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AS MÁSCARAS DA OPRESSÃO: NOVAS LEITURAS DA RELAÇÃO RAÇA E CLASSE

THE MASKS OF OPPRESSION - NEW READINGS OF THE RELATIONSHIP BETWEEN RACE AND CLASS

Resumo

O racismo na sociedade capitalista pode ser considerado uma das questões mais mal-interpretadas das ciências sociais, até mesmo por grande parte das correntes críticas sociológicas. Em linhas gerais, o racismo apresenta dois grandes entendimentos massificados e retroalimentados: um que o conceitualiza como uma questão moral e individual e outro que parte de uma dívida com o passado por falta de uma inserção social adequada e pela dificuldade de assimilação dessa população segregada. A formação das relações capitalistas em sua reprodução de uma sociabilidade de classes dificilmente é vista intrinsecamente ligada ao racismo, apagando qualquer conteúdo racial do seu processo de constituição. Esse apagamento se deve em grande parte às equivocadas interpretações tanto do conteúdo do racismo quanto do processo de constituição de classe social, que acabam por separar as esferas sociais em objetos delimitados, os quais escondem em seus contornos as formas de contradição e dominação social das relações capitalistas racializadas. Dessa maneira, neste artigo, pretende-se aprofundar o debate sobre a constituição de classe para compreendê-lo por meio das formas racializadas de dominação social.

Palavras-chave:
Racismo; Constituição de Classe; Teoria Crítica

Abstract

Racism in capitalist society can be considered one of the most misunderstood issues in the social sciences, even by most of the most critical sociological currents. Racism, broadly speaking, presents two great massified and retro-fed understandings: one that conceptualizes it as a moral and individual issue and the other that starts from a debt to the past for lack of an adequate social insertion and for the difficulty assimilating the segregated population. The constitution of capitalist relations in their reproduction of a class sociability is hardly seen intrinsically linked to racism, erasing any racial content from the class constitution process. This erasure is due in large part to misinterpretations both of the content of racism and of the process of constitution of social class, which end up separating the social spheres into delimited objects, which hide in their delimitations the forms of contradiction and social domination of racialized capitalist relations. Thus, this article intends to deepen the debate about class constitution to understand it from the racialized forms of social domination.

Keywords:
Racism; Class Constitution; Critical Theory

Introdução

O racismo na sociedade capitalista pode ser considerado uma das questões mais mal-interpretadas das ciências sociais - até mesmo por grande parte das correntes críticas, o que é refletido no próprio entendimento generalizado sobre esse processo em nossa sociedade. O racismo na sociedade capitalista, em linhas gerais, apresenta dois grandes entendimentos massificados e retroalimentados: um que o conceitualiza como uma questão moral e individual e outro que parte de uma dívida com o passado por falta de uma inserção social adequada e pela dificuldade de assimilação dessa população segregada. A constituição das relações capitalistas dentro da dinâmica de reprodução do capital por uma sociabilidade de classes dificilmente é vista como algo intrinsecamente ligado ao racismo, apagando qualquer conteúdo racial do processo de constituição de classe. Esse apagamento se deve em grande parte às más interpretações tanto do conteúdo do racismo quanto do processo de constituição de classe social, que acabam por separar as esferas sociais em objetos delimitados, os quais escondem em seus contornos as formas de contradição e dominação social das relações capitalistas racializadas. Dessa maneira, neste artigo pretende-se aprofundar o debate sobre a constituição de classe para compreendê-lo por meio das formas de dominação social.

No Brasil, o mascaramento (mistificação) do racismo apresenta uma raiz profunda e atrelada a uma falsa inserção do negro na sociedade, o que daria origem ao mito da democracia racial. As análises críticas dentro desse contexto ficam muitas vezes reduzidas a apontar o problema da inserção do negro na sociedade capitalista como derivado de um problema histórico, o qual sem as devidas reparações levou a um mal funcionamento das relações democráticas capitalistas. O racismo, portanto, não é visto dentro dessas análises como um elemento constituidor da própria relação de classificação do ser humano na sociedade capitalista. O racismo passa então a ser objetificado e separado do todo, caracterizado não mais como uma questão estruturante da sociedade e parte da constituição de classe, mas sim reduzido a algo objetivamente separado e isolado, passível de ser corrigido ou assimilado pelas dinâmicas de competição capitalista.

A ideia de classe social não deve ser entendida como um agrupamento fixo, reduzida apenas às relações produtivas no seu sentido mais estreito. O processo de formação de classe decorre tanto da luta material quanto da luta simbólica para a separação social do ser humano, seja dos seus meios de vida, seja do seu entendimento como coletivo, configurando, assim, a constituição do indivíduo capitalista. Dentro dessa perspectiva que será desenvolvida neste texto, o racismo se torna um elemento fundante da constituição de classe social, superando (dialeticamente) o conteúdo das relações mercantis coloniais para a incorporação da questão racial em termos capitalistas.

