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CALIBAN OU CANIBAL? DIÁLOGOS BRASILEIROS DE ROBERTO FERNÁNDEZ RETAMAR

CALIBAN OR CANIBAL: BRAZILIAN DIALOGUES OF ROBERTO FERNÁNDEZ RETAMAR

Resumo

O artigo procura entender como se forma, depois da Revolução Cubana, uma certa ideia da América Latina. Tomo, em especial, o ensaio “Calibán” (1971), de Roberto Fernández Retamar, como ponto de observação privilegiado, a partir do qual trato de outras visões da América Latina que também se serviram de A Tempestade, de William Shakespeare. Como fim específico, pretendo perceber a relação que se estabelece entre a identidade latino-americana criada pela Revolução Cubana, em que Caliban tem papel decisivo, e o Brasil. Trato, portanto, de um processo de circulação de ideias ainda pouco estudado, aquele entre países periféricos.

Palavras-chave:
Revolução Cubana; América Latina; Brasil; Roberto Fernández Retamar

Abstract

The article discusses how after the Cuban Revolution a certain idea of Latin America is created. I use specially the article “Calibán” (1971), by Roberto Fernández Retamar, as a point of observation to relate to other views about Latin America which also used The Tempest, by William Shakespeare. As a specific aim, I explore the relationship between the Latin-American identity created by the Cuban Revolution, where Caliban has a decisive role, and Brazil. I deal, thus, with a process of ideas circulation not very studied, the one between peripherical countries.

Keywords:
Cuban Revolution; Latin America; Brazil, Roberto Fernández Retamar

Em “Calibán” (1971), Roberto Fernández Retamar nota que Caliban é um anagrama da palavra canibal. Esse é um dos motivos, segundo o crítico e poeta cubano, para associar o “escravo selvagem e deformado” de A Tempestade à América Latina, já que o nome “canibal” teria surgido de “caribe”, denominação do habitante original das ilhas em que Cristóvão Colombo chegou em 1492. Nessa referência, seria evidente a vinculação da ilha da peça com a nossa América: “Próspero invadiu as ilhas, matou os nossos antepassados, escravizou Calibán e lhe ensinou sua língua para poder se entender com ele” (Fernández Retamar, 1971FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 1971. Calibán. Casa de las Américas, La Habana, n. 68, pp. 124-151., p. 131). A língua poderia ao menos nos servir, como a Caliban, como meio para amaldiçoar o colonizador: “ensinaste-me a falar; disso, o meu único proveito é saber amaldiçoar. Que a peste rubra vos roa, por me haverdes ensinado a vossa língua” (Fernández Retamar, 1971FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 1971. Calibán. Casa de las Américas, La Habana, n. 68, pp. 124-151., p. 126).

No entanto, críticos têm chamado a atenção, quase desde a publicação de “Calibán”, para uma ausência significativa no influente ensaio: a referência à antropofagia brasileira. Em particular, o uruguaio Emir Rodríguez Monegal (1977RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. 1977. The metamorphosis of Caliban. Diacritics, Baltimore, v. 7, n. 3, p. 78-83.) destaca como Oswald de Andrade, muito antes de Fernández Retamar, teria sido mais radical ao defender uma revolução não apenas política e social, mas total, com implicações até mesmo eróticas e epistemológicas. “Calibán” não ousaria especialmente tratar da questão do canibalismo.1 1 Mais de vinte anos depois da crítica de Rodríguez Monegal, Fernández Retamar, em texto que trata especialmente da relação de seu ensaio com a antropofagia, reconhece que Oswald deveria estar presente em “Calibán”, explicando singelamente que a razão de sua ausência foi “que em 1971 ainda desconhecia a sua obra” (Fernández Retamar, 2005, pp. 142-143). Mesmo assim, teria tratado do escritor brasileiro em conferência pronunciada em Budapeste, em 1976, portanto, antes do artigo do crítico uruguaio.

De maneira significativa, Fernández Retamar e Rodríguez Monegal estiveram envolvidos, um pouco antes, numa acalorada polêmica a respeito da revista Mundo Nuevo, publicação editada pelo uruguaio, que o cubano, das páginas da revista da Casa de las Américas, de que era diretor, denunciava por ser financiada pela Agência Central de Inteligência dos EUA (CIA). Ou seja, há indícios de que a discussão, travada nos anos 1970, entre os dois críticos a respeito da relação de Caliban com o canibalismo não é apenas uma querela literária, mas também um debate político com importantes implicações na maneira de se entender a América Latina.

Para compreender essas diferentes posições, reconstituo brevemente as experiências da revista da Casa de las Américas e Mundo Nuevo na segunda metade da década de 1960. Dentro do contexto marcado pelo “caso Padilla”, que levou à publicação de “Calibán”, procuro depois entender como o ensaio é construído em bases intertextuais, em que se dialoga com outros textos da sua época que destacam o “escravo selvagem e deformado” de A Tempestade, bem como com trabalhos do modernismo hispano-americano. Para explorar especialmente o diálogo de Fernández Retamar com o Brasil, examino as referências ao país e a autores brasileiros na primeira edição do ensaio e as modificações que foram feitas em suas sucessivas edições. De maneira complementar, também trato da apropriação no Brasil do trabalho do crítico e poeta cubano. Acredito que assim se pode perceber melhor o lugar do país numa visão criada a partir da Revolução Cubana a respeito da América Latina. Por fim, quero entender como é a recepção brasileira dessa ideia da Nuestra América.

Pré-história

O jovem crítico e poeta Fernández Retamar se torna diretor da revista da Casa de las Américas a partir do nº 30, de outubro de 1965.2 2 Substitui Antón Arrufat, que tinha sido “secretário da revista” até então. O grupo original da revista da Casa de las Américas estivera ligado ao extinto suplemento Lunes de la Revolución, que pode ser identificado como mais favorável a uma autonomia relativa da arte. Com a nova direção, acentua-se o caráter político e terceiro-mundista da publicação. Ver: Artaraz, 2009; Lie, 1996; Miskulin, 2009. Junto com a mudança editorial, o Comitê de Redação passa a se chamar Comitê de Colaboração, contando entre seus membros com importantes escritores e críticos latino-americanos. Pouco depois, é lançada, em julho de 1966, a revista Mundo Nuevo. Sediada em Paris, é patrocinada pelo Instituto Latino-Americano de Relaciones Internacionales (Ilari), criado pelo Congress for Cultural Freedom (CCF). Tem como editor Rodríguez Monegal, que fora diretor da seção literária do importante semanário uruguaio Marcha (Campuzano, 1992CAMPUZANO, Luisa. 1992. La revista Casa de las Américas en la década de los sessenta. América: Cahiers du CRICCAL, Paris, n. 9-10, pp. 55-63.; Frenk, 1984FRENK, Susan F. 1984. Two cultural journals of the 1960s: Casa de las Américas and Mundo Nuevo. Bulletin of Latin American Research, Hoboken, v. 3, n. 2, pp. 83-93.; Morejón Arnaiz, 2004MOREJÓN ARNAIZ, Idalia. 2004. Política y polémica en América Latina: las revistas Casa de las Américas y Mundo Nuevo. Tese de Doutorado. São Paulo: USP.).3 3 O CCF foi fundado em 1950, tendo como principal motivação o anticomunismo e contando com apoio do governo norte-americano. A partir dessa orientação, as posições de seus membros eram muito variadas, reunindo desde conservadores a marxistas. Segundo Patrick Iber (2015), o ethos dominante na organização seria social-democrata. Na América Latina publicou, a partir de 1953, a revista Cuadernos por la Libertad de la Cultura, sua homóloga brasileira sendo os Cadernos de Cultura.

As duas revistas proclamam a unidade da América Latina e têm importante papel na eclosão do chamado boom da literatura da região. Significativamente, Rodríguez Monegal chega a buscar a colaboração de Fernández Retamar e de outros intelectuais ligados à Revolução Cubana em Mundo Nuevo. No entanto, as investidas do uruguaio não têm sucesso, com a revista da Casa de las Américas denunciando as ligações do CCF com a CIA. Para tanto, se utiliza de informações levantadas por fonte insuspeita, o New York Times, que numa série de reportagens, publicadas a partir de abril de 1966, indicara a relação (Frenk, 1984FRENK, Susan F. 1984. Two cultural journals of the 1960s: Casa de las Américas and Mundo Nuevo. Bulletin of Latin American Research, Hoboken, v. 3, n. 2, pp. 83-93.; Iber, 2015IBER, Patrick. 2015. Neither peace nor freedom: the cultural cold war in latin america. Cambridge: Harvard University Press.; Mcquade, 1992MCQUADE, Franck. 1992. Mundo Nuevo: la nueva novela y la guerra fria cultural. América: Cahiers du CRICCAL, Paris, n. 9-10, pp. 17-26.; Morejón Arnaiz, 2004MOREJÓN ARNAIZ, Idalia. 2004. Política y polémica en América Latina: las revistas Casa de las Américas y Mundo Nuevo. Tese de Doutorado. São Paulo: USP.).

Nessa referência, o artigo de Ambrosio Fornet, “New World en español”, que sai no nº 40, de janeiro e fevereiro de 1967 da revista da Casa de las Américas, ecoa a caracterização do então responsável pela seção literária de Marcha, Rama, de que a revista editada em Paris não passaria da “nova ‘fachada cultural’ do imperialismo norte-americano” (Fornet, 1967FORNET, Ambrosio. 1967. New world en español. Casa de las Américas, La Habana, n. 40, pp. 106-115., pp. 114-115).4 4 Na verdade, os dois uruguaios se estranhavam desde os tempos de Marcha, podendo até se falar em duas Marchas. A Revolução Cubana impacta profundamente a Rama que, a partir de então, monta um programa de trabalho em que privilegia o exame de obras latino-americanas. Além disso, procura entender a literatura num quadro mais amplo, em que a análise sociológica é importante. Por sua vez, Rodríguez Monegal se tornara crítico da Revolução Cubana desde cedo. Enxerga uma falsa oposição entre o regionalismo e o universalismo. Mesmo assim, os dois críticos são marcados pelos ensinamentos do fundador de Marcha, Carlos Quijano, que rejeitara o nacionalismo “provinciano” e defendera a liberdade de criação. Ver: Gilman, 2011; Rocca, 2006. Rodríguez Monegal, por sua vez, em “La CIA y los intelectuales”, publicado no nº 14, de agosto de 1967, de Mundo Nuevo, insiste que “o destino do escritor independente é ser atacado por todos os bandos, ou - o que é sem dúvida pior - ser convidado a colaborar por todos os extremos” (Rodríguez Monegal, 1967RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. 1967. “La CIA y los intelectuales”, Mundo Nuevo n. 14, p. 11-20., p. 20).

A fim de compensar o isolamento imposto, entre outras medidas, pelo embargo norte-americano, que vigora desde 1960, e a expulsão, em 1962, da Organização dos Estados Americanos (OEA), Cuba apela para a identidade latino-americana. Já em abril de 1959 se fundara a Casa de las Américas, centro cultural que deveria funcionar como janela de Cuba para a América Latina e da América Latina para Cuba, seus prêmios literários logo alcançando grande repercussão. Sinal do sucesso das iniciativas latino-americanistas é que se estende pela região uma rede de intelectuais simpáticos à Revolução Cubana que constituiriam uma verdadeira comunidade de escritores, assumindo até um ar de família, devido à proximidade de suas relações (Gilman, 2003GILMAN, Claudia. 2003. Entre la pluma y el fusil: debates y dilemas del escritor revolucionario en américa latina. Buenos Aires: Siglo XXI.). Há, num sentido mais geral, um esforço de fundar instituições, como o Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos (Icaic), a própria Casa de las Américas, a Imprenta Nacional e a Unión Nacional de Escritores Cubanos (Uneac) (Serra, 2007SERRA, Ana. 2007. The “new man” in Cuba: culture and identity in the revolution. Gainesville: University Press of Florida.). Os EUA (Estados Unidos da América) reagem, por sua vez, à ofensiva cultural cubana, também criando revistas, oferecendo bolsas, estabelecendo centros de estudos e cursos sobre a América Latina. Significativamente, nos dez anos posteriores à revolução, dobra o número de disciplinas sobre a região nas universidades norte-americanas, tendo o resultado de consolidar os Latin American Studies (Feres Jr., 2005FERES JR., João. 2005. A história do conceito de “Latin America” nos Estados Unidos. Bauru: Edusc.). Nesse sentido, é possível afirmar que se cria, a partir da Revolução Cubana, até mesmo uma certa ideia de América Latina.5 5 De acordo com Rafael Rojas: “a querela ideológica da Guerra Fria, nos anos 1960 e 1970, reformulou o grande tema cultural das identidades nacionais e o latino-americanismo que se discutia desde a Guerra de 1898 no Caribe” (Rojas, 2017, p. 15).

A Revolução Cubana é, em especial, decisiva para o estabelecimento de opções socialistas ou socializantes na América Latina que vão além dos partidos comunistas. A própria forma como se deu a tomada do poder - o que ficou conhecido como “foquismo” - desafiava os modelos de revolução até então consagrados. Além disso, o governo revolucionário logo promove, contra a política soviética, a luta armada na América Latina e no chamado Terceiro Mundo. Num sentido mais amplo, pode-se considerar que Cuba ajuda a moldar o que se entende por nova esquerda. Para tanto, é especialmente importante como a nova esquerda se identifica com o Terceiro Mundo.6 6 De início, o Terceiro Mundo é visto como alternativo ao Primeiro Mundo capitalista e ao Segundo Mundo comunista, concepção com que sentia afinidade a primeira nova esquerda, que rejeitava tanto a sociedade burguesa como o socialismo real. De maneira sugestiva, o governo cubano, pouco depois da Revolução, se define como nem capitalista, nem comunista, mas humanista, tendo participado, em 1961, da Conferência dos Países Não Alinhados de Belgrado como observador. No entanto, em torno da segunda metade da década de 1960, há uma radicalização, tanto do Terceiro Mundo, como da nova esquerda e da Revolução Cubana. Enfatiza-se, no novo ambiente, a ação imperialista contra a qual se coloca a opção revolucionária, como se percebe na Conferência Tricontinental, de 1966, e na Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (Olas), de 1967 (Artaraz, 2009). Num outro sentido, o “terceiro-mundismo” faz com que a nova esquerda seja um fenômeno com significado global. Nessa referência, mesmo que o desafio à “velha esquerda”, comunista e social-democrata, tenha origem nos países capitalistas centrais, sua atuação se estende ao mundo não desenvolvido (Artaraz, 2009ARTARAZ, Kepa. 2009. Cuba and western intellectuals since 1959. London: Palgrave Macmillan.).

