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TERRITÓRIOS EM DISPUTA: COMENTÁRIOS SOBRE O CONTRALAUDO ELABORADO SOBRE A TERRA INDÍGENA POTRERO GUAÇU

DISPUTED TERRITORIES: COMMENTS ON THE COUNTER-REPORT PREPARED ON THE POTRERO GUAÇU INDIGENOUS LAND

Resumo

Este artigo tem por intuito compreender os dilemas e as fricções nas relações disciplinares que se estabelecem em processos judiciais de demarcação de terras indígenas. Para tanto, analisar-se-á um laudo de assistência técnica elaborado no curso do processo judicial de demarcação da Terra Indígena Potrero Guaçu, ocupada por indígenas Guarani no estado de Mato Grosso do Sul. Para realizar a análise, buscou-se identificar os principais conceitos expostos no supramencionado laudo e confrontá-los com a literatura estabelecida sobre o tema. Dessa forma, procurou-se demonstrar que para um eficaz exercício da jurisdição no transcurso de lides fundiárias que envolvam populações indígenas, não basta o mero conhecimento dos dispositivos legais. Além disso, é preciso compreender quais as especificidades, saberes, metodologias e técnicas permitem que o perito antropólogo elabore um laudo cientificamente embasado, a fim de que possa ser realizada uma adequada apreciação da prova pericial nesse contexto de conflito fundiário.

Palavras-chaves:
Demarcação de Terras Indígenas; Conflitos Fundiários; Perícia Antropológica

Abstract

This article aims to understand the dilemmas and frictions in the relationships between Anthropology and Law, which are established in traditional lawsuits about demarcation of Indigenous territories. Therefore, the technical assistance report prepared in the course of the judicial process of demarcation of the Potrero Guaçu Indigenous Territory, occupied by Guarani Indigenous people in Mato Grosso do Sul, will be analyzed. To carry out an analysis, we sought to identify the main concepts exposed in the aforementioned report, and confront them with an established literature on the subject. In this way, we sought to demonstrate which for an effective device of land disputes about Indigenous territories, knowledge about the judicial procedures is not enough. In addition, it is necessary to understand the specificities, knowledge, methodologies and techniques that allow the anthropologist expert to prepare a scientifically based report, so that an adequate assessment of the expert evidence can be carried out in this context of land conflict.

Keywords:
Demarcation of Indigenous Territories; Land Conflicts; Expert Anthropological Evidence

Introdução

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que modificou a dinâmica e os critérios para a demarcação das terras indígenas no Brasil, houve um aumento exponencial na atuação dos antropólogos enquanto auxiliares do juízo, na qualidade de peritos. É de especial relevância compreender esse contexto específico de produção desse trabalho e conceber a elaboração de perícias por parte dos antropólogos, não como prática apartada e diversa da qual se ocupam os antropólogos, mas, sim, como gênero no qual se aplicam ferramentas, instrumentos e teorias pertinentes à Antropologia para a confecção de um produto específico, o laudo antropológico, seja no curso de processos judiciais ou administrativos.

Essa perspectiva é relevante, pois os laudos elaborados por esses especialistas devem ser apreciados pelos juízes, a partir da perspectiva científica que embasaram sua produção, os ditames da Antropologia. Esses documentos não podem ser apreciados de modo adequado a partir de uma simples leitura baseada no senso comum e na imagem estereotipada do que seria ser índio. Para tanto, é necessário compreender minimamente a forma como se produzem os laudos antropológicos periciais e sua forma de produção.

A importância se opera, sobretudo, em um momento de crescente tensão no que se refere à garantia dos direitos territoriais de populações indígenas e incompreensão com a metodologia e a forma de trabalho operacionalizada pelos profissionais antropólogos. Exemplo maior foi a instauração da intitulada CPI da Funai, na qual diversos antropólogos foram acusados de se conluiar com lideranças indígenas, com o intuito de lesar os latifundiários.

Dessa maneira, este artigo tem como intuito apresentar as balizas que envolvem a produção antropológica de um laudo pericial, para que este tipo de documento técnico possa ser adequadamente apreciado em processos, judiciais ou administrativos, que envolvam terras tradicionalmente ocupadas por populações indígenas.

Para tanto, buscou-se analisar um laudo de assistência técnica, ou contralaudo, elaborado no curso do processo judicial de demarcação da Terra indígena Potrero Guaçu, ocupada por povos Guarani no estado de Mato Grosso do Sul. O referido contralaudo foi elaborado por um indivíduo sem qualquer formação antropológica e reforça argumentos simplistas calcados no senso comum, que não levam em conta a multiplicidade de significados do Território. Entretanto, analisá-lo é útil para que se possa confrontá-lo com a adequada produção de laudos antropológicos e, assim, apresentá-lo à consideração jurídica.

Reconceituando o(s) território(s)

Inicialmente, é preciso estabelecer alguns marcos conceituais, sobretudo para compreender que a forma como se pensa e se operacionaliza a categoria “território” não é unívoca e estanque, e que ela decorre de um processo histórico e de apropriação que não é compartilhado por todos. Assim, a categoria “território” pode ter diferentes concepções e significados a depender da visão de mundo que a maneja. A concepção de território se encontra encartada em dispositivos legais que estão pautados no modelo europeu e vinculados ao período da construção do Estado moderno, resultando na definição de um Estado-territorial, a forma geográfico-política típica do mundo colonial que teve origem no fim da Idade Média na Península Ibérica (Porto-Gonçalves, 2006PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. 2006. A reinvenção dos territórios: a experiência latino-americana e caribenha. Buenos Aires: Clacso. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3SkxJ72 . Acesso em: 12 abr. 2022.
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). Trata-se, portanto, de um construto tipicamente colonial, estabelecido num contexto de supremacia do poder político, econômico e religioso da Europa, e de consequente subjugação do resto do mundo à Europa.