Dentro desse quadro teórico brevemente apresentado; na próxima seção, aprofunda-se alguns dos principais referenciais conceituais quanto à questão racial e ao racismo, centralizando a discussão no debate brasileiro e norte-americano. A terceira seção busca um aprofundamento sobre algumas questões condizentes ao processo de constituição de classe capitalista, assim como seu caráter de acumulação primitiva permanente. A quarta seção elucida sobre a noção de constituição de classe racializadas, apresentando alguns autores que trabalham dentro desse referencial, mas também expandindo a análise através da incorporação do debate sobre constituição de classes. A última seção é dedicada a breves comentários de conotação conclusiva.

A máscara da opressão

Os estudos acerca da constituição social do racismo no Brasil,1 1 A apresentação do debate sobre raça e classe feito nessa seção, tanto no Brasil quanto dos Estados Unidos (EUA), é apenas parcial, merecendo um aprofundamento que a extensão do artigo não comporta, dada a riqueza de toda a bibliografia sobre o assunto. Dessa forma, essa apresentação pretende construir uma linha (parcial) desse debate para auxiliar a compreensão de como o tema tem sido tratado e suas limitações teóricas sem, contudo, esgotar toda a literatura. assim como seu combate em termos gerais, partiram da rejeição das teorias racistas e das teses do mito da democracia racial brasileira, tão conhecida nos estudos de Gilberto Freyre (1980FREYRE, Gilberto. 1980. Casa-grande & senzala. São Paulo: Círculo do Livro.), mas difundida por vários outros autores dos anos de 1930 até 1950 (Azevedo, 1955AZEVEDO, Thales. 1955. As elites de cor. São Paulo: Companhia Editora Nacional.; Pierson, 1945PIERSON, Donald. 1945. Brancos e pretos na Bahia. São Paulo: Companhia Editora Nacional.; Wagley et al., 1950WAGLEY, Charles; AZEVEDO, Thales de; PINTO, Luiz Costa. 1950. Uma pesquisa sobre a vida social no estado da Bahia. Salvador: Edufba .). Contudo, a crítica (necessária), que se iniciou de forma mais consistente nos anos de 1950, foi realizada dentro de um paradigma de exceção, isto é, como se o racismo não fosse um elemento estrutural da sociedade capitalista, mas sim algo apartado dos mecanismos de sustentação desse sistema, seja pela suposta falha moral do indivíduo, seja por uma mal-assimilação do indivíduo quanto ao passado histórico.

Em termos gerais, não apenas no Brasil, a reconstrução das formas de sociabilidade capitalista no pós-guerra foi amplamente fundada na remodelação do racismo, passando de um mecanismo mais direto e segregacionista para formas mais indiretas, subjetivizantes e institucionalizadas. O mito da democracia capitalista estava em reconstrução, ou seja, depois do holocausto, as formas de opressão e dominação tinham que ser recompreendidas como uma exceção, não como a norma social do capitalismo, o que levou os mecanismos internacionais construídos no pós-guerra a operarem arduamente nesse propósito.

O trabalho seminal de Gunnar Myrdal, de 1944, foi um marco teórico dentro desse debate, no qual o futuro secretário executivo da Comissão Econômica das Nações Unidas entendia o racismo como um dilema americano devido à contradição entre as forças de igualdade e prosperidade do capitalismo e o fraco desempenho socioeconômico da população negra (Myrdal, 2017MYRDAL, Gunnar. 2017. An America dilemma: the negro problem and modern democracy. Abingdon: Routledge.).2 2 Não por acaso o pensamento posterior de Gunnar Myrdal terá um grande impacto nos estudos desenvolvimentistas da América Latina, construindo uma narrativa histórica da pobreza de forma dualística, em que o atraso traria o atraso em si, sendo necessário a modernização das partes atrasadas para o seu desenvolvimento e progresso. A tese de Myrdal (2017) entende o racismo não como uma questão intrínseca ao capitalismo, mas exatamente o contrário, sendo apenas um problema moral individual, considerando a desigualdade racial como um problema do negro para assimilar as relações capitalistas.

