitiram essas conquistas? Os estudos sobre o tema e as entrevistas que realizei com dez pesquisadores e ativistas do país apontam para uma série de razões3 3 Por questões de espaço não irei tratar aqui das razões e explicações concedidas pelas pessoas entrevistadas, mas ressalto que existem interpretações divergentes entre os/as ativistas ouvidos, que serão abordadas e analisadas em outros textos. .

Segundo Santos (2004a, 2004b), a ampliação de direitos para pessoas LGBT em Portugal poderia ser explicada por vários fatores, entre eles a equiparação do conjunto de leis nacionais aos códigos legais de outros países, em função da adesão do país à União Europeia, em 1986; a união da "esquerda democrática" em torno das pautas LGBT; a aliança de diversas associações como a Associação Portuguesa de Deficientes, a Rede Anti-Racista, o SOS-Racismo e a União Geral de Trabalhadores (UGT), grupos feministas como o Movimento Democrático de Mulheres (MDM) e a União de Mulheres Alternativa e Resposta (Umar) e a associação que trata de HIV/Aids, a Abraço. Isso se traduziu, diz a autora, na subscrição de manifestos, presença em eventos e manifestações públicas através dos meios de comunicação.

No entanto, a pesquisadora também enfatiza que a convivência entre os grupos LGBT, feministas e de minorias étnicas nem sempre foi pacífica, pois ocorreram por vezes trocas de acusações de homofobia, racismo ou misoginia entre os segmentos.

[...] a causa LGBT busca ativamente alargar o potencial humano, libertando-o do preconceito e da opressão que o reduz a um modelo homogêneo e redutor. Trata-se, em suma, de uma luta pela diversidade e, por isso, torna-se mais eficaz quando é levada a cabo por diversos grupos em função de gênero, raça, etnia, classe, estatuto ou orientação sexual (Santos, 2004a, p. 286).

Em trabalho mais recente, Santos (2013) defende que os avanços sobre questões LGBT em Portugal também ocorreram porque o movimento, que é diverso, não teria ficado paralisado na oposição entre assimilacionistas versus radicais:

As especificidades do ativismo português LGBT constituem o que eu chamo de "ativismo sincrético", um tipo de ação coletiva que usa tanto o lobby e a ação direta, integracionista e reivindicações transgressoras alternadamente. Ao concentrar-se em objetivos comuns, em vez de diferenças ideológicas internas, o ativismo sincrético sugere uma abordagem nova e mais sutil para o debate sobre assimilação e radicalismo. Além disso, porque o movimento LGBT Português tem sido capaz de alcançar a maioria de suas metas estabelecidas coletivamente em um período relativamente curto de tempo, o ativismo sincrético pode, sem dúvida, ser um movimento ideológico importante para gerar impactos positivos (Santos, 2013, p. 9).

O lobby4 4 Aqui o lobby não é entendido como algo pejorativo, como em geral acontece no Brasil. , segundo Santos (2013), seria menos utilizado e até rejeitado por grupos como Panteras Rosa, Clube Safo e Não te Prives, tidos como "mais radicais", que investem em ações diretas, com visibilidade, confrontação e controvérsia. O lobby seria uma estratégia mais usada pelos grupos tidos como assimilacionistas, (como a Ilga Portugal), que preferem essa via mais institucional e pretendem uma futura integração nas estruturas de poder que já existem no país (Santos, 2013, pp.150, 154).

A pesquisa de Santos com o movimento LGBT de Portugal e sua interface com os estudos queer tem possibilitado à autora pensar na própria sociologia, propondo o que chama de uma sociologia pública queer (Santos, 2012) e conceitos que também tentam encontrar uma possibilidade de convívio mais pacífico entre um ativismo mais assimilacionista e os queer. Outro desses conceitos é o de "universalismo útil". Para isso, apoia-se em reflexões de Boaventura de Sousa Santos, que tem pensado, nos últimos anos, como "compatibilizar a reivindicação de uma diferença enquanto coletivo e, ao mesmo tempo, combater as relações de desigualdade e de opressão que se constituíram acompanhando essa diferença" (B. S. Santos e Nunes, 2004, p. 19).

B. S. Santos e Nunes propõem como saída o multiculturalismo emancipatório, que teria entre as suas teses o uso da cultura como "recurso estratégico fundamental, como modo de tornar mutuamente inteligível e partilhável a reivindicação da diferença" e a resolução da tensão entre igualdade e diferença, que, "por si sós, não são condições suficientes de uma política emancipatória". A resposta é a de "defender a igualdade sempre que a diferença gerar inferioridade, e defender a diferença sempre que a igualdade implicar descaracterização" (Santos e Nunes, 2004, pp. 47-48). E, por fim, dizem que o sucesso das lutas emancipatórias depende das alianças que os grupos são capazes de construir:

Na esteira dessa reflexão (de Boaventura de Sousa Santos), proponho o conceito de universalismo útil, para designar uma política em que a difusão dos princípios universais da não discriminação se articula com a manutenção de recursos identitários constitutivos de subculturas valorizadas pelos sujeitos envolvidos [...] O universalismo útil deve conduzir a políticas para a igualdade, evitando contudo quaisquer medidas homogeneizantes. Quem pode homogeneizar é sempre quem está no topo da pirâmide de poder. É devido a este risco de homogeneização que alguns ativistas LGBT têm vindo a tecer fortes críticas ao discurso em defesa da igualdade, argumentando que os "direitos iguais" visam, em última instância, anular a diversidade no seio do próprio movimento LGBT (Santos e Nunes, 2004, pp. 263-64).

No entanto, como veremos a seguir, não parece que a tensão tenha deixado de ocorrer entre ações mais marcadas por uma perspectiva queer e coletivos assimilacionistas. Quando analisa e discute a relação do movimento LGBT e a cobertura da imprensa, A. C. Santos destaca o quanto a heteronormatividade incide sobre o movimento:

[...] propostas de apresentação pública do corpo e/ou identitária marcadamente subversivas dos modelos binários de género e da heteronorma monogâmica são frequentemente excluídas de acolhimento e incentivo, mesmo no interior do movimento LGBT. Tal posicionamento representa uma escolha ideológica que tende a afastar o ativismo LGBT de um papel central na desconstrução da cultura heteronormativa e heterossexista dominante, representando um distanciamento do projeto queer enquanto proposta desestabilizadora de qualquer padronização cultural hegemônica (Santos, 2009, p. 99).

Além disso, em outro texto, a pesquisadora também constata que o movimento LGBT concede excessiva atenção para a arena jurídica ("decretos e leis não mudam atitudes") e destaca que "falar do direito à diferença nunca é o mesmo que reivindicar direitos iguais para todos. O direito à diferença exige a especificidade sem desvalorização, a alternativa sem culpabilização" (Santos, 2004b, pp. 167-68).

