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IMAGINAÇÕES POLÍTICAS PARA UM OUTRO MUNDO POSSÍVEL: AS CONTRIBUIÇÕES DE SEN, FRASER, BOLTANSKI E BUTLER

POLITICAL IMAGINATIONS FOR ANOTHER POSSIBLE WORLD POSSIBLE WORLD: THE CONTRIBUTIONS OF SEN, FRASER, BOLTANSKI AND BUTLER

Resumo

Neste artigo, colocamos em vizinhança alguns tópicos do pensamento de autores como Amartya Sen, Nancy Fraser, Luc Boltanski e Judith Butler. Fomos orientandos pela ideia da imaginação política- como exercício potente e de liberdade -sobre os dilemas do presente em torno da política, da crítica democrática, da justiça e das possibilidades de emancipação, em uma atitude de “lucidez desencantada”. A riqueza do encontro aparecerá nas diferenças, na pluralidade, na singularidade das abordagens e pelo esforço de uma crítica que recusa um mundo que teria se tornado imutável e natural, regido pela necessidade. Esses autores ensaiam caminhos para pensar a solidariedade, as alianças, a emancipação, um outro mundo possível.

Palavras-chave:
Solidariedade; Emancipação; Democracia; Justiça; Butler; Fraser; Boltanski; Sen

Abstract

In this article we put in neighborhood some topics of the thought of authors like Amartya Sen, Nancy Fraser, Luc Boltanski and Judith Butler. We were guided by the idea of political imagination - as a powerful exercise of freedom - about the dilemmas of the present around politics, democratic critique, justice, and the possibilities of emancipation, in an attitude of “disenchanted lucidity” The richness of the encounter will appear in the differences, in the plurality, in the singularity of the approaches and by the effort of a critique that refuses a world that would have become immutable and natural, ruled by necessity. These authors rehearse ways to think about solidarity, alliances, emancipation, another possible world.

Keywords:
Solidarity; Emancipation; Democracy; Justice; Butler; Fraser; Boltanski; Sen

Introdução

É preciso ser justo com a justiça, e a primeira justiça a fazer-lhe é ouvi-la, tentar compreender de onde ela vem, o que ela quer de nós […] é preciso também saber que essa justiça se endereça sempre a singularidades, à singularidade do outro, apesar ou mesmo em razão de sua pretensão à universalidade. (Derrida, 2007DERRIDA, Jacques. 2007. Força de Lei. São Paulo, WMF Martins Fontes., p. 37).

Este texto nasce da angústia do presente. Neste tempo presente aceitaríamos a constatação de que o tempo da emancipação já passou (Rancière, 2011RANCIÈRE, Jacques. 2011. O tempo da emancipação já passou? In: Didi-Huberman, Georges; Rancière, Jacques; Mondzin, Marie-José; Stiegler, Bernard. A República por vir. Arte, Política e Pensamento para o Século XXI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian . pp. 73-100.)? Aparentemente, os jogos estariam feitos, estariam fechadas as possibilidades de outras formas de viver e de estar no mundo. “Os tempos mudaram” (Rancière, 2011RANCIÈRE, Jacques. 2011. O tempo da emancipação já passou? In: Didi-Huberman, Georges; Rancière, Jacques; Mondzin, Marie-José; Stiegler, Bernard. A República por vir. Arte, Política e Pensamento para o Século XXI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian . pp. 73-100., p. 74): tal afirmação indicaria a impossibilidade de mudar o estado das coisas, haveria futuros que não mais poderíamos imaginar.

Lidando com essa angústia e contrariando as ideias de que deveríamos nos conformar ao que está dado, posto que inevitável, exercitaremos imaginações políticas sobre a crítica e sua efetividade; sobre a possibilidade de justiça, sobre o que seria o justo e quem poderia participar de tal enunciação; sobre a solidariedade, a possibilidade de reuniões, assembleias, coletivos que recusam o filantrocapitalismo do atual capitalismo canibal. Imaginaremos, assim, a viabilidade de outros mundos possíveis.

Pois:

De fato, a densidade do mundo deve ser imaginada. Só pode ser tocada, olhada, escutada ou pensada. A imaginação volta à densidade do mundo quando se torna capaz de abrir os possíveis, estas “utopias concretas” das quais falava Ernst Bloch, ou estas “heterotopias” às quais Michel Foucault se referiu. [...]Abrir os possíveis não é, precisamente, dar o tom para nossas formas de apreender o mundo a fim de reinventá-lo melhor, reiniciá-lo melhor?1 1 “Efectivamente, la densidad del mundo ha de imaginarse. No hace otra cosa que tocarse, mirarse, escucharse o pensarse. La imaginación vuelve a la densidad del mundo cuando se hace capaz de abrir los posibles, estas “utopías concretas” de las que hablaba Ernst Bloch o estas “heterotopías” a las que se refirió Michel Foucault. […] ¿Abrir los posibles no es, precisamente, marcar el tono a nuestras formas de aprehender el mundo para reinventarlo mejor, para reiniciarlo mejor?” (Didi-Huberman, 2020, p. 11) (Didi-Huberman, 2020DIDI-HUBERMAN, Georges. 2020. La imaginación, nuestra Comuna. Theory Now: Journal of Literature, Critique and Thought. v. 3, n. 2, pp. 5-21. DOI: https://doi.org/10.30827/tnj.v3i2.13931.
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, p. 11, tradução nossa)

Há, assim, o desafio de recorrer à imaginação, ou melhor, ao exercício, mesmo que precário e instável, das imaginações políticas para tentar entender e reinventar o mundo.

Não há qualquer solidão no percurso que este texto propõe: percebe-se que esse movimento em busca de outros mundos percorre diversos pensamentos, permeia os debates contemporâneos mais potentes. Escolhemos, como companhia, alguns autores que buscam imaginar a política como práticas de lutas com seu horizonte de emancipação, entendida como a possibilidade de viver em vários tempos, radicalmente iguais em um mundo de desigualdade que nunca é estático, natural, dado, imutável (Rancière, 2011RANCIÈRE, Jacques. 2011. O tempo da emancipação já passou? In: Didi-Huberman, Georges; Rancière, Jacques; Mondzin, Marie-José; Stiegler, Bernard. A República por vir. Arte, Política e Pensamento para o Século XXI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian . pp. 73-100.). Imaginando um comum que seria um espaço de inclusão ou de abertura ao “desconhecido comum”, que seria a “articulação que desfaz a exclusão mútua, polarizada, desses termos, um contra o outro” (Silva, 2011SILVA, Rodrigo. 2011. Apresentação (elegia do comum). In: Didi-Huberman, Georges; Rancière, Jacques; Mondzin, Marie-José; Stiegler, Bernard. A República por vir. Arte, Política e Pensamento para o Século XXI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. pp. 11-37., p. 24). São pensamentos que tentam o mais difícil, pensar o comum “enquanto figura daquilo que une ou liga os homens entre si sem assemelhar suas dessemelhanças e sem subsumir as suas diferenças” (Silva, 2011SILVA, Rodrigo. 2011. Apresentação (elegia do comum). In: Didi-Huberman, Georges; Rancière, Jacques; Mondzin, Marie-José; Stiegler, Bernard. A República por vir. Arte, Política e Pensamento para o Século XXI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. pp. 11-37., p. 16). Sem essa tentativa de imaginação, daquilo que poderemos fazer juntos, da construção do comum, não haveria como tentar a política, a justiça, a mudança.

Mesmo com nossos autores percebendo os limites da crítica nestes dias que nos foram dados para viver, “como se ela não tivesse mais impacto sobre a realidade” (Boltanski, 2013BOLTANSKI, Luc . 2013. Sociologia da crítica, instituições e o novo modo de dominação gestionária. Sociologia &Antropologia, v. 3, n. 6, pp. 441-463., p. 442), há, em todos, essa atitude. Há, em todos, a problematização da aceitação da sujeição, da dificuldade em reconhecer as causas do que nos acontece, a dificuldade em imaginar como lutar e com quem lutar e, claro, se haveria uma possibilidade de sucesso nessas lutas.

Nancy Fraser e Amartya Sen, por nós escolhidos para pensar o presente, desenvolvem conceitos substantivos de justiça, dos novos dilemas da justiça na atualidade e como seria possível a constituição de um “nós”, de um comum, de uma vida democrática que não anulasse as singularidades. Boltanski e, em maior medida, Butler, refletem sobre os limites ético-políticos desses conceitos substantivos de justiça e as condições e possibilidades de denunciação da injustiça e de formação de alianças resistentes. Trata-se do desafio de imaginar novas formas de associação, e de estar-em-conjunto, mantendo seu caráter indeterminável e interminável (Silva, 2011SILVA, Rodrigo. 2011. Apresentação (elegia do comum). In: Didi-Huberman, Georges; Rancière, Jacques; Mondzin, Marie-José; Stiegler, Bernard. A República por vir. Arte, Política e Pensamento para o Século XXI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. pp. 11-37., p. 28).

A imaginação seria então um de nossos bens comuns mais preciosos e frutíferos. Ou melhor: é uma de nossas grandes faculdades comuns [...] em suma, a imaginação revelaria na humanidade a potência de sua própria liberdade.2 2 “La imaginación seria entonces uno de nuestros bienes comunes más preciados y fecundos. O, mejor dicho: es una de nuestras grandes facultades comunes […] En resumen, la imaginación revelaría en la humanidad la potencia misma de su propia libertad.” (Didi-Huberman, 2020, p. 9) (Didi-Huberman, 2020DIDI-HUBERMAN, Georges. 2020. La imaginación, nuestra Comuna. Theory Now: Journal of Literature, Critique and Thought. v. 3, n. 2, pp. 5-21. DOI: https://doi.org/10.30827/tnj.v3i2.13931.
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, p. 9, tradução nossa)

É o que procuraremos evidenciar neste percurso.

Justiça, solidariedade e coesão social: a visão de Amartya Sen

Algumas abordagens sobre justiça social, no final do século XX e limiar do século XXI, tentam construir respostas aos novos dilemas do presente com seu caráter, por um lado, de fragmentação e extrema volatilidade e, por outro, de aparente fixidez e impossibilidade de pensamento sobre alternativas ao sistema vigente. Estão ancoradas em noções de solidariedade e de coesão social, preocupadas com soluções não violentas para o enfrentamento das situações de injustiça.