Essa ideia acerca da necessidade de assimilação racial como se fosse um déficit por parte da população se tornará um dos cânones da questão racial, apesar de ser reformulada em novos termos a partir dos anos de 1950. Através dos programas de estudo e intervenção da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) foi consolidada uma visão mais consensual sobre racismo, que perdura até os dias atuais. Tendo como contexto o pós-guerra, a Organização das Nações Unidas (ONU) se colocou na tarefa de criar consensos e estruturas étnico-raciais que evitem novos perigos civilizatórios. Assim, o Brasil com o seu mito da democracia racial seria transformado em “um ‘laboratório racial’, fornecendo o respaldo empírico necessário à luta política, revestida de ciência, da Unesco” (Maio, 1997MAIO, Marcos Chor. 1997. Uma polêmica esquecida: Costa Pinto, Guerreiro Ramos e o Tema das Relações Raciais. Dados, v. 40, n. 1, pp. 127-162., p. 5). O Brasil se tornava em termos raciais a nova aposta democrática, em que a igualdade das leis pudesse esconder o racismo, algo que foi implantado nos Estados Unidos (EUA) apenas após a década de 1960 com os movimentos pelos direitos civis.

Com ajuda da Unesco, serão financiados estudos e intervenções em várias capitais brasileiras durante os anos de 1950, tendo maior reconhecimento e influência nos estudos da Escola Paulista de Sociologia (Bastide e Fernandes, 1955BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. 1955. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Anhembi.). A princípio, esses estudos negarão o objetivo primário da Unesco de aprofundar e explicar a democracia racial brasileira, uma vez que evidenciavam o estado de conflito racial com obstáculos sociais (Bastide e Fernandes, 1955BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. 1955. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Anhembi.) que geravam uma grande desigualdade no país (Costa Pinto, 1953COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. 1953. O negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa sociedade em mudança. São Paulo: Companhia Editora Nacional.).

Se, por um lado, esses estudos foram em um caminho contrário ao que foi primariamente estabelecido no ideário da Unesco, por outro lado, estabelecerão um novo cânone quanto à questão racial, que manterá a compreensão do racismo conforme uma exceção, ou seja, como algo passível de correção e ajuste pela sociedade capitalista (Maio, 1999MAIO, Marcos Chor. 1999. O Projeto Unesco e a agenda das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, nº 41, pp. 141-158.). Dentro do contexto de crescimento econômico, com forte urbanização e modernização, os autores irão “sofisticar os mecanismos de ocultamento do racismo institucional no Brasil” (Araújo, 2019ARAÚJO, Danielle Pereira de. 2019. A cota paulista é mais inteligente: o programa de inclusão com mérito no ensino superior público paulista e o confinamento racial da classe média branca. Tese de Doutorado em Ciência Política. Campinas: IFCH/Unicamp., p. 70), uma vez que as forças sociais capitalistas democráticas continuavam a ser defendidas como necessariamente antirracistas. Dentro dos estudos financiados pela Unesco no Brasil se consolidará o paradigma de que

na ordem social capitalista, quebra-se a tendência ao desenvolvimento paralelo da estrutura social e da estratificação racial, sendo a desigualdade racial fruto de resquícios da escravidão, que levou a “incapacidade de ajustamento econômico dos negros impedir que eles se localizassem coletivamente nas posições sociais conspícuas”. (Bastide e Fernandes, 1955BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. 1955. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Anhembi., p. 142)

Em grande medida, as principais teses de Bastide e Fernandes (1955BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. 1955. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Anhembi.) podem ser vistas como formadoras da visão atual sobre a questão racial, mesmo entre grupos ditos progressistas ou críticos. Apesar dos estudos posteriores de Florestan Fernandes (1978FERNANDES, Florestan. 1978. A integração do negro na sociedade de classes. 3. ed. São Paulo: Ática., 2007)FERNANDES, Florestan. 2007. O negro no mundo dos brancos: São Paulo: Global. terem uma postura muita mais crítica sobre a questão racial no Brasil, principalmente com relação à capacidade da ordem capitalista superar as desigualdades e romper com o racismo, permanece na sua obra a visão do racismo reduzido a um déficit histórico com a escravidão, levando a uma incapacidade do negro em se assimilar na estrutura de competição capitalista. Dentro dessa perspectiva, apagam-se os processos e determinantes racistas da relação capitalista contemporânea, restando apenas um resquício histórico que demandaria algumas políticas focalizadas e um esforço de assimilação da população negra.