Chile

A primeira aparição pública de um coletivo homossexual no Chile ocorreu em 22 de abril de 1973, cinco meses antes do presidente Salvador Allende ser deposto pelo golpe militar que duraria até 11 de março de 1990, quando o ditador Augusto Pinochet seria substituído pelo presidente eleito Patrício Aylwin. Conforme conta Victor Hugo Robles (s/d), a aparição consistiu em uma manifestação com cerca de 25 homossexuais e travestis, que clamavam por liberdade. Foram ridicularizadas pela imprensa da época, inclusive da esquerda.

Em finais de 1977, em plena ditadura, foi criado um coletivo de pessoas gays religiosas, o Integração, que tinham como objetivo conversar entre si sobre os seus problemas. Em 1984, as lésbicas criam o grupo Ayuquelén, que durou pouco tempo, mas, entre suas integrantes, haviam as que já questionavam a heterossexualidade obrigatória (Robles, s/d, p. 23).

No final da década de 1980, o Chile vivia um período em que a ditadura, a cada dia, encontrava mais dificuldades de se manter. Com a expansão dos casos de HIV/Aids, um grupo de gays criou, em 1987, a Corporação Chilena de Prevenção da SIDA, conhecida hoje como como Acciongay. Até 2004, essa organização estava apenas focada no combate à epidemia, mas, a partir desse ano, ampliou o seu espectro e atualmente também está inserida nas lutas por direitos.

Em 1988, entre os agitados protestos pela redemocratização do país, Pedro Lemebel e Francisco Casas criaram as Yeguas del Apocalipsis. A dupla realizou uma série de performances públicas baseadas em uma estética travesti de rua que causou muito impacto. Segundo Robles, as audazes representações conseguiram forçar a inclusão do tema homossexual nos discursos políticos de oposição ao regime militar. Mas adiante, voltarei a falar das Yeguas e da obra de Lemebel, bastante sintonizadas com o que hoje nomeamos de ativismo queer.

De um racha no Acciongay nasceu, em 28 de junho de 1991, um ano após a redemocratização do país, o Movilh, que então se chamava de Movimento de Liberação Homossexual. O Movilh existe até hoje mas, desde a segunda metade da década de 1990, chama-se Movimento de Integração e Liberação Homossexual. A mudança ocorreu depois de uma grande e controversa tensão e divisão entre os integrantes do coletivo, que culminou na expulsão de Rolando Jiménez do grupo5 5 Segundo os livros de Contardo (2012) e Robles (s/d), Rolando Jiménez foi expulso do Movilh histórico porque, em 1994, foi representar o grupo em uma conferência anual da Ilga em Nova Iorque. Nessa ocasião, a Ilga votaria a expulsão de uma organização chamada Nambla, que havia sido acusada de promover a pedofilia. O Movilh teria decidido pela abstenção na votação, mas Rolando votou contra, o que irritou completamente os integrantes do grupo. No livro de Contardo (2012, p. 388), Rolando alega que o Movilh não tinha tomado uma decisão a respeito antes da viagem e reconhece que agiu muito mal nesse tema. Juan Pablo Sutherland, no mesmo livro e em entrevista pessoal a esta pesquisa, disse também que a relação do coletivo com Rolando era muito ruim porque "Jiménez tinha uma perspectiva de ‘normalização’ da homossexualidade e incomodava-lhe muito a figura da loca. Rolando sempre brigou com as Yeguas del Apocalipsis porque davam uma imagem que ele não gostava de ver associada à homossexualidade. Uma pessoa pode ter diferentes posturas, mas ele foi expulso porque não respeitou a votação do Movilh" (Contardo, 2012, p. 389). . No entanto, Jiménez se apropriou da marca Movilh, mudou o significado da sigla, manteve o grupo e levou consigo a marca do coletivo pioneiro. Por isso, hoje ativistas dizem que existem dois Movilh: um de Jiménez, que se mantém desde sempre na presidência do grupo, e o MUMS (Movimento Unificado de Minorias Sexuais – ou Movilh Histórico), que foi criado em 28 de junho de 1998 para unificar as pessoas do primeiro Movilh e de outro coletivo chamado Centro Lambda Chile.

Os primeiros anos do Movilh foram marcados pela despenalização da homossexualidade, que era considerada crime no artigo 365 Código Penal do país. A promulgação da despenalização ocorreu apenas em 1999. Em 2001, surgiu o primeiro coletivo travesti, o Traves Chile, presidido pela ativista Silvia Parada. Atualmente, em Santiago, as travestis estão mais presentes no Sindicato Nacional Independente de Trabalhadoras Sexuais Amanda Jofré, criado em 2004. O nome é uma homenagem à travesti desse nome assassinada em 24 de novembro de 2002.

O ano de 2002 ficou marcado pela criação do CUDS (Coletivo Universitário de Dissidência Sexual) e de dois periódicos que inicialmente era impressos e depois se transformaram em sites da internet: Opus Gay, que não existe mais, e Rompendo o Silêncio, na web até hoje (http://www.rompiendoelsilencio.cl/), mais dirigido ao público lésbico, sob a coordenação de Érika Montesinos. Por falar em mídia, de 1993 até 2007, foi ao ar o programa de rádio Triângulo Aberto, inicialmente realizado com militantes do Movilh histórico e depois do MUMS, entre eles Victor Hugo Robles e Juan Pablo Sutherland.

Em 2003, foram apresentados ao Parlamento os primeiros projetos para regularizar as uniões civis ou mudar o conceito de matrimônio para incluir a possibilidade de união entre duas pessoas do mesmo sexo. No início de 2014, dois meses antes do encerramento do mandato de Sebastião Piñera como presidente do Chile, o Parlamento aprovou um indicativo de que o projeto AVP (Acordo de Vida em Pareja) fosse discutido. O mesmo ocorreu com o projeto de lei de identidade de gênero em tramitação. No entanto, o mandato do presidente acabou em março de 2014, e, até o término deste texto (agosto de 2014), nenhum dos projetos foi votado.

Em 29 de junho de 2004, um grupo de lésbicas criou o coletivo Las Otras Famílias. Isso ocorreu após o paradigmático caso da juíza Karen Atala Riffo, que perdeu a guarda de suas três filhas porque seu ex-marido, Jaime López, alegou que, por ela ser lésbica e estar à época vivendo com outra mulher, Emma de Ramón, não poderia criar as crianças. A Justiça local acatou as alegações do marido em duas instâncias, e Karen recorreu à Comissão Interamericana de Justiça contra o Estado do Chile. Depois de oito anos e meio, em 24 de fevereiro de 2012, o Estado chileno foi condenado por violar o direito à igualdade e da não discriminação, o direito à vida privada e o direito a ser ouvido. Como reparação, o Estado teve que pagar uma multa para a juíza e suas filhas, oferecer a elas atenção médica e psicológica e publicar a sentença no Diário Oficial6 6 Veja íntegra da sentença em: < http://corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_239_esp.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2014. . A realização de um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional também teve que ser realizado, o que ocorreu em dezembro de 2012.