Refletindo tal quadro, a disputa entre a revista da Casa de las Américas e a Mundo Nuevo se dá, em grande medida, como um enfrentamento no interior da nova esquerda (ROJAS, 2017ROJAS, Rafael. 2017. La polis literária. Madrid: Taurus.). Num sentido ainda mais direto, Rama adverte Fernández Retamar, em carta, que Rodríguez Monegal “viajou por toda a América - todos os gastos pagos pelos norte-americanos - para assegurar colaborações, dirigindo-se sobretudo à esquerda não comunista”. Depois esclarece: “estão atuando de uma nova forma: proclamam o desgaste dos esquemas ideológicos” (Rama apud Fernández Retamar, 1993FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 1993. Ángel Rama y la Casa de las Américas. Casa de las Américas, La Habana, n. 192, pp. 178-196., p. 52).

De maneira significativa, a revista da Casa de las Américas e Mundo Nuevo aparentemente são publicações muito similares. Revistas de política e cultura, publicam muito do mais interessante da literatura latino-americana e mundial produzidas na época. É comum que seus temas e até colaboradores se repitam. No entanto, frequentemente as publicações tratam dos temas de maneira muito diferente. Em termos mais amplos, a revista cubana defende o engajamento político dos intelectuais, ao passo que a revista editada em Paris argumenta em favor do diálogo para além das diferentes posições políticas e artísticas. Em resumo, a visão a respeito da relação entre cultura e política das duas publicações é muito diferente. A revista Casa de las Américas defende uma arte comprometida com a transformação social, ao passo que a Mundo Nuevo afirma a autonomia da cultura.

Ligadas a essas variadas concepções, as publicações também têm diferentes maneiras de entender a América Latina, como fica indicado nos seus editoriais de estreia (ou quase estreia). A breve nota de apresentação do nº 30 da revista da Casa de las Américas, quando Fernández Retamar assume a direção da publicação, reitera a intenção de auxiliar a incrementar o vínculo entre as Américas, “que do Bravo à Patagônica são uma, dizia Martí”. Em termos mais atuais, diz estar voltada para os países chamados de subdesenvolvidos, sendo “a tarefa crescente dessa revista contribuir para retificar esta identificação” (Casa de las Américas, 1965CASA de las Américas. 1965. Presentación. Casa de las Américas, La Habana, n. 30., p. 5). Já a publicação dirigida por Rodríguez Monegal avalia que a América Latina se encontraria “na invejável posição de um continente que habita dois mundos: o velho das tradições europeias, sempre renovadas, sempre vivas, e o mundo ainda informe das nações emergentes” (Mundo Nuevo, 1966MUNDO Nuevo, 1966. Presentación. Mundo Nuevo, Paris, n. 1, p. 4., p. 4). No entanto, considera que a região ainda não ocuparia a posição que lhe deveria corresponder, faltando, em especial, reconhecer a qualidade do artista e do escritor latino-americano. Isto é, a revista da Casa de las Américas vê a América Latina como parte do que nos anos 1960 é chamado de Terceiro Mundo, ao passo que a Mundo Nuevo busca o reconhecimento do escritor latino-americano numa suposta literatura universal, o que não deixa de corresponder a uma concepção eurocêntrica de cultura (Frenk, 1984FRENK, Susan F. 1984. Two cultural journals of the 1960s: Casa de las Américas and Mundo Nuevo. Bulletin of Latin American Research, Hoboken, v. 3, n. 2, pp. 83-93.).

Para além das diferentes visões a respeito da América Latina, a decisão de Rodríguez Monegal de deixar a direção da Mundo Nuevo, em 1968, e o fim da revista, três anos depois, já editada em Buenos Aires e com nova orientação, é sinal claro da vitória da revista Casa de las Américas na disputa entre as duas publicações. Tal resultado não é de se surpreender no ambiente político e cultural da década de 1960. No entanto, a contenda não necessariamente termina aí.

Contextos

“Calibán” é publicado em meio ao “caso Padilla”, ou como diz Fernández Retamar: “a recente polêmica a respeito de Cuba, que acabou confrontando, de um lado, intelectuais burgueses europeus (ou aspirantes a sê-lo) com evidentes nostalgias colonialistas, e, de outro lado, os mais importantes escritores e artistas latino-americanos” (Fernández Retamar, 1971FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 1971. Calibán. Casa de las Américas, La Habana, n. 68, pp. 124-151., p. 124).

O poeta Heberto Padilla é preso, em 1971, sob a acusação de atividades contrarrevolucionárias. Em reação ao encarceramento, intelectuais europeus e latino-americanos escrevem diversas cartas a Fidel. Uma das de maior impacto é a assinada por Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Italo Calvino, Alberto Moravia, Julio Cortázar, Octavio Paz, Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa, entre outros, em que indicam sua “inquietude” com a detenção. Pouco depois, Padilla confessa sua culpa, num ato público na Uneac. Devido à estranha autocrítica, uma nova carta, indiscutivelmente de protesto, é produzida. Nela já não constam as assinaturas de alguns dos signatários originais - como Cortázar -, mas por outro lado, novos nomes, como Pier Paolo Pasolini, Juan Rulfo e Susan Sontag, são incorporados ao grupo. Outros, como Ángel Rama, não assinam nenhuma carta, mas se afastam da Revolução Cubana (Casal, 1971CASAL, Lourdes (org.). 1971. El caso Padilla: literatura y revolución en Cuba. Documentos. New York: Ediciones Nueva Atlántida.; Gilman, 2003GILMAN, Claudia. 2003. Entre la pluma y el fusil: debates y dilemas del escritor revolucionario en américa latina. Buenos Aires: Siglo XXI.; Jáuregui, 2008JÁUREGUI, Carlos. 2008. Canibalia: canibalismo, calibanismo, antropofagia cultural y consumo en américa latina. Madrid: Iberoamericana editorial.; Lie, 1996LIE, Nadia. 1996. Transición y transacción: la revista cubana Casa de las Américas, 1960-1976. Gaithersburg: Hispamérica; Leuven: Leuven University Press., 1997aLIE, Nadia. 1997a. Countering Caliban: Fernández Retamar and the postcolonial debate. In: LIE, Nadia; D’HAEN, Theo (org.). Constellation Caliban: figurations of a Character. Amsterdam; Atlanta: Rodopi. pp. 245-270., 1997bLIE, Nadia. 1997b. Calibán en contrapunto: reflexiones sobre un ensayo de Roberto Fernandez Retamar (1971). América: Cahiers du CRICCAL, Paris, n. 18, t. 2, p. 573-585.; Miskulin, 2009MISKULIN, Sílvia. 2009. Os intelectuais cubanos e a política cultural da revolução (1961-1975). São Paulo: Alameda.).

Aos olhos de muitos, a prisão e, principalmente, a posterior confissão de Padilla lembram as piores práticas stalinistas. Assim, a ação repressiva serve como motivo para que boa parte da intelectualidade de esquerda reveja seu apoio à Revolução Cubana. Pode-se considerar que a questão se coloca em termos de se enfatizar a dimensão crítica ou revolucionária da atividade intelectual. Em termos não tão diferentes da disputa entre a revista da Casa de las Américas e a Mundo Nuevo, os que defendem o poeta argumentam que o intelectual deve valorizar especialmente sua independência diante dos poderes constituídos, ao passo que aqueles que optam pela Revolução privilegiam seu compromisso com a transformação da sociedade (Gilman, 2003GILMAN, Claudia. 2003. Entre la pluma y el fusil: debates y dilemas del escritor revolucionario en américa latina. Buenos Aires: Siglo XXI.).7 7 Já Che Guevara, em El socialismo y el hombre en Cuba, originalmente carta enviada, em 1965, ao diretor de Marcha, Quijano, considerara que “a culpa de muitos de nossos intelectuais e artistas reside em seu pecado original: não são autenticamente revolucionários” (Guevara, 2011, p. 17). Tal falta de compromisso estabeleceria empecilhos para a criação do homem novo, grande tarefa da revolução e do socialismo. Nessa referência, o dilema de Ariel, que precisaria escolher entre Próspero e Caliban, seria, para Fernández Retamar, análogo ao dilema do intelectual latino-americano (Lie, 1997aLIE, Nadia. 1997a. Countering Caliban: Fernández Retamar and the postcolonial debate. In: LIE, Nadia; D’HAEN, Theo (org.). Constellation Caliban: figurations of a Character. Amsterdam; Atlanta: Rodopi. pp. 245-270.; Ortiz, 1999).8 8 Em termos significativos, a Declaração do Primeiro Congresso Nacional de Educação e Cultura de Cuba, realizado também em 1971, denuncia “escritores pseudorrevolucionários”, adeptos do colonialismo cultural que se comportariam como juízes da revolução. Diante da tensão entre política e cultura, defende a identificação entre as duas, argumentando que “a revolução socialista é em si a mais alta realização da cultura cubana” (Casal, 1971, p. 110). Não por acaso, o Primeiro Congresso Nacional de Educação e Cultura marca o início do chamado Quinquenio Gris, época opaca da cultura da ilha caribenha.

Em relação direta com o debate da época, o ensaio de Fernández Retamar começa por examinar a questão da existência de uma cultura latino-americana. Argumenta que pôr em dúvida a existência dessa cultura é, em termos colonialistas, pôr em dúvida a própria existência da América Latina, como fariam intelectuais alinhados ao centro capitalista. Na verdade, colonialistas não conseguiriam, ou não desejariam, ver nossa realidade como mais do que uma emanação “daquilo que acontece em outro lugar […] as metrópoles, os centros colonizadores” (Fernández Retamar, 1971FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 1971. Calibán. Casa de las Américas, La Habana, n. 68, pp. 124-151., p. 124).

Num sentido mais amplo, a identificação que propõe Fernández Retamar de “Calibán” com a América Latina se relaciona com o “terceiro-mundismo” do período em que o ensaio foi escrito. De maneira sugestiva, ainda se sentia então, segundo seu autor Fernández Retamar (2005FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 2005. Todo Caliban. Buenos Aires: Clacso.), o clima dos anos 1960. Significativamente, a Revolução Cubana pode até ser tomada, de acordo com Frederic Jameson (1985JAMESON, Fredric. 1985. A very partial chronology. In: SAYRES, Sohnya; STEPHANSON, Anders; JAMESON, Fredric; ARONOWITZ, Stanley (org.). The 60s without apology. Minneapolis: The University of Minnesota Press.), como marco do início dos anos 1960.9 9 Como argumenta o crítico norte-americano, a origem daquele momento histórico seria “terceiro-mundista”, tendo sua raiz na anterior descolonização da África e da Ásia: “os 1960 foram, então, o período em que todos esses ‘nativos’ se tornaram seres humanos, tanto interna como externamente” (Jameson, 1985, p. 181). Tal mudança valeria para os colonos externos, “nativos oficiais”, e para os colonos internos do Primeiro Mundo, minorias, marginais, mulheres etc. Talvez o mais forte nessa época histórica tenha sido a sensação de que “tudo era possível” (Gilman, 2003GILMAN, Claudia. 2003. Entre la pluma y el fusil: debates y dilemas del escritor revolucionario en américa latina. Buenos Aires: Siglo XXI.; Jameson, 1985). Ligado a tal sentimento, o fim de tal período pode ser identificado com o bloqueio das expectativas revolucionárias. Se, numa referência latino-americana, o golpe no Chile que derruba, em 1973, o governo de Salvador Allende, é um sinal inequívoco de um novo momento, a institucionalização da Revolução Cubana também não deixa de ser indício da perda do ímpeto revolucionário da ilha caribenha, situação com que, de alguma forma, “Calibán” também pode ser identificado.

Ligado ao ambiente político da época, Fernández Retamar toma, no seu ensaio de 1971, a transformação social, que identifica com o intelectual orgânico à maneira de Gramsci, como principal critério de avaliação da atividade de escritores e artistas, em vez da crítica, como em Sartre. Assim, se boa parte daqueles que escreveram a Fidel se viam como intelectuais críticos, sugere que se comportariam, na verdade, como intelectuais tradicionais. Ou seja, no contexto do “caso Padilla”, “Calibán” propõe uma leitura da cultura latino-americana basicamente em termos de oposições (Chanady, 2000CHANADY, Amaryll. 2000. El discurso calibanesco y la conceptualización de la diferencia. In: SKLODOWSKA, Elzbieta; HELLER, Ben A. (org.). Roberto Fernández Retamar y los estudios latinoamericanos. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana. pp. 237-255.; Lie, 1997bLIE, Nadia. 1997b. Calibán en contrapunto: reflexiones sobre un ensayo de Roberto Fernandez Retamar (1971). América: Cahiers du CRICCAL, Paris, n. 18, t. 2, p. 573-585.).

Exemplos de intelectuais tradicionais seriam Sarmiento, Jorge Luis Borges e Carlos Fuentes. Isto é, Fernández Retamar cria uma família de intelectuais que estariam prontos a servir a Próspero e aos colonizadores. O autor de Facundo parece ser selecionado principalmente devido à sua conhecida dicotomia: civilização e barbárie. Já o autor de Aleph, de quem Rodríguez Monegal era próximo, é tomado como talvez o maior exemplo de intelectual colonial, que conhece a cultura da metrópole ainda melhor do que os intelectuais que de lá provém e cujo ambiente natural, em termos livrescos, seria a biblioteca ou o museu.10 10 De forma sugestiva, um crítico brasileiro, Silviano Santiago, num ensaio também escrito em 1971, “O entre lugar da literatura latino-americana”, define o escritor latino-americano como “o devorador de livros de que os contos de Borges nos falam com insistência” (Santiago, 1978, p. 27). Também de maneira semelhante a Fernández Retamar, mas com avaliação muito diferente, considera que a literatura da região brincaria com os signos de uma cultura ocidental, à qual pertenceria e não pertenceria. Por fim, evoca como exemplo de como proceder a antropofagia oswaldiana. Por sua vez, o comportamento de Fuentes no “caso Padilla” revelaria, de maneira mais direta, que seus verdadeiros compromissos não seriam com o povo latino-americano. Esse autor - antes referência para a revista Mundo Nuevo - apesar de usar uma linguagem de esquerda, estaria realmente ligado à cultura do colonizador.