Amartya Sen (2011SEN, Amartya. 2011. A ideia de justiça. São Paulo: Cia das Letras .) é, certamente, o mais destacado cientista social que põe em relevo a “possibilidade de [construção de] uma coesão social não violenta [para enfrentar os desafios postos pelas] sociedades complexas e plurais” (Salvetti e Zambam, 2021SALVETTI, Ésio Francisco; ZAMBAM, Neuro José. 2021. Condições de coesão social em Amartya Sen: Análise da obra A ideia de justiça. Quaestio Iuris, v. 14, n. 1, pp. 322-344. DOI: https://doi.org/10.12957/rqi.2021.48601.
https://doi.org/10.12957/rqi.2021.48601...
, p. 323). Tenta propor caminhos para o exercício da solidariedade, buscando a construção da coesão social, sem ignorar ou apagar os conflitos.

Por essa razão “a sociedade como um todo tem que se adequar, segundo Sen, à heterogeneidade, às diferenças e aos desacordos, que são os traços da realidade” (Salvetti e Zambam, 2021SALVETTI, Ésio Francisco; ZAMBAM, Neuro José. 2021. Condições de coesão social em Amartya Sen: Análise da obra A ideia de justiça. Quaestio Iuris, v. 14, n. 1, pp. 322-344. DOI: https://doi.org/10.12957/rqi.2021.48601.
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, p. 326). Nessa perspectiva, “o conceito de CS [coesão social] tem uma utilidade teórica e heurística bem diferente da tentativa de usá-lo como mecanismo para esconder ideologicamente contradições e conflitos sociais”.3 3 “El concepto de CS [cohesión social] tiene una utilidad teórica y heurística muy distinta a la tentativa de utilizarlo como un mecanismo para ocultar ideológicamente las contradicciones y los conflictos sociales” (Barba Solano, 2011, p. 69). (Barba Solano, 2011BARBA SOLANO, Carlos. 2011. Revisión teórica del concepto de cohesión social: Hacia una perspectiva normativa para América Latina. In: BARBA SOLANO, Carlos; COHEN, Néstor (org.). Perspectivas críticas sobre la cohesión social: Desigualdad y tentativas fallidas de integración social em América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2011. pp. 67-88., p. 69, tradução nossa).

A adjetivação do sintagma “coesão social” tornou-se também um recurso utilizado para esclarecer o seu significado. Principalmente, quando essa noção é utilizada para a composição de objetivos coletivos direcionados à justiça social e à democracia. Nesse caso, não se emprega a noção restrita de coesão social, mas, sim, a de coesão social democrática.

Amartya Sen (2011SEN, Amartya. 2011. A ideia de justiça. São Paulo: Cia das Letras .), no livro A ideia de justiça, defende que os interesses públicos e os melhoramentos sociais dependem da formação de uma coesão social não autoritária, não subalternizadora e não imobilizadora. Tolerância, reconhecimento mútuo, combate à indiferença e a toda forma de desprezo e discriminação são, para Sen (2006SEN, Amartya. 2006. El valor de la democracia. Madrid: El Viejo Topo.; 2010SEN, Amartya. 2010. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Cia das Letras.), o cerne de uma coesão social democrática e voltada para a justiça social.

Para o economista indiano “em meio à pluralidade, à complexidade, às diferenças e desigualdades das sociedades contemporâneas, a coesão social depende da superação das injustiças evitáveis” (Salvetti e Zambam, 2021SALVETTI, Ésio Francisco; ZAMBAM, Neuro José. 2021. Condições de coesão social em Amartya Sen: Análise da obra A ideia de justiça. Quaestio Iuris, v. 14, n. 1, pp. 322-344. DOI: https://doi.org/10.12957/rqi.2021.48601.
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, p. 334). Mas, não é só isso, uma vez que “[depende, também, da existência] de valores […] como […] tolerância e […] reconhecimento mútuo” (Salvetti e Zambam, 2021SALVETTI, Ésio Francisco; ZAMBAM, Neuro José. 2021. Condições de coesão social em Amartya Sen: Análise da obra A ideia de justiça. Quaestio Iuris, v. 14, n. 1, pp. 322-344. DOI: https://doi.org/10.12957/rqi.2021.48601.
https://doi.org/10.12957/rqi.2021.48601...
, p. 334). Há a pergunta central: quais seriam as injustiças evitáveis? Quem determinaria quais seriam? Como poderiam ser as lutas para acabar com essas injustiças? Há, necessariamente, a ideia de coletivos de luta, profundamente igualitários e capacitados para o diálogo democrático.

Ou seja, de um lado, há um caminho que desemboca no entendimento de que as sociedades justas e democráticas buscam sempre consensos. De outro, como nas análises de Sen, abrem-se rotas para se reconhecer a importância dos dissensos e das diferenças na determinação de práticas sociais constituidoras de objetivos comumente elaborados e postos em prática em prol da justiça social. Um e outro, a despeito das diferenças, dão centralidade à não violência como limite à reflexão sobre a justiça e às condições de solidariedade social. Como veremos posteriormente em Butler (2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70., p. 58), “a maioria das formas da violência está comprometida com a desigualdade, quer este comprometimento seja explicitamente tematizado, quer não”, levando a uma abordagem por ela definida como “inteiramente igualitária de preservação da vida”, de democracia radical, que orientaria as práticas da não violência (2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70., p. 57).

Em meio a esse debate sobre solidariedade e coesão social democrática, podem-se localizar propostas de diversos matizes,4 4 Para Honneth “a solidariedade seria a base sobre a qual se assenta a coesão social de uma sociedade na qual certos valores e normas são partilhados”. Uma análise sobre os desafios que enfrentam Fraser e Honneth ao discutir solidariedade e coesão, pode ser encontrada em Costa Neves (2018, p. 237). distinções que podem ser observadas nos diálogos formadores de suas propostas teórico-políticas.

O economista indiano sente, em sua perspectiva de justiça, a necessidade de atacar a teoria da escolha racional e de defender uma teoria da escolha social que põe em relevo a “importância da responsabilidade coletiva em relação às capacidades decisórias individuais” (Lousao, 2010LOUSAO, Antoine. 2010. Sobre a importância intrínseca das decisões democráticas para a realização da justiça - uma abordagem comparativa das teorias de Amartya Sen e Nancy Fraser. Redescrições, v. 2, n. 2, pp.1-22. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/Redescricoes/article/view/14904 . Acesso em: 6 nov. 2022.
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, p. 4). Para Sen, a condição de agente dos indivíduos é central para lidar com essas privações, embora restrita e limitada pelas oportunidades sociais, políticas e econômicas de que dispomos. Grosso modo, a teoria da escolha social está ancorada no pressuposto de que é possível, aos Estados, governos e sociedade civil organizada, construir uma agenda pública para combater “as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos” (Sen, 2010SEN, Amartya. 2010. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Cia das Letras., p. 16).

Portanto, a expansão da liberdade é vista pelo autor como o principal fim e o principal meio do desenvolvimento, consistindo o desenvolvimento na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente a sua condição de agente (Sen, 2000, p. 9-10). “Os direitos políticos e civis oferecem às pessoas a oportunidade de prestar atenção às necessidades gerais e demandar uma ação política adequada” (Sen, 2006SEN, Amartya. 2006. El valor de la democracia. Madrid: El Viejo Topo., p. 66). A justiça está fundamentalmente conectada ao modo como as pessoas vivem, pautada em compromissos razoáveis para pesar pequenos ganhos em liberdade e para que diferenças continuem nas avaliações (Sen, 2011SEN, Amartya. 2011. A ideia de justiça. São Paulo: Cia das Letras ., p. 122-135).

Este é um começo que introduz, ainda que parcialmente, alguns dos dilemas e debates sobre as questões do comum, da política, da justiça e da democracia. Marcando, indubitavelmente, que a justiça não é nunca inerte frente à economia e à política. A efetivação da justiça pressupõe o alargamento das capacidades e funcionamentos, os quais são “estados e ações que uma pessoa pode realizar. A capacidade é, portanto, um conjunto de vetores de funcionamentos”5 5 Em Sen “o objetivo do desenvolvimento é melhorar a vida humana, [o que] significa expandir as possibilidades de […] [dotar] o indivíduo ([de] funcionamentos e capacidades de funcionar, tais como ser saudável e bem-nutrido, ter conhecimento, participar da vida da comunidade)” (Fukuda-Parr, 2003, p. 303). (Sen, 2008SEN, Amartya. 2008. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro: Record., p. 80), marcando as dimensões coletivas, as memórias das lutas, as arenas públicas dos debates e as suas tensões individuais e singulares. Assim, “expandir as liberdades que temos […] permite que sejamos seres sociais mais completos, pondo em prática nossas volições, interagindo com o mundo em que vivemos e influenciando esse mundo” (Sen, 2010SEN, Amartya. 2010. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Cia das Letras., p. 29).

Mapas, balanças, o princípio de todos os sujeitos: Nancy Fraser

Fraser (2008FRASER, Nancy. 2008 Escalas de Justiça. Barcelona: Herder.) trabalhará com as noções de mapa e balança para tentar equacionar quais as escalas de justiça que nos encaminhariam a uma justiça justa. Trabalhando com os conceitos de redistribuição, reconhecimento e participação, enfrenta os dilemas colocados em relação a essas questões na sociedade pós-westfaliana. Proporá pensar esses dilemas no marco da justiça anormal, pois não haveria mais concordância entre o que será objeto de disputa, quem (quais os atores) teriam direito nessa disputa, quais as instituições que deverão garantir a justiça, no como se fará justiça. O quê será disputado, por quem, como? Como saberemos determinar as injustiças evitáveis, os termos razoáveis dos compromissos? É possível, aliás, frente à injustiça, pensar nesses termos?

Caso assumirmos, como pensamos que devemos fazer, que as falhas de reconhecimento, as falhas de representação e o des- enquadramento pertencem em princípio ao catálogo das autênticas injustiças, a desestabilização de uma gramática que as mantinha encobertas deve situar-se entre as evoluções positivas. É esse, portanto, o lado bom da justiça anormal: maiores possibilidades de rejeitar a injustiça.6 6 Si asumimos, como pienso que debemos hacerlo, que el reconocimiento fallido, la representación fallida y el des-enmarque pertenecen en principio al catálogo de las auténticas injusticias, la desestabilización de una gramática que las encubría debe situarse entre las evoluciones positivas. Este es, pues, el lado bueno de la justicia anormal: mayores posibilidades de rechazar la injusticia. (Fraser, 2008, p. 112) (Fraser, 2008FRASER, Nancy. 2008 Escalas de Justiça. Barcelona: Herder., p. 112, tradução nossa).