Ainda que a colonização da América Latina tenha formalmente se encerrado, não mais havendo vínculo jurídico do tipo metrópole-colônia, como o que marcou a construção do que chamamos hoje de “América Latina”, a colonialidade na região não chegou ao fim, assim como em vastas outras regiões do planeta. Na verdade, ela persistiu em uma série de esferas: a colonialidade do saber, do poder e do ser (Quijano, 2011QUIJANO, Anibal. 2011. La colonialiad del poder. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidade del saber: eucentrismo y ciencias sociales. Buenos Aires: Clacso . pp. 117-142. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3KuyoB1 . Acesso em: 12 abr. 2022.
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).

A partir da colonialidade do saber, encontramos uma concepção de território ancorada em um ponto de vista liberal, baseado no sentido de propriedade igualmente liberal, associado à concepção de direito fundamental de primeira dimensão. Embora a Constituição Federal de 1988 tenha inovado, comparando-se com as cartas constitucionais pretéritas, ainda temos dificuldade de compreender a importância dos territórios para os povos indígenas.

Embora os povos indígenas tenham se destacado em movimentos emancipatórios na América Latina, em que novas territorialidades com valores emancipatórios ganharam força e corpo (Porto-Gonçalves, 2006PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. 2006. A reinvenção dos territórios: a experiência latino-americana e caribenha. Buenos Aires: Clacso. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3SkxJ72 . Acesso em: 12 abr. 2022.
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), ainda se evidenciam empecilhos na compreensão do que os povos indígenas, cada um com suas diferenças e nuances, entendem por território. Para os povos indígenas, o território não está relacionado a uma concepção fundiária, mas de (r)existência, no sentido de que é nele que realizam suas práticas culturais, religiosas e de produção.

É importante esclarecer que não se deve imaginar os povos indígenas como um grupo uno ou homogêneo. Cada coletividade tem uma cosmologia particular e sua própria concepção de território. Assim, devemos compreender os territórios como substâncias históricas que são sempre produzidas e que se concretizam com base nos sujeitos históricos que os instituíram (Porto-Gonçalves, 2006PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. 2006. A reinvenção dos territórios: a experiência latino-americana e caribenha. Buenos Aires: Clacso. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3SkxJ72 . Acesso em: 12 abr. 2022.
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).

Existe uma pluralidade de territórios, mas, em razão da imposição de um entendimento estatal limitado a uma visão eurocêntrica e monodirecionada, confere-se aos povos indígenas apenas uma autonomia débil (Porto-Gonçalves, 2006PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. 2006. A reinvenção dos territórios: a experiência latino-americana e caribenha. Buenos Aires: Clacso. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3SkxJ72 . Acesso em: 12 abr. 2022.
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). De modo que, ao não conseguir fazer prevalecer uma visão produtivista e neoliberal economicista do território, iniciam-se as tentativas de usurpação por parte daqueles que se colocam na defesa da continuidade do projeto de submissão dos povos indígenas no contexto da colonialidade do poder.

É importante ressaltar ainda que a forma como as coletividades indígenas se apropriam e convivem com o território vai na contramão do uso dos recursos naturais e dos bens comuns próprios à sociedade hegemônica neoliberal, que vem se agravando e ganhando novos contornos. Svampa (2019SVAMPA, Maristela. 2019. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina. São Paulo: Elefante.) ressalta que, nas duas últimas décadas, tem ganhado força o neoextrativismo, uma forma de exploração do ambiente que busca tirar o máximo de proveito econômico do território, sem levar em consideração uma série de variáveis e demais formas de lidar com a terra e o ambiente.

É justamente nesse embate entre visões de mundo e formas de viver, que tais conflitos ganham contorno e chegam ao Poder Judiciário, espaço dominado por conceitos liberais e atrelados a noções eurocêntricas, mas que terá o poder de definir e demarcar os territórios indígenas. É por essas razões que a perícia antropológica é fundamental e que se devem compreender as bases teórico-metodológicas que a fundamentam para que possa ser realizada uma correta apreciação do laudo pericial antropológico.

Territórios em juízo: a perícia nos processos de demarcação de Terras Indígenas

À primeira vista, pode-se imaginar um panorama maniqueísta, no qual haveria um abismo entre a produção antropológica acadêmica e a produção na realização de perícias. Contudo é muito mais produtivo compreender ambas as espécies de produções enquanto científicas e capazes de aplicar instrumentos e metodologias científicas próprias da Antropologia. O’Dwyer (2005O’DWYER, Eliane Cantarino. 2005. Laudos antropológicos: pesquisa aplicada ou exercício profissional da disciplina? In: LEITE, Ilka Boaventura. Laudos periciais antropológicos em debate. Florianópolis: NUER; ABA.) se debruça sobre a eventual diferença entre os supostos “antropólogos práticos” e os “antropólogos teóricos”, estendendo a análise para o resgate de possíveis distinções entre uma “Antropologia da Ação”, que estaria vinculada a princípios éticos de respeito aos povos e grupos estudados, e uma “Antropologia Aplicada”, que se encontraria inteiramente a serviço de interesses alheios ao fazer antropológico. Diante de tais dicotomias, afirma a autora que o resgate dessas categorizações no contexto brasileiro, sobretudo reafirmando suas distinções, desemboca em ilações vazias e que rendem poucos frutos. Propõe então que os pesquisadores em situações de perícia “reflitam sobre as condições e possibilidades de seu fazer antropológico” (O’Dwyer, 2005O’DWYER, Eliane Cantarino. 2005. Laudos antropológicos: pesquisa aplicada ou exercício profissional da disciplina? In: LEITE, Ilka Boaventura. Laudos periciais antropológicos em debate. Florianópolis: NUER; ABA., p. 220).

