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RITO DE PASSAGEM: CEDEC E LUA NOVA

A RITE OF PASSAGE: CEDEC AND LUA NOVA

Resumo

Para registro dos quarenta anos do Cedec e da centésima edição de Lua Nova, este artigo recupera brevemente as histórias e os motivos da fundação do Cedec e, posteriormente, da revista, e indica os dilemas que tiveram de enfrentar para tornar-se o que são hoje.

Palavras-chave:
Cedec; Lua Nova; Instituições Acadêmicas e Política

Abstract

Remembering the 40th year of Cedec and the 100th edition of Lua Nova, this article briefly reviews the histories and the reasons of Cedec and Lua Nova's foundations, and points out the dilemmas they had to face in order to become what they are today.

Keywords:
Cedec; Lua Nova; Academic Institutions and Politics

Em 2016, o Cedec completou quarenta anos de existência. E, com este número, Lua Nova publica sua centésima edição.

Apesar da corrente onda de efemérides - cinquenta anos disso, cem anos daquilo, para não mencionar as celebrações com números menos redondos -, ainda não chegamos a ponto de comemorar aniversários, como é costume se dar com pessoas. Nesse terreno, aliás, com pessoas parece ocorrer o inverso do que acontece com instituições. Conforme passam os anos, tendemos a sentir certo desconforto com a lembrança de que estamos envelhecendo. Gostamos muito mais, ao contrário, de lembrar o envelhecimento das instituições ou dos grandes feitos coletivos. A idade que avança parece ser antes um sinal de vigor do que de declínio. E, no caso brasileiro, o fazemos até com mais alegria, uma vez que determinados tipos de instituições - especialmente os periódicos! - não raro duram menos do que o tempo de vida normal de um ser humano.

Que o leitor nos conceda, então, essa oportunidade para fazer um registro. Aqui se vai narrar, sumariamente, uma espécie de "rito de passagem", um pedaço da história do Cedec e da revista Lua Nova, de que frequentemente se fala em conversas informais, mas sobre o qual, acreditamos, ainda não se escreveu.

O Cedec foi fundado na cidade de São Paulo em 1976. Seus primeiros passos foram dados por professores da USP e da PUC-SP, alguns dos quais também oriundos do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), mas que agora pretendiam um caminho distinto2 2 1 O primeiro diretor-presidente do Cedec foi o professor Francisco Weffort, que antes havia atuado no Cebrap. . A ideia original era fazer uma instituição de pesquisa, mas também de intervenção política e social, voltada especialmente para os movimentos sociais. Em meados dos anos 1970, estes davam um novo impulso à resistência ao regime autoritário e instigavam novas reflexões e estudos sobre as relações entre Estado e sociedade no Brasil. Práticas e reflexões teóricas emergentes, por sua vez, ensejavam a imaginação de possíveis alternativas de construção do regime democrático que, mais cedo ou mais tarde, haveria de suceder a uma ditadura em processo de esgotamento.

Assim, os anos iniciais do Cedec - sua "primeira fase", digamos assim - foram marcados por uma atmosfera de grande esperança, a despeito da sombra que a persistência do autoritarismo e do aparato repressivo ainda projetava sobre o país. Se é verdade que os generais governantes ainda detinham a iniciativa, eles mesmos se viam obrigados a acenar para uma transformação interna do poder, com maior liberdade para a contestação. Era um jogo ambíguo, marcado pelas tais "sístoles e diástoles" do general Golbery (o estrategista do regime militar), que, conforme a expressão indica, abriam as válvulas de controle político e social para logo em seguida as comprimir. Porém, não era um jogo unilateral: também dependia das pressões oposicionistas - a dissidência eleitoral-parlamentar e a dissidência social (sem falar da crescente pressão internacional) -, que ainda corriam em paralelo entre si, porém destinadas a convergir em algum momento à frente. A tudo isso, a intelectualidade universitária, fonte dos quadros da nova instituição, jamais assistia passivamente.