Nas reflexões de Nancy Fraser sobre justiça, coesão e solidariedade, assim como em outros temas trabalhados por ela, a crítica ao capitalismo entra em primeiro plano. Sua obra produz muitos diagnósticos sobre os estados de opressões, de mandos e de dominações diversas que estruturam o capitalismo atual (Fraser, 2021aFRASER, Nancy. 2021a. Só um radical ecossocialismo democrático pode mudar o horizonte. Entrevista concedida a Martin Mosquera. Blog da Boitempo, 30 nov. Disponível em: Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2021/11/30/so-um-radical-ecossocialismo-democratico-pode-mudar-o-horizonte/ . Acesso em: 20 mar. 2022.
https://blogdaboitempo.com.br/2021/11/30...
.).

“Movidos pela necessidade de pensar um modelo democrático capaz de formular políticas públicas […], Nancy Fraser e Amartya Sen desenvolvem conceitos substantivos de justiça […] [e de] participação democrática” (Lousao, 2010LOUSAO, Antoine. 2010. Sobre a importância intrínseca das decisões democráticas para a realização da justiça - uma abordagem comparativa das teorias de Amartya Sen e Nancy Fraser. Redescrições, v. 2, n. 2, pp.1-22. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/Redescricoes/article/view/14904 . Acesso em: 6 nov. 2022.
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, p. 3). Eles possuem “uma preocupação comum: [construir] uma racionalidade para a participação democrática que integre a definição substantiva de justiça nas relações sociais e na formulação de políticas públicas” (Lousao, 2010LOUSAO, Antoine. 2010. Sobre a importância intrínseca das decisões democráticas para a realização da justiça - uma abordagem comparativa das teorias de Amartya Sen e Nancy Fraser. Redescrições, v. 2, n. 2, pp.1-22. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/Redescricoes/article/view/14904 . Acesso em: 6 nov. 2022.
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, p. 3).

Tanto Fraser quanto Sen ampliam a possibilidade de alargamento de novos modos de pensar a agência política. A coesão e a solidariedade podem ser formas de agir para a consecução de outro devir. No entanto, não é possível equalizar suas propostas já que em Fraser há uma crítica mais substantiva ao capitalismo e a sua constante institucionalização de óbices aos processos de mudanças. Porém, os dois concebem possibilidades de outras imaginações políticas ancoradas em ações formadoras de capacidades políticas constituídas coletivamente.

Eles “discutem as questões de justiça e democracia partindo de perspectivas e debates totalmente distintos” (Lousao, 2010LOUSAO, Antoine. 2010. Sobre a importância intrínseca das decisões democráticas para a realização da justiça - uma abordagem comparativa das teorias de Amartya Sen e Nancy Fraser. Redescrições, v. 2, n. 2, pp.1-22. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/Redescricoes/article/view/14904 . Acesso em: 6 nov. 2022.
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, p. 4). Ou seja, “Amartya Sen se refere, com frequência, à importância da discussão pública e da troca de ideias, enquanto Nancy Fraser defende a noção de deliberação em um sentido dialógico (diferente de um modelo de deliberação que visaria qualquer tipo de consenso)” (Lousao, 2010LOUSAO, Antoine. 2010. Sobre a importância intrínseca das decisões democráticas para a realização da justiça - uma abordagem comparativa das teorias de Amartya Sen e Nancy Fraser. Redescrições, v. 2, n. 2, pp.1-22. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/Redescricoes/article/view/14904 . Acesso em: 6 nov. 2022.
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, p. 6).

As construções da coesão e da solidariedade, em Fraser, não são nunca voltadas para a reprodução do capitalismo em seus aspectos econômicos, políticos e culturais. São, sim, para refutá-lo em todas as dimensões que o ajudam a reproduzir e a replicar as suas dinâmicas sociais. A crítica que se faz constantemente a essas dimensões pode originar, mais e mais, esforços capazes de engendrar “um idioma no qual o conflito político é executado e as desigualdades são simbolicamente elaboradas e desafiadas” (Fraser, 2013FRASER, Nancy. 2013. Fortunes of feminisms. London, Verso., p. 153-154).

Fraser volta-se a “uma discussão com as teorias do reconhecimento para uma releitura da teoria de classes que a leva a considerar o problema dos ordenamentos sociais segundo o princípio de paridade participativa” (Lousao, 2010LOUSAO, Antoine. 2010. Sobre a importância intrínseca das decisões democráticas para a realização da justiça - uma abordagem comparativa das teorias de Amartya Sen e Nancy Fraser. Redescrições, v. 2, n. 2, pp.1-22. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/Redescricoes/article/view/14904 . Acesso em: 6 nov. 2022.
https://revistas.ufrj.br/index.php/Redes...
, p. 4).

A cooperação social é o pano de fundo da ideia de justiça de Fraser; por isso não há como fugir à expectativa de que, no processo de participação democrática, a solidariedade e a coesão tenham um papel relevante, pois que “tornar a sociedade coesa exige a redução da desigualdade através de processos redistributivos”.7 7 “En el primer caso cohesionar la sociedad implica reducir la desigualdad a través de procesos redistributivos, en el segundo cohesionarla implica mercantilizar el trabajo; mientras en el tercero implica segmentar a la sociedad a través de procesos específicos de reciprocidad. (Es evidente que estas formas de cohesión se corresponden con 3 de los 4 principios de integración económica señalados por Karl Polanyi (1992): la redistribución, el mercado y la reciprocidad.)” (Barba Solano, 2011, p. 76, tradução nossa). (Barba Solano, 2011BARBA SOLANO, Carlos. 2011. Revisión teórica del concepto de cohesión social: Hacia una perspectiva normativa para América Latina. In: BARBA SOLANO, Carlos; COHEN, Néstor (org.). Perspectivas críticas sobre la cohesión social: Desigualdad y tentativas fallidas de integración social em América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2011. pp. 67-88., p. 76, tradução nossa).

A pergunta que vem à tona é: Em tais condições, como enxergar caminhos pelos quais se possa chegar à transformação social? Transformação esta que precisaria ter caráter emancipatório. A ideia de emancipação se estende ao longo dos textos de Nancy Fraser (2002FRASER, Nancy. 2002. A justiça social na globalização: Redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais. v. 63, pp. 7-20.; 2006FRASER, Nancy. 2006. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era pós-socialista. Cadernos de campo, v. 15, n. 14/15, pp. 231-239. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v15i14-15p231-239.
https://doi.org/https://doi.org/10.11606...
; 2007FRASER, Nancy. 2007. Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação”. Estudos Feministas, v. 15, n. 2, pp. 291-308. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2007000200002.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
; 2007aFRASER, Nancy. 2007a. Reconhecimento sem ética? Lua Nova, n. 70, pp. 101-138. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-64452007000100006.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
; 2016FRASER, Nancy. 2016. O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história. Revista outubro, n. 26, pp. 31-56.) e se constitui um elemento central de suas proposições teórico-políticas.

Em momento algum ela desconsidera os ingentes desafios aos intentos de formação de movimentos emancipatórios no capitalismo atual. Os óbices são inúmeros e seu grau de complexidade é incomensurável. “Diagnosticar as contradições […] [e] identificar as forças sociais” (Fraser, 2021FRASER, Nancy. 2021. O que está errado com o capitalismo? Blog A terra é redonda, 14 set. Disponível em: Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta-errado-com-o-capitalismo/ . Acesso em 17 mar. 2022.
https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta...
, p. 5) capazes de levar adiante “um projeto contra-hegemônico” (Fraser, 2021FRASER, Nancy. 2021. O que está errado com o capitalismo? Blog A terra é redonda, 14 set. Disponível em: Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta-errado-com-o-capitalismo/ . Acesso em 17 mar. 2022.
https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta...
, p. 5) são, então, tarefas urgentes. Seguindo esse raciocínio, pergunta-se: a coesão social só é possível por meio da formação de uma “consciência comum” (Santos, 2020SANTOS, Bárbara Cristina Soares. 2020. Paridade de participação e emancipação em Nancy Fraser: reconhecimento e justiça a partir do feminismo. Dissertação de mestrado em Ciência Política. São Paulo: USP. DOI: https://doi.org/10.11606/D.8.2020.tde-10122020-223714.
https://doi.org/https://doi.org/10.11606...
, p. 43) geradora de um sujeito político ampliado (Fraser, 2021FRASER, Nancy. 2021. O que está errado com o capitalismo? Blog A terra é redonda, 14 set. Disponível em: Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta-errado-com-o-capitalismo/ . Acesso em 17 mar. 2022.
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) que seria o propulsor das lutas sociais nos campos econômicos e políticos?

São muitas as dificuldades de geração desse sujeito político ampliado, já que “as sociedades capitalistas removem uma vasta gama de questões fundamentais da tomada de decisão democrática coletiva” (Fraser, 2021FRASER, Nancy. 2021. O que está errado com o capitalismo? Blog A terra é redonda, 14 set. Disponível em: Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta-errado-com-o-capitalismo/ . Acesso em 17 mar. 2022.
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, p. 3). Todavia, nas “fronteiras desses domínios institucionais com a economia” (Fraser, 2017FRASER, Nancy. 2017. For a Crisis Critique of Capitalism: Interview with Nancy Fraser. Entrevista cedida a Arthur Bueno, Nathalie Bressiani, Felipe Gonçalves Silva, Mariana Teixeira, Ingrid Cyfer, Inara Marin. Perspectivas, v. 49, pp. 161-185., p. 162) é que, se poderia, talvez, assentar uma coesão anticapitalista no sentido de ser anti-hegemônica, visto que seria a constituição de um “modo de estar no mundo” (Bartra, 2010BARTRA, Armado. 2010. “Tiempos turbulentos”. Argumentos, v. 23, n. 63, pp. 91-119., p. 113) capaz de enfraquecer os valores, a cultura e o ethos capitalista.8 8 “Gramsci chamaria essa capacidade de hegemonia [dominante e difusora do ethos capitalista de] uma cultura que torna indeclináveis as questões propostas, […] [e] obriga o adversário a jogar com as linguagens, situações, instituições, cultura, inventados e que se tornam, assim, a cultura dominante. A hegemonia é a produção conflituosa do consenso” (Oliveira, 2006, p. 266).

