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ESTUDO DE TRAJETÓRIAS E INTERAÇÕES SOCIOESTATAIS: MÚTUA CONSTITUIÇÃO ENTRE MOVIMENTO SOCIAL E A POLÍTICA PÚBLICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL

TRAJECTORIES AND INTERACTIONS: MUTUAL CONSTITUTION BETWEEN SOCIAL MOVEMENT AND PUBLIC SOCIAL ASSISTANCE POLICY

Resumo

O presente artigo tem duplo objetivo. Por um lado, apresenta resultados de pesquisa empírica realizada com ativistas do movimento em defesa da assistência social que permitem demonstrar aspectos de mútua constituição entre movimento e políticas públicas, a partir do processo de mobilização em torno da regulamentação da Lei Orgânica da Assistência Social, que serve de base para a implementação do SUAS - Sistema Único de Assistência Social. Por meio da análise de trajetórias profissionais das ativistas envolvidas com a construção da política, demonstramos nexos entre o processo de construção da política e a formação do movimento. Por outro lado, reflete sobre o método de análise de trajetórias como ferramenta metodológica para análise das relações entre movimentos sociais e políticas públicas, ao demonstrar que o desenho da pesquisa e a escolha por esse método possibilitou avançar na descoberta desses nexos.

Palavras-chave:
Movimentos Sociais; Políticas Públicas; Trajetórias; Partidos Políticos

Abstract

The present article has two objectives. It presents results of empirical research with activists of the movement in defense of the social assistance policy and demonstrates aspects of mutual constitution between movement and public policies in the process of mobilization for the regulation of the Organic Law of the Social Assistance (LOAS), that serves as the basis for the implementation of SUAS (Unified System of Social Assistance). Through the analysis of the professional trajectories of the activists involved in the construction the politicy, we demonstrate the links between the construction process and the formation of the movement. On the other hand, it reflects on the method of analyzing trajectories as a methodological tool for analyzing the relations between social movements and public policies, by demonstrating that the research design and the choice by this method made it possible to advance in the discovery of these links.

Keywords:
Public Policies; Social Assistance; Social Movements; Political Parties

Introdução

A temática das interações socioestatais no Brasil tem ganhado fôlego e produzido estudos que buscam compreender sua crescente complexidade. A nomenclatura aplicada ao fenômeno - “interações socioestatais” - não é fortuita, pois, ao ampliar o leque de vinculações possíveis entre sociedade civil e sociedade política, permite incorporar em seu espectro diferentes padrões e diferentes atores, aproximando-o da ideia de mútua constituição entre sociedade civil e Estado (Dagnino, 2011DAGNINO, Evelina. 2011. Civil society in Latin America. In: EDWARDS, Michael (ed.). Oxford Handbook on Civil Society. Oxford University Press.; Gurza-Lavalle, Houtzager e Castello, 2012GURZA-LAVALLE, Adrian; HOUTZAGER, Peter P.; CASTELLO, Graziela. 2012. A construção política das sociedades civis. In: GURZA-LAVALLE, Adrian (org.) O horizonte da política: questões emergentes e agendas de pesquisa. São Paulo: Unesp.), avançando em caracterizar as interações e ultrapassar o eixo normativo que outrora guiou as análises sobre as relações entre essas esferas.

Nesse contexto, a pesquisa empírica ocupa lugar de centralidade para essa agenda, já que o subsídio essencial que tem norteado a caracterização e a análise das relações entre sociedade civil e Estado está nos achados de campo que a intensiva coleta de dados revela. Por meio da pesquisa empírica pode-se confrontar análises normativas que entendem sociedade civil e Estado como esferas absolutamente separadas: é a atenta observação da realidade do período de redemocratização no Brasil que nos permite argumentar em favor de uma realidade em que essas relações são constantes, complexas, heterogêneas e com impacto em distintos setores sociais, em especial, as políticas públicas.

Visando contribuir com essa discussão, este artigo tem duplo objetivo. Por um lado, apresenta resultados de pesquisa empírica realizada com ativistas do movimento em defesa da assistência social que permitem demonstrar aspectos de mútua constituição entre movimento e políticas públicas no processo de construção da política nacional de assistência social. Por meio da análise de trajetórias profissionais das ativistas, notamos que o movimento se constitui ao mesmo tempo em que a política vai se construindo, ao observarmos os nexos entre a atuação das ativistas na construção da política de assistência social e a formação do movimento.

Por outro lado, propomos uma discussão sobre o método de análise de trajetórias como ferramenta metodológica para análise das relações entre movimentos sociais e políticas públicas, na medida em que demonstramos de que forma o desenho da pesquisa e a escolha por esse método possibilitou avançar na descoberta desses nexos. Discutiremos como os achados do trabalho empírico desvelaram para a pesquisa a existência de um movimento organizado em torno da defesa da assistência social como política pública de direito, que, organizado nacionalmente, trazia interessantes particularidades: nasceu absolutamente imbricado ao Estado e a um partido e se desenvolveu nessas duas esferas, ao mesmo tempo em que mantém uma identidade própria em relação à sua causa.

Para tanto, este artigo apresenta resultados extraídos de uma ampla pesquisa empírica1 1 O detalhamento do desenho da pesquisa empírica será apresentado na subseção “A pesquisa com ativistas do movimento em defesa da assistência social”, junto à discussão metodológica proposta. que acompanhou a trajetória de constituição e ação de um movimento social atuando na produção de uma política pública. A escolha pela apresentação desses dados foi fazê-la em dois planos: por meio de uma sistematização que apresenta o perfil das ativistas envolvidas na construção da política de assistência social, evidenciando espaços de atuação desses atores, como partido, gestão da política, participação em conselhos, entre outros; e por meio da apresentação e análise das ativistas no processo de regulamentação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que, no âmbito mais geral das trajetórias analisadas, figura como momento de constituição do movimento em defesa dessa política.

Nesse sentido, o artigo avança em demonstrar aspectos de mútua constituição entre a luta pela regulamentação da política e a formação do movimento, além de evidenciar a atuação de ativistas em diversos espaços de construção da política: gestão local, conselhos, fóruns, academia, partido. A atuação nesses espaços evidencia os nexos entre a trajetória ativista, a formação do movimento e a atuação na política pública. Como contribuição adicional, a discussão acerca da análise de trajetórias profissionais busca refletir sobre os ganhos que essa escolha trouxe para a análise dos resultados apresentados.

O artigo está organizado da seguinte forma: a primeira seção traz uma discussão acerca da literatura sobre história de vida e análise de trajetórias, e apresenta detalhadamente o desenho da pesquisa que embasou a coleta dos dados apresentados nesse artigo. A segunda apresenta as trajetórias das ativistas da assistência social e a constituição do movimento em defesa da assistência social, relacionando-o ao processo de regulamentação da LOAS, seguido das considerações finais.

História de vida e análise de trajetórias

Maria Isaura Pereira de Queiroz, referência para estudos de história oral na sociologia brasileira, aponta para o fato de que o relato oral é a base primária para a obtenção de qualquer forma de conhecimento, científico ou não, por tratar-se da maior fonte humana de conservação e difusão do saber (1991, p. 2.). A autora define história oral como um

termo amplo que recobre uma quantidade de relatos a respeito de fatos não registrados por outro tipo de documentação, ou cuja documentação se quer completar. [...] busca-se uma convergência de relatos sobre um mesmo acontecimento ou sobre um período de tempo. [...]. Na verdade, tudo quanto se narra oralmente é história, seja a história de alguém, seja a história de um grupo, seja história real, seja ela mítica (Queiroz, 1991QUEIROZ, Maria Isaura P. de. 1991. Variações sobre a técnica de gravador no registro da informação viva. São Paulo: T. A. Queiroz., p. 19).

Na análise dos dados da pesquisa empírica, utilizamos história oral e história de vida quase como sinônimos, mas vamos nos deter em algumas definições, tendo por base o trabalho de Queiroz (1991QUEIROZ, Maria Isaura P. de. 1991. Variações sobre a técnica de gravador no registro da informação viva. São Paulo: T. A. Queiroz.). A autora diferencia história oral, que incluiria todo tipo de relato oral, seja a história de alguém, de um grupo, história real ou mítica, de história de vida, que seria o relato feito pelo sujeito sobre os eventos e a maneira como sua vida transcorreu (Queiroz, 1991, p. 5).