Caminho semelhante aponta João Pacheco de Oliveira (1994OLIVEIRA, João Pacheco de. 1994. Os instrumentos de bordo: perspectivas e possibilidades do trabalho do antropólogo em laudos periciais. In: SILVA, Orlando Sampaio; LUZ, Lídia; HELM, Cecília Maria Vieira. A perícia antropológica em processos judiciais. Florianópolis: Editora da UFSC . pp. 111-138. ) ao afirmar que, quando da elaboração de um laudo antropológico, o perito antropólogo deve se munir dos instrumentos teóricos e metodológicos que são próprios da Antropologia, de forma que a elaboração de laudos, relatórios e pareceres os torne igualmente científicos. Contudo, ainda que as produções acadêmicas e periciais sejam ambas científicas e (ou devessem ser) realizadas por antropólogos com formação plena, há de se considerar que os contextos de produção desses diversos gêneros são distintos e atendem a interesses diversos.

É preciso reconhecer que, quando há a requisição de perícia antropológica, seja no curso de um processo judicial ou de um procedimento administrativo, não são interesses acadêmicos que a realização do estudo deverá atender, além do fato de que os financiamentos para tais estudos não advêm da comunidade acadêmica. Assim, nesse encontro entre Antropologia e Direito, o perito antropólogo deparará com regras e regulamentos que não são próprios da prática antropológica, e deverá elaborar respostas a questionamentos construídos a partir de um saber disciplinar diverso, sem, contudo, abandonar as ferramentas que lhe são próprias (Oliveira, 1994OLIVEIRA, João Pacheco de. 1994. Os instrumentos de bordo: perspectivas e possibilidades do trabalho do antropólogo em laudos periciais. In: SILVA, Orlando Sampaio; LUZ, Lídia; HELM, Cecília Maria Vieira. A perícia antropológica em processos judiciais. Florianópolis: Editora da UFSC . pp. 111-138. ).

Todavia, não bastassem os percalços dessa interação, há um problema de outra ordem, ressaltado por ambos os autores, O’Dwyer (2005O’DWYER, Eliane Cantarino. 2005. Laudos antropológicos: pesquisa aplicada ou exercício profissional da disciplina? In: LEITE, Ilka Boaventura. Laudos periciais antropológicos em debate. Florianópolis: NUER; ABA.) e Oliveira (1994OLIVEIRA, João Pacheco de. 1994. Os instrumentos de bordo: perspectivas e possibilidades do trabalho do antropólogo em laudos periciais. In: SILVA, Orlando Sampaio; LUZ, Lídia; HELM, Cecília Maria Vieira. A perícia antropológica em processos judiciais. Florianópolis: Editora da UFSC . pp. 111-138. ), que é a falta de regulamentação da profissão do antropólogo com o estabelecimento de requisitos de formação. Em que pese os esforços da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e de outros órgãos - a exemplo do MPF, que inclusive celebrou convênio com a ABA para estabelecer critérios de atuação aos peritos antropólogos nas demandas judiciais -, a ausência de tal regramento quanto a quem pode ser considerado antropólogo permite que ocorram distorções. A falta de regulamentação permite que indivíduos sem qualquer formação em Antropologia se autointitulem antropólogos e atuem na elaboração de perícias judiciais como peritos e, mais comumente, na qualidade de assistentes técnicos de uma das partes em litígio.

É justamente sobre um contralaudo produzido no ano 2000 por um antropólogo autoproclamado, de nome Hilário Rosa (2000ROSA, Hilário. 2000. Laudo de assistência técnica - parte antropológica. 1ª Vara Federal de Dourados/MS. Laudo de Assistência Técnica. Processo nº 92.2000962-6. Dourados: 1ª Vara Federal de Dourados. pp. 552-586.), que se debruçará este trabalho, buscando compreender quais os argumentos utilizados para contrarrazoar o laudo elaborado pelo perito antropólogo de formação, e como essas fundamentações não se sustentam diante dos instrumentos teóricos e metodológicos da Antropologia, e mesmo se confrontados com postulados do Direito que regem o processo judicial, com especial relevo para os critérios de impedimento e suspeição.

Logo de início, o autor do laudo de assistência técnica ora analisado, doravante chamado de assistente, argui a tese de que o laudo antropológico elaborado pelo perito nomeado pelo juízo, doravante chamado apenas perito, estaria eivado de nulidades, visto que tendências ideológicas - portanto parciais - teriam norteado a atuação do perito e, consequentemente, a elaboração do laudo apresentado ao juízo.

Tal alegação teria base no fato de que o perito teria se fundamentado na obra de Ruben Thomaz de Almeida que, por sua vez, estaria comprometido com os princípios da Declaração de Barbados. Assim, haja vista tal declaração encartar o princípio do desenvolvimento comunitário induzido por antropólogos, estaria patente o caráter parcial do autor. Assim, invocando uma suposta subserviência do perito para com esta obra, não haveria dúvidas da sua parcialidade, e tal laudo não poderia ser admitido em juízo. Cumpre lembrar que não há prova que fundamente tais elucubrações, mas tão somente essa relação construída pelo assistente técnico. Porquanto a ideologia integra todo sistema de pensamento, ela está presente tanto no trabalho do perito quanto no do assistente. Almeida (2015ALMEIDA, Marco Antonio Delfino de. 2015. Diálogos entre antropologia e direito à luz dos laudos periciais. In: OLIVEIRA, João Pacheco de; MURA, Fabio; SILVA, Alexandra Barbosa. Laudos antropológicos em perspectiva. Brasília, DF: ABA. pp. 23-47.) já aponta que as exceções de suspeição e impedimento são comuns em casos de litígios que envolvam conflitos fundiários e necessitem da atuação de um perito antropólogo, contudo a discussão se aprofunda para além de uma suposta filiação teórica ou “tendência ideológica”, como nomeia o assistente técnico. Tais discussões envolvem diretamente as condições necessárias à própria realização do fazer antropológico, sem as quais o próprio laudo careceria de cientificidade.