No entanto, existiria também uma genealogia de intelectuais orgânicos que, à maneira de Martí e Che Guevara, teriam decidido se unir à Caliban, ao povo latino-americano.11 11 Num sentido mais amplo, Martí e Guevara aparecem como exemplos de intelectuais para a revista Casa de las Américas. De acordo com levantamento realizado por Lie (1996), os autores mais citados nos editoriais da publicação entre os nº 31 e 50, são Guevara (doze) e Martí (oito vezes), ou seja, vinte de 41 citações. Representativo da visão a respeito da relação entre intelectual e político é um artigo da Graziella Pogolotti sobre o Che escritor, em que se insiste na unidade entre sua vida e obra, o que se expressaria “na frase, muitas vezes breve”, em que “exerce seu domínio absoluto o verbo, vale dizer, a ação” (Pogolotti, 1968, p. 156). Aquilo que Fernández Retamar defende fica mais claro no fim de seu ensaio com a citação de um discurso de Guevara, de dezembro de 1959, quando o revolucionário recebeu o título de professor honoris causa da Universidade Las Villas e proclamou: “é preciso pintar-se de negro, de mulato, de operário e de camponês; é preciso descer ao povo, é preciso vibrar com o povo: quer dizer, as necessidades todas de Cuba inteira” (Fernández Retamar, 1971FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 1971. Calibán. Casa de las Américas, La Habana, n. 68, pp. 124-151., p. 151). No entanto, não é difícil de perceber, pelo trecho, que o apelo para que o intelectual se junte ao povo tem sérias limitações, já que a fusão nunca é completa, e o intelectual só pode, no máximo, representar o povo.

Num marco maior, não deixa de ser significativo que Cuba tenha um papel decisivo em momentos fundamentais para o desenvolvimento da identidade latino-americana; em especial, o da Guerra Hispano-Americana de 1898 e o da Revolução Cubana. Talvez a própria situação de fronteira cultural do Caribe - região em que se fala espanhol, mas também francês, inglês, holandês e creole - tenha contribuído para a afirmação da identidade latino-americana. É verdade que as Américas Latinas pensadas na passagem do século XIX para o século XX e na década de 1960 eram bastante diferentes; a primeira sendo amparada na ideologia elitista do “latinismo”, a segunda no “terceiro-mundismo” revolucionário. Por outro lado, pode-se perceber, subjacente aos distintos períodos, um anti-imperialismo voltado especialmente contra os EUA, país cujo papel no Caribe tem sido especialmente sentido nos últimos três séculos.

Em termos mais positivos e em resposta à questão com que abre seu ensaio, Fernández Retamar defende que a partir do povo mestiço se formaria a cultura latino-americana. Ao reivindicar a mestiçagem - o que é bastante comum na América Latina, como exemplificariam Simón Bolívar e José Vasconcelos - o cubano, como veremos, se afasta do martiniquense Aimé Césaire e de outros escritores da negritude. Mais importante, se evidenciam aí as maiores limitações do argumento de “Calibán”. De maneira não muito diferente de uma formulação bastante difusa, a América Latina é entendida em termos essencialistas e até raciais: “uma vasta zona onde a mestiçagem não é um acidente, mas a essência, a linha central: nós, ‘nossa América mestiça’” (Fernández Retamar, 1971FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 1971. Calibán. Casa de las Américas, La Habana, n. 68, pp. 124-151., p. 125). Mais importante, da mestiçagem seria forjada uma autêntica cultura latino-americana. Ou seja, o raciocínio do escritor revolucionário se dá nos mesmos termos do de escritores anteriores: a cultura latino-americana como uma essência que se expressa em termos raciais.12 12 No posfácio de 1993, o autor de “Calibán” demonstra irritação com sua associação com visões racialistas a respeito da mestiçagem, argumentando que sua concepção de mestiçagem seria sobretudo cultural. Reivindica assim sua dívida com o antropólogo cubano Fernando Ortiz. Todavia, o criador do conceito de “transculturação” não é citado no ensaio de 1971. Ver: Fernández Retamar, 1993, 2005.

Esta cultura deveria - ao provir de um povo mestiço - ser, como defendera Alfonso Reyes, uma cultura de síntese. Síntese que idealmente não seria, contudo, um ponto de chegada, mas um ponto de partida. Além do mais, diferente do que indicara o crítico mexicano, não se deveria lidar apenas com elementos europeus, mas também com indígenas e africanos. Em termos mais concretos, o caminho para a constituição de tal cultura se iniciara com a Revolução Cubana: “a data que separa a esperança de Reyes de nossa certeza” (Fernández Retamar, 1971FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 1971. Calibán. Casa de las Américas, La Habana, n. 68, pp. 124-151., p. 146).

Em outras palavras, o projeto latino-americano se confundiria com o projeto socialista, o continental assumindo, consequentemente, uma dimensão internacional. Em compensação, é possível argumentar que Fernández Retamar não deixa de ter uma visão bastante contingente da América Latina, identificada diretamente com a Revolução Cubana. É verdade que se pode defender que a própria ideia de “América Latina” esteve associada a alguns momentos privilegiados: as reações hispano-americanas, em meados do século XIX, as incursões norte-americanas ao México e à América Central; o choque, no final do século XIX, com a Guerra Hispano-Americana e a emergência dos EUA como potência; a defesa, nas primeiras décadas do século XX, da Revolução Mexicana.

Textos no contexto

O argumento de “Calibán” é construído, todo ele, em bases intertextuais. Fernández Retamar mobiliza, em especial, as leituras e usos de A Tempestade, que deram destaque ao escravo rebelde.13 13 Nessa linha, Chantel Zabus nota que, nos anos 1960, o “uso da ideia contra-hegemônica de Caliban” serve “para desestabilizar um conjunto de ideias coloniais” (Zabus, 2002, p. 9) e contribui para a perda da anterior centralidade de Próspero. A operação de dar um conteúdo positivo a um símbolo como Caliban, antes entendido negativamente, tem antecedentes em interpretações “terceiro-mundistas” de A Tempestade. É verdade que aí há, como nota Rob Nixon (1987NIXON, Rob. 1987. Caribbean and African appropriations of The Tempest. Critical Inquiry, Chicago, v. 13, n. 3, pp. 557-578.) e já tinha indicado o próprio Fernández Retamar (1971FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 1971. Calibán. Casa de las Américas, La Habana, n. 68, pp. 124-151.), uma significativa ambiguidade, já que se incorpora um texto canônico da Europa numa perspectiva anti-imperialista.

Não por acaso, a nova importância atribuída a Caliban reflete diretamente o contexto de descolonização do segundo pós-guerra. Já em 1950, o psicanalista francês Octave Mannoni publica Psychologie de la colonisation, livro relacionado à revolta de Madagascar de 1947.14 14 A revolta custou a vida de oitenta mil pessoas, além de outras vinte a trinta mil que morreram por causas indiretas, isso numa população de quatro milhões de habitantes. No entanto, o autor, que havia sido funcionário colonial por dezoito anos na ilha, de que saiu em razão de não concordar com a repressão, é quase silencioso sobre o acontecimento. Sobre Mannoni, ver sobretudo: Bloch, 1997; Vatin, 2011. Ressalta, entretanto, que algumas de suas conclusões sobre essa experiência particular poderiam ser generalizadas. Assim, o trabalho chama a atenção para o que nomeia de situação colonial. Nela, procura prestar especial atenção, em termos que deseja não serem essencialistas, ao encontro entre personalidades, em que “o nativo se torna o colonizado e o europeu o colonizador” (Mannoni, 1966MANNONI, Octave. 1966. Prospero and Caliban: the psychology of colonization. New York: Frederick Praeger Publishers., p. 17). A partir daí, apareceria um complexo de dependência na relação entre o nativo da colônia e o colonizador, formulação que é inspirada na análise do que Alfred Adler chamou de complexo de inferioridade. De maneira que considera até surpreendente, Mannoni avalia que os traços de personalidade do colonizador e do nativo não apareceriam a partir da experiência colonial, mas estariam latentes nas suas psiques, a nova situação levando-os a se manifestar.

Fazendo uso da literatura, avalia que as narrativas de Robinson Crusoe e A Tempestade corresponderiam bem à situação colonial. Num sentido mais específico, a ficção da ilha deserta seria especialmente reveladora. Vazia de seres humanos, ela seria habitada por seres imaginários que corresponderiam a fantasias do seu criador. Ariel e Sexta-feira seriam indicação de que Próspero e Crusoe se sentiriam mais confortáveis com os produtos da sua imaginação do que com os homens e mulheres reais.

Em termos mais profundos, Mannoni considera que as coincidências entre Robinson Crusoe e A tempestade indicariam que se está na presença de arquétipos: Ariel, Sexta-feira, Caliban, os canibais. Em termos mais diretos, os países coloniais seriam “a melhor aproximação ao arquétipo da ilha deserta” (Mannoni, 1966MANNONI, Octave. 1966. Prospero and Caliban: the psychology of colonization. New York: Frederick Praeger Publishers., p. 105). Os colonizadores, em especial, se identificariam com Próspero. As personalidades dos colonizados, em compensação, não existiriam, não passando de criações do colonizador. No máximo, se poderia, como Caliban, se revoltar, mas tal ato seria “mera bestialidade” (Mannoni, 1966MANNONI, Octave. 1966. Prospero and Caliban: the psychology of colonization. New York: Frederick Praeger Publishers., p. 108).

Apesar do que desejara seu autor, a obra Psychologie de la colonisation foi mal recebida em círculos anticoloniais. Aimé Césaire respondeu a seu antigo professor do Liceu Schoelcher na Martinica em seu Discurso sobre o colonialismo, do mesmo ano, e Franz Fanon escreveu Pele negra, máscaras brancas, em 1952, em boa medida, contra aquele que havia sido seu amigo. Enquanto Mannoni acreditava ter escrito um trabalho anticolonial, seus críticos o tomam como um ideólogo do colonialismo. Aquilo que mais irrita na formulação do francês aos dois martiniquenses é a sugestão de que haveria no colonizado como um complexo de dependência latente. Em outras palavras, o que não aceitam é especialmente a ideia de que existiria uma predisposição do colonizado à submissão colonial, avaliação com que concorda Fernández Retamar. Por outro lado, Mannoni inicia uma linha de reflexão que seus críticos não deixam de levar adiante. Mais especificamente, é dos primeiros a se preocupar com a subjetividade das relações que se estabelecem no seio do que chamou de situação colonial (Vatin, 2011VATIN, François. 2011. Dépendance et émancipation: retour sur Mannoni. Revue du MAUSS, Lormont, n. 38, p. 131-148.).

Tal orientação tem impacto especialmente no Caribe. Não por acaso, como nota Fernández Retamar, o barbadense George Lamming, em The pleasures of exile (1960), o também barbadense Edward Brathwaite, num poema, “Caliban”, o martiniquense Césaire, numa peça, Une tempête, e o próprio escritor cubano, num artigo, “Cuba hasta Fidel”, todos em 1969, identificam Caliban com o Caribe. O fato de nosso autor falar de Cuba, ilha historicamente e culturalmente ligada à América Latina e geograficamente e culturalmente ao Caribe, facilita que se evoque Caliban (Nixon, 1987NIXON, Rob. 1987. Caribbean and African appropriations of The Tempest. Critical Inquiry, Chicago, v. 13, n. 3, pp. 557-578.). Em outras palavras, é possível defender, como faz Peter Hulme (2016HULME, Peter. 2016. Calibán: Roberto Fernández Retamar’s American intelligence. Small Axe, Durham, v. 20, n. 3, pp. 115-122.), que Fernández Retamar “caribaniza” aquele que fora antes um símbolo “latino”.

No contexto francófono, Césaire, assim como já fizera Mannoni, ressalta, em Une Tempête, a oposição entre Próspero e Caliban.15 15 Já nos anos 1960, inicia o projeto do Teatro Negro, meio pelo qual pode atingir um público muito maior, em que não estão excluídos nem mesmo analfabetos (Porter, 1995). A primeira peça que escreve é La tragédie du roi Christophe (1964), seguida de Une saison au Congo (1966) e concluída com Une Tempête (1969). Mas se A Tempestade narra, segundo o psicanalista, uma história de reconciliação, em que Próspero renuncia à sua magia e, no final da trama, sua filha se casa com o filho de um antigo inimigo, o decisivo na peça reescrita pelo poeta passa a ser a revolta do escravo Caliban, questão secundária na peça original.

Na verdade, a peça do século XX é bastante fiel à do século XVII, o que faz com que os contrastes entre as duas obras sejam especialmente reveladores. Se a localização da obra de Shakespeare é imprecisa, a de Césaire se situa claramente no Caribe. Especifica-se também que o escravo Caliban é negro, ao passo que o outro escravo, Ariel, é mulato, o primeiro sendo sugestivamente identificado, no contexto dos anos 1960, com Malcolm X, ao passo que o segundo é aproximado de Martin Luther King. Um novo personagem, Exu, o deus-diabo ioruba bastante conhecido não só no Caribe, mas também no Brasil, é introduzido na trama. A deidade brinca: “da desordem ele faz ordem e da ordem desordem” (Césaire, 1969CÉSAIRE, Aimé. 1969. Une Tempête. Paris: Éditions du Seuil., p. 70). Em termos formais, se a versão original é em versos, a mais recente é toda em prosa, o que tem um efeito de desestitizacão que pode tornar a denúncia do colonialismo mais eficiente. Na mesma orientação, as máscaras usadas pelos personagens servem, como em Brecht, para distanciar os espectadores do drama que assistem.

