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DO FIM DAS UTOPIAS AOS OUTROS MUNDOS POSSÍVEIS

A justiça ainda faz sentido quando as desigualdades sociais se tornaram tão evidentes que não as enxergamos mais? Essa é a questão fundamental que inspirou a reflexão filosófica de John Rawls. A partir de uma proposta de libertar o utilitarismo dos seus efeitos perversos, Rawls concebeu uma doutrina alternativa capaz de conciliar conceitos aparentemente conflitantes como o liberalismo e a justiça social.

Nesse sentido, é possível falar em justiça social quando o próprio sistema de justiça parece sustentar a existência de coisas como o racismo estrutural, e se torna incapaz de desmontar as armadilhas existentes numa sociedade profundamente desigual? Rawls acreditava que sim e se propôs a revisitar o conceito de justiça de forma a poder promover a justiça social por meio da ideia de que seria possível falar em desigualdades justas. Ao propor uma teoria da justiça baseada numa concepção igualitária de justiça, Rawls revisitou a doutrina tradicional do contrato social. O momento atual de profundo desencanto com relação à democracia e à capacidade das instituições políticas de processarem os conflitos contemporâneos pode explicar, ao menos em parte, o interesse revigorado de pesquisas recentes pela obra e as reflexões de John Rawls. É o que mostram os artigos do dossiê aqui reunidos sob a coordenação de Raíssa Ventura e Carlota Boto, cujo objetivo é nos convencer de que, ao invés de concordar com “uma declaração sobre o fim das energias utópicas”, podemos muito bem “imaginar politicamente outros mundos possíveis”. É justamente o que elas argumentam no artigo “Imaginações políticas para o século XXI”, que abre o dossiê que resultou de um seminário realizado em 2021 para comemorar o aniversário de 50 anos da publicação de Uma Teoria da Justiça (Rawls, 1971RAWLS, John. 1971. A Theory of Justice. Oxford: Oxford University Press .), o livro seminal que reviveu a teoria política em língua inglesa, cujo último grande avanço havia sido o desenvolvimento e elaboração do utilitarismo no século XIX (Arneson, 2006ARNESON, Richard J. 2006. Justice after Rawls. In: DRYZEK, John S.; HONIG, Bonnie; PHILLIPS, Anne. (ed.). The Oxford Handbook of Political Theory. Oxford: Oxford University Press.).

No primeiro artigo do dossiê, “Political equality, epistocracy, and expensive tastes”, William A. Edmundson ressignifica o potencial igualitário e profundamente democrático da filosofia política de John Rawls a partir do confronto com a interpretação de Ronald Dworkin. Em seguida, Gustavo Pereira argumenta, em “Imaginarios y aplicación de la justicia cincuenta años después de Teoría de la justicia”, que os imaginários políticos não podem ser articulados sem a presença de uma teoria ideal, e por essa razão defende que a estrutura dos processos de aplicação da justiça deve ter um momento deontológico de natureza ideal e um momento teleológico que estabeleça o fim a ser alcançado. No artigo seguinte, “Imaginações políticas para um outro mundo possível: as contribuições de Sen, Fraser, Boltanski e Butler”, Eduardo Rezende de Melo, Flávia Schilling e Maria José Rezende mostram como esses autores ensaiam caminhos para pensar a solidariedade, as alianças, a emancipação, um outro mundo possível. Já no artigo “Igualdade como não subordinação”, Lucas Petroni explora os ganhos conceituais, normativos, e metodológicos do igualitarismo social com base em uma interpretação específica do valor da igualdade: a igualdade como não subordinação. Em seguida, Nunzio Alì argumenta no artigo “Enlarging political imagination: ideal types of social systems and a pluralistic distributive approach” que uma desigualdade econômica excessiva entre os cidadãos mais e menos favorecidos numa democracia liberal carrega o risco relevante de expor os menos favorecidos à dominação material. No artigo seguinte, “Laicidade como não dominação”, Sebastián Rudas parte de duas concepções de laicidade: a liberal pluralista, que lida com os desafios que o pluralismo de doutrinas morais apresenta para a estabilidade democrática, e a laicidade como não dominação, que tem como principal preocupação garantir que atores religiosos não sejam veículos de dominação social ou política, para mostrar as vantagens de entender a laicidade nos termos da não dominação a partir da análise do movimento pela descriminalização do aborto e do movimento a favor da liberdade religiosa liderado por algumas minorias religiosas. No último artigo do dossiê, Roberto Merrill e Pedro Silva exploram, em “Predistribution and Unconditional Basic Income”, a relação entre Rendimento Básico Incondicional e a ideia de pré-distribuição e identificam, no fosso crescente entre ricos e pobres, o problema normativo central das democracias contemporâneas, incidindo não apenas sobre o bem-estar de seus membros, mas também sobre os próprios termos da cooperação social.

Por fim, este número se encerra com o artigo de Jobim Martins, “Raízes do Brasil e A montanha mágica”, no qual o autor examina a influência do romance A montanha mágica (1924), de Thomas Mann, sobre o livro Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda. Todos os artigos foram enviados por seus autores ao sistema de submissão da SciELO e receberam uma avaliação positiva dos nossos pareceristas, aos quais muito agradecemos.

Bibliografia

  • ARNESON, Richard J. 2006. Justice after Rawls. In: DRYZEK, John S.; HONIG, Bonnie; PHILLIPS, Anne. (ed.). The Oxford Handbook of Political Theory. Oxford: Oxford University Press.
  • RAWLS, John. 1971. A Theory of Justice. Oxford: Oxford University Press .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022
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