É como se tivéssemos a possibilidade de capturar os “sinais que parecem encetar movimentos para a criação de novas formas de viver e de pensar, inspirados na memória das lutas políticas e dos movimentos sociais, mas que vão para além dos critérios de identificação e reconhecimento herdados do século passado” (Silva, 2011SILVA, Rodrigo. 2011. Apresentação (elegia do comum). In: Didi-Huberman, Georges; Rancière, Jacques; Mondzin, Marie-José; Stiegler, Bernard. A República por vir. Arte, Política e Pensamento para o Século XXI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. pp. 11-37., p. 15-16).

As proposições prescritivas de Fraser se vão alterando ao longo das últimas décadas. Se num primeiro momento ela destacava que “nas sociedades do capitalismo tardio a família e a economia oficial são os principais enclaves de despolitização” (Troian, 2020TROIAN, Thalita. 2020. Justiça e Feminismo na Teoria Crítica de Nancy Fraser. Dissertação de mestrado em Filosofia. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto., p. 18), nas reflexões mais recentes, ainda que permaneçam tais óbices, parece haver, no seu entender, a possibilidade de constituição de um sujeito coletivo emancipatório capaz de se empenhar por transformações não somente econômicas, mas também políticas, sociais e culturais.9 9 “As primeiras formulações de Nancy Fraser acerca de uma teoria da justiça começam com uma discussão sobre o reconhecimento, e tratam da justiça social reclamada pelas lutas sociais. […] Somente [na década de 1990] [é que] no lugar de movimentos sociais de classes lutando pela redistribuição, há movimentos sociais de grupos combatendo a dominação cultural em busca do reconhecimento de suas identidades” (Troian, 2020, p. 43). Isso acaba sendo o núcleo das recomendações de Nancy Fraser:

Aceitar como bem formuladas e inteligíveis em termos de princípio as demandas fundadas em, pelo menos, as três diferentes percepções do “quê” da justiça: redistribuição, reconhecimento e representação. Aceitando provisoriamente uma perspectiva de justiça, centrada na economia, na cultura e na política, a teoria deveria permanecer, de qualquer forma, aberta à eclosão de outras dimensões conquistadas com a luta social.10 10 Aceptar como bien formuladas e inteligibles en principio reclamaciones fundadas en, por lo menos, las tres distintas percepciones del “qué” de la justicia, a saber: redistribución, reconocimiento y representación. Aceptando provisionalmente una perspectiva de la justicia, centrada en la economía, la cultura y la política, la teoría debería permanecer, no obstante, abierta a la eclosión de otras dimensiones ganadas con la lucha social. (Fraser, 2008, p. 117). (Fraser, 2008FRASER, Nancy. 2008 Escalas de Justiça. Barcelona: Herder., p. 117, tradução nossa)

Os diagnósticos visam esmiuçar as condições do presente (Fraser, 2013FRASER, Nancy. 2013. Fortunes of feminisms. London, Verso.; 2016FRASER, Nancy. 2016. O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história. Revista outubro, n. 26, pp. 31-56.; 2017FRASER, Nancy. 2017. For a Crisis Critique of Capitalism: Interview with Nancy Fraser. Entrevista cedida a Arthur Bueno, Nathalie Bressiani, Felipe Gonçalves Silva, Mariana Teixeira, Ingrid Cyfer, Inara Marin. Perspectivas, v. 49, pp. 161-185.), e as prescrições objetivam mapear as (im)possibilidades emancipatórias futuras (Fraser, 2021aFRASER, Nancy. 2021a. Só um radical ecossocialismo democrático pode mudar o horizonte. Entrevista concedida a Martin Mosquera. Blog da Boitempo, 30 nov. Disponível em: Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2021/11/30/so-um-radical-ecossocialismo-democratico-pode-mudar-o-horizonte/ . Acesso em: 20 mar. 2022.
https://blogdaboitempo.com.br/2021/11/30...
.). Ela diz: “Esse interesse sobre a questão de um sujeito emancipatório norteia o meu pensamento [acerca da possibilidade] de constituição de um bloco contra- hegemônico” (Fraser, 2021FRASER, Nancy. 2021. O que está errado com o capitalismo? Blog A terra é redonda, 14 set. Disponível em: Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta-errado-com-o-capitalismo/ . Acesso em 17 mar. 2022.
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, p. 6). Jéssica Omena Valmórbida (2020VALMÓRBIDA, Jéssica Omena. 2020. Feminismo para os 99%: um debate. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade. v. 25, n. 1, pp. 257-264. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v25i1p257-264.
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) faz a seguinte pergunta: Ser anticapitalista, para Fraser, é exatamente o quê? É “lutar por arranjos sociais que priorizem a vida das pessoas e os vínculos sociais acima da produção para o lucro” (Fraser; Arruzza; Bhattacharya, 2019FRASER, Nancy; ARRUZZA, Cinzia.; BHATTACHARYA, Tithi. 2019. Feminismo para os 99%: Um manifesto. São Paulo: Boitempo ., p. 118).

No livro intitulado Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica (Fraser e Jaeggi, 2020FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. 2020. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo.), que sistematiza um diálogo entre Nancy Fraser e Rahel Jaeggi11 11 Fraser e Jaeggi “ostentam e mantêm entre si muitas divergências fortes, inclusive divergências de saída (dentre as quais se destaca a divergência quanto a conceber o capitalismo como ordem social institucionalizada, como defende Fraser, ou como forma de vida, como defende Jaeggi” (Souza Filho, 2020, p. 122). acerca do sistema econômico e sobre as possibilidades emancipatórias existentes hoje, Fraser pergunta se “as preocupações feministas, ambientalistas, antirracistas, anti-imperialistas, democratas radicais [e] trabalhistas” (Fraser, 2021FRASER, Nancy. 2021. O que está errado com o capitalismo? Blog A terra é redonda, 14 set. Disponível em: Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta-errado-com-o-capitalismo/ . Acesso em 17 mar. 2022.
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, p. 7) podem condensar demandas que tenham no seu âmago potencialidades políticas contra as muitas formas de opressão sustentadoras do capitalismo.

Porém, há a possibilidade de articular essas forças em um movimento anti-hegemônico? Nancy Fraser, no decorrer de inúmeros textos, parece crer que há essa possibilidade (2021aFRASER, Nancy. 2021a. Só um radical ecossocialismo democrático pode mudar o horizonte. Entrevista concedida a Martin Mosquera. Blog da Boitempo, 30 nov. Disponível em: Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2021/11/30/so-um-radical-ecossocialismo-democratico-pode-mudar-o-horizonte/ . Acesso em: 20 mar. 2022.
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), é preciso identificar “os atores relevantes” (Fraser, 2021FRASER, Nancy. 2021. O que está errado com o capitalismo? Blog A terra é redonda, 14 set. Disponível em: Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta-errado-com-o-capitalismo/ . Acesso em 17 mar. 2022.
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, p,7), e, além das condições opressivas objetivas que as unem, encontrar formas de tocar em suas subjetividades.

Ao considerar a possibilidade de que os enquadramentos de primeira ordem da justiça possam ser - eles mesmos - injustos, este nível compreende o problema do marco (da justiça) como uma questão de justiça. Consequentemente, acrescenta a reflexividade necessária para analisar as disputas sobre o “quem” na justiça anormal.12 12 Al considerar la posibilidad de que los enmarques de primer orden de la justicia puedan ser ellos mismos injustos, este nivel entiende el problema del marco como una cuestión de justicia. En consecuencia, aporta la reflexividad necesaria para analizar las disputas sobre el “quien” en la justicia anormal. (FRASER, 2008, p. 123) (FRASER, 2008FRASER, Nancy. 2008 Escalas de Justiça. Barcelona: Herder., p. 123, tradução nossa)

É então que Nancy Fraser fomenta uma discussão sobre se é factível, ou não, haver solidariedade e cooperação derivadas da aliança entre os diversos agentes relevantes que possuem uma “compreensão compartilhada da sociedade capitalista como […] fonte profunda dos vários problemas” (Fraser, 2021FRASER, Nancy. 2021. O que está errado com o capitalismo? Blog A terra é redonda, 14 set. Disponível em: Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta-errado-com-o-capitalismo/ . Acesso em 17 mar. 2022.
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, p. 8). Será que os agentes e as forças sociais, ao diagnosticar a fonte dos diversos impasses e injustiças sociais, sustentarão, ou não, uma “solidariedade [motivadora da] cooperação”? (Fraser, 2021FRASER, Nancy. 2021. O que está errado com o capitalismo? Blog A terra é redonda, 14 set. Disponível em: Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta-errado-com-o-capitalismo/ . Acesso em 17 mar. 2022.
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, p. 8). Em alguns textos a resposta parece ser positiva.

Em Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era pós-socialista (Fraser, 2006FRASER, Nancy. 2006. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era pós-socialista. Cadernos de campo, v. 15, n. 14/15, pp. 231-239. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v15i14-15p231-239.
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), ela afirma que se deve buscar processos transformativos que “tendem, portanto, a promover reciprocidade e solidariedade nas relações de reconhecimento. Assim, uma abordagem voltada a compensar injustiças de distribuição pode ajudar também a compensar (algumas) injustiças de reconhecimento” (Fraser, 2006FRASER, Nancy. 2006. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era pós-socialista. Cadernos de campo, v. 15, n. 14/15, pp. 231-239. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v15i14-15p231-239.
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, p. 238).

A solidariedade e a coesão, radicalmente democráticas, poderiam levar à geração de relações que venham congregar diversos segmentos sociais relevantes sem que seja preciso “que os atores sociais alterem suas identidades políticas existentes, mas apenas os seus diagnósticos cognitivos” (Fraser, 2021FRASER, Nancy. 2021. O que está errado com o capitalismo? Blog A terra é redonda, 14 set. Disponível em: Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta-errado-com-o-capitalismo/ . Acesso em 17 mar. 2022.
https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta...
, p. 8). Ela indaga se essa crença na formação de uma outra cognição capaz de cimentar um bloco anti-hegemônico não seria, por demais, exagerada.