Une Tempête deve ser entendida com referência a iniciativas anteriores, com que seu autor esteve envolvido. Especialmente importante é o movimento da negritude, que Césaire, junto com o guianês Léon Gontran Damas e o senegalês Léopold Senghor, criou, na década de 1930, em Paris, cidade onde os três foram cursar estudos preparatórios para a universidade ou o ensino superior. Mais especificamente, publicam, entre 1934 e 1935, o jornal L´Étudiant Noir, em que o martiniquense elabora, pela primeira vez, o conceito de negritude. Em termos amplos, dá um sentido positivo a um termo que antes era depreciativo, tornando-o a base dos dois lados do Atlântico da identidade e orgulho para homens e mulheres de origem africana.16 16 Laurence Proteau interpreta o movimento da negritude “como espaço político identitário”, que “traduz a recusa” de uma “dominação completa - caracterizada pela conquista, escravidão, deportação, a negação cultural e espiritual, a dominação política e a exploração econômica” (Proteau, 2001, p. 15).

Em Paris, Senghor, Césaire e Damas encontram uma vibrante esfera pública negra, composta por salões literários, imprensa e organizações políticas (Wilder, 2005WILDER, Gary. 2005. The French imperial nation-state: negritude and colonial humanism between the two world wars. Chicago: The University of Chicago Press.).17 17 De maneira significativa, é na metrópole que esses escritores afirmam sua negritude, assim como Oswald de Andrade, segundo Paulo Prado, descobriu o Brasil em Paris, “umbigo do mundo”. Também de forma similar ao antropófago, contra a homogeneização colonizadora, afirmam a diferença, no caso, do “negro” em relação ao “branco”. Num sentido ainda mais semelhante à antropofagia, Césaire, no Cahier d´un retour au pays natal, de 1939, proclama: “parce que nous vous haissons vous et votre raison, nous nous réclamons de la démence precoce de la folie flambante du cannibalisme tenace” (Césaire, 1983, p. 28). (“Porque te odiamos a você e à sua razão, reivindicamos a demência precoce, a loucura vistosa, do canibalismo tenaz”). Em termos mais profundos, muitas das características do movimento da negritude provêm da política colonial francesa, que procurou assimilar uma pequena minoria nativa, ao mesmo tempo que excluía a grande maioria da população colonial. Ironicamente, a maior parte dos escritores da negritude provém da elite que deveria ser assimilada. A posição dos três fundadores da negritude não deixa, porém, de ser ambígua: “dominantes entre os dominados, eles continuam a ser dominados entre os dominantes” (Proteau, 2001PROTEAU, Laurence. 2001. Entre poetique et politique Aimé Césaire et la “negritude”. Societés contemporaines, Paris, n. 44, pp. 15-39., p. 20). Mesmo assim, rejeitam, de forma clara, a ideia de assimilação.

As ambiguidades de Césaire e do movimento da negritude também são, em grande parte, as ambiguidades dos escritores caribenhos anglófilos Lamming e Brathwaite. Membros da elite nativa, é também na metrópole que os dois barbadenses desenvolvem uma identidade caribenha que vai além da sua ilha.18 18 Essa identidade é, entretanto, basicamente masculina e afro-caribenha, não garantindo grande espaço para mulheres nem tampouco para descendentes de indianos e chineses. Ver: Donnell e Welsh, 1996. Caliban passa, assim, a ser identificado com Toussaint Louverture e a épica dos “jacobinos negros”, tal como recontada pelo trinadense C. L. R. James. Compartilham igualmente do vínculo com a cultura do colonizador por meio da educação, ou como diz o escritor mais velho: “a educação nas Índias Ocidentais era importada assim como a farinha e a manteiga eram importados do Canadá” (Lamming, 2004LAMMING, George. 2004. The pleasures of exile. Ann Arbor: University of Michigan Press., p. 27). A relação deles com a cultura europeia é igualmente ambígua; são e não são participantes nela (Donnell e Welsh, 1996DONNELL, Alison; WELSH, Sarah. 1996. Introduction. In: DONNELL, Alison; WELSH, Sarah (org.). The Routledge reader in Caribbean literature. Abingdon: Routledge. pp. 27-41.).

Esta ambiguidade é, de certa forma, o motivo por trás de The pleasures of exile (1960), livro em que, pela primeira vez, aparece a associação entre Caliban e o Caribe.19 19 Lamming reescreve depois A Tempestade em Water with berries (1971). Como afirma seu autor: “meu tema é a imigração do escritor caribenho, como um colonial e exilado do seu reino, que fora habitado por Caliban, para a tempestuosa ilha de Próspero e a sua língua” (Lamming, 2004LAMMING, George. 2004. The pleasures of exile. Ann Arbor: University of Michigan Press., p. 13). A experiência de Lamming é, em grande parte, tanto pessoal como coletiva (Hulme, 2000HULME, Peter. 2000. Reading from elsewhere: George Lamming and the paradox of exile. In: HULME, Peter; SHERMAN, William (org.). ‘The Tempest’ and its travels. London: Reaktion Books. pp. 222-237.). O escritor se muda para Londres em 1950, momento da primeira grande onda de imigração caribenha para a Grã-Bretanha que, no imediato segundo pós-guerra, se dirige à “mãe pátria” com grandes expectativas, logo desmentidas.

Nessa referência, considera que não há melhor espaço para tratar do exílio que a ilha, como a da peça de Shakespeare. No caso, tanto Caliban como Próspero seriam exilados. No entanto, antes do desterro do escritor colonial na metrópole, houve o exílio africano, a viagem de Sycorax grávida para a ilha de A Tempestade, equivalendo à travessia do oceano atlântico por navios negreiros. Mesmo assim, o senhor absoluto da ilha criaria novos laços com o escravo “selvagem e deformado” ao lhe ensinar sua língua, o que equivaleria à maior realização do processo de colonização. Nesse sentido, Lamming considera que “não há escapatória da prisão de Próspero” (Lamming, 2004LAMMING, George. 2004. The pleasures of exile. Ann Arbor: University of Michigan Press., p. 109). Por outro lado, Caliban, ao aprender a língua de seu mestre, faria com que ela deixasse de ser apenas dele.

O personagem de A Tempestade volta a ser associado ao Caribe no poema “Caliban” de Brathwaite. O poema aparece no livro Islands (1969), parte, junto com Rights of passage (1967) e Masks (1968), da trilogia The Arrivants (1973), que trata não do exílio do escritor caribenho na metrópole, mas da anterior diáspora africana na América (Doumerc, 2014DOUMERC, Eric. 2014. Caliban playing pan: a note on The Metamorphoses of Caliban in Edward Kamau Brathwaite’s Caliban. Caliban, Marseille, n. 52, pp. 239-250.; Zabus, 2002ZABUS, Chantal. 2002. Tempests after Shakespeare. New York: Palgrave Macmillan.). A primeira seção de “Caliban” se fecha mencionando a data do desembarque do navio Granma em Cuba, 2 de dezembro de 1956, junto com a data da abolição da escravidão do Caribe britânico, 1 de agosto de 1838, e a data da chegada de Colombo a essas ilhas, 12 de outubro de 1492. Isto é, ao nomear tais datas, vincula três momentos chave da história caribenha.

Já Caliban, depois de tocar panelas de aço no Carnaval, como ocorre em Trinidad, dança limbo. Essa dança-jogo - em que se deve passar por uma barra cada vez colocada em posição mais baixa - virou uma atração turística. No entanto, sua origem vem dos navios negreiros, quando, em meio a corpos amontoados, se realizava desafio similar. Transcendendo tal situação, Brathwaite (1981BRATHWAITE, Edward. 1981. The arrivants: a new world trilogy. Oxford: Oxford University Press.) sugere que o personagem shakespeariano, ao dançar, se libertaria, o que acontece ao refrão do calipso: “limbo like me” (Griffith, 2010GRIFFITH, Paul. 2010. Afro-Caribbean poetry and ritual. London: Palgrave Macmillan.).

O “Calibán” de Fernández Retamar compartilha com outras leituras e usos terceiro-mundistas de A Tempestade a ênfase no “escravo selvagem e deformado” da peça. Também como Césaire, Lamming e Brathwaite se voltam contra a primeira dessas interpretações, a do francês Mannoni, que sugere existir um “complexo de dependência” em Caliban e, de maneira geral, no colonizado. Em compensação, os caribenhos fazem questão de valorizar positivamente o “escravo selvagem e deformado”. Mas enquanto o martiniquense e os barbadenses identificam Caliban como negro, Fernández Retamar prefere vê-lo, de maneira mais indefinida, como latino-americano.

Textos na tradição

Se “Calibán” é construído com base no diálogo com outros textos, é possível identificar como especialmente importante para Fernández Retamar interpelar trabalhos do modernismo hispano-americano. Nessa referência, o poeta e crítico cubano confronta especialmente escritores como o franco-argentino Paul Groussac e o uruguaio José Enrique Rodó que, em meio à emergência dos EUA como potência, valorizaram a chamada civilização latina, supostamente ameaçada dos dois lados do Atlântico. A partir daí, os EUA seriam aproximados de Caliban e a região que começava a ser conhecida como América Latina do gênio alado Ariel. A importância do escritor uruguaio para o escritor cubano se percebe até porque o que defende é elaborado, em boa medida, em contraste com a formulação de seu antecessor: “nosso símbolo, então, não é Ariel, como pensou Rodó, mas Calibán” (Fernández Retamar, 1971FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 1971. Calibán. Casa de las Américas, La Habana, n. 68, pp. 124-151., p. 131). Em outras palavras, a partir dessa reação pode se sugerir uma identidade alternativa para a América Latina.

Para além do arielismo, pode-se considerar que Fernández Retamar intervém no debate modernista a partir da perspectiva de Martí (Fernández Retamar (1993FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 1993. Ángel Rama y la Casa de las Américas. Casa de las Américas, La Habana, n. 192, pp. 178-196., 2005FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 2005. Todo Caliban. Buenos Aires: Clacso.; Hulme, 2016HULME, Peter. 2016. Calibán: Roberto Fernández Retamar’s American intelligence. Small Axe, Durham, v. 20, n. 3, pp. 115-122.). Ou melhor, o poeta mais jovem tomaria o ponto de vista do poeta mais velho, assumindo posições que ele poderia ter adotado se tivesse discutido com seus companheiros de geração, Groussac, Darío e Rodó. Até porque a visão do autor de “Nuestra América” contrasta com sua época, marcada pelo evolucionismo, ao recusar, por exemplo, termos como “raça” e não tomar a Europa como modelo.

Apesar das suas diferenças com Rodó, Fernández Retamar concorda com a avaliação do também escritor uruguaio Mario Benedetti que Rodó, mesmo tendo errado ao dar nome ao perigo, acertou em identificar de onde ele viria. Na referência crítica aos EUA, o autor faria parte de uma verdadeira linhagem latino-americana, em que estariam incluídos Simón Bolívar, Francisco Bilbao e José Martí, além de, significativamente, escritores brasileiros, como Sousândrade e José Veríssimo. Além disso, o arielismo teria estimulado o latino-americanismo mais radical da geração posterior, como a do pioneiro do comunismo cubano Julio Mella. O crítico e poeta cubano realiza, portanto, uma espécie de apropriação revolucionária de textos da tradição latino-americana (Bonfiglio, 2014BONFIGLIO, Florencia. 2014. Correspondencias latinoamericanistas: una relectura de Calibán de Fernández Retamar. CELEHIS, Mar del Plata, a. 23, n. 28, pp. 65-83.).

Levando adiante o jogo intertextual, ao identificar a América Latina não mais com Ariel, mas com Caliban, Fernández Retamar muda o próprio significado de Próspero. O mago deixa de ser o intelectual, como em Renan e Rodó, para passar a ser identificado com o colonizador, como em Mannoni, Césaire, Lamming e Brathwaite. O que mais destaca nos EUA, por sua vez, não são mais seu materialismo e utilitarismo, como fizeram os arielistas, mas sua posição de poder, análoga à do colonizador Próspero. Já a América Latina deixa de ser a herdeira da cultura clássica europeia para passar a se identificar com Caliban. Finalmente, Ariel, como no comunista argentino Aníbal Ponce se torna o intelectual, que precisa escolher a que mestre servir: Próspero ou Caliban. Nessa referência, Che Guevara é identificado com um Ariel moderno, que faria o que o gênio alado deveria ter feito na peça de Shakespeare, se ligando a Caliban, ao povo (Jáuregui, 2008JÁUREGUI, Carlos. 2008. Canibalia: canibalismo, calibanismo, antropofagia cultural y consumo en américa latina. Madrid: Iberoamericana editorial.).20 20 O próprio crítico e poeta cubano, em texto posterior a “Calibán”, sugere a associação, lembrando “Ernesto Che Guevara, o mais calibanesco dos Arieles que pessoalmente conheci e amei” (Fernández Retamar, 2005, p. 140).

Ao tomar partido pelo “escravo selvagem e deformado”, Fernández Retamar propõe uma “dialética de Caliban”, em que sua antítese não é mais Ariel, mas Próspero. Na verdade, tanto Caliban como Ariel não passariam de servos de Próspero, com a diferença que o primeiro seria “o rude e rebelde dono da ilha”, ao passo que o segundo, “criatura aérea, embora também seja um nativo da ilha, representa o intelectual” (Fernández Retamar, 1971FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 1971. Calibán. Casa de las Américas, La Habana, n. 68, pp. 124-151., p. 133). Ou seja, no contexto da Revolução Cubana e não mais da Guerra Hispano-Americana, na “dialética de Caliban”, não se pensa mais numa síntese com Ariel, realizada por Próspero, mas sim que Ariel deve se identificar com Caliban, em outras palavras, o intelectual tem que se ligar ao povo. Portanto, não há propriamente dialética - nem mesmo de senhor e escravo - mas oposição entre Caliban e Próspero, o que é similar à relação pensada por Mannoni, Césaire e Lamming sobre os dois personagens shakespearianos.21 21 No entanto, a solução da oposição é diferente daquela imaginada por Une Tempête, em que Próspero, ao final da peça, fica na ilha com Caliban.