A autora também faz uma distinção entre depoimento e história de vida, ao assinalar que um depoimento diz respeito a algo que o informante presenciou, experimentou ou conheceu, de forma que pode certificar (Queiroz, 1991QUEIROZ, Maria Isaura P. de. 1991. Variações sobre a técnica de gravador no registro da informação viva. São Paulo: T. A. Queiroz., p. 6). Já a história de vida “se define como relato de um narrador sobre sua existência através do tempo, tentando reconstituir os acontecimentos que vivenciou e transmitir a experiência que adquiriu” (Queiroz, 1991, p. 16). Assim, a forma como o pesquisador conduz a coleta de dados é que define mais propriamente a distinção entre depoimento e história de vida. No depoimento, o pesquisador conduz a entrevista, e da “vida” do informante, extrai apenas os trechos que interessam propriamente à pesquisa, podendo evitar digressões e esgotar suas questões objetivamente (Queiroz, 1991, p. 7). Na história de vida, o narrador é quem escolhe o que vai contar, e, devido à mínima interferência que se espera do pesquisador, é o informante quem detém o fio condutor dessa narrativa.

De forma complementar, Guérios (2011GUÉRIOS, Paulo Renato. 2011. O estudo de trajetórias de vida nas Ciências Sociais: trabalhando com as diferentes escalas. Campos, v. 12, v. 1, pp. 9-29.) define o estudo de trajetórias como as conclusões a que o pesquisador de ciências sociais chega a partir da análise dos materiais obtidos (Guérios, 2011, p. 9) por histórias de vida. O relato oral, em ciências sociais, é o material bruto, de modo que histórias de vida são fundamentais como método para reconstruir trajetórias, mesmo que não sejam utilizadas de modo “puro”, mas mescladas a depoimentos.

Nesse sentido, Santos, Oliveira e Susin (2014SANTOS, Hermília; OLIVEIRA, Patrícia; SUSIN, Priscila. 2014. Narrativas e pesquisa biográfica na sociologia brasileira: revisão e perspectivas. Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 2, pp. 359-382, maio-ago. 2014) observam que o estudo de trajetórias a partir de relatos de vida tem seu interesse voltado para estruturas sociais, de modo a obter elementos do entrevistado que contribuam para delinear padrões sociais estruturais (Santos, Oliveira e Susin, 2014, p. 370). Nesse referencial teórico, a abordagem de trajetórias estaria ancorada em metodologia que ressalta a construção social na história de vida dos informantes, de modo que a interpretação subjetiva dos fatos não exerce papel relevante.

Um sentido importante a ser ressaltado no uso da análise de trajetórias para o estudo de interações socioestatais é a que faz Kofes (2001KOFES, Suely. 2001. Uma trajetória em narrativas. Campinas, SP: Mercado de Letras.). Para ela, a escolha por trabalhar com trajetória diz respeito a privilegiar o percurso do pesquisado, definindo trajetória como “o processo de configuração de uma experiência social singular” (Kofes, 2001, p. 24) e conceituando experiência como “referência a um sujeito em ação, a um sujeito que se engaja na ação e dela participa, que sente a ação, pensa sobre ela e a reformula” (Kofes, 2001, p. 24). A ênfase da ideia de trajetória para Kofes está na ideia de temporalidade e processo histórico.

Observamos que a proposta de análise de trajetórias guarda uma singularidade dentro do âmbito maior de possibilidades abertas pelo método de história de vida. Na análise de trajetórias, a relação direta entre a experiência do informante e o meio social no qual ele está inserido está dada de partida: não se trata de fazer história de vida descolada de interesses de pesquisa que situam esses relados na estrutura social a eles subjacentes; utilizar trajetória como método significa analisar o material bruto que constitui o relato oral, e que pode ou não ser baseado em história de vida.

Diante dessas considerações, defendemos o método de análise de trajetórias para análise de interações socioestatais, propondo refletir sobre os ganhos de se trabalhar com história de vida, de forma a incorporar a interpretação subjetiva como relevante, quando combinada a outras técnicas, como a complementação por documentos e outras fontes primárias e secundárias. Acreditamos que as histórias de vida têm o poder de revelar o que não está cristalizado ou mesmo o indizível, nos termos utilizados por Queiroz (1991QUEIROZ, Maria Isaura P. de. 1991. Variações sobre a técnica de gravador no registro da informação viva. São Paulo: T. A. Queiroz.).

Assim, com o objetivo de discutir as contribuições que a análise de trajetórias traz ao estudo das interações socioestatais, apresentaremos a seguir o processo de construção da pesquisa empírica. Buscamos, com isso, adensar a discussão acerca da análise de trajetórias nos estudos de interações socioestatais pela discussão pormenorizada sobre o processo de construção da pesquisa.

A pesquisa com ativistas do movimento em defesa da assistência social

A pergunta inicial que norteou a pesquisa empírica que será discutida aqui tratou de indagar o que tornou possível a profunda mudança institucional pela qual passou a política de assistência social no governo Lula, que culminou na implantação do SUAS, considerando a hipótese de que a eleição do PT ao governo federal teria sido fundamental para que essa mudança ocorresse.

De partida, nosso foco esteve sobre os atores e sua agência nas relações que estabeleceram com o Estado e o partido, uma vez que era clara a existência de um campo de ativismo em defesa da assistência social, citado pela literatura (Mendosa, 2012MENDOSA, Douglas. 2012. Gênese da política de assistência social no governo Lula. 291f. Tese de Doutorado em Sociologia. São Paulo: Universidade de São Paulo.; Cortes, 2015CORTES, Soraya Vargas. 2015. Policy Community defensora de direitos e a transformação do Conselho Nacional de Assistência Social. Sociologias. Porto Alegre, ano 17, n. 38, jan/abr. 2015, pp. 122-154.), que incidiu fortemente na construção dessa política. Diante disso, nossa escolha foi adotar uma abordagem empírica que, focada na análise de trajetórias dos atores envolvidos com a construção da política de assistência social no Brasil, nos permitisse aprofundar os meandros das interações entre sociedade civil, Estado e partido.

Nossa escolha buscou reconstruir o processo de construção do SUAS por meio da trajetória profissional de suas ativistas, relacionando as trajetórias individuais às experiências coletivas nas quais se inserem, de modo a “satisfazer as pretensões metodológicas de relacionar histórias individuais a experiências coletivas que as contextualizaram, embasaram, impulsionaram e/ou limitaram” (Feltran, 2006FELTRAN, Gabriel de Santis. 2006. Deslocamentos: trajetórias individuais entre sociedade civil e Estado no Brasil. In: DAGNINO, Evelina; OLVERA, Alberto; PANFICHI, Aldo (orgs.). 2006. A disputa pela construção democrática na América Latina. São Paulo: Paz e Terra., p. 377).

No entanto, o método empregado não consistiu em um tipo puro do método de história de vida, já que optamos por focar a análise nas trajetórias profissionais dos informantes, assim como Lewis (2008LEWIS, David. 2008. Using Life Histories in Social Policy Research: The case of Third Sector/Public Sector Boundary Crossing. Journal of Social Policy, v. 37, n. 4, pp. 559-578.), que, ao analisar atores do terceiro setor que cruzaram a fronteira do Estado, ocupando postos na burocracia estatal inglesa, optou por focar em “life-work history”, adaptando o método de história de vida:

A fim de investigar o fenômeno de cruzamento de fronteiras setoriais, experiências de trabalho (seja em termos de carreira formal, ativismo, voluntariado) foram colocadas no centro dos dados de vida-história a serem coletados. Consequentemente, o método usado não era um tipo puro de pesquisa de história de vida em aberto (Lewis, 2008LEWIS, David. 2008. Using Life Histories in Social Policy Research: The case of Third Sector/Public Sector Boundary Crossing. Journal of Social Policy, v. 37, n. 4, pp. 559-578., p. 565, tradução minha)2 2 No original: “In order to investigate the sector boundary-crossing phenomenon, experiences of work (whether in terms of formal career, activism, volunteering) were placed at the centre of the life-history data to be collected. As a consequence, the method employed was not a pure type of open-ended life history research”. .