Já em 2011, foi criada a Fundação Iguais, que teve como seu primeiro presidente o conhecido escritor de ficção Pablo Simonetti. Tida por boa parte do movimento como um grupo de gays de classe média alta, em pouco tempo de atuação o coletivo ganhou muita notoriedade no país.

O principal marco legal conquistado pelo movimento LGBT do Chile é a chamada lei antidiscriminação, mais conhecida como Lei Daniel Zamúdio, em referência ao nome do adolescente gay que foi assassinado barbaramente por um grupo de neonazistas em Santiago. O crime acelerou a aprovação da lei, em 2012, mas o projeto já tramitava desde 2005 no Parlamento. A referida lei criminaliza vários tipos de discriminações, inclusive de orientação sexual e identidade de gênero. No entanto, a lei recebe muitas críticas de todos os ativistas entrevistados para essa pesquisa, independentemente de qual seja a sua perspectiva política e/ou teórica. Entre as principais críticas estão o fato de que, para ser aprovado, o projeto necessitou ser completamente modificado e cortado. Com isso, não ficou assegurada na lei a criação de políticas públicas de Estado para o combate à homofobia, o ônus da prova do preconceito recaiu apenas à vítima e, no caso de condenação, todo o valor da indenização vai para o Estado, o que não incentiva as pessoas LGBT a acionar a referida lei, tida por alguns como um "placebo", como a qualificou um ativista de um coletivo estudantil chamado As Putas Babilônicas7 7 Ler < http://www.sentidog.com/lat/2014/01/las-putas-babilonicas-primer-colectivo-de-estudiantes-gays-de-chile.html>. Acesso em: 10 dez. 2014. . A mesma lei também deixou brechas para a realização de algumas discriminações, que em tese podem ser "justificadas" pela liberdade de culto e de emitir opinião, por exemplo.

As panteras rugem

Após essa rápida contextualização, passo a tratar sobre alguns coletivos e vozes queer mais significativos existentes em Portugal e Chile para, ao final, apontar algumas de suas principais características e diferenças em relação ao movimento LGBT mais conhecido e institucionalizado.

Em Portugal, o grupo mais sintonizado com a perspectiva queer, e que nos últimos anos inclusive se denomina como um coletivo queer, chama-se Panteras Rosa. Criado em 2004, a partir de uma dissidência com a Ilga Portugal e do agrupamento de outras pessoas que até então nunca haviam militado, as panteras têm em Sérgio Vitorino uma de suas principais vozes, que militou na Ilga e é um dos pioneiros do movimento LGBT do país.

As Panteras Rosa se caracterizam por sua estrutura horizontal e sua recusa ao recebimento de financiamento público. Vitorino, em entrevista8 8 Feita pelo autor com Sérgio Vitorino em Lisboa, em 13 de novembro de 2013. concedida para esta pesquisa e que foi publicada na íntegra na primeira edição da revista Periódicus (ver Colling, 2014), diz que, no seu entender, receber dinheiro de governos inibe certas ações em defesa de pessoas LGBT. O ativista cita, por exemplo, que a Ilga Portugal, por funcionar em um prédio cedido pela Câmara Municipal de Lisboa, não se posicionou publicamente em determinadas decisões que poderiam prejudicar a comunidade LGBT.

O centro comunitário onde a Ilga funciona pertence à Câmara. E assim como foi dado pode ser retirado. Isso é uma divergência que já vinha acumulando, tínhamos vários momentos de conflito com o presidente da Câmara, tanto quando era o João Soares, do PS, como o Santana Lopes, de direita. O primeiro ameaçou retirar o Arraial Pride, que se realizava aqui (no bairro Príncipe Real), para os confins da cidade. O segundo queria proibir a marcha do orgulho na Avenida da Liberdade, a mais nobre da cidade, porque era uma vergonha para cidade, que não ficava bem ali. E a Ilga recusou a pronunciar-se publicamente porque está comprometida com a Câmara Municipal de Lisboa. E foi isso que marcou muito o fato de que as Panteras se recusam a ter relação com o Estado. Do Estado só aceitamos preservativos gratuitos, mais nada. E já nos ofereceram dinheiro para projetos, financiamentos, não aceitamos o mínimo compromisso com nenhuma instituição pública porque sabemos que um dos principais problemas do associativismo em Portugal, não só LGBT, é que são vendidos (Colling, 2014).

A opção das Panteras não é pelo caminho da institucionalização, mas da formação de redes capazes de se articular em momentos específicos.

Tiramos algumas estruturas, mas não precisamos delas, pela natureza que assumimos. As Panteras não são uma associação, não têm uma estrutura física, a não ser um arquivo, que está em minha casa, as faixas, os cartazes, as caudas das Panteras que usamos nas marchas e distribuímos nas casas um dos outros. E nos reunimos nos bares, no Príncipe Real e na RDA (um coletivo libertário anarquista de Lisboa). Precisamos de uma lista de e-mail para nos comunicar em rede. As Panteras, não sendo instituição, são uma rede de pessoas com alguma capacidade de reflexão conjunta, em discussão permanente pela internet e de intervenção rápida. Nós somos uma espécie de braço armado do movimento (Colling, 2014).

Entre as suas estratégias de intervenção política estão as ações de desobediência civil, que consistem em:

[...] invadir organismos públicos, pintar de vermelho o Instituto Português de Sangue para simbolizar o sangue dos gays que é rejeitado; impedir as máquinas de destruir as casas de casais de gays e lésbicas; ações de beijaço público, coisas das mais visíveis possíveis, ações antipublicidade, que não têm muita tradição mas é uma outra forma de ação. São ações de vandalizar esses postes publicitários, por exemplo, denunciar as mensagens sexistas e por aí vai (Colling, 2014).

Em determinados casos, as Panteras fizeram investigações paralelas à polícia. Sobre um grupo organizado de ataque a gays na cidade de Viseu, descobriram que eram liderados por filhos de um juiz e de um comandante local da polícia. No caso Gisberta, trans brasileira assassinada na cidade do Porto, denunciaram a tentativa de falsificação da autópsia, que tinha como objetivo esconder que ela foi torturada por 12 meninos de um internato da Igreja Católica.