Nesse marco e para além de A Tempestade, Fernández Retamar recorre ao pensamento latino-americano ainda na perspectiva de Martí e interpela Sarmiento. Sugere que na sua famosa antinomia - civilização e barbárie - já se esconderia o dilema Próspero ou Caliban. O revolucionário cubano, em termos contrastantes, perceberia que a presumida batalha não passaria do combate entre a “falsa erudição” e a “natureza”. Mas é especialmente importante para “Calibán”, como destaca Juan Carlos Quintero Herencia (2000HERENCIA, Juan Carlos Quintero. 2000. El espacio de la maldición: escenográficas del Calibán de Roberto Fernández Retamar. pp. 55-87. SKLODOWSKA, Elzbieta; HELLER, Ben A. (org.). Roberto Fernández Retamar y los estudios latino-americanos. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, Universidad de Pittsburgh.), lidar com a questão do “enigma”, já mobilizado por Facundo e retomado por “Nuestra América”. Se o escritor do século XIX quer resolver o enigma de seu país em termos de civilizar a barbárie, isto é, defendendo que a Argentina seja europeizada, os cubanos desejam que a América Latina, de maneira semelhante ao que fariam Fanon e a Revolução Cubana, assuma o ponto de vista da “barbárie”, que não passaria do oprimido, tal como representado pela “civilização”. Ou, em outros termos, a América Latina deveria se identificar com Caliban. Tal opção tem relação, por sua vez, com a ideia da América Latina que a Revolução Cubana ajuda a criar.

Não por acaso, a crítica de Rodríguez Monegal a Fernández Retamar visa especialmente a imagem da América Latina favorecida pelo cubano. Significativamente, a maior parte do artigo do uruguaio é dedicada a defender que “Calibán” faria uma leitura equivocada e superficial de Ariel, até porque o ensaio de 1971 buscaria atualizar o ensaio de 1900, sugerindo que os EUA ainda seriam a fonte dos principais males de seus vizinhos.22 22 Segundo Pablo Rocca (2006), já em Marcha haveria aqueles que ressaltariam o anti-imperialismo de Rodó, como Arturo Ardao e Benedetti, e outros, como Rodríguez Monegal, que o viam principalmente como um pioneiro da crítica literária uruguaia. Quanto a Rodó, o editor das suas obras completas argumenta que seu projeto arielista corresponde basicamente à tradução para a América Latina de concepções de intelectuais franceses, como Ernest Renan e Alfred Fouillée.

Em termos contrastantes, o canibalismo cultural de Oswald de Andrade ofereceria uma alternativa mais interessante para a identidade latino-americana. Em vez de simplesmente copiar intelectuais franceses, o brasileiro indicaria que se poderia absorver e transformar diferentes influências. Num sentido mais específico, o crítico uruguaio argumenta que o antropófago defenderia “a frutífera noção de que o carnaval seria a chave para a transformação da sociedade” (Rodríguez Monegal, 1977RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. 1977. The metamorphosis of Caliban. Diacritics, Baltimore, v. 7, n. 3, p. 78-83., p. 82), tendo significativamente indicado essa possibilidade, em seu “Manifesto Antropófago”, de 1928, quase coincidindo com Mikhail Bakhtin.23 23 Pouco depois, Rodríguez Monegal (1979) indica como a interpretação de Haroldo de Campos a respeito da utilização por parte de Oswald de noções de paródia e de carnavalização, o influenciaram. Não por acaso, o crítico uruguaio, filho de pai brasileiro e bom conhecedor de literatura brasileira, passara, no final dos anos 1970, a vir com certa frequência ao Rio e a São Paulo, onde ministrou cursos e se tornou amigo dos irmãos Campos (Rocca, 2006).

Ou seja, quase dez anos depois de deixar de ser editor de Mundo Nuevo, Rodríguez Monegal retorna à sua polêmica com Fernández Retamar, sugerindo que a identificação da América Latina com Caliban não seria suficientemente radical. Se, na década de 1960, não havia espaço para a publicação que editara em Paris, bombardeada pela revista da Casa de las Américas e por boa parte da esquerda da região, nos anos 1970, o uruguaio vai à forra. Sugere que a visão da América Latina do cubano não iria além da tradição intelectual da região, tal como expressa por Rodó. Por sua vez, o editor das suas obras completas avalia, de acordo com um já secular mal-estar latino-americano, que o autor de Ariel basicamente copiaria elaborações europeias. Em termos contrastantes, destaca a originalidade da antropofagia do brasileiro Oswald de Andrade, confirmada pela afinidade de suas formulações com o dialogismo bakhtiano, sugestivamente recém-descoberto na Europa.

Caliban no Brasil

Desde a publicação de “Calibán”, em 1971, Fernández Retamar foi convidado, em diversas ocasiões, a tratar do personagem shakespeariano.24 24 Tal situação leva o crítico e poeta cubano a considerar que Caliban se tornou, em alguma medida, seu Próspero, no sentido de escravizá-lo e despojá-lo do “meu magro ser” (Fernández Retamar, 2005, p. 76). Diz, consequentemente, ter tentado, de maneira inútil, se livrar do seu senhor, tendo até intitulado a versão para a revista de Casa de las Américas do posfácio à edição japonesa do seu mais conhecido ensaio de “Adiós a Caliban”. Um dos pontos mais interessantes dessas sucessivas revisitações ao “escravo selvagem e deformado” é como o autor trata de fazer retificações a seu trabalho original que refletem, em grande parte, mudanças no ambiente político-cultural mais amplo. Nessa referência, são reveladores os acréscimos na relação de latino-americanos e caribenhos que poderiam ser identificados com Caliban. Se eles são originalmente, de maneira geral, homens, sobretudo literatos e políticos, na edição do Todo Caliban se procura incorporar mulheres, negros e indígenas (Chanady, 2000CHANADY, Amaryll. 2000. El discurso calibanesco y la conceptualización de la diferencia. In: SKLODOWSKA, Elzbieta; HELLER, Ben A. (org.). Roberto Fernández Retamar y los estudios latinoamericanos. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana. pp. 237-255.; Jáuregui, 2008JÁUREGUI, Carlos. 2008. Canibalia: canibalismo, calibanismo, antropofagia cultural y consumo en américa latina. Madrid: Iberoamericana editorial.).

Algo de comparável se dá com brasileiros. Se em 1971 eles são três entre quarenta Calibanes latino-americanos, em 1995 eles passam a ser onze entre 88 nomes da linhagem criada por Fernández Retamar, ainda um número minoritário, mas indiscutivelmente mais representativo.

Darcy Ribeiro também aparece, desde a edição de Calibán y otros ensayos (1979), junto com Yves Lacoste, na primeira nota de rodapé do ensaio. Se o geógrafo francês é mobilizado pela questão do subdesenvolvimento, recorre-se ao único brasileiro citado por Fernández Retamar em razão da tipologia que elabora a respeito dos povos extra europeus. Tal classificação, bastante polêmica, é formulada em As Américas e a civilização (1969), livro que faz parte da série de estudos de Antropologia da Civilização, escrito sobretudo no exílio uruguaio (1964-1968).25 25 Compõem os estudos: O processo civilizatório (1968), As Américas e a civilização (1969), O dilema da América Latina (1971), Os índios e a civilização (1970) e Os brasileiros: teoria do Brasil (1969). Ver: MATTOS, 2007.

Dentro de um esquema evolucionista, Darcy pensa a existência de quatro tipos de povos não-europeus: os povos testemunhos, os povos novos, os povos transplantados e os povos emergentes. Os povos testemunhos seriam “representantes modernos de velhas civilizações autônomas, sobre as quais se abateu a expansão europeia” (Ribeiro, 2007RIBEIRO, Darcy. 2007. As Américas e a civilização: processo de formação e causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos. São Paulo: Companhia das Letras., p. 78). Se encontrariam em tal situação o México, a Guatemala e o Altiplano Andino, sobreviventes das civilizações asteca, maia e incaica. Já os povos novos seriam “antecipações do que virão a ser, provavelmente, os grupos humanos de um futuro remoto, cada vez mais mestiçados e aculturados e, desse modo, uniformizados racial e culturalmente” (Ribeiro, 2007RIBEIRO, Darcy. 2007. As Américas e a civilização: processo de formação e causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos. São Paulo: Companhia das Letras., p. 82). Essa categoria - de alguma maneira aparentada com a “raça cósmica” de Vasconcelos - corresponderia tanto a países com maior presença africana, como o Brasil, a Venezuela, a Colômbia e as Antilhas, como com maior presença indígena, como o Chile e o Paraguai. Finalmente, os povos transplantados seriam o resultado da migração de grandes contingentes da população do Velho Mundo para o Novo Mundo, onde procurariam replicar a cultura europeia. Esse seria o caso dos EUA, do Canadá, do Uruguai e da Argentina.

Não é difícil de perceber que Darcy e, provavelmente, também Fernández Retamar, coloca suas esperanças de revolução social latino-americana, especialmente nos povos novos, que em razão de não estarem presos a nenhuma tradição poderiam abrir caminho para outro modo de vida. Em compensação, o crítico e poeta cubano tem uma certa dificuldade de lidar com o que o antropólogo brasileiro chama de povos testemunhos. O problema aparece, por exemplo, na questão da língua. “Calibán” ressalta como a maldição do “escravo selvagem e deformado” é feita na língua de Próspero. Isto é, em termos que remetem a Lamming e Césaire, indica que a própria identidade do colonizado é dada nos termos do colonizador. No caso especial de latino-americanos, diferentemente de outros povos colonizados, como asiáticos e africanos, nossa língua e, consequentemente, nossos instrumentos conceituais seriam os mesmos dos colonizadores. Por outro lado, como lembram Sklodowska e Heller (2000SKLODOWSKA, Elzbieta; HELLER, Ben A. (org.). 2000. Roberto Fernández Retamar y los estudios latino-americanos. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, Universidad de Pittsburgh.), isso não acontece para boa parte dos povos indígenas da América Central e da América Andina, que fazem questão de manter sua língua até como forma de resistência.

Numa referência mais concreta, os estudos de Antropologia da Civilização de Darcy são produto do “desastre político” (Ribeiro, 1980RIBEIRO, Darcy. 1980. Os brasileiros: teoria do Brasil. Petrópolis: Vozes., p. 10) que se abateu sobre o Brasil em 1964. O ex-ministro-chefe do Gabinete Civil, como outros nomes importantes ligados ao governo deposto pelo golpe - casos do presidente João Goulart e do ex-governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola - se exila no Uruguai (Coelho, 2010COELHO, Haydée R. 2010. A biblioteca de Darcy Ribeiro, “Espaço biográfico” e a interlocução latino-americana. Aletria: revista de estudos da literatura, Belo Horizonte, v. 20, n. 2, pp. 69-79.; Rollemberg, 1999ROLLEMBERG, Denise. 1999. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record.). Em termos mais amplos, para o país vizinho vai boa parte das lideranças do movimento popular anterior ao golpe.26 26 O autor de Maíra não esconde a dificuldade da experiência: “pra sofrer o degredo é preciso ter muito caráter, coisa que não tenho. Sofri à minha maneira, sem exageros” (Ribeiro, 1977, p. 13). Darcy, depois de voltar, em 1968, do exílio, na esperança de que houvesse uma liberalização do regime autoritário, logo frustrada pelo Ato Institucional nº5 (AI-5) que o leva brevemente à prisão, passa por Venezuela, Chile e Peru, até retornar definitivamente ao Brasil, em 1976. Os projetos de reformas universitárias nos diferentes países em que vive fazem com que se valorize a experiência inovadora na educação superior do criador da Universidade de Brasília (UnB) (Bomeny e Josiowicz, 2017BOMENY, Helena; JOSIOWICZ, Alejandra. 2017. O exílio de Darcy Ribeiro e Ángel Rama: intelectuais, cultura e política na América Latina. Interseções, Rio de Janeiro, v. 19, n. 2, pp. 320-346.).

Para Darcy, por sua vez, o exílio representa principalmente a descoberta da América Latina (Bomeny e Josiowicz, 2017BOMENY, Helena; JOSIOWICZ, Alejandra. 2017. O exílio de Darcy Ribeiro e Ángel Rama: intelectuais, cultura e política na América Latina. Interseções, Rio de Janeiro, v. 19, n. 2, pp. 320-346.; Coelho, 2010COELHO, Haydée R. 2010. A biblioteca de Darcy Ribeiro, “Espaço biográfico” e a interlocução latino-americana. Aletria: revista de estudos da literatura, Belo Horizonte, v. 20, n. 2, pp. 69-79.). Como percebe seu grande amigo uruguaio Rama:

Apesar de pertencer ao comum denominador América Latina, tem sido pouco usual a comunicação cultural ou política entre o Brasil e seus vizinhos. Estes intelectuais descobriram a existência da América Hispânica, não apenas nas suas singularidades políticas como também nas suas formas culturais: Mario Pedrosa no Chile, Ferreira Gullar em Buenos Aires, Darcy Ribeiro em Montevidéu, Francisco Julião no México, se, por um lado, se tornaram embaixadores de uma cultura ignorada perante grupos politicamente afins, por outro lado, realizaram experiências culturais desconhecidas. (Rama, 1978RAMA, Ángel. 1978. La riesgosa navegación del escritor exiliado. Revista de la Universidad de México, Ciudad de México, n. 9, p. 1-10., p. 4).