Da mesma forma, nosso interesse não era abarcar a totalidade das experiências dos informantes, e sim aqueles aspectos que se relacionavam diretamente à construção da política nacional de assistência social. Retomando a forma como Kofes usou a metodologia de trajetórias, no nosso caso “o processo de configuração de uma experiência social singular” (Kofes, 2001, p. 24) dizia respeito à experiência singular de participar ativamente da construção de uma política pública, e, para tanto, assim como a autora, privilegiamos também o percurso histórico desses atores. É importante reter, no entanto, que de início não pensávamos no percurso dos atores como movimento social: tomávamos os informantes como agentes que influenciaram uma política pública, ainda sem uma conceituação muito concreta quanto à caracterização desses atores.

Para a escolha dos informantes, o primeiro critério de delimitação foi mapear atores que realizaram trânsito institucional para o governo federal no primeiro mandato do Governo Lula. Nossa estratégia consistiu em realizar pesquisa documental e entrevistas exploratórias para planejamento do trabalho de campo, iniciando a pesquisa empírica em dezembro de 2011, com a observação da VIII Conferência Nacional de Assistência Social, para, em seguida, realizarmos duas entrevistas exploratórias com reconhecidas ativistas do campo da assistência social. A partir desse conjunto de referências - pesquisa documental e entrevistas exploratórias -, partimos para o desenho da pesquisa empírica.

Os achados da pesquisa exploratória apontaram para a existência de outros atores extremamente relevantes para o processo de implementação do SUAS, mesmo não tendo ocupado cargos de gestão no início do governo Lula. A partir dessas entrevistas delimitamos o que aqui denominamos como movimento em defesa da assistência social3 3 Vale notar, contudo, que nos restringimos a analisar esse coletivo de atores, não sendo nosso objetivo abarcar o universo de atores que compõe o vasto campo da assistência social no Brasil, o que escapa aos objetivos de nossa pesquisa. : um coletivo de atores que construiu uma visão acerca da causa da assistência social como política pública e defendeu esse projeto político, por meio de estratégias diversas.

Outras dimensões somaram-se aos nossos interesses e delimitaram critérios para a escolha dos informantes, além da indicação, por parte de outros entrevistados, de que se tratava de ator relevante. Assim, dimensões como filiação (ou atuação) no partido; participação no processo de regulamentação da LOAS; participação em espaços nacionais de mobilização, como o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), o Fórum Nacional de Assistência Social e o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS); experiência na gestão da política de assistência social, foram consideradas para orientar a escolha dos informantes. Por tratar-se de um movimento organizado nacionalmente, buscamos, na medida do possível, abarcar também a diversidade regional que caracteriza o movimento.

A partir desses critérios, chegamos a um conjunto de entrevistas que contemplou ativistas que participaram do processo de construção da política. Para tanto, entre 2013 e 2014, realizamos entrevistas com dezoito ativistas do campo da assistência social, além de uma deputada do PT que apoiou a causa do movimento. As entrevistas foram realizadas em diferentes cidades do Brasil e na IX Conferência Nacional de Assistência Social, em dezembro de 2013, em Brasília.

Há no processo de construção da pesquisa algumas especificidades metodológicas, relacionando-as à discussão teórica sobre histórias de vida e trajetórias. A primeira delas diz respeito ao método de coleta de dados, que, no nosso caso, não seguiu um modelo puro de história de vida; utilizamos entrevistas que davam lugar à livre narrativa da trajetória profissional dos informantes, na qual aparecia maior ou menor vinculação ao movimento, mesmo havendo intensa atuação profissional na área da assistência social. As histórias de vida profissionais das entrevistadas receberam análise orientada pelos nossos interesses de pesquisa, o que as transformou no que chamamos de “trajetórias profissionais”. Assim, seguimos o apontado por Guérios (2011GUÉRIOS, Paulo Renato. 2011. O estudo de trajetórias de vida nas Ciências Sociais: trabalhando com as diferentes escalas. Campos, v. 12, v. 1, pp. 9-29.) anteriormente, quando define análise de trajetórias como as conclusões a que chega o pesquisador a partir da análise que faz do material de campo colhido. Nesse processo, as informações biográficas que apontavam os nexos entre história de vida e o processo de produção da política foram fornecidas pelas ativistas; já a reconstrução de trajetórias profissionais e a ligação dessas com os momentos de construção da política foram feitas pela pesquisadora e são fruto de análise e escolha de método.

A pesquisa utilizou complementação de dados com outras fontes - considerada importante por vários autores que utilizam o método de história de vida como forma de fornecer insumos para complementar e verificar aspectos das trajetórias indicados nas entrevistas. Foram elas: documentos sobre o PT - disponibilizados pelo partido, especialmente pelo Centro de Memória Sergio Buarque de Holanda, da Fundação Perseu Abramo, e pelos informantes, que gentilmente disponibilizaram arquivos pessoais que não constam dos arquivos do partido -, além da observação de duas Conferências Nacionais de Assistência Social (2011 e 2013). A observação das Conferências foi um espaço importante pois permitiu observar a atuação das ativistas e realizar entrevistas em um espaço onde a atividade de mobilização política era intensa.

Além das fontes primárias, o estudo contou também com extensa pesquisa de fontes secundárias, o que incluiu normativas, regulamentações e decretos da política publicados ao longo do período estudado, e também literatura pertinente, que foi muito útil, porque em parte documentou o processo de construção do projeto político desse movimento, bem como eventos importantes de mobilização.

No transcorrer da pesquisa empírica, ao explorar as relações das ativistas do campo da política de assistência social com o partido e com o Estado, as histórias de vida focadas nas trajetórias profissionais nos informavam sobre a própria constituição do movimento pela assistência social e sobre a forma como esse movimento foi construindo seu projeto por meio de estratégias mobilizadas na interação com o partido e com o Estado.

A partir daí, mapear o movimento constituiu-se como um esforço de pesquisa no decorrer do trabalho de campo: a escolha pelo foco nas trajetórias profissionais nos permitiu relacioná-las diretamente à construção da política de assistência social e se mostrou uma ferramenta útil para aprofundar o estudo das imbricações entre Estado, sociedade civil e partido. A partir desse método, as relações entre movimento, Estado e partido, abordadas como parte dessas trajetórias, possibilitou um tratamento mais aprofundado dessas interações, de forma a observar fenômenos que extrapolam os pressupostos teóricos de análise dessas relações.

Dessa forma, quando analisamos as trajetórias profissionais das ativistas que estiveram envolvidas com a construção e a implementação da política de assistência social no Brasil, as relações com o partido, bem como a atuação na gestão pública, aparecem como parte dessas trajetórias diretamente relacionadas ao ativismo em relação à defesa da política. Essa abordagem empírica nos permitiu aprofundar os meandros dessas interações, relacionando-as aos contextos históricos no qual se desenvolveram.

Trajetórias ativistas na política de assistência social

A construção da política de assistência social no Brasil se situa em um terreno de disputas, que convive, de um lado, com a reivindicação por uma política de direito, calcada na ideia de cidadania ampliada que combine responsabilização estatal e construção coletiva em espaços participativos; e, de outro, com as origens históricas ligadas à filantropia e ações emergenciais e pontuais, combinadas à vulnerabilidade e baixa capacidade de mobilização dos usuários da política (Gutierres, 2015GUTIERRES, Kellen Alves. 2015. Projetos políticos, trajetórias e estratégias: a política de assistência social entre o partido e o Estado. 253f. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. Campinas: Universidade Estadual de Campinas.).

Para fins de nossa análise, é importante observar a importância da atuação de um coletivo de atores que compõem um campo mais amplo da assistência social no Brasil, e milita, desde a incorporação da assistência social à Constituição e, mais especificamente, a partir da mobilização pela redação e aprovação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), pela efetivação dessa política como direito, em contraponto ao legado assistencialista que sempre marcou as ações da assistência social. Nas palavras de Vianna (2000VIANNA, Maria Lúcia Teixeira Werneck. 2000. As armas secretas que abateram a seguridade social. In: LESBAUPIN, Ivo. O desmonte da nação: balanço do governo FHC. Petrópolis, RJ: Vozes, pp. 91-114.), a defesa da assistência social pública conta com a atuação de uma “elite profissional aguerrida”, composta por profissionais da área, assistentes sociais, representados por suas entidades de classe, e pesquisadores de universidades, da área de Serviço Social.