Note-se a influência nada desprezível que essa situação de lusco-fusco imprimiu sobre a trajetória do Cedec nessa primeira fase. Com muita efetividade, ela forneceu o estímulo para uma atuação bifronte de seus quadros, mais ou menos nos moldes do projeto fundador. Vale dizer, combinar, sem grandes constrangimentos, a "vocação científica" da instituição com seus compromissos de intervenção prática, uma vez que a tarefa de superação da ditadura aparecia, para o intelectual brasileiro do tempo, como uma missão em harmonia quase perfeita com a atividade investigativa. Embora o regime autoritário tivesse construído para si o arremedo de um sistema eleitoral e partidário, obviamente constituído de políticos profissionais, seus próprios esforços de reforma interna levavam - em particular da parte da oposição - a uma condição fluida, com amplas possibilidades de renovação das carreiras políticas. Por outro lado, a opinião pública, sedenta de novas informações e reflexões após um longo período de censura oficial à imprensa, abria seus olhos e ouvidos para a intervenção pública das personalidades e agências acadêmicas. Sua ampla exposição na mídia ia construindo inéditas oportunidades de trânsito entre a atuação universitária - não só de docentes, mas também de estudantes - e a carreira política. Isso explica por que tanta gente desse círculo social terminou por alimentar a crescente demanda de quadros partidários, especialmente após a reforma de 1979, com a extinção do bipartidarismo e a criação de novos partidos.

Não há dúvida, porém, que resposta tão favorável a essa demanda não poderia ter ocorrido se não houvesse forte expectativa sobre a futura redemocratização do país. De fato, a valorização da democracia emprestava prestígio à militância social e à participação política. E as possibilidades de sinergia entre as duas traziam, naturalmente, a questão dos partidos políticos. Uma democracia vigorosa não podia prescindir de partidos igualmente vigorosos, dizia-se. Eis que a emulação do papel positivo dessas agências, tão característica desse período, nunca viria a se repetir posteriormente.

Atento a esses desenvolvimentos, o Cedec não só os recebeu com entusiasmo, como tratou de contribuir para reverberá-los e ressignificá-los em suas pesquisas empíricas e elaborações teóricas. Ademais, empenhou-se em abrir espaço para uma interlocução frequente com a militância social, de membros de comunidades de base da Igreja Católica ou de movimentos reivindicatórios urbanos a líderes sindicais, fornecendo-lhes assessoria e estimulando sua autorreflexão. Isso fica muito evidente quando revisitamos as publicações do Cedec nessa época: os livros editados (em colaboração com editoras então prestigiosas, como a Brasiliense e a Paz e Terra), em geral na forma de coletâneas, e os periódicos que antecederam a fundação de Lua Nova, isto é, a Revista de Cultura Contemporânea e a Revista de Cultura e Política, às quais se juntaram depois os Cadernos do Cedec. Cabe mencionar também o investimento em seminários internos e colóquios nacionais e internacionais, destinados a discutir o futuro do país, assim como assuntos mais específicos, quase sempre de ampla repercussão. Talvez o ponto culminante dessas atividades tenha sido a realização de um grande seminário em 1979, organizado por Maria Victoria Benevides e com forte engajamento de Raymundo Faoro (recém-saído de sua histórica gestão à frente da OAB), do qual participaram figuras destacadas das ciências sociais e da ciência econômica, além de expoentes da oposição.

Ao acompanhar com interesse os múltiplos trânsitos entre os movimentos sociais e a política, os quadros da instituição logo passaram a se preocupar com os desafios da construção dos novos partidos. (Confirmam-no os concorridos seminários internos sobre a transição brasileira e o papel dos partidos políticos, cujos conteúdos vieram a ser publicados em seções especiais da hoje falecida Revista de Cultura e Política - a exemplo dos números 3 e 8, respectivamente de novembro de 1981 e junho de 1982.) Em vista da própria tradição da política universitária, acrescida de sua sintonia com movimentos que combatiam uma ditadura de direita, seria natural que o Cedec dialogasse mais com os processos em curso no campo progressista e de esquerda. Em especial, exatamente porque foi aquele que mais galvanizou as lideranças dos movimentos sociais, o processo que levou à fundação do Partido dos Trabalhadores. Não por acaso, vários de seus membros (inclusive seu então diretor-presidente, Francisco Weffort) se dispuseram a ocupar postos importantes da nova agremiação, nos planos nacional e estadual.

A fundação de Lua Nova - Revista de Cultura e Política, em 1984, representou um lance marcante desse engajamento. Nos primeiros meses daquele ano, recordemos, o país era sacudido pela campanha que exigia eleições di- retas para presidente da República. Nessa jornada, a dissidência social e aquela formada no interior do sistema político - além de obter apertada maioria na Câmara dos Deputados, a oposição havia eleito, em 1982, dez governadores nos principais estados brasileiros -, conseguiam fechar de vez o anel que em breve poria fim à sequência de governos militares.