O autor de As Américas e a civilização se aproxima especialmente de intelectuais como Rama, Fernández Retamar e os mexicanos Leopoldo Zea e Pablo Gonzáles Casanova. Os cinco participam de projetos comuns, como os Cuadernos de Cultura Latinoamericana, publicados a partir de 1978 pela Universidade Autônoma do México (Unam) e dirigidos por Zea. A coleção, que reúne textos chaves da América Latina, é um marco do pensamento da região, composto de cem números, com dez mil exemplares, sendo editados ao longo da sua existência (Zea, 1978ZEA, Leopoldo. 1978. Presentación. In: BOLIVAR, Simon. Carta de Jamaica. Ciudad de México: UNAM. pp. 3-7.; 1995ZEA, Leopoldo. 1995. Prólogo. In: ZEA, Leopoldo (org.). Fuentes de la cultura latinoamericana. Ciudad de México: FCE. p. 7-10.).27 27 A partir de 1991 os Cuadernos ganham forma de livro, na coleção Fuentes de la cultura latino-americana, do Fondo de Cultura Económica. Antes, em 1975, Rama organiza, sob patrocínio do governo venezuelano, a coleção Biblioteca Ayacucho, que reúne alguns dos livros mais importantes produzidos na América Latina. Ambas as iniciativas contam com apoio da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), que procura estimular a integração latino-americana (Zea, 1978; 1995). Darcy e Antonio Candido são os responsáveis pela escolha dos títulos brasileiros da Biblioteca Ayacucho (Bomeny e Josiowicz, 2017; Coelho, 2010). Significativamente, Darcy é citado em Cuadernos escritos por Zea, Gonzáles Casanova e Fernández Retamar (Coelho, 2010COELHO, Haydée R. 2010. A biblioteca de Darcy Ribeiro, “Espaço biográfico” e a interlocução latino-americana. Aletria: revista de estudos da literatura, Belo Horizonte, v. 20, n. 2, pp. 69-79.). Mais especificamente, em “Nuestra América y el Occidente” (1978), o crítico e poeta cubano discute a tipologia de povos extra europeus, elaborada pelo antropólogo brasileiro e que volta a citar, um ano depois, em Calibán y otros estudios.

Darcy, por sua vez, já de volta do exílio, como uma espécie de embaixador do latino-americanismo, escreve o Prefácio à edição brasileira de Caliban e outros estudos. Nas suas três páginas, fala especialmente de Fernández Retamar: “o mais parecido que se pode pedir de um Quixote: sem deixar de ser dionisiacamente caribenho” (Ribeiro, 1988RIBEIRO, Darcy. 1988. Prefácio. In: FERNÁNDEZ RERAMAR, Roberto. Caliban e outros ensaios. São Paulo: Busca Vida. pp. 07-09., p. 7). Isto é, destaca, desde o início de seu texto, a presença de qualidades contrastantes no agora diretor da Casa de las Américas. Apesar de seu posto, não seria um intelectual burocrata, talvez até em razão de sua vinculação com as promessas utópicas da Revolução Cubana. Não há, porém, muita dúvida que o autor de “Calibán” é associado especialmente à Revolução Cubana, tomada, com suas realizações sociais, como a prova de que a América Latina seria viável.

Caliban e outros estudos sai por uma editora de existência efêmera, a Busca Vida, que, no final da década de 1980, publica especialmente títulos de esquerda. Com o livro, publicado no contexto do restabelecimento de relações diplomáticas entre Brasil e Cuba, há, de certa maneira, o encontro das duas “gerações” do exílio brasileiro de que fala Denise Rollemberg (1999ROLLEMBERG, Denise. 1999. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record.). Se Darcy (nascido em 1922) é o autor do Prefácio, Emir Sader (nascido em 1943) o traduziu, junto com Maria Elena Matta Hiriart. Sader, um dos fundadores da Organização Marxista Revolucionária - Política Operária (Polop), saiu do Brasil com a intensificação da repressão, depois da decretação do AI-5, tendo vivido seus últimos anos de exílio em Cuba (Martins, 2011MARTINS, Carlos Eduardo. 2011. Emir Sader. Boitempo Editorial. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3H98q0U . Acesso em: 23 jan. 2021.
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). Significativamente, desde então, é um dos maiores promotores da Revolução Cubana no Brasil.

É também o exílio latino-americano que aproxima Augusto Boal de Caliban. Depois de ser preso e torturado, em 1971, parte para a Argentina, que vive o fim da ditadura de Alejandro Lanusse. Fica em Buenos Aires até 1976 - um pouco antes de ocorrer um novo golpe - quando se refugia primeiro em Lisboa e depois em Paris, retornando ao Brasil já depois da Anistia, em 1986.28 28 Assim como Darcy, o diretor e dramaturgo sente a dureza do exílio: “na minha terra eu fazia diferença, mesmo mínima. Em Buenos Aires nenhuma! Me sentia invisível” (Boal, 2000, p. 289). Como o antropólogo, o exílio estimula o latino-americanismo do teatrólogo, que acreditava que “algo muito importante está acontecendo na América Latina. A ideia bolivariana de Pátria Grande parece depender agora da nossa geração” (Boal, 1979BOAL, Augusto. 1979. Técnicas latino-americanas de teatro popular. São Paulo: Editora HUCITEC., p. 89).29 29 No período que mora na Argentina, escreve para o semanário Pasquim relatos da vida latino-americana que são reunidos, em 1977, em Crônicas de Nuestra América. Frequentemente baseados em notícias de jornal, retratam situações nas ilhas Malvinas, Equador, Uruguai, Venezuela, Peru e Chile, protagonizadas por mulheres e homens anônimos (Andrade, 2014). A ligação com Cuba é exemplificada por Fernández Retamar em carta bem posterior a Boal, de 03 de junho de 1988, em que o identifica como “um dos trabalhadores da Casa de las Américas (Archivo Casa de las Américas, 2017).

Mas também como Darcy, os anos de banimento são para Boal um período de grande produtividade. Em especial, com a intensificação da repressão extraoficial por parte de grupos, como a Aliança Anticomunista Argentina (AAA), enfrenta o isolamento escrevendo (Andrade, 2014ANDRADE, Clara. 2014. O exílio de Augusto Boal: reflexões sobre um teatro sem fronteiras. Rio de Janeiro: 7 Letras.; Santos, 2016SANTOS, Patrícia Freitas. 2016. Pedagogia da atuação: um estudo sobre o trabalho teatral de Augusto Boal no exílio latino-americano. Dissertação de Mestrado em Artes Cênicas. São Paulo: USP.; 2018SANTOS, Patrícia Freitas. 2018. O teatro sob a tempestade: uma leitura crítica de A Tempestade de Augusto Boal. Sala Preta. v. 18, n. 1, pp. 85-97.). Assim, em três anos, enquanto espera o passaporte brasileiro postergado devido à sua condição de exilado, produz nove livros (Boal, 2000BOAL, Augusto. 2000. Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record.). Elabora fora do país, em particular, a maior parte de seus trabalhos teóricos, O Teatro do Oprimido e outras poéticas políticas ganhando forma definitiva devido à sua experiência latino-americana.30 30 O impacto do trabalho é considerável. Como aponta Frances Babbage: “técnicas do Teatro do Oprimido têm sido aplicadas, adaptadas e reinventadas em todo mundo. Direta ou indiretamente, sua prática tem penetrado contextos tão diversos como protestos políticos, educação, terapia, prisão, saúde, administração e governo, além de ter infiltrado o mainstream do establishment teatral - e a lista segue” (Babbage, 2004, p. 1). É sugestivo, como indica Patrícia F. dos Santos, que questões centrais do Teatro do Oprimido relacionam-se com a situação que seu autor vivia quando o redigia, tendo buscado particularmente “resolver o que na prática ainda estava fora de alcance: a relação entre artista e público” (Santos, 2015, p. 95).

Antes, o Teatro de Arena, do qual Boal fora um dos principais nomes, tivera evidente afinidade com o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e seu esquema de Revolução Burguesa, que sustentara teoricamente a política de alianças do partido. Com 1964, o grupo é afetado pela crítica à prática da esquerda que se generaliza com o golpe e que abre caminho para a luta armada, de que a Revolução Cubana é o grande exemplo. Significativamente, o autor de Revolução na América do Sul se liga à Ação Libertadora Nacional (ALN) (Santos, 2016SANTOS, Patrícia Freitas. 2016. Pedagogia da atuação: um estudo sobre o trabalho teatral de Augusto Boal no exílio latino-americano. Dissertação de Mestrado em Artes Cênicas. São Paulo: USP.). Expressão da nova orientação é Arena conta Tiradentes, de 1967 (Costa, 1993COSTA, Iná Camargo. 1993. Teatro épico no Brasil: de força produtiva a artigo de consumo. Tese de Doutorado em Filosofia. São Paulo: USP.). Na peça, escrita juntamente com Gianfrancesco Guarnieri, relaciona-se o momento retratado com o momento em que é encenada, por meio de uma chamada às armas (Andrade, 2014ANDRADE, Clara. 2014. O exílio de Augusto Boal: reflexões sobre um teatro sem fronteiras. Rio de Janeiro: 7 Letras.). Mesmo assim, é possível identificar um impasse formal (e político) em Arena conta Tiradentes, que hesita entre o distanciamento brechtiano e a identificação stanislasvikiana (Schwarz, 1978SCHWARZ, Roberto. 1978. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra.).

No exílio e tendo se tornado amigo de Fernández Retamar, depois de ter sido jurado do prêmio da Casa de las Américas, Boal reescreve, em 1974, A Tempestade (Santos, 2016SANTOS, Patrícia Freitas. 2016. Pedagogia da atuação: um estudo sobre o trabalho teatral de Augusto Boal no exílio latino-americano. Dissertação de Mestrado em Artes Cênicas. São Paulo: USP.). Em termos amplos, o dramaturgo se filia à interpretação que vê a ilha da peça de Shakespeare como localizada no Caribe, identificando-se, em especial, como crítico e poeta cubano, com o personagem do “escravo selvagem e deformado”. Em carta ao cubano, de 23 de maio de 1974, o brasileiro confessa: “teu livro me fascinou muito, e desde que voltei de Cuba tinha a ideia de fazer a obra”. Indica que, de início, quis manter o texto original da peça, subvertendo-o na encenação. Mas “depois passei a pensar em escrever uma obra minha que fosse uma espécie de retificação da de Shakespeare” (Archivo Casa de las Américas, 2017ARCHIVO Casa de las Américas. 2017. Cuban culture and cultural relations, 1959-, Part 1: “Casa y Cultura”. Leiden: Brill. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3J8wqTT . Acesso em: 29 dez. 2021.
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, n. p.).

Em termos específicos, o anacronismo é marcante na versão de Boal de A Tempestade, sendo responsável por alguns dos seus melhores momentos. Caliban, por exemplo, narra a conquista da ilha por parte de Próspero remetendo a acontecimentos recentes em Cuba e no Vietnã: “e viesse com seus navios e bloqueasse minhas terras, e lançasse bombas de fósforo vivo para queimar as carnes dos meus irmãos e de minhas irmãs” (Boal, 1974?BOAL, Augusto. 1974?. A Tempestade. [S. l.: s. n.]., p. 11).

Se pode-se interpretar o tema de A Tempestade de Shakespeare como a reconciliação, como faz Mannoni, o tema de A Tempestade de Boal é indiscutivelmente a luta de classes. Assim, em meio ao temporal, que dá início à narrativa, ocorre uma greve de marinheiros, que introduz a tormenta social. Nessa orientação, seguindo a linha terceiro-mundista de leitura da peça, a oposição decisiva não é entre Ariel e Caliban, mas entre Próspero e Caliban. O duque de Milão, identificado com o colonizador, se explica: “a mim me coube civilizar esta ilha bárbara”. No entanto, a civilização é relacionada com “violação, destruição, explosões” (Boal, 1974?BOAL, Augusto. 1974?. A Tempestade. [S. l.: s. n.]., p. 8). Caliban, por sua vez, é representado como o revolucionário, que incita à revolta os plebeus, Triúnculo e Estevão. Em certos momentos, como em Césaire, Lamming e Brathwaite, é negro. No entanto, mais de acordo com o socialismo reivindicado pela Revolução Cubana, proclama:

“Eu sou negro, sou pobre,

eu sou pena e eu sou pranto.

Sou índio, sou amarelo”

(Boal, 1974?BOAL, Augusto. 1974?. A Tempestade. [S. l.: s. n.]., p. 30).

Como em Fernández Retamar, se ressalta em Ariel especialmente seu servilismo diante de Próspero. Contudo, diferente do crítico e poeta cubano, o dramaturgo brasileiro não identifica o gênio alado como intelectual. Talvez, de acordo com um certo machismo revolucionário dos anos 1970, o personagem é transformado praticamente em travesti, que se fantasia “de harpia, vestido com véus, saltos altíssimos, boca terrivelmente pintada, longas pestanas pintadas” (Boal, 1974?BOAL, Augusto. 1974?. A Tempestade. [S. l.: s. n.]., p. 39).31 31 Incomoda especialmente ao gênio alado trabalhar, como o obrigava a antiga senhora da ilha, a bruxa Sycorax, que, numa descrição que remete à Cuba pós-revolucionária, o fazia “moer o açúcar, construir a […] própria casa, estudar todas as noites” (Boal, 1974?, p. 9).

Particularmente anacrônica é a orientação mercantil que rege os personagens de A Tempestade de Boal. Não que ela inexistisse entre nobres renascentistas, mas nessa versão da peça, ela conduz, junto com a magia de Próspero, seus inimigos à ilha e faz com que o mago lhes proponha, no final da narrativa, a criação de uma sociedade comercial para explorá-la. Não há dúvida, além do mais, que na peça do brasileiro o casamento entre o filho do rei de Nápoles, Ferdinando, e a filha do duque de Milão, Miranda - em geral, entendido como o principal marco de reconciliação da história - é uma grande operação comercial. De maneira ainda mais explícita, a ilha caribenha se converte, tal como sugerido por Brathwaite, num paraíso tropical para turistas, os novos náufragos sendo recepcionados em meio a “música de macumba misturada com música índia”, por “índios e pretos de papel crepom” e “figuras conhecidas como Zé Carioca, Carmen Miranda, Latin Lover, Mexicano Dorminhoco” (Boal, 1974?BOAL, Augusto. 1974?. A Tempestade. [S. l.: s. n.]., p. 36). Não menos importante, Ariel anuncia que se pode encontrar nesse cenário “real blood in the streets” (Boal, 1974?BOAL, Augusto. 1974?. A Tempestade. [S. l.: s. n.]., p. 45).

No entanto, a revolta é vencida por meio da repressão e de tramoias de Próspero, que chama Caliban, Triúnculo e Estevão para conversar. O dono da ilha coopta o palhaço, nomeando-o general, que logo se prontifica a reprimir a insurreição. Surge, assim, a questão da política de alianças que, na década de 1960 e 1970, tanto atormentava a esquerda do Brasil e da América Latina. Se Estevão, como os comunistas, insiste que é necessário levar em conta a correlação de forças, argumentando que seria imprescindível trazer Triúnculo para o lado dos revoltosos, Caliban, como a esquerda armada, conclui que a moral da história da derrota é que “ninguém deve beber com seus inimigos” (Boal, 1974?BOAL, Augusto. 1974?. A Tempestade. [S. l.: s. n.]., p. 32).