Nancy Fraser buscará indicar uma segunda possibilidade que defenda uma coesão radicalmente democrática em meio à multiplicidade de atores. “A classe é composta por todas as relações que formam e repõem a mão de obra e deve ser entendida como um marcador que, em combinação com outros, aloca sujeitos em lugares sociais hierarquizados” (Valmórbida, 2020VALMÓRBIDA, Jéssica Omena. 2020. Feminismo para os 99%: um debate. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade. v. 25, n. 1, pp. 257-264. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v25i1p257-264.
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, p. 257).

Em vez de pensar em uma coesão radicalmente democrática, em uma solidariedade (que ela denomina de “cola” no sentido de amalgama) entre sujeitos coletivos diversos e ampliados, ela sugere que a junção se dê em torno da classe trabalhadora, porém, ampliada. Isso “poderia proporcionar uma ‘cola’ mais forte […]. A ideia aqui consiste em abordar o mesmo conjunto de forças sociais […] de uma forma um pouco mais unificada: como constituintes de uma classe trabalhadora expandida” (Fraser, 2021FRASER, Nancy. 2021. O que está errado com o capitalismo? Blog A terra é redonda, 14 set. Disponível em: Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta-errado-com-o-capitalismo/ . Acesso em 17 mar. 2022.
https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta...
, p. 8). Todavia, esses segmentos de classe estariam localizados em espaços “diferentes na estrutura social. Essa ideia decorre, também, da visão expandida do capitalismo, que revela a dependência estrutural do capital no trabalho social-reprodutivo e expropriado, bem como no trabalho explorado” (Fraser, 2021FRASER, Nancy. 2021. O que está errado com o capitalismo? Blog A terra é redonda, 14 set. Disponível em: Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta-errado-com-o-capitalismo/ . Acesso em 17 mar. 2022.
https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta...
, p. 8).

Numa terceira frente, a discussão de Fraser leva em conta “a pressão geral de movimentos regressivos e emancipatórios” (Souza Filho, 2020, p. 129). Seus diagnósticos e prescrições consideram que “os primeiros alimentam o ‘populismo reacionário’ de extrema-direita” (Sousa Filho, 2020SOUSA FILHO, José Ivan Rodrigues. 2020. A turbulência que se aprofunda ao nosso redor: resenha crítica de Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica, de Nancy Fraser e Rachel Jaeggi. Cadernos De Filosofia Alemã: Crítica E Modernidade. v. 25, n. 1, pp. 121-132. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v25i1p121-132.
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, p. 129). Os movimentos emancipatórios estão, porém, “nutrindo o ‘populismo progressista’ de uma esquerda da qual se espera que possa unir toda a classe trabalhadora em sentido amplo” (Sousa Filho, 2020SOUSA FILHO, José Ivan Rodrigues. 2020. A turbulência que se aprofunda ao nosso redor: resenha crítica de Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica, de Nancy Fraser e Rachel Jaeggi. Cadernos De Filosofia Alemã: Crítica E Modernidade. v. 25, n. 1, pp. 121-132. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v25i1p121-132.
https://doi.org/https://doi.org/10.11606...
, p. 129).

Fraser tenta, assim, encontrar na vida social meios indicadores da possibilidade de identificar uma “classe trabalhadora que inclui pessoas de cor, mulheres e migrantes; donas de casa, camponeses e trabalhadores em serviços; aqueles que recebem um salário e aqueles que nada ganham” (Fraser, 2021FRASER, Nancy. 2021. O que está errado com o capitalismo? Blog A terra é redonda, 14 set. Disponível em: Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta-errado-com-o-capitalismo/ . Acesso em 17 mar. 2022.
https://aterraeredonda.com.br/o-que-esta...
, p. 8). Ou seja, todos os segmentos vinculados, de alguma maneira ao mundo do trabalho, com capacidade de organização, comunicação e participação política. Capacidade que teria de ser construída, não a partir do nada, mas, sim, de algumas experiências de lutas contra as injustiças sociais.

De acordo com esse princípio, todos aqueles que estão sujeitos a uma estrutura de determinado tipo de governança estão em posição moral de ser sujeitos de justiça em relação à dita estrutura [...] no mundo atual, todos estamos sujeitados a uma pluralidade de diferentes estruturas de governança, locais, nacionais, regionais ou globais. O que é urgente, portanto, é delimitar diferentes marcos na medida em que tratamos de diferentes problemas. O princípio de “todos os sujeitos”, com sua capacidade de distinguir muitos “quem” de acordo com diferentes fins, nos indica quando e como usar um ou outro marco e, assim, quem tem o direito a participar paritariamente com quem em um caso determinado.13 13 “De acuerdo con ese principio, todos aquellos que están sujetos a una estructura de gobernación determinada están en posición moral de ser sujetos de justicia en relación con dicha estructura […] en el mundo actual, todos estamos sujetos a una pluralidad de diferentes estructuras de gobernación, locales, nacionales, regionales o globales. Lo que urge, por tanto, es delimitar distintos marcos según se trate de distintos problemas. El principio de ‘todos los sujetos’, capaz como es de distinguir muchos ‘quiénes’ según fines distintos, nos indica cuándo y dónde aplicar un marco o bien otro, y, por lo mismo, quién tiene derecho a participar paritariamente con quién en un caso determinado”. (Fraser, 2008, p. 127-129) (Fraser, 2008FRASER, Nancy. 2008 Escalas de Justiça. Barcelona: Herder., p. 127-129, tradução nossa).

São, assim, novos marcos, mapas e balanças, identificando as tensões que emolduram os dilemas da construção do comum, da política e da justiça em um exercício da crítica radical. O princípio daí derivado seria o princípio de todos os sujeitos, envolvidos segundo diferentes objetivos mostrando os marcos que poderiam ser aplicados em cada caso determinado. Sua contribuição é importante para “buscar no mundo elementos que permitem desconstruir as convenções até então admitidas e, assim, desestabilizar a realidade como um todo” (Boltanski, 2013BOLTANSKI, Luc . 2013. Sociologia da crítica, instituições e o novo modo de dominação gestionária. Sociologia &Antropologia, v. 3, n. 6, pp. 441-463., p. 444).

Boltanski, o retorno da crítica

Passamos, portanto, de uma leitura, com Sen, em torno de compromissos pautados pela base racional dos juízos sociais e das decisões públicas na escolha entre alternativas sociais, que promova ganhos em liberdade, para uma reflexão pautada na constituição de um sujeito coletivo contra-hegemônico, com Fraser, a partir de sua tríade distribuição, reconhecimento e participação. Boltanski propõe algumas questões que desafiam o otimismo de Fraser.

Para ele, o que tem avançado hoje, tal como na década de 1930, é uma extrema direita anticapitalista. E, por outro lado, na França, por exemplo, entre as diversas manifestações políticas progressistas da atualidade, não se identificam ações e práticas que sejam, de fato, anticapitalistas e capazes de construir um projeto que se oponha de maneira profunda a esse ideário econômico como um conjunto de ideias e de valores sustentadores de práticas, ações e ideologias.14 14 Há uma cultura capitalista (Gemelli, 2020) que pode ser definida como “o conjunto de crenças associadas à ordem capitalista que contribuem para justificar e sustentar essa ordem, legitimando os modos de ações e as disposições coerentes com ela” (Boltanski e Chiapello, 2009, p. 42).

Levando em consideração os movimentos trabalhistas, sindicais, entre outros, Boltanski indaga: Quais seriam, realmente, anticapitalistas e anti-hegemônicos? Segundo ele, o capitalismo está sendo conduzido por um tipo de administração gestionária,15 15 Identifica a dominação pelo terror, a dominação ideológica e a dominação gestionária. Cabe chamar atenção para seu caráter não estanque, com entrecruzamentos diversos entre as formas de dominação. Sua ênfase estará no estudo da dominação gestionária, sem sujeitos, alicerçada em dispositivos e justificada pela “necessidade” (Boltanski, 2013, p. 449). que dificulta enormemente a formação de blocos impulsionadores de processos emancipatórios das opressões capitalistas. Ele o atesta, por ter visto na sociedade francesa, que “não [há] mais nenhuma organização que seja realmente capaz de organizar e mobilizar as pessoas” (Boltanski, 2014BOLTANSKI, Luc. 2014. Uma crítica para o presente: Entrevista com Luc Boltanski. Plural, v. 21, n. 1, pp. 217-230., p. 229) contra o ideário capitalista: “Espera-se dos dominados que eles considerem as restrições como se fossem entes quase sagrados e ajam segundo as regras ao pé da letra” (Boltanski, 2013BOLTANSKI, Luc . 2013. Sociologia da crítica, instituições e o novo modo de dominação gestionária. Sociologia &Antropologia, v. 3, n. 6, pp. 441-463., p. 452).

Por isso, para Boltanski, a análise deve ser mais ampla, porquanto a crise atual é ao mesmo tempo uma crise do capitalismo e da forma do Estado. O foco deve ser, de um lado, aprofundar o diagnóstico sobre os limites da crítica do neoliberalismo e as ligações perigosas com o neoconservadorismo ascendente; de outro, analisar criticamente o modo como as evoluções do capitalismo se relacionam com as modificações da forma do Estado-nação (Boltanski e Fraser, 2014BOLTANSKI, Luc. 2014. Uma crítica para o presente: Entrevista com Luc Boltanski. Plural, v. 21, n. 1, pp. 217-230.), aspecto em que se aproxima da análise pós-westfaliana de Fraser quanto ao “quem” da justiça em um mundo globalizado, para além dos limites do Estado-nação (Fraser, 2009).

Assim, Boltanski diagnostica, de um lado, uma crescente capacidade de tolerância das cúpulas governamentais às críticas, ao incorporar, por dispositivos de gerenciamento, alguns elementos cuidadosamente selecionados, como expressão de uma necessidade externa e como expressão de uma vontade coletiva apoiada sobre a competência de experts.