As hipóteses de suspeição aplicadas aos peritos judiciais no processo judicial brasileiro estão previstas no Código de Processo Civil, que as enumera em um rol taxativo, sendo elas:

  • I - amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou de seus advogados;

  • II - que receber presentes de pessoas que tiverem interesse na causa antes ou depois de iniciado o processo, que aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa ou que subministrar meios para atender às despesas do litígio;

  • III - quando qualquer das partes for sua credora ou devedora, de seu cônjuge ou companheiro ou de parentes destes, em linha reta até o terceiro grau, inclusive;

  • IV - interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes. (Brasil, 2015BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 17 mar. 2015.)

O inciso mais invocado para solicitar a suspeição de peritos antropólogos é o IV, visto que ele possibilita uma diversidade de interpretações, de modo que se utilizam do compromisso ético dos antropólogos com seus interlocutores para desqualificá-los como sujeitos idôneos a realizar um laudo pericial que pudesse ser aceito como prova em um processo judicial.

Contudo considerar tal compromisso ético como uma prova cabal de parcialidade do perito antropólogo é reflexo da incompreensão do arcabouço teórico e metodológico da própria Antropologia. Barbosa (2015) ressalta que a própria etnografia necessita de contato entre o pesquisador e os sujeitos, contato este a partir do qual se estabelecem relações que se fundam na confiança, sem as quais não seria possível construir os dados necessários à elaboração de um estudo, seja ele qual for, e mesmo o contexto necessário para a produção de um laudo antropológico não fugirá a essa regra. Assim, os princípios da ABA pressupõem que os dados fornecidos pelos interlocutores não sejam utilizados de forma que possa prejudicá-los, e isso não estaria em contradição com os próprios postulados do Direito, visto que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo.

Deve-se ainda considerar que os juízes têm imposto aos peritos que ambas as partes em litígio estejam em campo durante a realização da perícia antropológica, sob a alegação de que tal situação garantiria mais transparência e imparcialidade ao trabalho do antropólogo, assim já se lança sobre o trabalho desse profissional uma dúvida quanto a seu proceder, que estaria inclinado a favorecer os grupos sociais que estão a pleitear direitos. Quando, na verdade, pela própria forma como o trabalho antropológico é realizado, respeitando e compreendendo as maneiras de fazer, os credos e visões de mundo dos interlocutores com os quais se lida, desenvolve-se uma característica singular: “geralmente revelamos lógicas e ações de dominação e de imposição em nada ‘naturais’ - embora tidas como tais. Como consequência, descortinamos também interesses de grupos hegemônicos de poder” (Silva, 2015SILVA, Alexandra Barbosa da Silva. 2015. Antropologia e laudos: de ética, de imparcialidade e a etnografia como processo prático. In: OLIVEIRA, João Pacheco de; MURA, Fabio; SILVA, Alexandra Barbosa. Laudos antropológicos em perspectiva. Brasília, DF: ABA . pp. 142-168. , pp. 158-159). Tal situação decorre de um entendimento diverso quanto à imparcialidade e verdade entre os dois ramos do saber, direito e antropologia.

Ferreira (2015FERREIRA, Andrey Cordeiro. 2015. Antropologia, verdade e poder. In: OLIVEIRA, João Pacheco de; MURA, Fabio; SILVA, Alexandra Barbosa. Laudos antropológicos em perspectiva. Brasília, DF: ABA . pp. 129-141.) desenvolve os conceitos de verdade e poder, e como eles são pensados de forma distinta na Antropologia e no Direito. O segundo buscaria verdades exclusivas que estariam protegidas pelo manto da neutralidade, mas que terminaria por estar impregnada de parcialidade, visto que não haveria capacidade teórica e científica para vislumbrar e compreender os processos de violência nos quais se assentaram categorias históricas ainda hoje invocadas como unívocas e universais, que, embora se apresentando como imparciais, estão apenas perpetrando violências simbólicas e reforçando hegemonias de poder construídas historicamente.

Ainda assim, não seria suficiente que fossem explicitadas verdades relativas, entendidas como verdades específicas de cada contexto ou grupo, mas é preciso que sejam trazidas à tona verdades subversivas, estas entendidas como verdades que subvertem a lógica de poder; explicitam relações de dominação construídas ao longo do tempo e calcadas no uso da violência; e em práticas de governo e controle cujo objetivo era o silenciamento. Assim, a aplicação dos instrumentos antropológicos possibilita que a verdade que foi solapada durante a construção do Estado nacional, e outras situações, seja explicitada. Dessa forma, subverte-se esse processo de produção de verdade, o que permite trazer objetividade a partir do descortinamento do contexto histórico de espoliação e subjugação (Ferreira, 2015FERREIRA, Andrey Cordeiro. 2015. Antropologia, verdade e poder. In: OLIVEIRA, João Pacheco de; MURA, Fabio; SILVA, Alexandra Barbosa. Laudos antropológicos em perspectiva. Brasília, DF: ABA . pp. 129-141.).