Não há dúvida, entretanto, que a derrota é o sentimento mais forte por trás de A Tempestade de Boal, que termina com a “Canção de tudo que fica igual”:

Tem uns que ficam por cima

Outros de baixo não saem

(Boal, 1974?BOAL, Augusto. 1974?. A Tempestade. [S. l.: s. n.]., p. 48).

Caliban encontra a antropofagia

Como vimos, Fernández Retamar (2005FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 2005. Todo Caliban. Buenos Aires: Clacso.) acaba incorporando, quase trinta anos depois de “Calibán”, a antropofagia à sua reflexão - adição que, significativamente, faz questão de ressaltar que não deve às observações de Rodríguez Monegal. Tal referência é sinal de que, no acalorado debate sobre a identidade latino-americana suscitado pela Revolução Cubana, intelectuais hispano-americanos sentem a necessidade de recorrer a metáforas originalmente brasileiras para pensarem a região que reivindicam. Nesse sentido, a polêmica leva a um alargamento do que se entende por América Latina. É significativo que o cubano e o uruguaio pensavam até então a região com base praticamente apenas na experiência intelectual hispano-americana.32 32 Ver: Morejón Arnaiz, 2004 e Rocca, 2006.

Em “Caliban ante a la Antropofagia”, Fernández Retamar destaca os pontos comuns e divergentes entre sua formulação e a de Oswald. Ambas seriam obras de poetas, que dariam um sentido positivo para imagens associadas à América Latina, antes vistas de maneira depreciativa. No entanto, o crítico e poeta cubano explica ter defendido Caliban da acusação de canibalismo, já que ela seria usada por pretensos civilizados, como Próspero, para justificar sua subjugação.33 33 O argumento remete à avaliação de Fanon de que “o racista cria seu inferior” (Fanon, 1962, p. 75), por sua vez, inspirada na análise de Sartre sobre o antissemita e o judeu. Ou seja, as maneiras como seriam vistos judeus e negros refletiriam basicamente a representação do opressor. Por outro lado, o autor de Memórias sentimentais de João Miramar não faria referência a Caliban, já que ele não seria parte da tradição cultural brasileira, o que contrastaria com a América Hispânica e o Caribe. Lembra, finalmente, que o escravo rebelde aparece apenas na literatura do país num romance de Darcy, Utopia selvagem, de 1982.

Ou seja, entre a publicação de “Calibán” e de “Caliban ante a la Antropofagia”, o personagem shakespeariano se aproxima da cultura brasileira. Para que isso ocorra, também Darcy e Boal têm papel decisivo além de, em termos mais amplos, o exílio, durante a ditadura, ser fundamental para que muitos brasileiros passem a se entender como latino-americanos. É essa nova proximidade que torna mesmo frutífero pensar a relação entre Caliban e a antropofagia, o que não era uma verdadeira possibilidade no contexto intelectual anterior. Nesse sentido, mesmo que haja conexão entre os dois símbolos, há também diferenças entre eles. A proximidade é indicada, como já apontado por Fernández Retamar, pela circunstância de que “Caliban” é um anagrama de “canibal”, ambos sendo imagens pejorativas convertidas em símbolos positivos. No entanto, a defesa, no Manifesto Antropófago, da “absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem” (Andrade, 1972ANDRADE, Oswald. 1972. Do pau-brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 18), tem um sentido de síntese, aparentada, de alguma maneira, com as noções de mestiçagem e transculturação (Jáuregui, 2008JÁUREGUI, Carlos. 2008. Canibalia: canibalismo, calibanismo, antropofagia cultural y consumo en américa latina. Madrid: Iberoamericana editorial.; Ricupero, 2018RICUPERO, Bernardo. 2018. O “original” e a “cópia” na Antropofagia. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, pp. 875-912.). Em contraste, Fernández Retamar, num contexto de confronto pós-Revolução Cubana, pensa Caliban, o colonizado, em oposição a Próspero, o colonizador.

Também não deixa de ser significativo que o impacto da versão de A Tempestade, escrita por Boal, e da edição brasileira de Caliban e outros estudos, prefaciada por Darcy, não é dos maiores. A peça só é encenada em 1981, pelo grupo Gente de Casa, no Rio de Janeiro (Santos, 2015SANTOS, Patrícia Freitas. 2018. O teatro sob a tempestade: uma leitura crítica de A Tempestade de Augusto Boal. Sala Preta. v. 18, n. 1, pp. 85-97.), e o livro não chega a ser reeditado.34 34 É verdade que já na carta a Dort, de 02 de maio de 1974, escrita de Buenos Aires, o teatrólogo se queixara que dez teatros haviam recusado ser alugados para que fosse montada sua versão da obra de Shakespeare. Sugere, assim, que a censura econômica poderia até ser pior do que a censura política. (Arquivo Augusto Boal, 2016). Em outras palavras, apesar de o Brasil se aproximar, no período da Guerra Fria, do resto da América Latina, a distância que os separa continua a ser considerável.

Mas para além da Guerra Fria, “Calibán” continua a ter um impacto considerável, relacionado especialmente com sua incorporação pelo chamado pós-colonialismo (Lie, 1997aLIE, Nadia. 1997a. Countering Caliban: Fernández Retamar and the postcolonial debate. In: LIE, Nadia; D’HAEN, Theo (org.). Constellation Caliban: figurations of a Character. Amsterdam; Atlanta: Rodopi. pp. 245-270.).35 35 Frederic Jameson (2005) considera até, em Prefácio à edição norte-americana do ensaio de Fernández Retamar, que ele poderia ser entendido como o precursor latino-americano de Orientalismo. O próprio Edward Said (1995) vê “Calibán” como um exemplo de texto de “cultura da resistência” ao imperialismo. Nesse sentido, há uma conjunção entre certas apropriações terceiro-mundistas e leituras de A Tempestade realizadas principalmente a partir da academia anglo-saxã (Ricupero, 2014RICUPERO, Bernardo. 2014. A tempestade e a américa. Lua Nova, São Paulo, n. 93, pp. 11-31.). Tal combinação é facilitada principalmente em razão da peça shakespeariana ser um texto privilegiado para leituras questionadoras do cânone ocidental. De maneira comparável, também a antropofagia oswaldiana tem sido crescentemente valorizada pelos estudos pós-coloniais (Ricupero, 2018RICUPERO, Bernardo. 2018. O “original” e a “cópia” na Antropofagia. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, pp. 875-912.). Até porque as afinidades entre ambos são evidentes.

É, portanto, de se esperar que Caliban continue a encontrar a antropofagia. Resta saber se a junção produzirá frutos, questionando de fato o ocidente capitalista.