Agora, o nosso confronto (no caso Gisberta) maior foi com o movimento LGBT, ou LGB, como começamos a chamá-lo a esta altura, porque nós fizemos imediatamente um mea-culpa interno dizendo que uma pessoa trans, que estava no estado da Gisberta, isto só acontece porque o movimento LGB na verdade nunca foi T. A verdade é que nenhuma associação que se assume como transexual ou transgênera alguma vez deu espaço para a organização de pessoas T ou alguma vez destinou recursos como os que destinam, por exemplo, pra questão gay. Portanto, lamentamos, isso é fruto da hipocrisia do movimento e também nós assumimos a nossa cota de responsabilidade, e o restante do movimento assumiu-a? Obviamente não foi o que aconteceu (Colling, 2014).

Outra ação priorizada pelas Panteras foi o trabalho para melhorar a cobertura da imprensa sobre temas LGBT, para retirar o foco da justificativa da homossexualidade para o entendimento das causas da homofobia.

Sendo bem pouco modesto, acho que as Panteras tiveram uma influência determinante na primeira metade dos anos 2000 para mudar essa realidade midiática, porque interpelamos cotidianamente a comunicação social no sentido de dizer; "não é a homossexualidade que tem que se justificar, é a homofobia, portanto, nós não respondemos mais matérias deste gênero, nós não falamos mais com vocês nessa base e, se vocês querem falar conosco agora, vai ser sobre casos de homofobia e é isso que nós queremos visibilizar, e é isso que vai ter que se justificar de alguma maneira, porque não tem justificativa, portanto, é atrás dessas pessoas que vocês têm que ir, não é o homossexual que tem que ser mostrado, é a sua discriminação (Colling, 2014).

Um dos outros momentos de tensão entre as Panteras e ativistas LGBT, em especial ligados à Ilga Portugal, ocorreu durante o processo de aprovação do casamento civil igualitário. O principal tensionamento ocorreu entre Vitorino e o pesquisador Miguel Vale de Almeida9 9 Leia dois textos sobre a polêmica disponíveis em: < http://miguelvaledealmeida.net/wp-content/uploads/2008/06/de-vermelho-a-violeta-e-vice-versa.pdf> e < http://portugalgay.pt/opiniao/sergiovitorino01.asp>. Acesso em: 10 dez. 2014. . Reconhecendo a importância da lei (as Panteras apoiaram o projeto, mas com ressalvas), Vitorino centrou suas críticas em duas frentes: uma delas em relação à instituição do casamento e dos riscos da criação de um novo parâmetro de respeitabilidade de pessoas LGBT e, por outro lado, do problema que a aprovação gerou, pois a mesma lei criou o impedimento da adoção de crianças por casais do mesmo sexo.

Acho que a Ilga Portugal cometeu um erro estratégico e ético muito grave. O erro estratégico foi permitir, na negociação com o Partido Socialista, uma solução de avanço do casamento em troca da inclusão de uma cláusula explícita de discriminação com relação à adoção. Isso não existia. A cláusula de discriminação sobre a adoção era implícita, não estava escrita, agora está. E o problema estratégico disso é que agora não conseguimos resolver a situação, que só vamos conseguir resolver parceladamente, com processos de famílias contra o Estado, ao longo de muitos anos, uma coisa que bem negociada teria sido resolvida da melhor forma naquele momento, porque havia uma relação de forças naquela altura e era possível pressionar o PS. Apesar do PS ser um partido covarde nessas coisas, era possível, mas eles desistiram da partida. Quando não se exige o todo só se obtém menos de uma parte. Quando se exige um todo se consegue uma parte. Isso não é negociar, é dar de bandeja. É assim que funciona. [...] O que você não pode é exigir por baixo, isso não é negociável, isso é dar de bandeja os pontos, a partir de uma negociação, e acho que a Ilga fez isso. Isso é um problema ético, não se tira um direito para ganhar outros. Não se aceita a inclusão de cláusulas discriminatórias na lei! O movimento não pode fazer isso, o movimento social não é um partido político, não tem que fazer cálculos desses, tem que ter posição de princípio e, portanto, não pode aceitar a introdução de uma nova discriminação (Colling, 2014).

Em um dos textos em que rebate esses e outros argumentos de Vitorino, Almeida considera que o ativista das Panteras Rosa:

[...] estabelece uma confusão entre reivindicação de igualdade e adesão a um modelo. A reivindicação pela igualdade no acesso ao casamento civil é uma reivindicação de direitos civis que confronta a prática homofóbica e criadora de desigualdades do Estado, no caso português em flagrante contraste com a própria Constituição. A reivindicação não tem que, nem deve, conter, em si mesma, nenhum projeto estético, nem nenhum projeto ético no que às relações conjugais concretas diz respeito. Isto é: reivindica-se igualdade no acesso ao que existe (o casamento); sabendo que na sociedade atual esse acesso é considerado um privilégio, conferidor de estatuto (e de benefícios), e marca simbólica do heterossexismo e da heteronormatividade (Almeida, 2008, p. X).

O pesquisador também diz que a "política concreta" é a "gestão do possível" e que, caso a crítica cultural e a teorização social radicais "tomarem a dianteira", elas têm que "se demitir da política concreta":

Em coerência, uma opção total pela crítica cultural deve conduzir à recusa da ideia mesma de casamento, ao apelo à sua abolição e à não aceitação da cedência transitória pela reivindicação do acesso igual.

Note-se que não defendo a separação entre política concreta do possível, por um lado, e crítica cultural radical, por outro (que seria traduzível na oposição entre lobby político e ação direta antidiscriminação). Digo, sim, que são dois níveis, duas esferas de atuação, com velocidades diferentes e âmbitos de comunicação com a sociedade diferentes. Justamente porque não se devem separar, seria ideal não "separar as águas" por aí (Almeida, 2008, p. 7).

É nesse sentido que Almeida propôs, em sua palestra de encerramento do 9º Fazendo Gênero, em Florianópolis, que a teoria queer ofereceria bons argumentos para a realização de críticas culturais, mas seria ineficaz para a "política concreta". O argumento foi rebatido por Richard Miskolci (2011, p. 49), para quem Almeida "defendia uma questionável distinção entre reflexão crítica e ação política. Sua fala terminou por apresentar o caminho liberal-identitário como inevitável, reduzindo a crítica a um papel futuro de transformação cultural mais profundo". Demonstrarei, mais adiante, que o próprio ativismo de grupos como Panteras Rosa e CUDS evidencia o equívoco de críticas como as realizadas por Almeida10 10 Sobre como seria possível fazer política dentro de uma perspectiva queer no Brasil, sugiro a leitura do texto de Colling (2013) em que analisa o primeiro ano de funcionamento do Conselho Nacional LGBT em nosso país. .