Além disso, é necessário compreender não os campos de disputas como formados por arenas constituídas por saberes diversos e específicos, que são impermeáveis entre si, mas entender esses espaços de disputa como campos unificados nos quais os diversos saberes se interpenetram e dialogam na produção de verdades. A ação social dos sujeitos não é isolada e descontextualizada, de modo que, quando um indivíduo age, os demais se articularão a partir daquele ato, de modo que saberes e indivíduos não estão isolados e agem à revelia dos demais, como sugere Mura (2015MURA, Fabio. 2015. Conflitos fundiários, conflitos de saberes e produção de conhecimento: uma reflexão a partir do caso dos Guarani Kaiowa. In: OLIVEIRA, João Pacheco de; MURA, Fabio; SILVA, Alexandra Barbosa. Laudos antropológicos em perspectiva. Brasília, DF: ABA . pp. 104-128. ).

Assim, para considerar a suspeição ou não de um perito antropólogo, é necessário compreender antes a natureza do trabalho antropológico, e não medi-lo pela mesma régua que se mede a perícia realizada pelas ciências naturais. João Pacheco de Oliveira (1994OLIVEIRA, João Pacheco de. 1994. Os instrumentos de bordo: perspectivas e possibilidades do trabalho do antropólogo em laudos periciais. In: SILVA, Orlando Sampaio; LUZ, Lídia; HELM, Cecília Maria Vieira. A perícia antropológica em processos judiciais. Florianópolis: Editora da UFSC . pp. 111-138. ) é claro ao considerar desmedida a comparação de uma perícia antropológica com um exame laboratorial como uma investigação de paternidade, realizada por meio do DNA.

Portanto, considerando o próprio fazer antropológico, ou seja, os meios pelos quais é possível realizar uma pesquisa que resultará em um laudo, é inviável considerar suspeito um antropólogo tão somente por considerar que por ter desenvolvido laços de confiança com seus interlocutores, sobretudo considerando que, como bem cita Silva (2015SILVA, Alexandra Barbosa da Silva. 2015. Antropologia e laudos: de ética, de imparcialidade e a etnografia como processo prático. In: OLIVEIRA, João Pacheco de; MURA, Fabio; SILVA, Alexandra Barbosa. Laudos antropológicos em perspectiva. Brasília, DF: ABA . pp. 142-168. ), é cada vez mais frequente a presença de ambas as partes na situação de campo, visto que essa é o cerne de sua metodologia e que o compromisso ético para com os periciados decorre da própria natureza das ferramentas da Antropologia, que permitem revelar as relações de poder e dominação que permeiam esses campos unificados, nos quais atuam diversos saberes e atores sociais.

Assim, seria mais profícuo, utilizar como critério para julgar a suspeição de um perito antropólogo a cientificidade do trabalho, como propõe Almeida (2015ALMEIDA, Marco Antonio Delfino de. 2015. Diálogos entre antropologia e direito à luz dos laudos periciais. In: OLIVEIRA, João Pacheco de; MURA, Fabio; SILVA, Alexandra Barbosa. Laudos antropológicos em perspectiva. Brasília, DF: ABA. pp. 23-47.). Contudo tal cientificidade deve ser avaliada internamente, a partir da averiguação a respeito do cumprimento ou não dos pressupostos teóricos e metodológicos da Antropologia, se tais técnicas e teorias foram previamente avaliadas e reconhecidas pelos pares, por exemplo. Afinal, se se aplicam critérios científicos próprios da disciplina na realização de uma perícia, não se pode acusá-la de parcial ou suspeita.

Dessa forma, o simples uso de bibliografia já consolidada sobre determinada coletividade que pleiteava a demarcação de terras, não configura subserviência aos interesses do grupo indígena, nos termos empregados pelo assistente técnico, visto que, além de tal alegação de “tendências ideológicas”, não houve qualquer demonstração de que foram descumpridos postulados teóricos ou metodológicos da Antropologia.

Vestígios arqueológicos, registros escritos e território

Um dos pontos sobre os quais se debruça o contralaudo analisado no caso em tela consiste em reafirmar incessantemente que não há vestígios arqueológicos que comprovem a existência desses indígenas na terra, desde tempos imemoriais, como sociedades pré-colombianas. Embora o perito antropólogo tenha deixado claro que buscas de tal natureza seriam inviáveis, visto que a terra já teria passado por diversos processos de aragem e curva de nível, o assistente técnico reforça o fato de que não havia vestígios arqueológicos nas áreas pretendidas pelos grupos indígenas. Chega a relatar que haveria um pequeno trecho de mata nativa e que, mesmo lá, os indígenas não foram capazes de apontar evidências materiais de sua ocupação.

Essa preocupação exacerbada com vestígios se assenta em dois erros básicos na compreensão do que seriam Terras Indígenas. O primeiro deles é quanto à conceituação de Terra Indígena como ocupada desde tempos imemoriais, e a outra é a imprescindibilidade de vestígios arqueológicos para que esteja caracterizada a ocupação indígena em determinada área.

Inicialmente, é assaz relevante relembrar que a Constituição Federal não mais caracteriza a terra indígena como ocupada desde tempos imemoriais, mas, sim, aquela tradicionalmente ocupada por indígenas, in verbis:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. (Brasil, 1988BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 12 fev. 2023
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
)

Como se pode observar da leitura atenta do texto constitucional, não há qualquer menção à necessidade de comprovar ocupação de povos pré-colombianos ou à existência de vestígios arqueológicos que reconstruam uma ligação com povos que reivindicam as terras Potrero Guaçu com habitantes pré-colombianos, sobretudo em um contexto no qual a terra já havia sofrido ação humana em sua maior parte.