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  • 1
    Mais de vinte anos depois da crítica de Rodríguez Monegal, Fernández Retamar, em texto que trata especialmente da relação de seu ensaio com a antropofagia, reconhece que Oswald deveria estar presente em “Calibán”, explicando singelamente que a razão de sua ausência foi “que em 1971 ainda desconhecia a sua obra” (Fernández Retamar, 2005FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 2005. Todo Caliban. Buenos Aires: Clacso., pp. 142-143). Mesmo assim, teria tratado do escritor brasileiro em conferência pronunciada em Budapeste, em 1976, portanto, antes do artigo do crítico uruguaio.
  • 2
    Substitui Antón Arrufat, que tinha sido “secretário da revista” até então. O grupo original da revista da Casa de las Américas estivera ligado ao extinto suplemento Lunes de la Revolución, que pode ser identificado como mais favorável a uma autonomia relativa da arte. Com a nova direção, acentua-se o caráter político e terceiro-mundista da publicação. Ver: Artaraz, 2009ARTARAZ, Kepa. 2009. Cuba and western intellectuals since 1959. London: Palgrave Macmillan.; Lie, 1996LIE, Nadia. 1996. Transición y transacción: la revista cubana Casa de las Américas, 1960-1976. Gaithersburg: Hispamérica; Leuven: Leuven University Press.; Miskulin, 2009MISKULIN, Sílvia. 2009. Os intelectuais cubanos e a política cultural da revolução (1961-1975). São Paulo: Alameda..
  • 3
    O CCF foi fundado em 1950, tendo como principal motivação o anticomunismo e contando com apoio do governo norte-americano. A partir dessa orientação, as posições de seus membros eram muito variadas, reunindo desde conservadores a marxistas. Segundo Patrick Iber (2015IBER, Patrick. 2015. Neither peace nor freedom: the cultural cold war in latin america. Cambridge: Harvard University Press.), o ethos dominante na organização seria social-democrata. Na América Latina publicou, a partir de 1953, a revista Cuadernos por la Libertad de la Cultura, sua homóloga brasileira sendo os Cadernos de Cultura.
  • 4
    Na verdade, os dois uruguaios se estranhavam desde os tempos de Marcha, podendo até se falar em duas Marchas. A Revolução Cubana impacta profundamente a Rama que, a partir de então, monta um programa de trabalho em que privilegia o exame de obras latino-americanas. Além disso, procura entender a literatura num quadro mais amplo, em que a análise sociológica é importante. Por sua vez, Rodríguez Monegal se tornara crítico da Revolução Cubana desde cedo. Enxerga uma falsa oposição entre o regionalismo e o universalismo. Mesmo assim, os dois críticos são marcados pelos ensinamentos do fundador de Marcha, Carlos Quijano, que rejeitara o nacionalismo “provinciano” e defendera a liberdade de criação. Ver: Gilman, 2011GILMAN, Claudia. 2011. Enredos y desenredos de Angel Rama y Emir Rodríguez Monegal. Nuevo Texto Crítico. v. 23-24, n. 47-48, pp. 69-92.; Rocca, 2006ROCCA, Pablo. 2006. Ángel Rama, Emir Rodríguez Monegal y el Brasil: dos caras de un proyecto latinoamericano. Tese de Doutorado. São Paulo: USP..
  • 5
    De acordo com Rafael Rojas: “a querela ideológica da Guerra Fria, nos anos 1960 e 1970, reformulou o grande tema cultural das identidades nacionais e o latino-americanismo que se discutia desde a Guerra de 1898 no Caribe” (Rojas, 2017ROJAS, Rafael. 2017. La polis literária. Madrid: Taurus., p. 15).
  • 6
    De início, o Terceiro Mundo é visto como alternativo ao Primeiro Mundo capitalista e ao Segundo Mundo comunista, concepção com que sentia afinidade a primeira nova esquerda, que rejeitava tanto a sociedade burguesa como o socialismo real. De maneira sugestiva, o governo cubano, pouco depois da Revolução, se define como nem capitalista, nem comunista, mas humanista, tendo participado, em 1961, da Conferência dos Países Não Alinhados de Belgrado como observador. No entanto, em torno da segunda metade da década de 1960, há uma radicalização, tanto do Terceiro Mundo, como da nova esquerda e da Revolução Cubana. Enfatiza-se, no novo ambiente, a ação imperialista contra a qual se coloca a opção revolucionária, como se percebe na Conferência Tricontinental, de 1966, e na Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (Olas), de 1967 (Artaraz, 2009ARTARAZ, Kepa. 2009. Cuba and western intellectuals since 1959. London: Palgrave Macmillan.).
  • 7
    Já Che Guevara, em El socialismo y el hombre en Cuba, originalmente carta enviada, em 1965, ao diretor de Marcha, Quijano, considerara que “a culpa de muitos de nossos intelectuais e artistas reside em seu pecado original: não são autenticamente revolucionários” (Guevara, 2011TOSTA, Antonio. 2011. Modern and post-colonial? Oswald de Andrade’s Antropofagia and the politics of labeling. Romance Notes, Chapel Hill, v. 51, n. 2, p. 217-226., p. 17). Tal falta de compromisso estabeleceria empecilhos para a criação do homem novo, grande tarefa da revolução e do socialismo.
  • 8
    Em termos significativos, a Declaração do Primeiro Congresso Nacional de Educação e Cultura de Cuba, realizado também em 1971, denuncia “escritores pseudorrevolucionários”, adeptos do colonialismo cultural que se comportariam como juízes da revolução. Diante da tensão entre política e cultura, defende a identificação entre as duas, argumentando que “a revolução socialista é em si a mais alta realização da cultura cubana” (Casal, 1971CASAL, Lourdes (org.). 1971. El caso Padilla: literatura y revolución en Cuba. Documentos. New York: Ediciones Nueva Atlántida., p. 110). Não por acaso, o Primeiro Congresso Nacional de Educação e Cultura marca o início do chamado Quinquenio Gris, época opaca da cultura da ilha caribenha.
  • 9
    Como argumenta o crítico norte-americano, a origem daquele momento histórico seria “terceiro-mundista”, tendo sua raiz na anterior descolonização da África e da Ásia: “os 1960 foram, então, o período em que todos esses ‘nativos’ se tornaram seres humanos, tanto interna como externamente” (Jameson, 1985, p. 181). Tal mudança valeria para os colonos externos, “nativos oficiais”, e para os colonos internos do Primeiro Mundo, minorias, marginais, mulheres etc.
  • 10
    De forma sugestiva, um crítico brasileiro, Silviano Santiago, num ensaio também escrito em 1971, “O entre lugar da literatura latino-americana”, define o escritor latino-americano como “o devorador de livros de que os contos de Borges nos falam com insistência” (Santiago, 1978SANTIAGO, Silviano. 1978. Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva., p. 27). Também de maneira semelhante a Fernández Retamar, mas com avaliação muito diferente, considera que a literatura da região brincaria com os signos de uma cultura ocidental, à qual pertenceria e não pertenceria. Por fim, evoca como exemplo de como proceder a antropofagia oswaldiana.
  • 11
    Num sentido mais amplo, Martí e Guevara aparecem como exemplos de intelectuais para a revista Casa de las Américas. De acordo com levantamento realizado por Lie (1996LIE, Nadia. 1996. Transición y transacción: la revista cubana Casa de las Américas, 1960-1976. Gaithersburg: Hispamérica; Leuven: Leuven University Press.), os autores mais citados nos editoriais da publicação entre os nº 31 e 50, são Guevara (doze) e Martí (oito vezes), ou seja, vinte de 41 citações. Representativo da visão a respeito da relação entre intelectual e político é um artigo da Graziella Pogolotti sobre o Che escritor, em que se insiste na unidade entre sua vida e obra, o que se expressaria “na frase, muitas vezes breve”, em que “exerce seu domínio absoluto o verbo, vale dizer, a ação” (Pogolotti, 1968POGOLOTTI, Graziella. 1968. Apuntes para el Che escritor. Casa de las Américas, La Habana, n. 46, p. 154-155., p. 156).
  • 12
    No posfácio de 1993, o autor de “Calibán” demonstra irritação com sua associação com visões racialistas a respeito da mestiçagem, argumentando que sua concepção de mestiçagem seria sobretudo cultural. Reivindica assim sua dívida com o antropólogo cubano Fernando Ortiz. Todavia, o criador do conceito de “transculturação” não é citado no ensaio de 1971. Ver: Fernández Retamar, 1993FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 1993. Ángel Rama y la Casa de las Américas. Casa de las Américas, La Habana, n. 192, pp. 178-196., 2005FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 2005. Todo Caliban. Buenos Aires: Clacso..
  • 13
    Nessa linha, Chantel Zabus nota que, nos anos 1960, o “uso da ideia contra-hegemônica de Caliban” serve “para desestabilizar um conjunto de ideias coloniais” (Zabus, 2002ZABUS, Chantal. 2002. Tempests after Shakespeare. New York: Palgrave Macmillan., p. 9) e contribui para a perda da anterior centralidade de Próspero.
  • 14
    A revolta custou a vida de oitenta mil pessoas, além de outras vinte a trinta mil que morreram por causas indiretas, isso numa população de quatro milhões de habitantes. No entanto, o autor, que havia sido funcionário colonial por dezoito anos na ilha, de que saiu em razão de não concordar com a repressão, é quase silencioso sobre o acontecimento. Sobre Mannoni, ver sobretudo: Bloch, 1997BLOCH, Maurice, 1997. La psychanalyse au secours du colonialisme. Terrain: Anthropologie & Sciences Humaines, Marseille, n. 28, pp. 103-118.; Vatin, 2011VATIN, François. 2011. Dépendance et émancipation: retour sur Mannoni. Revue du MAUSS, Lormont, n. 38, p. 131-148..
  • 15
    Já nos anos 1960, inicia o projeto do Teatro Negro, meio pelo qual pode atingir um público muito maior, em que não estão excluídos nem mesmo analfabetos (Porter, 1995PORTER, Laurence. 1995. Aimé Césaire’s reworking of Shakespeare: anticolonialist discourse in “Une Tempête”. Comparative Literature Studies, College Township, v. 32, n. 3, pp. 360-381.). A primeira peça que escreve é La tragédie du roi Christophe (1964), seguida de Une saison au Congo (1966) e concluída com Une Tempête (1969).
  • 16
    Laurence Proteau interpreta o movimento da negritude “como espaço político identitário”, que “traduz a recusa” de uma “dominação completa - caracterizada pela conquista, escravidão, deportação, a negação cultural e espiritual, a dominação política e a exploração econômica” (Proteau, 2001PROTEAU, Laurence. 2001. Entre poetique et politique Aimé Césaire et la “negritude”. Societés contemporaines, Paris, n. 44, pp. 15-39., p. 15).
  • 17
    De maneira significativa, é na metrópole que esses escritores afirmam sua negritude, assim como Oswald de Andrade, segundo Paulo Prado, descobriu o Brasil em Paris, “umbigo do mundo”. Também de forma similar ao antropófago, contra a homogeneização colonizadora, afirmam a diferença, no caso, do “negro” em relação ao “branco”. Num sentido ainda mais semelhante à antropofagia, Césaire, no Cahier d´un retour au pays natal, de 1939, proclama: “parce que nous vous haissons vous et votre raison, nous nous réclamons de la démence precoce de la folie flambante du cannibalisme tenace” (Césaire, 1983CÉSAIRE, Aimé. 1983. Cahier d´un retour au pays natal. Paris: Présence Africaine., p. 28). (“Porque te odiamos a você e à sua razão, reivindicamos a demência precoce, a loucura vistosa, do canibalismo tenaz”).
  • 18
    Essa identidade é, entretanto, basicamente masculina e afro-caribenha, não garantindo grande espaço para mulheres nem tampouco para descendentes de indianos e chineses. Ver: Donnell e Welsh, 1996DONNELL, Alison; WELSH, Sarah. 1996. Introduction. In: DONNELL, Alison; WELSH, Sarah (org.). The Routledge reader in Caribbean literature. Abingdon: Routledge. pp. 27-41..
  • 19
    Lamming reescreve depois A Tempestade em Water with berries (1971).
  • 20
    O próprio crítico e poeta cubano, em texto posterior a “Calibán”, sugere a associação, lembrando “Ernesto Che Guevara, o mais calibanesco dos Arieles que pessoalmente conheci e amei” (Fernández Retamar, 2005FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 2005. Todo Caliban. Buenos Aires: Clacso., p. 140).
  • 21
    No entanto, a solução da oposição é diferente daquela imaginada por Une Tempête, em que Próspero, ao final da peça, fica na ilha com Caliban.
  • 22
    Segundo Pablo Rocca (2006ROCCA, Pablo. 2006. Ángel Rama, Emir Rodríguez Monegal y el Brasil: dos caras de un proyecto latinoamericano. Tese de Doutorado. São Paulo: USP.), já em Marcha haveria aqueles que ressaltariam o anti-imperialismo de Rodó, como Arturo Ardao e Benedetti, e outros, como Rodríguez Monegal, que o viam principalmente como um pioneiro da crítica literária uruguaia.
  • 23
    Pouco depois, Rodríguez Monegal (1979RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. 1979. Carnaval/Antropofagia/Parodia. Revista Iberoamericana, Pittsburgh, n. 108-109, p. 401-412.) indica como a interpretação de Haroldo de Campos a respeito da utilização por parte de Oswald de noções de paródia e de carnavalização, o influenciaram. Não por acaso, o crítico uruguaio, filho de pai brasileiro e bom conhecedor de literatura brasileira, passara, no final dos anos 1970, a vir com certa frequência ao Rio e a São Paulo, onde ministrou cursos e se tornou amigo dos irmãos Campos (Rocca, 2006ROCCA, Pablo. 2006. Ángel Rama, Emir Rodríguez Monegal y el Brasil: dos caras de un proyecto latinoamericano. Tese de Doutorado. São Paulo: USP.).
  • 24
    Tal situação leva o crítico e poeta cubano a considerar que Caliban se tornou, em alguma medida, seu Próspero, no sentido de escravizá-lo e despojá-lo do “meu magro ser” (Fernández Retamar, 2005FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. 2005. Todo Caliban. Buenos Aires: Clacso., p. 76). Diz, consequentemente, ter tentado, de maneira inútil, se livrar do seu senhor, tendo até intitulado a versão para a revista de Casa de las Américas do posfácio à edição japonesa do seu mais conhecido ensaio de “Adiós a Caliban”.
  • 25
    Compõem os estudos: O processo civilizatório (1968), As Américas e a civilização (1969), O dilema da América Latina (1971), Os índios e a civilização (1970) e Os brasileiros: teoria do Brasil (1969). Ver: MATTOS, 2007MATTOS, André Luis. 2007. Darcy Ribeiro: uma trajetória (1944-1982). Tese de Doutorado em Ciências Sociais. Campinas: Unicamp..
  • 26
    O autor de Maíra não esconde a dificuldade da experiência: “pra sofrer o degredo é preciso ter muito caráter, coisa que não tenho. Sofri à minha maneira, sem exageros” (Ribeiro, 1977RIBEIRO, Darcy. 1977. Entrevista. Pasquim, Rio de Janeiro, n. 426, pp. 08-15., p. 13).
  • 27
    A partir de 1991 os Cuadernos ganham forma de livro, na coleção Fuentes de la cultura latino-americana, do Fondo de Cultura Económica. Antes, em 1975, Rama organiza, sob patrocínio do governo venezuelano, a coleção Biblioteca Ayacucho, que reúne alguns dos livros mais importantes produzidos na América Latina. Ambas as iniciativas contam com apoio da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), que procura estimular a integração latino-americana (Zea, 1978ZEA, Leopoldo. 1978. Presentación. In: BOLIVAR, Simon. Carta de Jamaica. Ciudad de México: UNAM. pp. 3-7.; 1995ZEA, Leopoldo. 1995. Prólogo. In: ZEA, Leopoldo (org.). Fuentes de la cultura latinoamericana. Ciudad de México: FCE. p. 7-10.). Darcy e Antonio Candido são os responsáveis pela escolha dos títulos brasileiros da Biblioteca Ayacucho (Bomeny e Josiowicz, 2017BOMENY, Helena; JOSIOWICZ, Alejandra. 2017. O exílio de Darcy Ribeiro e Ángel Rama: intelectuais, cultura e política na América Latina. Interseções, Rio de Janeiro, v. 19, n. 2, pp. 320-346.; Coelho, 2010COELHO, Haydée R. 2010. A biblioteca de Darcy Ribeiro, “Espaço biográfico” e a interlocução latino-americana. Aletria: revista de estudos da literatura, Belo Horizonte, v. 20, n. 2, pp. 69-79.).
  • 28
    Assim como Darcy, o diretor e dramaturgo sente a dureza do exílio: “na minha terra eu fazia diferença, mesmo mínima. Em Buenos Aires nenhuma! Me sentia invisível” (Boal, 2000BOAL, Augusto. 2000. Hamlet e o filho do padeiro: memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Record., p. 289).
  • 29
    No período que mora na Argentina, escreve para o semanário Pasquim relatos da vida latino-americana que são reunidos, em 1977, em Crônicas de Nuestra América. Frequentemente baseados em notícias de jornal, retratam situações nas ilhas Malvinas, Equador, Uruguai, Venezuela, Peru e Chile, protagonizadas por mulheres e homens anônimos (Andrade, 2014ANDRADE, Clara. 2014. O exílio de Augusto Boal: reflexões sobre um teatro sem fronteiras. Rio de Janeiro: 7 Letras.). A ligação com Cuba é exemplificada por Fernández Retamar em carta bem posterior a Boal, de 03 de junho de 1988, em que o identifica como “um dos trabalhadores da Casa de las Américas (Archivo Casa de las Américas, 2017ARCHIVO Casa de las Américas. 2017. Cuban culture and cultural relations, 1959-, Part 1: “Casa y Cultura”. Leiden: Brill. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3J8wqTT . Acesso em: 29 dez. 2021.
    https://bit.ly/3J8wqTT...
    ).
  • 30
    O impacto do trabalho é considerável. Como aponta Frances Babbage: “técnicas do Teatro do Oprimido têm sido aplicadas, adaptadas e reinventadas em todo mundo. Direta ou indiretamente, sua prática tem penetrado contextos tão diversos como protestos políticos, educação, terapia, prisão, saúde, administração e governo, além de ter infiltrado o mainstream do establishment teatral - e a lista segue” (Babbage, 2004BABBAGE, Frances. 2004. Augusto Boal. Abingdon: Routledge., p. 1). É sugestivo, como indica Patrícia F. dos Santos, que questões centrais do Teatro do Oprimido relacionam-se com a situação que seu autor vivia quando o redigia, tendo buscado particularmente “resolver o que na prática ainda estava fora de alcance: a relação entre artista e público” (Santos, 2015SANTOS, Patrícia Freitas. 2018. O teatro sob a tempestade: uma leitura crítica de A Tempestade de Augusto Boal. Sala Preta. v. 18, n. 1, pp. 85-97., p. 95).
  • 31
    Incomoda especialmente ao gênio alado trabalhar, como o obrigava a antiga senhora da ilha, a bruxa Sycorax, que, numa descrição que remete à Cuba pós-revolucionária, o fazia “moer o açúcar, construir a […] própria casa, estudar todas as noites” (Boal, 1974?BOAL, Augusto. 1974?. A Tempestade. [S. l.: s. n.]., p. 9).
  • 32
    Ver: Morejón Arnaiz, 2004MOREJÓN ARNAIZ, Idalia. 2004. Política y polémica en América Latina: las revistas Casa de las Américas y Mundo Nuevo. Tese de Doutorado. São Paulo: USP. e Rocca, 2006ROCCA, Pablo. 2006. Ángel Rama, Emir Rodríguez Monegal y el Brasil: dos caras de un proyecto latinoamericano. Tese de Doutorado. São Paulo: USP..
  • 33
    O argumento remete à avaliação de Fanon de que “o racista cria seu inferior” (Fanon, 1962FANON, Frantz. 1962. Peau noires, masques blancs. Paris: Éditions du Seuil., p. 75), por sua vez, inspirada na análise de Sartre sobre o antissemita e o judeu. Ou seja, as maneiras como seriam vistos judeus e negros refletiriam basicamente a representação do opressor.
  • 34
    É verdade que já na carta a Dort, de 02 de maio de 1974, escrita de Buenos Aires, o teatrólogo se queixara que dez teatros haviam recusado ser alugados para que fosse montada sua versão da obra de Shakespeare. Sugere, assim, que a censura econômica poderia até ser pior do que a censura política. (Arquivo Augusto Boal, 2016ARQUIVO Augusto Boal. 2016. São Paulo: Instituto Moreira Salles.).
  • 35
    Frederic Jameson (2005JAMESON, Fredric. 2005. Prefacio a la edición estadunidense. FERNÁNDEZ RETAMAR, Roberto. Todo Caliban. Buenos Aires: Clacso.) considera até, em Prefácio à edição norte-americana do ensaio de Fernández Retamar, que ele poderia ser entendido como o precursor latino-americano de Orientalismo. O próprio Edward Said (1995SAID, Edward. 1995. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras .) vê “Calibán” como um exemplo de texto de “cultura da resistência” ao imperialismo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2020
  • Aceito
    19 Mar 2021
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