É nesse contexto que Boltanski é crítico à mudança no pensamento de Fraser, quando ela deixa uma concepção crítica e conflitiva e, por isso, transformadora (Fraser, 1990FRASER, Nancy. 1990. Rethinking the public sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy. Social text. n. 25-26, pp. 56-80. DOI: https://doi.org/10.2307/466240.
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) em favor de uma concepção modesta de emancipação (Boltanski e Fraser, 2014BOLTANSKI, Luc. 2014. Uma crítica para o presente: Entrevista com Luc Boltanski. Plural, v. 21, n. 1, pp. 217-230.), adotando, portanto, uma via média entre a estratégia afirmativa (corretiva em sua terminologia anterior) que seja politicamente factível, mas substancialmente deficiente, e uma transformativa, que é programaticamente sensata, mas impraticável politicamente. Essas reformas não reformistas, que colocam em movimento uma trajetória de mudança na qual reformas mais radicais se tornam praticáveis com o tempo, porque alterariam o terreno no qual lutas posteriores podem ser travadas (Fraser e Honneth, 2003FRASER, Nancy; HONNETH, Alex. 2003. Redistribution or recognition? A political exchange. New York: Verso.), correm o risco, na leitura de Boltanski, de se tornarem meramente acadêmicas, autonomizam-se em relação aos movimentos sociais, tornam-se uma crítica pela crítica (Boltanski e Fraser, 2014BOLTANSKI, Luc. 2014. Uma crítica para o presente: Entrevista com Luc Boltanski. Plural, v. 21, n. 1, pp. 217-230.).

Para o pensador francês, ainda, e, agora, diferentemente de Sen, uma política de emancipação não pode vir do alto, das decisões públicas, mas das próprias pessoas, o que só ocorre quando são capazes de se reapropriar de seu ambiente e dizer “não” (Boltanski e Fraser, 2014BOLTANSKI, Luc. 2014. Uma crítica para o presente: Entrevista com Luc Boltanski. Plural, v. 21, n. 1, pp. 217-230.). Essa atitude, que evoca as leituras foucaultianas sobre a parresía e a coragem da verdade (Foucault, 2011FOUCAULT, Michel. 2011. A coragem da verdade. São Paulo: Martins Fontes .), implica recolocar a questão das relações de força e a capacidade de, apesar das diferenças, colocarmo-nos de acordo em torno do “não!”, sem precisarmos nos valer da violência (Boltanski e Fraser, 2014BOLTANSKI, Luc. 2014. Uma crítica para o presente: Entrevista com Luc Boltanski. Plural, v. 21, n. 1, pp. 217-230.).

Para Boltanski, a coligação em torno do “não”, da denunciação pública de injustiça, demanda um trabalho de de-singularização, fazendo referência a algo que não é delas e que as ultrapassa, portanto, a um princípio de equivalência que torna explícito o princípio de justiça ligado à crítica e que clarifique a definição que sustenta a denúncia. Para ele, as grandezas invocadas não são nem podem ser ligadas a grupos e pessoas, mas às situações nas quais as pessoas se encontram, demandando que os atores tenham acesso a uma exterioridade na qual seja possível se desligar da situação presente e de seus mundos tratados como universos incompatíveis e, nesse contexto, submeter essa exterioridade a julgamentos que permitam denunciar a validade de um mundo alternativo (Boltanski, 2011BOLTANSKI, Luc. 2011. L´amour et la justice comme compétences. Paris: Gallimard.).

Assim, para o autor, se a axiomática que funde o ideal de justiça repousa, em larga medida, sobre um princípio de incerteza necessário para conciliar a humanidade comum e ordem de grandeza, ela repousa igualmente sobre a possibilidade de passar à prova quando a justeza do mundo é objeto de críticas ou de renovar a prova quando sua retidão é contestada. No entanto, o limite das disputas em torno da justiça e da possibilidade de aliança reside no fato de que é impossível que o julgamento das provas da injustiça possa privar-se da memória das provas anteriores ou de transportá-las no tempo quando ela deve enfrentar novas provas. Tal situação faz com que a prova possa ser sempre relançada, tomando por sustentação uma outra equivalência, igualmente afetada por uma validade universal, numa reativação contínua das disputas (Boltanski, 2011BOLTANSKI, Luc. 2011. L´amour et la justice comme compétences. Paris: Gallimard.).

Desse modo, há um duplo dilema em relação aos modos de resistência pautados pela denúncia de injustiça: de um lado, uma reapropriação gerencial da crítica por parte das cúpulas; de outro lado, uma reativação constante das demandas por justiça, por princípios de equivalência díspares, que não encontram convergência, remetendo a uma certa incomensurabilidade.

Segundo Boltanski, para cessar a disputa por justiça, é sempre preciso procurar outra coisa que a justiça, vale dizer, é preciso superar a lógica de equivalências, do cálculo. Se a violência se torna uma possibilidade, especialmente nas situações de urgência, o pensador francês procurou refletir sobre a superação da violência e da disputa por justiça por modalidades de compromisso que mobilizam emoções, por uma passividade no amor (ágape) voltada a uma paz em justeza que esgota a força ignorando-a, e que a vence pela não resistência, pela não violência, pela possiblidade de uma demora, de uma obstinação pelo presente (Boltanski, 2011BOLTANSKI, Luc. 2011. L´amour et la justice comme compétences. Paris: Gallimard.), que, portanto, rompa com a lógica projetiva e instrumental do futuro.

Judith Butler: a igualdade radical e as alianças

Butler caminha num sentido semelhante, alertando para o perigo das “formas narrativas de história progressiva, nas quais o conflito é superado mediante enquadramentos liberais mais abrangentes e inclusivos” ou, ainda, nas quais o “constructo do progresso em si se converte na questão definidora da batalha pela defesa do liberalismo” (Butler, 2016aBUTLER, Judith. 2016a. Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto? 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 208-214). Para a filósofa americana, há também de se analisar criticamente a pressuposição identitária, tanto do multiculturalismo como dos direitos humanos, de tipos específicos de sujeitos determinados por categorias como etnicidade, classe, raça, religião, sexualidade e gênero, que podem ou não corresponder aos modos de vida contemporâneos. Para ela, tanto em uma situação como em outra, assumimos como pressuposto que saibamos o que queremos dizer, tanto com o sujeito - como se se tratasse de uma questão normativa, relativa à melhor maneira de organizar a vida política para possibilitar o reconhecimento e a representação (Butler, 2016aBUTLER, Judith. 2016a. Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto? 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 197-199) - quanto com o ‘nós’, o povo, como se fosse algo formado e conhecido, como se a ação fosse possível e como se estivesse delimitado o campo de atuação (Butler, 2001BUTLER, Judith. 2001. Qué es la crítica? Un ensayo sobre la virtud en Foucault. Traducción de Marcelo Expósito e Joaquín Barriendos. Transversal texts, maio de 2001. Disponível em: Disponível em: http://eipcp.net/transversal/0806/butler/es . Acesso em: 15 out. 2019.
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).

Para Butler, então, é fundamental uma postura crítica desses enquadramentos de referência, mostrando que ela nunca conteve de fato a cena que se propunha ilustrar, que já havia algo de fora, que tornava seu próprio sentido possível, reconhecível (Butler, 2016aBUTLER, Judith. 2016a. Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto? 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 22-24).

Butler critica igualmente a pressuposição de que o corpo político é uma unidade, porque, para ela, qualquer formação de “povo” é parcial e a tarefa política consiste em ocupar-se do ato de demarcação dessas linhas que definem quem é o “povo” e quem não conta como tal, justamente para que esses termos, como “o povo” e “o sujeito” possam se tornar abertos a uma elaboração (Butler, 2015BUTLER, Judith. 2015. Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.). É nesse contexto e para essa finalidade que discute tanto a guerra como a violência: a guerra divide as populações entre aquelas pessoas por quem lamentamos e aquelas por quem não lamentamos (Butler, 2016aBUTLER, Judith. 2016a. Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto? 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.), daqueles que merecem a preservação como vidas enlutáveis, dignas de luto, e das não enlutáveis (Butler, 2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70.).

Diante desse cenário, parece-lhe imperativa uma crítica à ética egológica (Butler, 2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70.), pautada em um ideal moral liberal de autossuficiência, numa lógica instrumental e individualista (Butler, 2015BUTLER, Judith. 2015. Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.). Seu foco dirige-se às situações de precariedade e em suas distribuições diferenciais, na expectativa de que possam se formar novas alianças capazes de superar os impasses (neo)liberais (Butler, 2016aBUTLER, Judith. 2016a. Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto? 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).

A precariedade é entendida como condição politicamente induzida de vulnerabilidade, maximizada pela exposição à violência de toda ordem, privando aquelas vidas raramente reconhecidas de possibilidade de existência, de persistência e de reconhecimento na esfera de aparição pública (Butler, 2015BUTLER, Judith. 2015. Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.). A tarefa, para Butler, consistiria em levantar a questão sobre o que torna uma vida vivível, antes de se debater que tipo de vida deve-se viver (Butler, 2015BUTLER, Judith. 2015. Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.), mas também debater o papel do Estado. Com efeito, se em vez de proteger, é o Estado que contribui para a maximização da precariedade com redes sociais e econômicas de apoio deficientes, que as expõem de forma diferenciada às violações, à violência e à morte (Butler, 2016aBUTLER, Judith. 2016a. Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto? 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.), há de se entender os modos em que a violência opera em seu interior: desde a confusão semântica em torno do que é ou não violento, renomeando regularmente seu próprio caráter violento como coerção justificável ou força legítima (Butler, 2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70.) e desacreditando objetivos da oposição, justificando a radical privação de direitos aos modos de instituição e de preservação da lei (Butler, 2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70.). Trata-se, portanto, de problematizar o Estado-Nação como único enquadramento de referência para se pensar os sujeitos sociais, algo que é inclusive pressuposto pelo multiculturalismo, como se as comunidades já estivessem constituídas, os sujeitos já estabelecidos, quando, em verdade, o que está em jogo são comunidades não exatamente reconhecidas como tais, sujeitos que estão vivos, mas que ainda não são considerados “vidas” (Butler 2016aBUTLER, Judith. 2016a. Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto? 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).

Para Butler, esses questionamentos colocam em cena as condicionantes e as formas diferenciais de poder pelas quais essas esferas são constituídas para a configuração da esfera pública, pautadas na fala, na deliberação pública, na elaboração de projetos, que acabam por excluir todos os grupos que sejam associados com a forma corporal de existência caracterizadas pela transitoriedade e efemeridade, como mulheres, escravos, crianças, muito idosos ou incapazes para o trabalho (Butler, 2015BUTLER, Judith. 2015. Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.). Portanto, um foco menos centrado nas políticas identitárias ou nos tipos de interesses e crenças formulados com base em pretensões identitárias e mais na precariedade e em suas distribuições diferenciais, na expectativa de poderem se formar novas alianças capazes de superar os tipos de impasses liberais ou multiculturais pressupostos pela forma Estado-Nação (Butler 2016aBUTLER, Judith. 2016a. Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto? 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).