Em segundo lugar, o assistente técnico confunde vestígios arqueológicos com evidências etnográficas. Oliveira (2015OLIVEIRA, Jorge Eremites de. 2015. (Re)Aproximando os campos da antropologia social e da arqueologia no Brasil: etnoarqueologia em laudos antropológicos judiciais sobre Terras Indígenas em Mato Grosso do Sul. In: OLIVEIRA, João Pacheco de; MURA, Fabio; SILVA, Alexandra Barbosa. Laudos antropológicos em perspectiva. Brasília, DF: ABA . pp. 234-261. ), ao descrever as contribuições da Arqueologia nos processos de demarcação de Terras Indígenas, é claro ao afirmar que a principal contribuição que tal ciência dá é a “apresentação de evidências materiais sobre a ocupação humana em áreas reivindicadas por comunidades tradicionais”. Contudo essas evidências não podem ser consideradas vestígios arqueológicos que tracem um passado pré-colombiano, o ponto fulcral de seu valor reside no fato de ser o grupo que reivindica a tradicionalidade dessas evidências. Eremites de Oliveira (2015OLIVEIRA, Jorge Eremites de. 2015. (Re)Aproximando os campos da antropologia social e da arqueologia no Brasil: etnoarqueologia em laudos antropológicos judiciais sobre Terras Indígenas em Mato Grosso do Sul. In: OLIVEIRA, João Pacheco de; MURA, Fabio; SILVA, Alexandra Barbosa. Laudos antropológicos em perspectiva. Brasília, DF: ABA . pp. 234-261. ) reafirma ainda que a arqueologia trabalha com a “materialidade das relações no tempo e no espaço”, de modo que tal ciência de fato pode contribuir na produção de laudos periciais antropológicos, porém o que tem mais relevância no enquadramento de terras como indígenas é a etnografia que se baseia na relação do grupo com o território.

No mesmo sentido disserta O’Dwyer (2005O’DWYER, Eliane Cantarino. 2005. Laudos antropológicos: pesquisa aplicada ou exercício profissional da disciplina? In: LEITE, Ilka Boaventura. Laudos periciais antropológicos em debate. Florianópolis: NUER; ABA.) ao afirmar que a descoberta de vestígios de uma ocupação antiga permitiu que a pesquisa fosse iniciada. Ela considerou tais achados materiais não como vestígios arqueológicos essenciais à consecução da demarcação das terras ou, mesmo que ela os tivesse procurado, tal descoberta ocorreu em decorrência da própria relação de pesquisa construída. Tais achados devem, portanto, ser considerados uma evidência etnográfica sobre o passado, “apropriada presentemente pelo grupo para a construção do que eles chamam ‘história dos princípios’” (O’Dwyer, 2005O’DWYER, Eliane Cantarino. 2005. Laudos antropológicos: pesquisa aplicada ou exercício profissional da disciplina? In: LEITE, Ilka Boaventura. Laudos periciais antropológicos em debate. Florianópolis: NUER; ABA., p. 229). Ressalte-se ainda que a inexistência de vestígios arqueológicos não tem o condão de impedir o reconhecimento da terra como indígena.

Outro ponto ao qual o assistente técnico dispensa sua atenção é o fato de não haver registros históricos sobre a fixação desses povos na região pleiteada. Entretanto é importante ressaltar que o reconhecimento da identidade de um grupo étnico não deve se basear necessariamente em registros históricos e em sua continuidade até à atualidade. João Pacheco de Oliveira (1994OLIVEIRA, João Pacheco de. 1994. Os instrumentos de bordo: perspectivas e possibilidades do trabalho do antropólogo em laudos periciais. In: SILVA, Orlando Sampaio; LUZ, Lídia; HELM, Cecília Maria Vieira. A perícia antropológica em processos judiciais. Florianópolis: Editora da UFSC . pp. 111-138. ) alerta que a identidade dessas coletividades é construída a partir de sua memória coletiva e seus princípios organizacionais.

Assim, não é necessário que haja um robusto acervo documental que comprove a existência de determinado grupo em um período e que essa coletividade permaneça atrelada a um mesmo modo de vida. Reconhecer a identidade de grupos étnicos tão somente balizados nesses critérios seria condená-los a viver em uma bolha temporal insuscetível a mudanças, tirando-os da linha temporal, como alerta Fabian (2013FABIAN, Johannes. 2013. O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes.). Na verdade, a identidade é dinâmica e se amolda às diversas possibilidades e condições disponíveis, buscando então os princípios organizacionais que regem determinado grupo para reconhecer sua identidade. A busca pelo ancestral imemorial no construto do pensamento do assistente técnico tem um caráter carregado de ideologia e cumpre a finalidade de negar reconhecimento, identidade e titularidade aos indígenas.

Valle (2003VALLE, Carlos Guilherme Octaviano do. 2003. Identidade em Caucaia: etnografia e vicissitudes de uma perícia antropológica. Revista Anthropológicas, v. 14, n. 1-2, pp. . Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/3lVb5WM . Acesso: 27 abr. 2022.
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) ressalta a importância do uso dos recursos etno-históricos - considerados por ele como relevantes para compreender como essas coletividades se arranjam e se constroem como grupo étnico -, mas como técnicas de suporte não essenciais ao reconhecimento ou não da identidade indígena de um grupo. Até mesmo porque, como bem relata Ferreira (2015FERREIRA, Andrey Cordeiro. 2015. Antropologia, verdade e poder. In: OLIVEIRA, João Pacheco de; MURA, Fabio; SILVA, Alexandra Barbosa. Laudos antropológicos em perspectiva. Brasília, DF: ABA . pp. 129-141.), os topônimos e etnônimos podem se modificar com o passar do tempo devido a diversas circunstâncias alheias a esses sujeitos, visto que as relações interétnicas foram pautadas pelo uso de violência simbólica e hegemonia de poder por parte dos não indígenas. Assim, os registros escritos podem não ser capazes de dar conta de todas as relações e ocorrências que acontecem ao longo dos anos. Não havendo, portanto, prevalência das fontes escritas sobre a tradição oral, como supõe o assistente técnico.