Além das Panteras, Portugal possui outras vozes e coletivos sintonizados, de alguma forma, com a perspectiva queer que não iremos analisar aqui. O grupo Não te Prives e a atual configuração do Clube Safo, por exemplo, que não se autodefinem como queer, são aliados em algumas pautas das Panteras e também tensionam parte do movimento. O Safo, por exemplo, em especial na pressão para a inclusão de temáticas das relações poliamorosas em manifestos, o que sempre tem sido rejeitado pela Ilga. O Festival Queer Lisboa, que existe desde 1997 (com esse nome a partir de 2007), possui uma política de exibição de filmes que questionam os binarismos de gênero, apresenta obras de pós-pornô e outras linguagens experimentais. Entre os seus colaboradores, está o professor Fernando Cascais, um dos primeiros pesquisadores a tratar de teoria queer no país.

Recentemente, outros coletivos, mais focados no ativismo pela internet, também têm surgido, como o Bichas Cobardes, que tem como objetivo positivar o insulto "bichas" e denunciar o que consideram como manifestações da "homonormatividade"11 11 Uso o termo entre aspas porque o seu uso está recheado de controvérsias. De um modo geral, o que as pessoas denominam como "homonormatividade", na verdade, no meu entender, são manifestações da heteronormatividade em pessoas LGBT. Sobre o tema, sugiro a leitura do texto de Gilmaro Nogueira, disponível em: < http://www.ibahia.com/a/blogs/sexualidade/2013/04/01/a-homonormatividade-nao-existe/>. Acesso em: 10 dez. 2014. dentro da comunidade e ativismo LGBT.

As locas dissidentes

No Chile, a existência de vozes e coletivos que hoje consideramos como sintonizados com uma perspectiva queer pode ser identificada muito antes do surgimento do ativismo e teoria queer nos Estados Unidos. Algumas das vozes mais representativas são as de Juan Pablo Sutherland, histórico militante LGBT no país e que hoje se dedica à literatura e à docência, e Pedro Lemebel, conhecido performer e escritor. O grupo que realiza ações similares às Panteras chama-se CUDS, como já visto neste artigo, o Coletivo Universitário de Dissidência Sexual.

Sutherland, que já presidiu grupos LGBT, a exemplo do MUMS, na história do movimento sempre se posicionou contra esse ideal normatizado de representação das pessoas LGBT. Em um debate sobre paradas, que mudaram de data de junho para setembro, para dar uma cor local ao evento, uma vez que em setembro o Chile retoma muitos debates políticos em função da data do golpe que depôs Salvador Allende, o então ativista do MUMS disse:

A expressão de carnaval de rua faz aparecer uma austeridade tipicamente chilena cujo afã é uniformizar. Alguns dizem: "nem todos os gays são tão locas"; outros: "não somos tão feias ou tão populares". A estridência de algumas ofende a decência do gay de closet ou das "rainhas do roupeiro", como se dizia antes. Todas e todos cabem. Também se argumenta que a mídia vai utilizar a marcha para expor o rosto mais débil e precário da homossexualidade, vale dizer, uma certa "insuportável leviandade da loca". A que temos medo? Temos que fazer passaporte de decência para ocupar a praça pública? Temos que firmar com humildade ratona nossas permissões para ir à rua? Se não pedimos permissão na ditatura, quando corríamos no meio das revoltas de rua vamos ordenar agora a imagem marica para parecer como "politicamente corretos"? (Sutherland, 2004, p. 275).

Contemporâneo e amigo de Lemebel, Sutherland destaca a ação política do artista e escritor em sua obra literária e também frente às Yeguas del Apocalipsis, criado em 1988, entre os agitados protestos pela redemocratização do país, por Pedro Lemebel e Francisco Casas. A dupla realizou uma série de performances públicas baseadas em uma estética travesti de rua. Lemebel hoje é um reconhecido escritor, em especial de crônicas, nas quais usa o que chama de um "locabulário", ou um vocabulário das locas, em que um dos focos é o de realizar uma cartografia da abjeção LGBT no Chile dos últimos 20 anos.

Em entrevista a Nelly Richard, Lemebel usa o termo "locabulário" para definir o seu vocabulário de loca. Nela, ele fala de sua obra, suas influências, entre elas a importância de Nestor Perlongher (cita inclusive a importância do texto Matan a una marica)12 12 Publicado em Perlongher (1997). e Las Yeguas del Apocalipse. Sobre o movimento LGBT, diz: "Olho (o movimento) em sua sequência com uma familiar distância. Creio que está fossilizado um pouco em seu auge liberacionista nos espaços de contato designados pelas ONGs pelas esmolas do poder" (Lemebel, 2008, p.186).

Sutherland, depois de analisar a literatura de Nestor Perlongher e Pedro Lemebel, que considera sintonizada com o que hoje nomeamos de estudos queer – "Loco afán é o ACT UP da literatura chilena, é uma barricada na luta pela emancipação marica. Loco afán é manifesto de uma urgência, de uma batalha cultural, de uma geografia precária afogada pelo toque de recolher, pela homofobia, o neoliberalismo selvagem e pela Sida" (Sutherland, 2011, p. 86 –, também analisa as performances das Yeguas del Apocalipsis:

Coletivo constituído por Francisco Casas e Pedro Lemebel, as Yeguas del Apocalipsis irrompem com o corpo marica-pobre ressituando ou desterritorializando as performances de galeria em uma performance de rua, prostibular e marica. As Yeguas serão conhecidas por uma série de ações que põem em cena a homossexualidade popular ou o devir minoritário desde a perspectiva deleuzeana (Sutherland, 2011, p. 88).

O autor lembra que, antes das Yeguas, já na década de 1970, Juan Dávila e Carlos Leppe realizavam performances com a conjunção de corpo, paródia, censura e ambiguidade. "A forte marca social e política das ações das Yeguas del Apocalipsis responderam ao exercício crítico de alijar-se do discurso militante clássico de esquerda e geraram um corte que expôs o corpo homossexual a partir da hiperidentidade dos sujeitos subalternos" (Sutherland, 2011, p. 89).

Na crônica/manifesto Loco afán, que dá título a um dos seus livros13 13 A primeira edição do livro Loco afán: crónicas de sidario foi publicada em 1996 pela LOM Ediciones, Santiago do Chile. e que foi lida em um encontro de Félix Guattari com alunos da Universidade Arcis, em 22 de março de 1991, em Santiago, Lemebel dispara sua crítica contra a (ou a falta de) política anti-HIV e da identidade asséptica do gay em seus movimentos assimilacionistas:

O gay se soma ao poder, não o confronta, não o transgride. Propõe a categoria homossexual como a regressão ao gênero. O gay fabrica sua emancipação à sombra do "capitalismo vitorioso". Apenas respira na forca da sua gravata mas acompanha e acomoda o seu traseiro murcho em espaços acolhedores onde o sistema o permite. Um circuito hipócrita sem consciência de classe que configura mais uma órbita em torno ao poder.