Assim, no macrocenário de produção dessa política, focamos a trajetória das militantes que construíram um movimento em defesa da assistência social como política pública - trajetórias essas que nos informam sobre a própria constituição desse movimento, pari passu os processos políticos, eventos e mobilizações que possibilitaram a construção do Sistema Único da Assistência Social (SUAS), forma institucional que a política assume desde 2005. A seguir, apresentamos uma sistematização das trajetórias, para em seguida fazer a análise que relaciona as trajetórias ao contexto de construção da política, de modo a desvelar os elementos de mútua constituição entre movimento e política pública.

Sistematização das trajetórias das ativistas

A análise dos dados empíricos coletados e depois transformados em trajetórias profissionais nos possibilitaram apresentar um perfil das ativistas entrevistadas. Ao agruparmos esses perfis, uma análise conjunta de suas trajetórias aponta para espaços de inserção política e profissional que são importantes em termos dos vínculos que as ativistas passam a estabelecer entre si, impactando no desenvolvimento do movimento, como veremos na segunda parte desta seção. A partir das trajetórias expostas, listamos abaixo os espaços de inserção política e profissional das ativistas entrevistadas4 4 Os espaços listados indicam, respectivamente, militantes que se dedicam à carreira acadêmica; que cumpriram mandato na diretoria do CFESS; foram conselheiras do CNAS; foram conselheiras e/ou trabalharam na implantação de conselhos de políticas municipais e/ou estaduais; seguiram carreira como funcionárias do serviço público; participaram e/ou organizaram fóruns locais ou nacionais da política de assistência social; foram gestoras da política municipal ou estadual em cargo comissionado; ocuparam cargo comissionado de gestão no Governo Federal; foram ou ainda são filiadas ao PT. que nos fornecem o perfil dessas ativistas, para, a seguir, apresentar um gráfico com a distribuição desses perfis entre as entrevistadas:

  1. Academia

  2. Conselho Federal de Serviço Social (CFESS)

  3. Conselho Nacional de Serviço Social (CNAS)

  4. Conselhos Municipais ou Estaduais de Políticas Públicas

  5. Funcionalismo Público

  6. Fóruns (Nacional/ Estadual ou Municipal)

  7. Gestão Federal

  8. Gestão Estadual

  9. Gestão Municipal

  10. Partido Político (PT)

Gráfico 1
Percentual de entrevistadas por espaço de inserção política e/ou profissional

Como podemos observar, a maior parte das militantes do campo da assistência social entrevistadas participou em fóruns locais e nacionais de elaboração, debate e defesa da política de assistência social (82%); foi ou ainda é filiada ao Partido dos Trabalhadores (76%), ocupou cargos de gestão em administrações municipais e estaduais (71%), participou de conselhos locais (80%) e é funcionária pública de carreira (65%). Nota-se também o fato da metade (52%) das entrevistadas ter ocupado assento no Conselho Nacional (CNAS) e de que 30% participaram do conselho federal da categoria de assistentes sociais, o CFESS.

Como mostra Gutierres (2015GUTIERRES, Kellen Alves. 2015. Projetos políticos, trajetórias e estratégias: a política de assistência social entre o partido e o Estado. 253f. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. Campinas: Universidade Estadual de Campinas.), a presença em Conselhos esteve diretamente ligada ao trabalho de implantação da política realizado pelas ativistas, que foram responsáveis por organizar a política de assistência social em suas experiências de gestão, especialmente na década de 1990. Da mesma forma, a experiência dos Fóruns está relacionada à mobilização realizada no contexto da aprovação da LOAS e das primeiras experiências da política recém-criada.

Os perfis das ativistas apontam, também, para uma relação entre as experiências no funcionalismo público e a militância na causa da assistência social, muito próxima à ideia de ativismo na burocracia, ou seja, “um tipo de ação que visa promover projetos políticos ou sociais percebidos pelo ator como de natureza pública ou coletiva” (Abers, 2015ABERS, Rebecca. 2015. Ativismo na burocracia? O médio escalão do Programa Bolsa Verde. In: CAVALCANTE, Perdro Luiz; LOTTA, Gabriela Spanguero (orgs.). Burocracia de médio escalão: perfil, trajetória e atuação. Brasília: ENAP, 2015., p. 148).

Outro dado importante que se destaca nas trajetórias profissionais é a filiação partidária e os impactos que a relação com o partido terá para a mobilização dessas ativistas em torno da causa da assistência social. Nesse sentido, é importante observar que, no caldo da redemocratização do país, das afiliações sindicais e experiências com movimentos populares, o PT aparece como importante espaço de encontro e articulação para as ativistas entrevistadas (Gutierres, 2015GUTIERRES, Kellen Alves. 2015. Projetos políticos, trajetórias e estratégias: a política de assistência social entre o partido e o Estado. 253f. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. Campinas: Universidade Estadual de Campinas., p. 69). No caso da assistência social, as ativistas se organizaram no PT por meio de um setorial, como veremos com mais detalhes a seguir.

Os espaços de produção acadêmica também aparecem como ambiente de formulação e mobilização, em diálogo permanente com a prática política. Da mesma forma, o CFESS e o CNAS funcionam como espaços de mobilização política para as ativistas entrevistadas, pela relevância que tiveram durante o processo de formulação/aprovação e implementação da LOAS, ao lado dos Fóruns de Assistência Social, com destaque para o Fórum Municipal do Município de São Paulo, fundado por uma liderança do movimento e atuante até hoje, o Fórum Municipal de Belo Horizonte, fundado por uma militante do movimento em Minas Gerais e o Fórum Nacional de Assistência Social, fundado na década de 1990 para mobilizações em torno da defesa da assistência social após a regulamentação da LOAS.

Diante do perfil verificado a partir das trajetórias profissionais, podemos dizer que, em síntese, as ativistas do movimento em defesa da assistência social que influenciaram a criação e implementação do SUAS são mulheres, funcionárias públicas, grande parte vinculadas ao PT, conselheiras em espaços participativos municipais, estaduais e/ou nacionais e com militância ativa em Fóruns de discussão da política de assistência social. Há também uma forte ligação com a atividade acadêmica, já que grande parte das ativistas segue carreira docente.

A seguir, de forma a demonstrar os elementos de mútua constituição entre movimento e política de assistência social, analisamos a atuação dessas ativistas relacionando suas trajetórias aos espaços e momentos de mobilização em torno da política de assistência social.

Mútua constituição entre movimento e política pública

Como já abordado, a tarefa de compreender a construção do SUAS resultou em mapear, reconstruir e analisar um grupo de atores que empreendeu um movimento político de defesa da assistência social como política pública, o movimento em defesa da assistência social, ou apenas “movimento da assistência social”5 5 Na tese de Pinheiro (2008) encontramos a referência ao movimento como “MAS - Movimento da Assistência Social”; algumas militantes entrevistadas nos forneceram também um manifesto, apresentado na VIII Conferência Nacional de Assistência Social, na qual assinam como “MAS - Movimento pela Assistência Social”. .

Esse movimento articula atores por meio de uma rede que conecta a militância em espaços de mobilização política, debates, e formulação de conteúdos, de forma que as trajetórias das ativistas mostraram uma complexidade de vínculos, articulados por espaços de inserção profissional e política, conferindo densidade ao ativismo em torno dessa causa. Assim, observamos que o movimento se constituiu e se desenvolveu por meio da atuação dessas ativistas em diferentes espaços que as vinculam.