Essa análise crítica das inadequações dos discursos normativos do liberalismo e do multiculturalismo, coloca-lhe a tarefa de compreender tanto as novas formações do sujeito, sua interdependência global, as redes interconectadas de poder e sua posição na vida contemporânea, quanto as novas formas de antagonismo social e político, valendo-se de vocabulário alternativo (Butler, 2016aBUTLER, Judith. 2016a. Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto? 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.), elaborado por meio de um outro estado de percepção e ativado por outro imaginário, que nos desoriente dos dados do nosso presente político e nos ajude a encontrar caminhos para uma vida ética e política em que a agressão e o sofrimento não se convertam imediatamente em violência (Butler, 2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70.).

Nessa linha, se a ética empresarial neoliberal exorta os mais privados de poder a assumir responsabilidade por si mesmo em suas vidas, sem depender de ninguém, Butler procurará desenvolver uma ontologia social do sujeito em que “o sujeito” seja concebido como um conjunto ativo e transitivo de inter-relações, como o espaço de aparência, que antecede qualquer instituição política, que se dá entre os corpos, como numa fenda entre cada qual, que implique repensar esses elementos inerentes à organização e interpretação políticas: precariedade, vulnerabilidade, dor, interdependência, exposição, subsistência corporal, desejo, trabalho, reivindicações sobre a linguagem e pertencimento social (Butler, 2016aBUTLER, Judith. 2016a. Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto? 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.).

A autora refere-se a esse “sujeito” como “coligação” (Butler, 2016aBUTLER, Judith. 2016a. Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto? 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.) ou aliança, em que cada qual já é uma assembleia ou um assemblage, num duplo movimento que tanto questiona a visão unitária empresarial como identitária quanto nos convida a pensar uma ética de coabitação, em sua relacionalidade, em sua condição de ser social. É essa relacionalidade que a remete a um novo paradigma de igualdade, que reputa mais radical (Butler, 2015BUTLER, Judith. 2015. Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press.), porque não reportada aos indivíduos, portanto avessa ao individualismo, mas pensada a partir das relações sociais (Butler, 2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70.).

Tenho afirmado que a tarefa, como a imagino, não é superar a dependência para alcançar a autossuficiência, mas aceitar a interdependência como condição de igualdade (Butler, 2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70., p. 51)

É essa crítica ao sujeito e esse novo vocabulário em torno da igualdade que permite deslocar a vulnerabilidade de um estado subjetivo para ser pensada como uma característica das nossas vidas compartilhadas ou interdependentes. A centralidade política desloca-se para aquilo de que dependemos e em relação ao que estamos expostos, vale dizer, a uma situação, a uma pessoa, a uma estrutura social. Com isso, a vulnerabilidade pode ser entendida como uma característica da relação que nos vincula uns aos outros e às estruturas e instituições de maior dimensão de que dependemos para a conservação da vida. Com isso, logo se vê que a tarefa não consiste em superar a dependência de modo a atingir a autossuficiência (neo liberal, mas em aceitar a interdependência como uma condição de igualdade e em pensar as reivindicações de igualdade a partir das relações entre pessoas, em nome dessas relações e desses vínculos (Butler, 2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70.).

É a partir dessa condição de interdependência que, para Butler, torna-se possível pensar as alianças e a solidariedade. Quando o mundo nos falha, o corpo sofre, quando um corpo é exposto de forma diferenciada ao perigo ou à morte, essa situação exibe e revela a sua precariedade e é essa emergência que por si já expressa ou acarreta uma reivindicação política e uma indignação pelo sofrimento de uma forma de desigualdade injusta (Butler, 2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70.).

Justamente porque incorpora elementos que contrastam com a ética neoliberal da autossuficiência, como a passividade, a transitoriedade, a precariedade, próprias daqueles que são vulneráveis, como crianças, mulheres, idosos, pessoas com deficiência, como também por entender o sujeito como uma assembleia não unitária, que essas alianças, reuniões ou assembleias deixam de fundar-se em projetos, em sujeitos coletivos, em projetos contra-hegemônicos, que reclamam fundação em posições do sujeito ou na reconciliação de diferenças entre as distintas posições. Essas alianças e reuniões se tornam campos animados de diferenças no sentido de que “ser produzido por outro” e “produzir outro” são parte da própria ontologia social do sujeito (Butler, 2016aBUTLER, Judith. 2016a. Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto? 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.) e por isso essas assembleias populares formam-se inesperadamente e dissolvem-se sob condições voluntárias ou involuntárias.

Essa transitoriedade assume, portanto, uma função crítica, uma forma plural de performatividade que assume formas diversas, linguística e corporais, de resistência (Butler, 2015BUTLER, Judith. 2015. Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press., p. 6-9), que deslocam politicamente termos separados como vulnerabilidade e resistência para, rompendo com o dualismo atividade-passividade, resistência e agência, entre outros (Butler, 2016bBUTLER, Judith. 2016b. Rethinking vulnerability and resistance. In: BUTLER, Judith (org.). Vulnerability in resistance. Durham: Duke University Press, posição 625-670. E-book.), elaboram a crítica do paternalismo e de uma política pautada apenas na vulnerabilidade, na dependência ou no cuidado (Butler, 2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70.).

Se a violência está associada com a intensificação de uma desigualdade social - no que a aproxima do ideário fraseriano de distribuição e participação equitativa -, é porque, como analisa Safatle, a despossessão pode aparecer também como expressão máxima de uma vulnerabilidade produzida pela insegurança social e civil e que deve ser politicamente combatida com todas as nossas forças, já que produz um não ser social. Todavia, isso não elimina a necessidade de uma política que seja também capaz de quebrar a substancialização do “individualismo possessivo” por meio da afirmação da produtividade de situações de insegurança ontológica (Safatle, 2017). Nesse contexto, a assembleia e a resistência devem ser pensadas a partir da diferença em relação a essa violência, como não violência, associada a um compromisso com a igualdade radical (Butler, 2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70.).

Essa resistência expressa-se por uma forma de persistência que possui o potencial de derrotar um dos propósitos norteadores do poder violento, o de serem apresentados como vidas dispensáveis. A resistência pauta-se numa reivindicação igualitária a uma vida enlutável e vivível como ideal social orientador, contra formas sistêmicas de destruição e por um mundo que honre a interdependência global do tipo que incorpora ideais de liberdade e igualdade econômica, social e política. Trata-se, assim, não apenas de uma resistência que supera a posição moral adotada por indivíduos em reação a um campo de ação possível, ultrapassando, portanto, o legado do individualismo (Butler, 2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70., p. 28-31), mas que também pode superar a lógica instrumental como qualquer esquema teleológico de desenvolvimento.

A não violência emerge, portanto, como um modo de resolução não violenta de conflitos, uma técnica de governança civil, sem governo, possivelmente ingovernável, que contribua, aos moldes da tradução, a reforçar e aumentar a comunicabilidade, onde antes havia impasse ou mesmo conflito, numa atividade recíproca, contínua, de alteração, intensificação e aumento de toda linguagem, de toda forma de comunicação (Butler, 2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70.).

Assim, transitoriedade e provisoriedade dialogam, aos moldes foucaultianos, com a crítica a uma visão unitária sobre os modos de ação do poder. Para Butler, diferentemente da reforma não reformista de Fraser, essa postura crítica é incessante, sujeita a uma lógica temporal de acordo com a qual se desloca de um lugar para outro (Butler, 2016BUTLER, Judith; GAMBETTI, Zeynep; SABSAY, Leticia. 2016. Introduction. In: BUTLER, Judith (org.). Vulnerability in resistance. Durham: Duke University Press, posição 345. E-book.). A tarefa parece ser, então, a de encontrar uma maneira de viver e agir com a ambivalência inerente a esses processos, entendendo-a, contudo, não como um impasse, mas como uma divisão interna que apela a uma orientação e prática éticas (Butler, 2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70.). A solidariedade, neste contexto, é “controversa e preciosa”, aceita o caráter transversal das alianças, com sua perpétua necessidade de tradução (Butler, 2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70., p. 153).

Desafios, imaginações políticas: algumas linhas

Não é necessário amarmos uns aos outros para termos a obrigação de construir um mundo em que todas as vidas são sustentáveis. O direito de continuar existindo só pode ser entendido como um direito social, como instância subjetiva de uma obrigação social e global que temos uns com os outros. Interdependente, nossa continuidade é relacional, frágil, às vezes conflituosa e insuportável, às vezes gratificante e feliz. […] Conter a destruição é fazer uma das afirmações mais importantes que podemos fazer neste mundo. É a afirmação desta vida, ligada à sua, leitor ou leitora, e ao reino dos vivos: uma afirmação atrelada ao potencial de destruição e à sua força contrária. (Butler, 2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70., p. 63)

Se contrapondo, a partir de diferentes posições, à destruição das vidas, de todas elas, opondo-se às lógicas das guerras, da ideia de que há vidas descartáveis, de que cada um deve salvar-se como puder e encarar o outro como seu inimigo e competidor, como se vivêssemos em um reality show permanente que nos colocaria em um quadro/tela impenetrável e imutável, nossos autores apresentaram ideias sobre mudança, política, direitos e justiça.

O retorno da crítica, da sua possibilidade, de uma crítica que tenha um efeito, é uma das questões que permeia todos os escritos que apresentamos. Não consideram que a crítica ao poder seja inerte, apesar de reconhecerem seus limites. Por meio da crítica, perfuram as muralhas do óbvio, daquilo que se apresenta como natural. Criam um intervalo para que se questione o “tudo sempre foi assim e sempre será”, o conformismo e a resignação. Reativam, partindo de linguagens diferentes, a possibilidade da não servidão voluntária. Dizem, em sua singularidade, que o tempo da emancipação pode estar presente, mas para isso seria preciso romper “com uma visão de história como processo global que a associa a uma ideia de impossível, ideia essa que coincide com a de uma incapacidade das pluralidades” (Rancière, 2011RANCIÈRE, Jacques. 2011. O tempo da emancipação já passou? In: Didi-Huberman, Georges; Rancière, Jacques; Mondzin, Marie-José; Stiegler, Bernard. A República por vir. Arte, Política e Pensamento para o Século XXI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian . pp. 73-100., p. 86).