Talvez a América Latina travestida de transgressões, reconquistas e remendos culturais - que por sua superposição de enxertos sepulta a lua morena da sua identidade - aflore em sua viadagem guerreira que se disfarça na cosmética tribal de sua periferia. Uma militância corpórea que enfatiza a partir das bordas da voz um discurso próprio e fragmentado, cujo nível mais desprotegido pela sua falta de retórica e pela sua orfandade política seja o travestimento homossexual que se acumula marginal nas dobras mais escuras das capitais latino-americanas (Lemebel, 2013, pp. 166-167)14 14 A tradução desta citação é de Helder Maia. As demais existentes no texto são de minha autoria. .

Também em uma entrevista a Nelly Richard, em que fala sobre a história do movimento LGBT no Chile, Sutherland retoma o tema de como as Yeguas provocaram uma zona de tensões entre uma paródia travesti versus a militância de esquerda homossexual, mas também é incitado a falar sobre o impacto do mercado nas identidades gays. "Há que ter muito cuidado com o mercado que, efetivamente, fabrica estéticas gays domesticadas" (Sutherland, 2008, p. 195).

O CUDS foi criado em maio de 2002. No início era ligado ao Partido Comunista Chileno mas, a partir de 2004, passa a assumir uma perspectiva queer, influenciado, inclusive, por leituras de Judith Butler e Beatriz Preciado – essa última, aliás, esteve presente naquele ano em Santiago do Chile. As suas primeiras ações consistiram em protestos contra a discriminação de estudantes LGBT nas escolas, através do uso de estratégias inspiradas no movimento Funa, que, desde o final da década de 1990, realizava protestos espetaculares e muito barulhentos para denunciar centros de tortura e torturadores da época do regime militar no Chile. A partir de 2004, ativistas do CUDS realizam intervenções nas marchas LGBT, com grandes faixas com frases típicas dos estudos queer, como "A heterossexualidade não é natural".

Desde o início marcado por sua característica mais acadêmica, em 2005 o CUDS lançou uma revista impressa com textos de Derrida, Preciado e de vários integrantes do coletivo. No mesmo ano, resolveram mudar o significado da sigla, de Diversidade Sexual para Dissidência Sexual. A proposta, segundo Felipe Rivas San Martin, teve o objetivo de problematizar o conceito de diversidade.

De início usamos a palavra diversidade quase como continuação do Comitê de Esquerda pela Diversidade Sexual, que foi o antecedente da CUDS. O discurso da dissidência sexual começa a aparecer em 2005 também porque coincide com o fato do tema da diversidade sexual nesse momento começar a se tornar muito institucional, quando o termo diversidade parece a ser demasiado normalizado, muito próximo do discurso da tolerância, demasiado multicultural e neoliberal. Por outro lado, tampouco nos interessava uma nomenclatura queer diretamente, pois estávamos muito preocupados nessas hierarquias norte-sul, na circulação de saberes e pensando muito fortemente no local, na genealogia local das sexualidades críticas. O conceito de dissidência sexual nos retira dessa lógica multiculturalista inócua, neste momento já muito perto do discurso do Estado, e também não é simplesmente uma repetição de um discurso norte-americana do queer, de um discurso metropolitano hegemônico. Ao mesmo tempo, dissidência é pós-identitário porque não fala de nenhuma identidade em particular, mas põe o acento na crítica e no posicionamento político e crítico (San Martin, entrevista concedida ao autor em 14 de janeiro de 2014).

As críticas à instituição do casamento também são recorrentes entre ativistas do CUDS, mas Felipe considera a importância desse direito e do debate gerado nesses momentos. Em um texto, retomando questões desenvolvidas por Butler, associa essas pautas também com a reivindicação de ingresso de homossexuais no exército e diz:

O sistema cultural estabelece os limites do pensável, do inteligível e também dos desejos possíveis de serem desejados. No caso do Exército, o direito a entrar nas Forças Armadas para todos os cidadãos de um país só é possível de ser desejado como direito, em uma matriz cultural baseada no militarismo, o Estado Nacional e a Guerra (San Martin, 2008, p. 199).

Em 2011, o grupo lançou o livro Por un feminismo sin mujeres, com textos relacionados com os estudos queer no Chile. Nessa obra, em especial em texto de Rivas, existe o objetivo de problematizar a mera importação de uma teoria do norte para o sul e o de pensar as características específicas do queer na América Latina, além de lançar as primeiras reflexões sobre as diferenças entre o trabalho do CUDS e o realizado por Lemebel.

A relação entre as obras artísticas de Rivas, que é artista visual e autor de vários e polêmicos vídeos15 15 Disponíveis em: < http://www.feliperivas.com/> e < http://vimeo.com/user2605609>. Acesso em: 10 dez. 2014. , e Lemebel gerou algum debate em especial após a exibição do vídeo Ideologia, realizado por Rivas e apresentado em um festival de cinema em Santiago. Nesse vídeo, Rivas ejacula sobre a imagem de Salvador Allende. Lemebel abdicou de ser jurado do festival e considerou a obra como "fascista". O ativista da CUDS, por sua vez, considerou que a reação do escritor e performer colocou em cena a diferença entre o trabalho de ambos, que seria motivada pelo fato de Lemebel ser um conhecido militante de esquerda que ficou impactado por um dos seus ícones ter sido, no seu entender, desrespeitado. Além disso, Rivas pensa que a reação também teve relação com a subversão de uma "tradição da arte homossexual no Chile", da qual Lemebel é uma das referências e Rivas tributário. Diz Rivas em entrevista para Sánchez:

Claramente o rechaço de Lemebel ao vídeo, sustentado em seu rechaço à presença do pênis ereto e da ejaculação, põe em evidência que seu marco de leitura é certo feminismo da diferença essencialista, que não permite pensar as possibilidades de utilização subversiva dos signos da masculinidade. Essa possibilidade é algo que nos tem ensinado as práticas drag king de paródia da masculinidade, utilizando seus mesmos termos. É o que está também no centro do pós-pornô: utilizar a representação pornográfica de um modo anti-hegemônico, e do próprio discurso queer: não existe nenhum sentido essencial nos signos de gênero que não possa ser utilizado para desbaratar as próprias bases normativas da heterossexualidade obrigatória. Por outra parte, quando Beatriz Preciado diz que "o falo não existe", também está colocando em crise os modos em que se entendem os processos de significação (da linguística e da psicanálise) junto com criticar a certo feminismo que – ao insistir em denunciar o suposto "falocentrismo" – poderia chegar a reforçar performativamente esse falocentrismo, por efeito de sua centralização perceptiva. E esse é um assunto que em Preciado é chave (Sánchez, 2011).