Diante da complexidade de vínculos observados, apresentamos o momento de constituição do movimento em defesa da assistência social pela descrição densa das conexões entre as trajetórias das ativistas os eventos e momentos políticos que as conectaram, buscando oferecer um panorama qualificado da constituição e atuação desse movimento. À perspectiva das trajetórias de vida profissional, esta seção soma um outro conjunto de instrumentais teórico-metodológicos que partem da crítica aos modelos que separam radicalmente sociedade civil e sociedade política, entendendo que, como aponta Silva,

À medida em que buscamos apreender nossos “objetos” de pesquisa não como objetos preexistentes às relações sociais, mas como resultantes mesmo dessas relações, a estrutura de nossas análises se altera profundamente (Silva, 2007SILVA, Marcelo Kunrath. 2007. Dos objetos às relações: esboço de uma proposta teórico-metodológica para a análise de processos de participação social no Brasil. In: DAGNINO, Evelina; TATAGIBA, Luciana. Democracia, sociedade civil e participação. Chapecó: Argos., p. 478)

A opção por reconstruir as trajetórias dessas ativistas por uma perspectiva de ação coletiva está ancorada nos avanços recentes da agenda de pesquisa que tem pensado os nexos entre sociedade civil e sociedade política no Brasil. Ao considerar que essas esferas são cruzadas por relações e, mais que isso, se constituem mutuamente, avançamos em caracterizar as relações entre atores estatais e não estatais para além das restrições teóricas que sempre as enxergaram como esferas absolutamente separadas (Abers e Von Bullow, 2011ABERS, Rebecca; VON BÜLOW, Marisa. 2011. Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre Estado e sociedade? Sociologias, Porto Alegre, ano 13, n. 28, pp. 52-84.).

Sobre a conceituação desse coletivo de atores como movimentos sociais, vale notar que, na fase exploratória da pesquisa de campo, definições como comunidade de especialistas (Kingdon, 1995KINGDON, John W. 1995. Agendas, alternatives, and public policies. Nova York: Longman Classics in Political Science.) ou coalizão de defesa (Sabatier e Jenkins-Smith, 1993SABATIER, Paul; JENKINS-SMITH, Hank. 1993. Policy change and learning: an advocacy coalition approach. Collection theoretical lenses on public. Boulder, CO: Westview Press.) se apresentavam como possíveis formas de compreender a atuação dessas ativistas em torno da assistência social. No entanto, ao nos debruçarmos sobre suas trajetórias, observamos que esses conceitos restringiam a compreensão acerca do alcance da ação política observada, sendo necessária a escolha por uma abordagem que contemplasse o processo político de mobilização que envolve a atuação desses atores, muito mais próximo à caracterização de atuação de movimentos sociais.

A opção por reconstruir as trajetórias dessas ativistas por uma perspectiva de ação coletiva se deve à ênfase na mobilização em defesa de um projeto de política pública que engloba fatores culturais, como a defesa da cidadania por meio da conquista de direitos sociais ampliados, entendendo a política pública como instrumento de emancipação para uma parcela da população historicamente excluída.

É importante notar, contudo, a polissemia que carrega o conceito de movimentos sociais, de acordo com diferentes abordagens (Diani, 1992DIANI, Mario. 1992. The concept of social movement. The Sociological Review. v. 40, n. 1, fev. 1992, pp. 1-25.). Nesse contexto, um aspecto fundamental para nossa escolha está na afirmação de Diani (1992) de que o caráter extra-institucional não pode ser tomado como fundamental para a definição de movimentos sociais. Para o autor, características como redes de relações entre uma pluralidade de atores, experiências ligadas à expressão pública de um conflito social e identidade coletiva são os elementos fundamentais que caracterizam os movimentos sociais.

Partindo dessas considerações, por considerá-las mais adequadas ao amplo leque de experiências que têm constituído diferentes formas de atuação de movimentos sociais no Brasil pós-transição, optamos por conceituar esse coletivo de atores como movimento social utilizando a definição de Diani, que considera os movimentos sociais como “redes de interações informais entre uma pluralidade de indivíduos, grupos ou associações engajados em um conflito político ou cultural, com base em uma identidade coletiva compartilhada” (Diani, 1992, p. 13).

Essa definição vem sendo usada por uma agenda de pesquisa recente que tem pensado as interações socioestatais e aceitado a inclusão, na categoria movimentos sociais, de atores que ocupam espaços no Estado (Tatagiba, Abers e Silva, 2018TATAGIBA, Luciana; ABERS, Rebecca; SILVA, Marcelo K. 2018. Movimentos sociais e políticas públicas: ideias e experiências na construção de modelos alternativos. In: PIRES, Roberto; LOTTA, Gabriela; OLIVEIRA, Vanessa (org). Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. Brasília: IPEA; ENAP.; Carlos, 2011CARLOS, Euzeneia. 2012. Movimentos sociais e instituições participativas: efeitos organizacionais, relacionais e discursivos. São Paulo. 398 f. Tese de Doutorado em Ciência Política. São Paulo: Universidade de São Paulo.).

Do mesmo modo, ao argumentar por uma unidade de análise menos restritiva, Abers e Von Bulow (2011ABERS, Rebecca; VON BÜLOW, Marisa. 2011. Movimentos sociais na teoria e na prática: como estudar o ativismo através da fronteira entre Estado e sociedade? Sociologias, Porto Alegre, ano 13, n. 28, pp. 52-84.) defendem que atores estatais não são necessariamente externos aos movimentos sociais, e que observar a forma pela qual ativistas de movimentos sociais atuam no Estado para influenciar políticas públicas pode levar ao conhecimento de um amplo leque de ações que acontecem no Estado, mas que muitas vezes não invisibilizadas por concepções restritivas de movimento social que não consideram atores posicionados no Estado.

É nesse sentido que a definição proposta por Diani nos ajuda a compreender melhor o coletivo de atores que defendeu a assistência social como política pública, pois ao propor um conceito alternativo às teorias clássicas de movimentos sociais, valorizando a estrutura relacional da ação coletiva (Carlos, 2011), permite apreender justamente a dimensão do processo de luta política que envolve a atuação desses atores, ao enfocar as dimensões do conflito, identidade e das redes de interações.

Assim, partindo dessa definição, apresentamos as trajetórias profissionais das ativistas entrevistadas a partir de seus componentes de mobilização política em torno de uma causa, qual seja, a construção de uma política pública de assistência social, contrapondo-se às práticas que constituíam a assistência social como benemerência e caridade. Por outro lado, na medida em que as entrevistadas afirmavam identificar-se como ativistas dessa causa, e identificavam as demais entrevistadas da mesma forma, observamos também o compartilhamento de uma identidade em torno dessa causa.

Outro aspecto da definição de Diani (1992DIANI, Mario. 1992. The concept of social movement. The Sociological Review. v. 40, n. 1, fev. 1992, pp. 1-25.) diz respeito ao fato de que as ativistas estiveram, desde a década de 1990, vinculadas e em conexões pelo país, engajadas em espaços participativos formais e informais, organizando eventos e criando espaços de debate, formulação e mobilização política, o que demonstra a existência de redes e conexões que conferiram densidade ao movimento.

A reconstrução empírica das trajetórias profissionais das ativistas, ancorada na definição de movimento social sustentada por Diani (1992DIANI, Mario. 1992. The concept of social movement. The Sociological Review. v. 40, n. 1, fev. 1992, pp. 1-25.), nos permitiu caracterizar o processo de mobilização política pela assistência social como um movimento social, liderado e protagonizado pela categoria de assistentes sociais, organizadas em suas entidades de classe, na academia e no partido político, imbricado, desde sua formação, com a atuação dessas militantes no Estado e no partido.

Ao demonstrarmos que o movimento em defesa da assistência social nasce imbricado à sua atuação no Estado e à sua filiação a um partido político, avançamos na compreensão das formas de ação coletiva que caracterizam os atores da sociedade civil no Brasil, adensando, com dados empíricos, análises que tratam de processos de mobilização política e ativismo de atores que ocupam a arena estatal. Nesse sentido, como mostra Dowbor (2012DOWBOR, Monika. 2012. A arte da institucionalização: estratégias de mobilização dos sanitaristas (1974-2006). 288f. Tese de Doutorado em Ciência Política. São Paulo: Universidade de São Paulo., pp. 30-31), “ao considerar como ação do movimento aquela que se processa nas instituições políticas, é possível ultrapassarmos a separação analítica entre movimentos sociais, sociedade e Estado, e com isso, captar sua mútua constituição”.