Questão importante também levantada pelo assistente técnico se refere ao uso do território como mero espaço necessário para a manutenção e subsistência dos indígenas, afirmando inclusive que as terras que já se encontravam demarcadas seriam mais que suficientes para prover o sustento dessas coletividades. Entretanto deve-se compreender que a visão indígena sobre território difere da visão ocidental quanto a sua extensão e uso.

Como já mencionado, a própria Constituição Federal considera o território indígena não só como aquele suficiente à exploração agropecuária que baste para subsistência e habitação, sendo Terras Indígenas: “as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições” (Brasil, 1988BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm . Acesso em: 12 fev. 2023
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).

Tal conceito se coaduna com a compreensão de que o território é mais do que o simples lugar em que se vive e/ou produz, compreendendo também o espaço necessário para que tais grupos possam se desenvolver plenamente, conforme suas tradições e crenças. Assim, acerta Dallari (1994DALLARI, Dalmo. 1994. Argumento antropológico e linguagem jurídica. In: SILVA, Orlando Sampaio; LUZ, Lídia; HELM, Cecília Maria Vieira. A perícia antropológica em processos judiciais. Florianópolis: Editora da UFSC. pp. 103-110. ) ao afirmar a relevância de explicitar a delimitação do território por parte do antropólogo quando da confecção do respectivo laudo, visto que nele devem ser evidenciadas todas as razões pelas quais é necessária a demarcação de território maior do que o que a lógica de produção capitalista considera suficiente para a manutenção de determinada quantidade de indivíduos.

Contudo Oliveira (1994OLIVEIRA, João Pacheco de. 1994. Os instrumentos de bordo: perspectivas e possibilidades do trabalho do antropólogo em laudos periciais. In: SILVA, Orlando Sampaio; LUZ, Lídia; HELM, Cecília Maria Vieira. A perícia antropológica em processos judiciais. Florianópolis: Editora da UFSC . pp. 111-138. ) alerta que não é essa uma tarefa fácil, visto que diversos fatores influenciam nas delimitações desse território, sobretudo a necessidade de que tais fronteiras espaciais tenham limites exatos, o que não necessariamente se alinha com os usos de determinados grupos étnicos, que usam o território de outra forma. Essa preocupação ganha ainda mais relevo com a proibição de que sejam ampliadas terras já demarcadas, visto que tal limitação não considera os aumentos demográficos e conflitos internos que ocorrem no interior dessas coletividades.

Ainda no que tange às Terras Indígenas conforme usos, costumes e tradições, o assistente técnico afirma que não haveria possibilidade de reconhecer a ocupação tradicional dos indígenas, visto que eles seriam “nômades” e viviam “perambulando” onde quer que encontrassem serviço, ou ainda por ocasião de peregrinações capitaneadas por seus pajés, que os levariam até a “terra sem males”, com senso de direção precário sempre do oeste para o leste, em direção ao Oceano Atlântico, sem que, portanto, fosse possível delimitar um território.

O’Dwyer (2005O’DWYER, Eliane Cantarino. 2005. Laudos antropológicos: pesquisa aplicada ou exercício profissional da disciplina? In: LEITE, Ilka Boaventura. Laudos periciais antropológicos em debate. Florianópolis: NUER; ABA.) enfrenta situação semelhante quando instada a atuar como perita em processo de demarcação de terras do povo Awá. Situação na qual termos como “nomadismo”, perambulação e migração apresentam sentidos muito específicos carregados, que, nesse caso, eram utilizados para supor que os Awá vivessem em constante deslocamento “em busca de matas e de fontes d’água para exercer suas atividades de caça, pesca e coleta de frutos, principalmente nos babaçuais, sem estabelecer uma área ou porção de terra na qual se fixem” (O’Dwyer, 2005O’DWYER, Eliane Cantarino. 2005. Laudos antropológicos: pesquisa aplicada ou exercício profissional da disciplina? In: LEITE, Ilka Boaventura. Laudos periciais antropológicos em debate. Florianópolis: NUER; ABA., p. 233). De tal forma, era construído o argumento de que não haveria território próprio. No caso dos Guarani de Potrero Guaçu, o motor das movimentações seria tradicionalmente a erva-mate, que deveria descansar por um ano, o que os obrigaria a ir em busca de novas árvores e fontes de água no ano seguinte. Contudo tal uso do território por parte desse grupo não impede que haja o reconhecimento da tradicionalidade da ocupação.

Por fim, o assistente técnico repete questões que o perito já havia respondido ou destacado as impertinências delas no contexto de uma perícia antropológica. Embora a Antropologia tenha uma ampla gama de ferramentas para realizar perícias em situações como essas, não cabe ao perito antropólogo responder questões que são próprias de outros ramos disciplinares, como o Direito. Dallari (1994DALLARI, Dalmo. 1994. Argumento antropológico e linguagem jurídica. In: SILVA, Orlando Sampaio; LUZ, Lídia; HELM, Cecília Maria Vieira. A perícia antropológica em processos judiciais. Florianópolis: Editora da UFSC. pp. 103-110. ), ao exemplificar situação em que o antropólogo é questionado sobre a distinção jurídica entre os termos posse e ocupação, o caminho mais acertado seria informar que não seria competente para responder a tais perguntas. Assim, é preferível que não sejam dadas respostas que extrapolem a competência do perito e que devam ser formuladas por detentores de outros saberes. Em resumo, cabe à Antropologia resolver as questões de cunho antropológico, não se podendo esperar que também resolva as questões jurídicas, porquanto estas cabem aos operadores do Direito resolver.