Em 2012, o CUDS lançou uma campanha/performance para recolher doações para a realização de abortos ilegais no Chile. O aborto no país é proibido por lei. Os militantes saíram às ruas para recolher donativos e responderam a um processo na Justiça pela ação.

Assim como em Portugal, no Chile também existem outras vozes que poderiam ser consideradas como sintonizadas com as perspectivas queer, ainda que essas pessoas e coletivos não se identifiquem como tal. Uma dessas vozes é a do histórico militante Victor Hugo Robles, que, em 1997, criou uma personagem que marcou e ainda marca o ativismo LGBT do Chile. Trata-se do Che de los Gays. Seguindo o exemplo de intervenções públicas parecidas (mas não iguais) às das Yeguas del Apocalipsis, Victor se apropriou da figura de Che Guevara e começou a realizar, de forma autônoma, uma série de aparições em eventos públicos que chamaram muita atenção sobre o preconceito sofrido pelos homossexuais16 16 Para conhecer mais veja o documentário disponível em: < http://vimeo.com/6440073>. Acesso em: 10 dez. 2014. .

Em análise sobre as intervenções do Che de los Gays, Gabriel Soto conclui:

O Che dos Gays questiona as garantias de que tudo encadeia-se como deve ser: o nome do indivíduo, o corpo sexuado binário que distingue entre homens e mulheres, a diferença sexual, uma ordem familiar e a palavra em rituais públicos que define quem participa e quem se exclui (Soto, 2011, p. 312).

As ações artísticas e performances de Claudia Rodrigues, conhecida e histórica ativista trans local, e da performer Hija de Perra17 17 Ver entrevista disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=IkmKJey7ZXI>. Acesso em: 10 dez. 2014. são outras duas potências queer do Chile. Também existem vários coletivos estudantis, como As Putas Babilônicas, que atuam no ensino médio, e o Queer UC, da Universidade do Chile.

Em se falando de coletivo mais institucionalizado, vale destacar a Organização de Transexuais pela Dignidade e Diversidade (OTD), fundada por Andres Ignacio Rivera Duarte, que revela sofrer influências de teóricas como Butler, Preciado e, em especial, do pesquisador e ativista intersex e trans argentino Mauro Cabral. Seu trabalho, por exemplo, é muito focado na campanha pela despatologização das identidades trans, o que já gerou muitos enfrentamentos com outros coletivos LGBT, em especial com o Movilh18 18 Sobre o assunto veja: < http://www.carlaantonelli.com/notis-02022010-MOVILH-y-OTD-transexuales-chile-se-desmienten-mutuamente-en-sendos-nuevos-comunicados.htm>. Acesso em: 10 dez. 2014. , e a constante problematização dos binarismos de gênero.

O que é esse ativismo queer?

Após o que foi exposto, é possível começar a responder a pergunta que motiva, a rigor, esta pesquisa: o que é esse ativismo queer existente em Portugal e Chile, influenciado, mas não só, pelos estudos queer? Trata-se de uma simples assimilação de estudos e políticas vindas de fora, de outros contextos, ou existem modos mais próprios de realizar esse ativismo?

Até o momento, penso que é possível apontar as seguintes características, ainda que de forma provisória, sem a preocupação de colocá-las em ordem de importância:

  • O ativismo dos grupos focalizados neste artigo, como era de esperar em função da própria trajetória dos coletivos queer dos EUA, nos anos 1980, também é marcado por uma tensão constante com o movimento institucionalizado/

    mainstream (ver Halperin, 2007). A aparição de questões caras ao ativismo queer, como vimos, gera polêmica, controvérsias e rupturas. Não entendo, é claro, que essa seja uma característica negativa ou necessariamente algo prejudicial ao movimento LGBT em geral ou ao ativismo queer. Pelo contrário, a existência da tensão e a emergência de novos coletivos trouxeram mais pessoas para o debate e para a própria luta política. Esse processo continua em plena expansão: basta verificar a criação de novos coletivos e/ou vozes que começam a entrar no debate a cada dia.

  • Outra característica que marca esses coletivos é a luta pela ampliação, reformulação e mudanças das identidades sexuais e de gênero, manifestada especialmente na constante ressignificação das formas com as quais as pessoas desses coletivos resolvem se identificar. O exemplo mais visível é a própria incorporação do queer ou

    cuier como palavra e conceito para se autodefinir, assim como a valorização da loca e da marica e tortillera em contraposição ao gay ou lésbica, em especial.

  • Nas ações e/ou discursos desses coletivos são centrais as críticas ao binarismo de gênero e ao chamado paradigma da igualdade. Ao invés disso, esses coletivos e vozes estão muito mais próximos de uma perspectiva, filosofia ou sociologia das diferenças. Em outro texto (Colling, 2013, pp. 408-09), demonstro que os movimentos que aderem ao paradigma da igualdade e da exclusiva afirmação das identidades, quando ligadas ao campo das sexualidades e dos gêneros, via de regra trabalham com as seguintes ideias: 1) apostam quase que exclusivamente na conquista de marcos legais; 2) não possuem ações que combatam os preconceitos através do campo da cultura; 3) explicam a sexualidade e as identidades de gênero dentro de uma perspectiva que, a rigor, flerta com ou adere à ideia de que há apenas dois gêneros (masculino e feminino) e de que tanto os gêneros quanto as orientações sexuais são "naturais" ou até gerados por componentes biológicos/genéticos; 4) através da afirmação das identidades, forçam todas as pessoas não heterossexuais a se enquadrarem a uma das identidades LGBT.

  • Já as políticas das diferenças são mais caracterizadas por: 1) priorizar as estratégias políticas através do campo da cultura, no caso desses coletivos em especial as estratégias de comunicação, vídeos, performances e a literatura; 2) criticar a aposta exclusiva nas propostas dos marcos legais, em especial quando reforçam normas ou instituições consideradas disciplinadoras das sexualidades e dos gêneros; 3) explicar a sexualidade e os gêneros para além dos binarismos, com duras críticas às perspectivas biológicas, genéticas e naturalizantes; 4) entender que as identidades são fluidas e que novas identidades podem ser criadas e recriadas permanentemente.

  • Talvez uma frase possa sintetizar de alguma forma a perspectiva das diferenças: "Nosotras no somos ‘iguales’, somos únicas e irrepetibles", disse certa vez Lemebel, se referindo, inclusive, ao nome da Fundação Iguais, do Chile A mesma frase já foi vista em cartazes das paradas LGBT do país.