Ao analisar as ações empreendidas pelo Movimento Sanitarista, Dowbor (2012DOWBOR, Monika. 2012. A arte da institucionalização: estratégias de mobilização dos sanitaristas (1974-2006). 288f. Tese de Doutorado em Ciência Política. São Paulo: Universidade de São Paulo., p. 26) o caracteriza como uma “anomalia” em relação à Teoria dos Movimentos Sociais, devido ao fato desse movimento, ao longo de sua história, ter recorrido pouco aos protestos como forma de ação, recorrendo a táticas “via instituições”. Nesse rol de atuação “via instituições”, a autora aponta a ocupação de cargos no Estado como uma das táticas do coletivo voltada ao êxito de seu projeto político, de modo a fomentar mobilizações e organizações do movimento.

Táticas de ocupação de cargos no Estado e organização de seminários, capacitações e outros eventos com o intuito de discutir os rumos da política também são observados na trajetória do movimento em defesa da assistência social, se assemelhando às táticas observadas por Dowbor na atuação do movimento sanitarista. No entanto, ao tratar das semelhanças entre os dois movimentos, a fala de uma ativista chama atenção ao fato de que a assistência social foi historicamente “menos reivindicada” do que a saúde, apontando para uma especificidade do movimento em defesa da assistência social: o fato de tratar-se de um movimento em que o próprio beneficiário não é ator destacado nessa luta - nesse sentido, o movimento “fala” em favor de alguém.

Diante disso, um fator relevante para explicar o baixo envolvimento dos beneficiários na mobilização em defesa da política de assistência social estaria na ligação histórica entre assistência social e filantropia, que impactou na tradição de mobilização e participação política dos atores desse campo. Ademais, é sabido que os usuários da assistência social compõem parcela da população exposta a uma série de vulnerabilidades sociais que dificultam sua organização e mobilização em torno da reivindicação de direitos sociais.

Cunha (2009CUNHA, Eleonora S. Martins. 2009. Efetividade deliberativa: estudo comparado de conselhos municipais de assistência social (1997/2006). 372 f. Tese de Doutorado em Ciência Política. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais.) sintetiza a especificidade do movimento em defesa da assistência social ao mostrar que o protagonismo da mobilização nesta área não partiu dos setores populares ou dos potenciais beneficiários da política:

Diferentemente de outras áreas, como a saúde, em que a mobilização social incluiu setores populares, os protagonistas principais da mobilização em torno da garantia do direito à proteção social pública que responsabilizasse o Estado pela prestação de serviços regulares de assistência social foram os representantes corporativos ou acadêmicos dos profissionais do Serviço Social, associados a alguns outros profissionais e setores dos segmentos. Pleiteava-se a evolução de formas assistenciais privadas apoiadas na sociedade civil para formas institucionais e públicas de proteção social para aquelas pessoas que se encontrassem em situações de vulnerabilidade e risco social. Esse foi um momento que resultou de um longo processo de discussões e de amadurecimento da própria compreensão dessa política por esses protagonistas (Cunha, 2009CUNHA, Eleonora S. Martins. 2009. Efetividade deliberativa: estudo comparado de conselhos municipais de assistência social (1997/2006). 372 f. Tese de Doutorado em Ciência Política. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais., p. 151).

Ao delimitarmos o campo de atuação desse movimento, partimos para o esforço de conectar as trajetórias individuais a momentos decisivos e espaços importantes do processo de construção da política de assistência social. Essa conexão nos permitiu analisar os elementos constitutivos desse movimento que, desde o início, mantém múltiplas filiações, seja em sindicatos, na academia, na atuação no Estado e em espaços participativos e movimentos sociais.

A reconstrução das trajetórias profissionais demonstra a forma pela qual os trânsitos pelas diferentes esferas de atuação na política de assistência social constituíram uma identidade em torno da defesa de um projeto entre as ativistas, que se conectaram em redes de mobilização pelo país, tanto por meio de espaços participativos quanto pelas experiências de gestão local da política de assistência social.

A seguir, relacionamos as trajetórias ao processo político de regulamentação da LOAS. Mas, é importante sublinhar, nossa intenção não é a de fazer uma análise pormenorizada desse processo, que, ademais, já foram estudados com riqueza de detalhes em outros trabalhos. Assim, o processo de regulamentação da LOAS é analisado a partir dos momentos e espaços de conexão e fortalecimento do movimento.

Embora as discussões em torno da assistência social como política pública possam ser localizadas no período anterior à sua incorporação à Constituição de 1988, o movimento político em defesa da assistência social ganha vigor e projeção durante a luta pela regulamentação de sua lei orgânica, em um processo bastante conflituoso, diante de uma conjuntura desfavorável, especialmente no Governo Fernando Collor, conforme assinala Fleury (2007FLEURY, Sonia. 2007. Dilemas da coesão social. Nueva Sociedad, especial em português, Buenos Aires, outubro de 2007, pp. 4-23.):

Todas as leis orgânicas - da saúde, previdência e assistência - tiveram que ser negociadas nesta nova conjuntura desfavorável, e sua maior ou menor correspondência com os preceitos constitucionais foi fruto da capacidade política de resistência às tendências de privatização, recentralização, capitalização e focalização que ameaçaram a implantação da seguridade social (Fleury, 2007FLEURY, Sonia. 2007. Dilemas da coesão social. Nueva Sociedad, especial em português, Buenos Aires, outubro de 2007, pp. 4-23., p. 12).

Nessa conjuntura, o momento posterior à Constituição de 1988 é marcado, no campo da assistência social, pelas movimentações e mobilizações em defesa da regulamentação da Lei Orgânica, conhecidas como “movimentos pró-LOAS”, que

Passam a ser articulados com a presença de órgãos de categoria dos assistentes sociais, através do então CRAS e CEFAS - hoje CRESS e CFESS, que vão se movimentar com a ANASSELBA6 6 Associação Nacional dos Servidores da LBA (Legião Brasileira de Assistência). , Frente Nacional de Gestores Municipais e Estaduais, Movimentos pelos Direitos das Pessoas com Deficiência, dos Idosos, pesquisadores de várias universidades, pleiteando a regulamentação da assistência social (Sposati, 2011SPOSATI, Aldaiza de Oliveira. 2011. A menina LOAS: um processo de construção da assistência social. 5. ed. São Paulo: Cortez., pp. 55-56).

No entanto, o primeiro projeto de Lei, redigido pelo IPEA e submetido ao executivo foi vetado integralmente pelo então presidente Fernando Collor, e esse evento deflagrou uma intensa mobilização, que partiu de todos os campos sociais que apoiavam a luta pela regulamentação da política, mas especialmente de parte da categoria das assistentes sociais7 7 A atuação de assistentes sociais na política de assistência social está inserida na categoria profissional do Serviço Social, que se constitui como categoria mais ampla, com diferentes posições no que diz respeito à política de assistência social - inclusive posições críticas, que entendem a assistência social como uma forma de “assistencialização das políticas sociais”. Desta forma, a mobilização em defesa da assistência social como política pública partiu de uma parcela da categoria de assistentes sociais identificadas com a política, não podendo ser generalizada para toda a categoria de trabalhadores do Serviço Social. .

Na trajetória profissional das ativistas entrevistadas, vemos a atuação no chamado “movimento pró-LOAS”, pela mobilização para a preparação do segundo projeto de lei submetido ao Legislativo. Dentre as ativistas entrevistadas, todas relataram algum tipo de participação, organizadas em suas entidades de categoria, do processo de negociação da LOAS.

Nesse processo político, as ativistas buscaram conhecer outros projetos de lei sobre a LOAS que existiam na Câmara Federal, para encaminhar a discussão do projeto que havia sido vetado, realizando debates e seminários em várias regiões do país, organizados pelo CFESS. Desses debates nasce a nova proposta de lei, que agora seria encampada no Legislativo pelos deputados federais Eduardo Jorge (PT/SP) e José Dirceu (PT/SP).