Com oscilações e deslocamentos, fazem o exercício da imaginação política, recuperando a agência, o sujeito, as classes, os coletivos, as alianças, as assembleias, o pronome “nós”, que poderia alicerçar um projeto que comportasse a emancipação, uma extensão da vida comum, obrigações globais que sirvam a todos os habitantes.

Se fosse possível uma síntese (que não pretendemos, pois é melhor sustentar as pluralidades e as singularidades e imaginar o que há como comum a ser construído) essa seria dada pela frase: “O “eu” não é você, mas é inconcebível “sem você” - sem mundo, insustentável” (Butler, 2021BUTLER, Judith. 2021. A força da não-violência. Lisboa: Edições 70., p. 155).

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  • TROIAN, Thalita. 2020. Justiça e Feminismo na Teoria Crítica de Nancy Fraser. Dissertação de mestrado em Filosofia. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
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    » https://doi.org/10.12957/rqi.2021.48601
  • 1
    “Efectivamente, la densidad del mundo ha de imaginarse. No hace otra cosa que tocarse, mirarse, escucharse o pensarse. La imaginación vuelve a la densidad del mundo cuando se hace capaz de abrir los posibles, estas “utopías concretas” de las que hablaba Ernst Bloch o estas “heterotopías” a las que se refirió Michel Foucault. […] ¿Abrir los posibles no es, precisamente, marcar el tono a nuestras formas de aprehender el mundo para reinventarlo mejor, para reiniciarlo mejor?” (Didi-Huberman, 2020DIDI-HUBERMAN, Georges. 2020. La imaginación, nuestra Comuna. Theory Now: Journal of Literature, Critique and Thought. v. 3, n. 2, pp. 5-21. DOI: https://doi.org/10.30827/tnj.v3i2.13931.
    https://doi.org/https://doi.org/10.30827...
    , p. 11)
  • 2
    “La imaginación seria entonces uno de nuestros bienes comunes más preciados y fecundos. O, mejor dicho: es una de nuestras grandes facultades comunes […] En resumen, la imaginación revelaría en la humanidad la potencia misma de su propia libertad.” (Didi-Huberman, 2020DIDI-HUBERMAN, Georges. 2020. La imaginación, nuestra Comuna. Theory Now: Journal of Literature, Critique and Thought. v. 3, n. 2, pp. 5-21. DOI: https://doi.org/10.30827/tnj.v3i2.13931.
    https://doi.org/https://doi.org/10.30827...
    , p. 9)
  • 3
    “El concepto de CS [cohesión social] tiene una utilidad teórica y heurística muy distinta a la tentativa de utilizarlo como un mecanismo para ocultar ideológicamente las contradicciones y los conflictos sociales” (Barba Solano, 2011BARBA SOLANO, Carlos. 2011. Revisión teórica del concepto de cohesión social: Hacia una perspectiva normativa para América Latina. In: BARBA SOLANO, Carlos; COHEN, Néstor (org.). Perspectivas críticas sobre la cohesión social: Desigualdad y tentativas fallidas de integración social em América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2011. pp. 67-88., p. 69).
  • 4
    Para Honneth “a solidariedade seria a base sobre a qual se assenta a coesão social de uma sociedade na qual certos valores e normas são partilhados”. Uma análise sobre os desafios que enfrentam Fraser e Honneth ao discutir solidariedade e coesão, pode ser encontrada em Costa Neves (2018COSTA NEVES, Paulo Sérgio. 2018. Reconhecimento ou Redistribuição: O que o debate entre Honneth e Fraser diz das lutas sociais e vice-versa. Política & Sociedade, v. 17, n. 40, pp. 234-257. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2018v17n40p234.
    https://doi.org/https://doi.org/10.5007/...
    , p. 237).
  • 5
    Em Sen “o objetivo do desenvolvimento é melhorar a vida humana, [o que] significa expandir as possibilidades de […] [dotar] o indivíduo ([de] funcionamentos e capacidades de funcionar, tais como ser saudável e bem-nutrido, ter conhecimento, participar da vida da comunidade)” (Fukuda-Parr, 2003FUKUDA-PARR, Sakiko. 2003. The human development paradigm: operationalizing Sen’s ideas on capabilities. Feminist Economics, 9:2-3, 301-317, DOI: 10.1080/1354570022000077980.
    https://doi.org/10.1080/1354570022000077...
    , p. 303).
  • 6
    Si asumimos, como pienso que debemos hacerlo, que el reconocimiento fallido, la representación fallida y el des-enmarque pertenecen en principio al catálogo de las auténticas injusticias, la desestabilización de una gramática que las encubría debe situarse entre las evoluciones positivas. Este es, pues, el lado bueno de la justicia anormal: mayores posibilidades de rechazar la injusticia. (Fraser, 2008FRASER, Nancy. 2008 Escalas de Justiça. Barcelona: Herder., p. 112)
  • 7
    “En el primer caso cohesionar la sociedad implica reducir la desigualdad a través de procesos redistributivos, en el segundo cohesionarla implica mercantilizar el trabajo; mientras en el tercero implica segmentar a la sociedad a través de procesos específicos de reciprocidad. (Es evidente que estas formas de cohesión se corresponden con 3 de los 4 principios de integración económica señalados por Karl Polanyi (1992): la redistribución, el mercado y la reciprocidad.)” (Barba Solano, 2011BARBA SOLANO, Carlos. 2011. Revisión teórica del concepto de cohesión social: Hacia una perspectiva normativa para América Latina. In: BARBA SOLANO, Carlos; COHEN, Néstor (org.). Perspectivas críticas sobre la cohesión social: Desigualdad y tentativas fallidas de integración social em América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2011. pp. 67-88., p. 76, tradução nossa).
  • 8
    “Gramsci chamaria essa capacidade de hegemonia [dominante e difusora do ethos capitalista de] uma cultura que torna indeclináveis as questões propostas, […] [e] obriga o adversário a jogar com as linguagens, situações, instituições, cultura, inventados e que se tornam, assim, a cultura dominante. A hegemonia é a produção conflituosa do consenso” (Oliveira, 2006OLIVEIRA, Francisco de. 2006. A dominação globalizada: estrutura e dinâmica da dominação burguesa no Brasil. In: BASUALDO, Eduardo M.; ARCEO, Enrique. Neoliberalismo y sectores dominantes. Tendencias globales y experiencias nacionales. Buenos Aires: CLACSO . , p. 266).
  • 9
    “As primeiras formulações de Nancy Fraser acerca de uma teoria da justiça começam com uma discussão sobre o reconhecimento, e tratam da justiça social reclamada pelas lutas sociais. […] Somente [na década de 1990] [é que] no lugar de movimentos sociais de classes lutando pela redistribuição, há movimentos sociais de grupos combatendo a dominação cultural em busca do reconhecimento de suas identidades” (Troian, 2020TROIAN, Thalita. 2020. Justiça e Feminismo na Teoria Crítica de Nancy Fraser. Dissertação de mestrado em Filosofia. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto., p. 43).
  • 10
    Aceptar como bien formuladas e inteligibles en principio reclamaciones fundadas en, por lo menos, las tres distintas percepciones del “qué” de la justicia, a saber: redistribución, reconocimiento y representación. Aceptando provisionalmente una perspectiva de la justicia, centrada en la economía, la cultura y la política, la teoría debería permanecer, no obstante, abierta a la eclosión de otras dimensiones ganadas con la lucha social. (Fraser, 2008FRASER, Nancy. 2008 Escalas de Justiça. Barcelona: Herder., p. 117).
  • 11
    Fraser e Jaeggi “ostentam e mantêm entre si muitas divergências fortes, inclusive divergências de saída (dentre as quais se destaca a divergência quanto a conceber o capitalismo como ordem social institucionalizada, como defende Fraser, ou como forma de vida, como defende Jaeggi” (Souza Filho, 2020, p. 122).
  • 12
    Al considerar la posibilidad de que los enmarques de primer orden de la justicia puedan ser ellos mismos injustos, este nivel entiende el problema del marco como una cuestión de justicia. En consecuencia, aporta la reflexividad necesaria para analizar las disputas sobre el “quien” en la justicia anormal. (FRASER, 2008FRASER, Nancy. 2008 Escalas de Justiça. Barcelona: Herder., p. 123)
  • 13
    “De acuerdo con ese principio, todos aquellos que están sujetos a una estructura de gobernación determinada están en posición moral de ser sujetos de justicia en relación con dicha estructura […] en el mundo actual, todos estamos sujetos a una pluralidad de diferentes estructuras de gobernación, locales, nacionales, regionales o globales. Lo que urge, por tanto, es delimitar distintos marcos según se trate de distintos problemas. El principio de ‘todos los sujetos’, capaz como es de distinguir muchos ‘quiénes’ según fines distintos, nos indica cuándo y dónde aplicar un marco o bien otro, y, por lo mismo, quién tiene derecho a participar paritariamente con quién en un caso determinado”. (Fraser, 2008FRASER, Nancy. 2008 Escalas de Justiça. Barcelona: Herder., p. 127-129)
  • 14
    Há uma cultura capitalista (Gemelli, 2020GEMELLI, Catia Eli. 2020. Capitalismo flexível como propulsor da ideologia gerencialista: um diálogo com Luc Boltanski, Ève Chiapello, Vincent de Gaulejac e Richard Sennett. Farol - Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, v. 7, n. 19, pp. 738-767.) que pode ser definida como “o conjunto de crenças associadas à ordem capitalista que contribuem para justificar e sustentar essa ordem, legitimando os modos de ações e as disposições coerentes com ela” (Boltanski e Chiapello, 2009BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. 2009. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes., p. 42).
  • 15
    Identifica a dominação pelo terror, a dominação ideológica e a dominação gestionária. Cabe chamar atenção para seu caráter não estanque, com entrecruzamentos diversos entre as formas de dominação. Sua ênfase estará no estudo da dominação gestionária, sem sujeitos, alicerçada em dispositivos e justificada pela “necessidade” (Boltanski, 2013BOLTANSKI, Luc . 2013. Sociologia da crítica, instituições e o novo modo de dominação gestionária. Sociologia &Antropologia, v. 3, n. 6, pp. 441-463., p. 449).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2022
  • Aceito
    12 Set 2022
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