  • De uma forma mais intensa nas Panteras Rosa e nas Yeguas del Apocalispis, percebe-se uma forte influência das perspectivas trans, também com as suas diferenças. Em todos, há uma aderência e necessidade de se identificar também como vozes e coletivos feministas, porém com críticas ao feminismo que pensa a categoria mulher apenas e exclusivamente pelo corpo de "bio-mulheres".

  • Na maioria dos coletivos e vozes sintonizadas com a perspectiva queer, é recorrente o uso de ações de desobediência civil e de impacto mediático. Essas ações são realizadas das mais diversas formas, inclusive resultando em processos judiciais contra as pessoas mais visíveis dos coletivos.

  • Em algumas de suas ações, o corpo, em muitos casos fortemente sexualizado e erotizado, é um dos principais instrumentos.

  • A estrutura organizativa é a mais horizontal possível. A verticalidade é criticada e, em vários momentos, foi essa uma das causas da saída de militantes dos movimentos mais conhecidos e institucionalizados.

  • A pauta da despatologização das identidades trans e o projeto de identidade de gênero é recorrente e prioritária nesses coletivos, assim como uma perspectiva antinormalizadora das demais identidades, orientações e práticas sexuais. A mesma aderência a essas pautas não é tão perceptível entre os grupos do movimento LGBT, em geral mais focados nas pautas do casamento e na criminalização das práticas homofóbicas.

  • O espectro político desses coletivos e vozes queer é do campo da esquerda, mas também são recorrentes as críticas ao modo como, hoje e ontem, os partidos de esquerda lidam e lidaram com as dissidências sexuais e de gênero.

  • Ainda que compartam algumas das características elencadas, os grupos e vozes que conformam o que estou nomeando aqui de ativismo queer nesses dois países também possuem, como detalhei no texto, várias diferenças entre si. Ou seja, não podemos pensar que essas experiências criam um bloco homogêneo que podemos utilizar para dizer o que são, como são e o que fazem esses coletivos. Como vimos, alguns são mais ligados a ações de intervenções diretas nas ruas e de confronto com o próprio movimento LGBT, outros combinam esse tipo de ação com um perfil mais próximo do acadêmico. Outra diferença reside nas linguagens artísticas e temáticas priorizadas nas intervenções.

  • Além de fortemente influenciados pelas obras de Butler e Preciado, também são tidos como muito importantes e formadores os autores e autoras locais anteriores ao surgimento dos estudos queer. Na América Latina, em especial, Nestor Perlongher (2008 e 1997), é o nosso "santo"

    19 19 Em referência ao livro Saint Foucault, de David Halperin (2007). Sobre a leitura queer da obra de Perlongher, sugiro ler Maia (2013), Miskolci e Pelúcio (2008) e Sutherland (2009). , ou melhor, nossa loca santa.

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  • _____. 2009. Nación marica Prácticas culturales y crítica
  • _____. 2011. "La ciudad letrada
  • 1
    Em janeiro de 2014, o Centro foi fechado porque o teto corria o risco de desabar. Até o término deste artigo, o Centro permanecia fechado.
  • 2
    Disponível em: <
  • 3
    Por questões de espaço não irei tratar aqui das razões e explicações concedidas pelas pessoas entrevistadas, mas ressalto que existem interpretações divergentes entre os/as ativistas ouvidos, que serão abordadas e analisadas em outros textos.
  • 4
    Aqui o
    lobby não é entendido como algo pejorativo, como em geral acontece no Brasil.
  • 5
    Segundo os livros de Contardo (2012) e Robles (s/d), Rolando Jiménez foi expulso do Movilh histórico porque, em 1994, foi representar o grupo em uma conferência anual da Ilga em Nova Iorque. Nessa ocasião, a Ilga votaria a expulsão de uma organização chamada Nambla, que havia sido acusada de promover a pedofilia. O Movilh teria decidido pela abstenção na votação, mas Rolando votou contra, o que irritou completamente os integrantes do grupo. No livro de Contardo (2012, p. 388), Rolando alega que o Movilh não tinha tomado uma decisão a respeito antes da viagem e reconhece que agiu muito mal nesse tema. Juan Pablo Sutherland, no mesmo livro e em entrevista pessoal a esta pesquisa, disse também que a relação do coletivo com Rolando era muito ruim porque "Jiménez tinha uma perspectiva de ‘normalização’ da homossexualidade e incomodava-lhe muito a figura da loca. Rolando sempre brigou com as Yeguas del Apocalipsis porque davam uma imagem que ele não gostava de ver associada à homossexualidade. Uma pessoa pode ter diferentes posturas, mas ele foi expulso porque não respeitou a votação do Movilh" (Contardo, 2012, p. 389).
  • 6
    Veja íntegra da sentença em: <
  • 7
    Ler <
  • 8
    Feita pelo autor com Sérgio Vitorino em Lisboa, em 13 de novembro de 2013.
  • 9
    Leia dois textos sobre a polêmica disponíveis em: <
  • 10
    Sobre como seria possível fazer política dentro de uma perspectiva queer no Brasil, sugiro a leitura do texto de Colling (2013) em que analisa o primeiro ano de funcionamento do Conselho Nacional LGBT em nosso país.
  • 11
    Uso o termo entre aspas porque o seu uso está recheado de controvérsias. De um modo geral, o que as pessoas denominam como "homonormatividade", na verdade, no meu entender, são manifestações da heteronormatividade em pessoas LGBT. Sobre o tema, sugiro a leitura do texto de Gilmaro Nogueira, disponível em: <
  • 12
    Publicado em Perlongher (1997).
  • 13
    A primeira edição do livro
    Loco afán: crónicas de sidario foi publicada em 1996 pela LOM Ediciones, Santiago do Chile.
  • 14
    A tradução desta citação é de Helder Maia. As demais existentes no texto são de minha autoria.
  • 15
    Disponíveis em: <
    http://vimeo.com/user2605609>. Acesso em: 10 dez. 2014.
  • 16
    Para conhecer mais veja o documentário disponível em: <
    http://vimeo.com/6440073>. Acesso em: 10 dez. 2014.
  • 17
    Ver entrevista disponível em: <
    http://www.youtube.com/watch?v=IkmKJey7ZXI>. Acesso em: 10 dez. 2014.
  • 18
    Sobre o assunto veja: <
  • 19
    Em referência ao livro
    Saint Foucault, de David Halperin (2007). Sobre a leitura queer da obra de Perlongher, sugiro ler Maia (2013), Miskolci e Pelúcio (2008) e Sutherland (2009).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 2014
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