Havia também uma Comissão Especial no Ministério de Bem-Estar Social para encaminhar a discussão sobre a LOAS. Segundo Sposati (2011SPOSATI, Aldaiza de Oliveira. 2011. A menina LOAS: um processo de construção da assistência social. 5. ed. São Paulo: Cortez.),

Os debates sobre emendas ao texto constitucional geram um momento ímpar, que se torna conhecido como a Conferência Zero da Assistência Social. No auditório da Câmara Federal é debatido artigo por artigo do projeto de lei entre representantes dos vários estados e dos movimentos pró-LOAS, com a presença de parlamentares, líderes do governo e a deputada Fátima Pellaes, relatora do projeto de lei. Ali é fechado o texto básico (Sposati, 2011SPOSATI, Aldaiza de Oliveira. 2011. A menina LOAS: um processo de construção da assistência social. 5. ed. São Paulo: Cortez., p. 69, grifos nossos).

Outro evento importante que fortaleceu a atuação e a articulação entre as ativistas em defesa da assistência social foi a chamada “Conferência Zero”. Essa Conferência marca um momento importante da defesa da assistência social pública entre a categoria de assistentes sociais, sendo, para algumas ativistas entrevistadas, a primeira experiência de militância em torno da causa da assistência social, e a possibilidade de articulação regional, juntando militantes de diversas partes do país ao núcleo central de atuação do movimento, que partia de São Paulo.

Dessa articulação nasce a possibilidade de ação conjunta em defesa de um novo texto para a LOAS. De acordo com uma ativista entrevistada que presidia o CFESS à época, o projeto de lei apresentado pelo Governo nesse momento não coincidia com o texto que vinha sendo construído e debatido pela categoria de assistentes sociais junto à LBA, aos municípios e estados, nos seminários pelo Brasil. Diante disso, a postura da categoria foi a de não aceitar o texto imposto pelo Governo, o que levou à discussão do projeto na chamada Conferência Zero, “artigo por artigo”, como aponta Sposati anteriormente.

Por outro lado, esse momento foi importante também por conectar militâncias pela assistência social que já aconteciam dispersas pelo país, adensando a rede nacional que se formava em torno da defesa da assistência social. Algumas ativistas entrevistadas chamavam atenção para o fato de que a “Conferência Zero” foi o primeiro contato entre militantes de várias regiões do país e o que chamavam de “movimento nacional”.

As universidades também tiveram importante papel nesse processo, como espaço de produção de conhecimento sobre a política que vinha sendo proposta. Observamos, pela análise das trajetórias profissionais das entrevistadas, que as assistentes sociais engajadas na luta pela LOAS eram pesquisadoras e professoras - na composição do CFESS, a presidente, Berenice Couto era professora e pesquisadora da PUC/RS, e compunha a diretoria do órgão a professora e pesquisadora da PUC/SP Carmelita Yazbek. Destaca-se também a participação ativa de Aldaíza Sposati, que desde a década de 1980 vinha participando de debates sobre a assistência pública, e do Núcleo de Políticas Públicas da UNB, que participara da redação do primeiro projeto de lei.

Ainda no âmbito acadêmico, o processo de luta pela regulamentação da LOAS vai marcar o protagonismo que o Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUC/SP assume, tanto na produção teórica quanto na direção e mobilização política da categoria de assistentes sociais e, consequentemente, do movimento em defesa da assistência social, considerado nos relatos das entrevistadas como um epicentro do movimento político que vai se constituindo em defesa da assistência social8 8 Na PUC, vale ressaltar a atuação política que marca o NEPSAS/PUC-SP (Núcleo de Estudos e Pesquisa de Seguridade e Assistência Social), especialmente na figura de Aldaíza Sposati, que, à época do processo de regulamentação da LOAS, já cumpria mandato como vereadora na cidade de São Paulo, sendo figura destacada também no Partido dos Trabalhadores. . Combinando a militância na categoria de assistentes sociais, a produção acadêmica na área da assistência social e a militância partidária, Aldaíza Sposati organiza a formação do Setorial Nacional de Assistência Social no PT e se destaca como liderança técnica e política do movimento.

Observamos, assim, que o processo de regulamentação da LOAS é crucial na constituição do movimento em defesa da assistência social, impulsionando e somando esforços e pessoas em um contexto nacional e marcando o protagonismo das assistentes sociais na luta em defesa da assistência social, assinalando os contornos que o movimento específico em defesa da assistência social ganha a partir da mobilização pela LOAS.

Ao final desse processo, a Lei Orgânica da Assistência Social foi promulgada em 7 de dezembro de 1993, depois de intenso processo de negociação cujo resultado foi um texto final que não contemplou totalmente as demandas do movimento. A Lei passava a definir, como diretriz, um sistema descentralizado e participativo de assistência social, com conselhos de assistência social nos três níveis, de caráter deliberativo, paritários e a realização de conferências de assistência social. No entanto, nos anos seguintes, o processo político de implementação dessas diretrizes foi conflituoso e permeado por disputas.

Um ponto importante que marca a atuação do movimento em defesa da política de assistência social é o fato de que a mobilização em defesa da LOAS articula a militância em defesa da política de assistência social em dois planos complementares: uma articulação no CFESS, que movimenta a discussão da regulamentação da LOAS pela categoria dos assistentes sociais; e uma mobilização no PT, por meio do Setorial Nacional de Assistência Social que estava se formando e atuará como importante espaço de militância para o movimento pela assistência social, tanto na luta pela LOAS quanto nos anos subsequentes e, especialmente, no início do Governo Lula (Gutierres, 2015GUTIERRES, Kellen Alves. 2015. Projetos políticos, trajetórias e estratégias: a política de assistência social entre o partido e o Estado. 253f. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. Campinas: Universidade Estadual de Campinas.).

Sobre a atuação das ativistas entrevistadas no Partido dos Trabalhadores, a organização por um Setorial guarda particularidades. No Partido dos Trabalhadores (PT) os grupos e secretarias setoriais constituem a forma de institucionalizar o papel dos movimentos sociais no partido. O Setorial Nacional de Assistência Social se organizou no partido na década de 1990, no contexto da regulamentação da LOAS, e desde então mobiliza estratégias para defender o projeto de política pública de assistência social dentro do PT9 9 Sobre a relação entre movimentos sociais e partidos políticos, é interessante notar a afirmação de Diani (1992), de que “as propriedades dos processos que descrevi como movimento social não excluem que, sob certas condições específicas, algum partido político possa se sentir como parte de um movimento e ser reconhecido como tal tanto por outros atores do movimento quanto pelo público em geral. É provável que seja esta a exceção e não a regra, e que se restrinja amplamente a partidos originados por movimentos sociais, como os Partidos Verdes (Kitschelt, 1989; Rudig e Lowe, futura publicação)” (Diani, 1992, p. 15, tradução minha). O que o autor ressalta, contudo, é a necessidade de qualificar o tipo de interação que se estabelece entre movimento e partido - o que buscamos fazer com o movimento aqui analisado, ao situá-lo na forma organizativa que assume no PT, ou seja, o Setorial Nacional da Assistência Social. . Como mostra Gutierres (2015GUTIERRES, Kellen Alves. 2015. Projetos políticos, trajetórias e estratégias: a política de assistência social entre o partido e o Estado. 253f. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. Campinas: Universidade Estadual de Campinas.), as articulações do movimento dentro do partido, por meio do Setorial, foram fundamentais para encaminhar, no primeiro mandato do PT no executivo federal, as demandas do movimento em relação à implantação do SUAS.

Nesse sentido, as trajetórias profissionais analisadas nos mostram que, por meio da atuação e articulação política realizada no âmbito do Setorial Nacional de Assistência Social do PT, ativistas ocupam cargos de gestão em prefeituras do PT de diversas cidades do país (São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Londrina), construindo, dentro do partido, visibilidade política e legitimidade técnica (Gutierres, 2015GUTIERRES, Kellen Alves. 2015. Projetos políticos, trajetórias e estratégias: a política de assistência social entre o partido e o Estado. 253f. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. Campinas: Universidade Estadual de Campinas.), mobilizadas em momentos chave de disputa política no partido e no governo federal, após a eleição do PT ao executivo federal.