A nova revista havia sido projetada para uma intervenção ágil, em sintonia com a conjuntura volátil, combinando uma abordagem jornalística com análises mais densas, mas sem o formato acadêmico. Articulada inicialmente com a editora Brasiliense, visava claramente a um público amplo. Seu primeiro editor, José Álvaro Moisés, hoje aposentado, era docente do Departamento de Ciências Sociais da USP, com pesquisas importantes sobre o movimento sindical. Além de atrair colaboradores das mais diversas tendências políticas e ideológicas - inclusive gente mais arejada das hostes governistas (como Marco Maciel, ex-governador de Pernambuco e importante figura parlamentar) -, Moisés montou uma pequena equipe para a revista, que auxiliava a edição e preparava matérias propriamente jornalísticas, como reportagens e entrevistas.

A despeito das dificuldades operacionais e financeiras que esse projeto ambicioso oferecia, a revista embrenhou-se nele por cerca de três anos, até que, em meados de 1987, admitiu um giro de orientação. Daqui para frente, dizia o editorial do número 12, o leitor passaria a encontrar "uma revista de artigos e contribuições mais consistentes, mais longos e, por isso mesmo, mais de fundo". Na verdade, era apenas o reconhecimento de um fato, uma vez que o novo editor do periódico, Tullo Vigevani, já estava fazendo esse giro desde o número anterior, quando assumira a função. A revista ainda anunciava em suas capas e no sumário a abordagem de grandes assuntos do momento, como os desdobramentos da Assembleia Nacional Constituinte, o destino do Plano Cruzado ou as reformas de Gorbatchev, na então União Soviética. Mas os artigos assumiam cada vez mais o formato de elaborações acadêmicas, discutindo a bibliografia pertinente ao assunto, demarcando campos teóricos, introduzindo questões metodológicas etc. Em outras palavras, passavam a visar a um público menos leigo. A transformação se completa no número 16, quando o leitor é apresentado a um novo projeto gráfico: uma capa enxuta, sem "manchetes", mas registrando, em sua parte inferior, um tema central ou um tema "guarda-chuva" da edição. Geralmente, tópicos menos colados aos assuntos do momento, de sentido mais abstrato ou com uma visada de longo prazo. Na primeira edição de 1990 (número 20), Gabriel Cohn assume o comando da revista, aprofundando o enfoque teórico e filosófico, em particular nos campos da teoria social e da teoria política, mas sem deixar de acolher elaborações empíricas e históricas. De qualquer forma, sempre ancoradas em pesquisas e reflexões de largo fôlego, fossem elas realizadas no próprio Cedec, em outros centros independentes ou em institutos universitários. Mais ou menos concomitantemente, Lua Nova começa a receber auxílio de agências de fomento estatais, principalmente do CNPq.

Por certo, a rápida evolução da revista rumo a um perió- dico estritamente acadêmico refletia mudanças de perspectiva do Cedec como um todo. Algo que poderia ser caracterizado como o início de uma "segunda fase" de sua história. Olhando, outra vez, para um contexto mais amplo, percebe-se uma gradual inflexão nas relações entre a vida universitária e a política, conforme o regime democrático se afirma no país, adquirindo caráter legal e oficial. Sem deixar de ter seus sobressaltos, e até alguns reveses, a política democrática ganha terreno e decanta certa rotina. Ao mesmo tempo, as universidades públicas, em suas instâncias oficiais e dirigentes, passam a acolher iniciativas que antes só os centros de pesquisa independentes (como o Cedec e o Cebrap, em São Paulo, ou o Iuperj, no Rio de Janeiro) ou universidades semiprivadas, mas de orientação progressista (como a PUC-SP), tinham a liberdade de promover. Entre um e outro, agora só poderia haver as opções da concorrência ou da cooperação. Como os quadros do Cedec eram (e são), em sua grande maioria, também quadros da universidade, ou então estudantes de programas de pós-graduação universitários, a cooperação era o caminho mais óbvio e natural.

É sintomático, diga-se de passagem, que, quando Lua Nova faz a mudança de sua linha editorial, suas páginas acolhem as reflexões do novo reitor da Universidade de São Paulo, José Goldemberg, nomeado pelo governador Franco Montoro, este eleito pela antiga oposição peemedebista, o que significava, mais do que a colaboração de um articulista, uma aproximação em nível institucional. Aproximação muito auspiciosa, sem dúvida, mas que trazia consigo as exigências próprias do mundo oficial: a formalização, a delimitação de um terreno específico de atuação, a profissionalização. Ao ingressar nesse terreno - e haveria outro caminho possível? -, o Cedec, no fundo, passava a ser pressionado a sair da ambivalência que caracterizou seu projeto original: como dito acima, ser um centro de pesquisa e, ao mesmo tempo, de intervenção social e política.