Entretanto há situações em que questionamentos direcionados ao perito antropólogo permitem que ele possa reanalisar alguns conceitos, como aponta Mura (2015MURA, Fabio. 2015. Conflitos fundiários, conflitos de saberes e produção de conhecimento: uma reflexão a partir do caso dos Guarani Kaiowa. In: OLIVEIRA, João Pacheco de; MURA, Fabio; SILVA, Alexandra Barbosa. Laudos antropológicos em perspectiva. Brasília, DF: ABA . pp. 104-128. ). O caso por ele levantado envolve o conceito de Tekoha, questionado quanto à validade técnica pelo assistente técnico na elaboração do contralaudo, com a alegação de que só passara a ser utilizado recentemente para a demarcação das terras Guarani.

Assim, em vez de simplesmente deixar a questão prejudicada, o autor se ateve ao conceito e inferiu que o conceito estava sendo reificado e reiterado diversas vezes por parte dos acadêmicos, de modo que não mais guardava correspondência com o uso feito pelos povos Guarani. Sobretudo porque as coletividades que reivindicam seus direitos se apropriam das produções antropológicas e as reinterpretam conforme o contexto no qual vivem. Assim, tal exercício permitiu que Mura (2015MURA, Fabio. 2015. Conflitos fundiários, conflitos de saberes e produção de conhecimento: uma reflexão a partir do caso dos Guarani Kaiowa. In: OLIVEIRA, João Pacheco de; MURA, Fabio; SILVA, Alexandra Barbosa. Laudos antropológicos em perspectiva. Brasília, DF: ABA . pp. 104-128. ) compreendesse que o que estava em jogo não era mais o Tekoha, mas, sim, o Tekoha Guaçu, mais amplo e que compreende o local não só onde grupos aliados convivem, mas um espaço no qual todos convivam, aliados e rivais, numa concepção amplificada do território que não necessariamente alinhava-se ao conceito reificado de Tekoha.

Considerações finais

Neste trabalho, analisou-se o Laudo de Assistência Técnica elaborado pelo assistente técnico Hilário Rosa, nos autos do processo que discutiu conflitos fundiários relativos à terra indígena Potrero Guaçu. No referido documento, o assistente técnico buscou desqualificar o laudo antropológico produzido a mando do juízo, mas com pouca profundidade teórica e metodológica.

Inicialmente, o assistente técnico buscou apontar uma suposta parcialidade do perito antropólogo, baseada em “tendências ideológicas” às quais ele seria subserviente. Entretanto não levou em consideração os critérios que ensejariam a suspeição previstos no ordenamento jurídico brasileiro, nem tampouco as questões que são inerentes ao próprio fazer antropológico, cuja produção de dados requer que seja construída uma relação de confiança com os interlocutores, que não pode ser desrespeitada, tornando públicas informações que lhes seriam prejudiciais.

Sobretudo levando em consideração a natureza do trabalho antropológico, que faz vir à tona dados que estavam ocultados e silenciados por relações de poder assimétricas que perduraram por longos períodos, de modo que ignorar a dominação e a violência simbólica ocorrida, acarretaria parcialidade por aplicar acriticamente conceitos universais historicamente carregados de etnocentrismo e que só servem para reforçar as relações desiguais decorrentes do contato interétnico.

Considere-se ainda que a cientificidade e imparcialidade de estudo elaborado em determinada área deve considerar os próprios critérios teóricos e metodológicos que a disciplina estabelece, critérios estes que sofrem constante revisão pelos pares e não são baseados em critérios generalistas elaborados com o olhar voltado para as Ciências Naturais.

Ressaltou-se também que, no contralaudo analisado, o assistente técnico incorre em imprecisões conceituais, como considerar como requisito essencial à demarcação das terras Potrero Guaçu a comprovação da ocupação desde tempos imemoriais, quando a própria Constituição Federal considera Terras Indígenas aquelas tradicionalmente ocupadas por tais povos, debelando assim a necessidade de estabelecer um elo entre tais coletividades e povos pré-colombianos. Inclusive considerando a distinção entre evidências etnográficas e vestígios arqueológicos, visto que não é necessária a existência de elementos materiais que atestem a ocupação do grupo, bastando que seja analisada etnograficamente a relação do grupo com o território.

Apesar das dificuldades que a tarefa de delimitação territorial implica, ela não pode ser inviabilizada pelos usos diversos do território pelos Guarani de Potrero Guaçu, sobretudo porque a lógica de uso da terra não é a mesma da noção produtivista do uso da terra, devendo ser garantido espaço territorial suficiente para que as coletividades possam desenvolver suas atividades e tenham garantido seu bem-estar.

Por fim, cumpre salientar que, por mais distorcidas que sejam as interpretações encartadas no referido Laudo de Assistência Técnica, o diálogo com seu conteúdo e com as questões que elabora são úteis para revisitar a Teoria Antropológica e repensar alguns conceitos, haja vista a dinamicidade e possibilidade de ressignificação de conceitos por parte dos próprios indígenas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2021
  • Aceito
    30 Jan 2023
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