Os relatos das ativistas entrevistadas nos mostram que a luta pela LOAS articulou o CFESS, a PUC/SP e o Setorial Nacional de Assistência Social do PT, posteriormente nucleados como espaços de luta pela implementação da política. Somam-se a esses espaços o CNAS, implantado em 1994, e o Fórum Nacional de Assistência Social, formado posteriormente, também importantes para a construção da política nos anos subsequentes à promulgação da LOAS. Todos esses espaços, somados à atuação de várias ativistas como gestoras da política de assistência social em suas localidades, possibilitaram que a rede de ativistas em defesa da assistência social se mantivesse coesa, construindo e disputando ideias e espaços que, anos depois, se constituíram como fundamentais na forma pela qual a atuação de ativistas do movimento pela assistência social incidiu sobre o processo decisório da política e sobre a produção e acesso aos bens públicos, no qual o mais proeminente foi a implantação do SUAS.

Considerações finais: análise de trajetórias para interações socioestatais

Esse artigo demonstrou a mútua constituição entre movimento social e a política pública de assistência social, por meio do método de análise de trajetórias, enfatizando os ganhos que o método trouxe para a análise da mútua influência entre sociedade civil e Estado, ao relacionar as trajetórias profissionais de ativistas ao contexto político no qual se desenvolveram.

A partir dessas trajetórias, mostramos a forma pela qual o movimento em defesa da assistência social se constituiu, evidenciando o perfil das ativistas, os vínculos que as conectam e a forma como esses vínculos e redes fortaleceram o movimento ao longo do processo de regulamentação da LOAS. A pesquisa empírica nos mostrou um movimento político que nasceu e se fortaleceu a partir da defesa da assistência social como política pública, estando imbricado, desde o início, com o partido e o Estado.

Apresentamos as trajetórias das ativistas entrevistadas explicitando perfis que indicam múltiplas filiações entre sociedade civil, partido e Estado - que se constituiu como um movimento que, ao mesmo tempo em que se distingue do Estado e do partido, mantém, desde o início, profundas imbricações com eles. Como vimos, a experiência no Estado - seja no funcionalismo público, seja na gestão da política - marca o movimento desde seu início. Momentos importantes, como o processo de regulamentação da LOAS, a formação do Setorial Nacional de Assistência Social e a militância em Fóruns, nacional e locais, conectam e articulam a militância em torno da defesa da assistência social como política pública.

Vale notar, contudo, que devido ao fato de termos entrevistado ativistas que estavam bastante unidas em torno de uma causa específica, com foco em um momento bastante peculiar - a construção do SUAS -, em que todos os esforços se somavam em termos da urgência em implantar a política; a união em torno desse objetivo e o nosso foco principal em compreender a trajetória de construção e implementação dessa política podem ter suprimido conflitos internos ao movimento, que não foram observados nas entrevistas. Assim, vale assinalar a especificidade desse momento estudado, apontando que pesquisas futuras, que busquem aprofundar o conhecimento sobre este movimento, poderão avançar no conhecimento das heterogeneidades que o constituem.

Os dados elencados nos permitem demonstrar a forma pela qual a metodologia de análise de trajetórias nos permitiu avançar na caracterização das interações entre movimento, partido e política pública, evidenciando as imbricações, intersecções e trânsitos entre atores que ora estão posicionados no Estado, ora na sociedade civil, e muitas vezes são, ao mesmo tempo, gestores, ativistas e militantes partidários.

Nossa pesquisa denota um importante ganho metodológico que o uso da análise de trajetória pode trazer aos estudos das interações socioestatais, ao evidenciarmos que as histórias de vida analisadas aparecem como preciosa fonte de informação sobre o percurso de formação do movimento pela assistência social, que se constitui por estratégias mobilizadas na interação com o partido e com o Estado. A reconstrução das histórias de vida pelas trajetórias profissionais das ativistas desvelou para a pesquisa os nexos entre a trajetória ativista, a formação do movimento e a atuação na política pública como parte dessas trajetórias, diretamente relacionadas à atuação em defesa da política.

Nesse sentido, pensando nos ganhos da metodologia para os estudos das complexas relações entre sociedade civil e sociedade política, retomamos a proposição de Queiroz (1991QUEIROZ, Maria Isaura P. de. 1991. Variações sobre a técnica de gravador no registro da informação viva. São Paulo: T. A. Queiroz.), quando afirma que a história oral permite reconstruir o que ainda não foi cristalizado na escrita, e até mesmo “captar o indizível”. Considerando o aspecto bastante normativo que sempre guiou as análises das relações entre movimentos sociais, Estado e partidos, defendemos que o método de reconstrução de trajetórias ativistas que cruzaram essas fronteiras pode ser uma forma de acessar o que ainda não está cristalizado, e também aquelas experiências que, até por conta do pressuposto normativo, por vezes permaneceram indizíveis.

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  • 1
    O detalhamento do desenho da pesquisa empírica será apresentado na subseção “A pesquisa com ativistas do movimento em defesa da assistência social”, junto à discussão metodológica proposta.
  • 2
    No original: “In order to investigate the sector boundary-crossing phenomenon, experiences of work (whether in terms of formal career, activism, volunteering) were placed at the centre of the life-history data to be collected. As a consequence, the method employed was not a pure type of open-ended life history research”.
  • 3
    Vale notar, contudo, que nos restringimos a analisar esse coletivo de atores, não sendo nosso objetivo abarcar o universo de atores que compõe o vasto campo da assistência social no Brasil, o que escapa aos objetivos de nossa pesquisa.
  • 4
    Os espaços listados indicam, respectivamente, militantes que se dedicam à carreira acadêmica; que cumpriram mandato na diretoria do CFESS; foram conselheiras do CNAS; foram conselheiras e/ou trabalharam na implantação de conselhos de políticas municipais e/ou estaduais; seguiram carreira como funcionárias do serviço público; participaram e/ou organizaram fóruns locais ou nacionais da política de assistência social; foram gestoras da política municipal ou estadual em cargo comissionado; ocuparam cargo comissionado de gestão no Governo Federal; foram ou ainda são filiadas ao PT.
  • 5
    Na tese de Pinheiro (2008PINHEIRO, Márcia. 2008. O CNAS: entre o interesse público e o privado. Tese de Doutorado em Serviço Social. São Paulo: PUC.) encontramos a referência ao movimento como “MAS - Movimento da Assistência Social”; algumas militantes entrevistadas nos forneceram também um manifesto, apresentado na VIII Conferência Nacional de Assistência Social, na qual assinam como “MAS - Movimento pela Assistência Social”.
  • 6
    Associação Nacional dos Servidores da LBA (Legião Brasileira de Assistência).
  • 7
    A atuação de assistentes sociais na política de assistência social está inserida na categoria profissional do Serviço Social, que se constitui como categoria mais ampla, com diferentes posições no que diz respeito à política de assistência social - inclusive posições críticas, que entendem a assistência social como uma forma de “assistencialização das políticas sociais”. Desta forma, a mobilização em defesa da assistência social como política pública partiu de uma parcela da categoria de assistentes sociais identificadas com a política, não podendo ser generalizada para toda a categoria de trabalhadores do Serviço Social.
  • 8
    Na PUC, vale ressaltar a atuação política que marca o NEPSAS/PUC-SP (Núcleo de Estudos e Pesquisa de Seguridade e Assistência Social), especialmente na figura de Aldaíza Sposati, que, à época do processo de regulamentação da LOAS, já cumpria mandato como vereadora na cidade de São Paulo, sendo figura destacada também no Partido dos Trabalhadores.
  • 9
    Sobre a relação entre movimentos sociais e partidos políticos, é interessante notar a afirmação de Diani (1992), de que “as propriedades dos processos que descrevi como movimento social não excluem que, sob certas condições específicas, algum partido político possa se sentir como parte de um movimento e ser reconhecido como tal tanto por outros atores do movimento quanto pelo público em geral. É provável que seja esta a exceção e não a regra, e que se restrinja amplamente a partidos originados por movimentos sociais, como os Partidos Verdes (Kitschelt, 1989; Rudig e Lowe, futura publicação)” (Diani, 1992, p. 15, tradução minha). O que o autor ressalta, contudo, é a necessidade de qualificar o tipo de interação que se estabelece entre movimento e partido - o que buscamos fazer com o movimento aqui analisado, ao situá-lo na forma organizativa que assume no PT, ou seja, o Setorial Nacional da Assistência Social.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2018
  • Aceito
    23 Out 2018
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