Porém, a pressão não vinha apenas do campo acadêmico. Pode parecer paradoxal, mas justamente quando a atividade política vai assumindo as feições exigidas pelo regime democrático, mais a participação do militante leigo, em tempo parcial, perde espaço para a do militante que atua metodicamente, se dedica a ela em tempo integral, e, obviamente, o faz porque opta por transformar sua atividade numa carreira profissional. Quanto às condições de participação na vida interna dos partidos de massa, sabemos o que a sociologia política clássica já havia afirmado a respeito, e que mesmo a recente experiência democrática no Brasil, não obstante suas inovações participativas, aparentemente não conseguia desmentir. Assim, não demorou muito para que os intelectuais fundadores do Cedec, que, como foi dito, se entusiasmaram com a construção do PT e aspiravam assumir um papel influente naquela agremiação política, se dessem conta da persistência da chamada "lei de ferro da oligarquia". Tão logo o PT tomou para si, como não poderia ter sido diferente, a tarefa de se construir como uma organização de massa, de existência contínua e capaz de responder à altura os desafios dos embates eleitorais, o espaço para a participação diletante, leiga, foi se comprimindo. Porém, mais do que isso: havendo divergências significativas, programáticas, estratégicas ou mesmo de ambições pessoais no seio da militância, é quase certo que a disputa intrapartidária entre o leigo e o profissional se resolveria em favor do segundo. Se observarmos as trajetórias políticas de alguns dos principais quadros do Cedec ao longo dos anos 1980, vamos constatar que foi exatamente isso que aconteceu.

Enfim, o projeto inicial de atuação ambivalente se viu afetado nas duas pontas de suas grandes aspirações. Ou seja, a própria conquista da democracia, por um lado, e o pleno desenvolvimento da especialização acadêmica, por outro, foram exigindo da instituição a escolha entre identidades que não deveriam ser excludentes, mas assim se tornaram. Ao fim e ao cabo, seus associados nem precisaram fazer a escolha, uma vez que um dos caminhos foi sendo bloqueado por fatores alheios à vontade dos concernentes. A partir desse ponto decisivo, o Cedec se viu levado a tomar um rumo mais unívoco.

"Se viu levado", aqui, significa que não foi, pelo menos no começo, uma opção plenamente consciente, mas resultado de um processo, de uma sondagem. Se é verdade que um perfil mais acadêmico se confirmou, nem por isso ocorreu uma neutralização política. Embora menos engajado e com maior diversidade interna em virtude da própria democratização do país, o Cedec continuou atento aos assuntos candentes da vida nacional e internacional. Suas pesquisas, além disso, sempre estiveram sintonizadas com a agenda política e social, mesmo nos enfoques mais técnicos.

Disso dá testemunho a própria revista Lua Nova, que, periodicamente, acolhe em suas páginas os resultados dos trabalhos dos grupos de investigação sediados no Cedec3 3 2 Todas as edições da revista Lua Nova, desde o início, estão disponíveis em: <http://cedec.org.br>, onde também se encontra uma amostra bastante ampla das pesquisas, passadas e recentes, realizadas pelos diversos grupos sediados no Cedec. . O que revela, ao mesmo tempo, o vigor da instituição. Vigor não exclusivo do Cedec, mas das ciências sociais brasileiras, uma vez que as páginas da revista sempre procuraram espelhar o melhor da produção intelectual, dentro e fora dos espaços acadêmicos. Seja na escolha dos temas, no cuidado técnico e editorial e, not the least, em seus artigos suculentos, Lua Nova reafirma, em sua centésima edição, as qualidades que fizeram dela uma referência obrigatória da reflexão, da crítica e dos grandes debates nacionais. Vida longa!

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    1 O primeiro diretor-presidente do Cedec foi o professor Francisco Weffort, que antes havia atuado no Cebrap.
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    2 Todas as edições da revista Lua Nova, desde o início, estão disponíveis em: <http://cedec.org.br>, onde também se encontra uma amostra bastante ampla das pesquisas, passadas e recentes, realizadas pelos diversos grupos sediados no Cedec.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2017
  • Aceito
    17 Fev 2017
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