A visão da origem do racismo reduzida a um déficit puramente histórico, com alto teor assimilacionista da população negra, passa a ser incorporada por grande parte pela intelectualidade brasileira tanto por críticos aos estudos da Unesco quanto por trabalhos revisionistas com teor mais marxista. Mesmo trabalhos críticos e com forte apelo na luta antirracistas no Brasil, que estabeleceram duras críticas aos estudos da Unesco, apresentam uma defesa da necessidade de assimilação da população negra, como se fosse um problema que essas pessoas devessem superar, não como um processo intrínseco à própria sociedade capitalista. Guerreiro Ramos (1950)GUERREIRO RAMOS, Alberto. 1950. O negro no Brasil e um exame de consciência. In: GUERREIRO RAMOS, Alberto (org.). Relações de raça no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Quilombo. e Abdias do Nascimento (1950NASCIMENTO, Abdias. 1950. O teatro experimental do negro e seu Instituto de Pesquisa Sociológica. In: RAMOS, Alberto Guerreiro (org.). Relações de raça no Brasil. Rio de Janeiro: Quilombo.), através dos estudos e intervenções em torno do teatro experimental do negro, também fizeram uma ampla defesa da questão racial como um problema a ser superado pelo negro por intermédio da sua assimilação nos ordenamentos capitalistas (Maio, 1997MAIO, Marcos Chor. 1997. Uma polêmica esquecida: Costa Pinto, Guerreiro Ramos e o Tema das Relações Raciais. Dados, v. 40, n. 1, pp. 127-162.).

No final dos anos de 1970, a perspectiva da importância do racismo para compreender as desigualdades no Brasil ganha novo ímpeto também no meio acadêmico, tal qual no debate entre estratificação social e raça, com grande destaque para a contribuição de Carlos Hasenbalg. Contudo, enquanto análise da formação de classe racializada, Hasenbalg (1979HASENBALG, Carlos. 1979. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal.) parte de grupos sociais observados, compondo uma estratificação em que se decompõe elementos de raça, gênero, mobilidade, emprego e regiões, ou seja, partindo dessas categorias como um dado para observar as desigualdades. Apesar da importante contribuição ao abrir toda uma linha de pesquisa sobre as desigualdades de renda e raça no país (Hasenbalg e Silva (1988HASENBALG, Carlos; SILVA, Nelson do Valle (ed.). 1988. Estrutura social, mobilidade e raça. Rio de Janeiro: Iuperj., 1992HASENBALG, Carlos; SILVA, Nelson do Valle. 1992. Relações raciais no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Rio Fundo.); Hasenbalg, Lima e Silva (1999)HASENBALG, Carlos; LIMA, Márcia; SILVA, Nelson do Valle. 1999. Cor e estratificação social. Rio de Janeiro: Contracapa.), não há em sua abordagem espaço para uma análise da constituição da relação racializada de classes, uma vez que parte da sua separação para observação quantitativa de grupos previamente selecionados. Consoante afirmado pelo próprio autor, “ao reduzir a classe a um conglomerado de variáveis individuais, a estrutura de classes pode parecer como separada, divorciada de fenômenos como ideologia e ação coletiva. O que se realiza é uma passagem dos problemas de classe para de estratificação” (Hasenbalg, 1979HASENBALG, Carlos. 1979. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal., p. 99).

Hasenbalg (1979HASENBALG, Carlos. 1979. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal.) dá um passo importante em criticar as análises que viam o racismo no Brasil como algo puramente ligado ao passado escravista, sem ser propriamente uma característica do capitalismo brasileiro. Contudo, ao invés de fazer essa crítica por meio da constituição das classes sociais no Brasil, ele parte de uma segmentação analítica sociológica, diferenciando grupos sociais sem analisar sua emergência nas relações capitalistas.3 3 Uma crítica mais detalhada às teorias de estratificação social e do estruturalismo marxista dentro da questão de classe será realizada na próxima seção. Para uma discussão teórica mais aprofundada, ver: Clarke (1978) e Bonefeld (1992). Dessa forma, classe e raça se tornam elementos apartados, como se os grupos sociais fossem meros dados existentes na sociedade e passíveis de serem dissecados pelo sociólogo.

Por outro lado, em termos gerais, os estudos marxistas no Brasil apresentam um longo histórico de omissão com relação à questão racial, salvo raras exceções, sobretudo dentro da historiografia, como os importantes estudos de Gorender (2011) e Moura (1994MOURA, Clóvis. 1994. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Anita.). A questão racial é vista como um problema secundário, dado o papel central das estruturas internas de classe e externa de divisão do trabalho. Logo, mesmo nos trabalhos de cunho marxistas sobre a questão racial, por exemplo Costa Pinto (1953COSTA PINTO, Luiz de Aguiar. 1953. O negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa sociedade em mudança. São Paulo: Companhia Editora Nacional.), o fenômeno se deve apenas a um agravamento histórico da questão central que é a luta de classes. Na tradição marxista brasileira, a questão racial se torna mais uma reminiscência do escravismo (Ianni 1987IANNI, Octavio. 1987. Raças e classes sociais no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense., 1978IANNI, Octavio. 1978. Escravidão e racismo. São Paulo: Hucitec.), do que algo inerente ao processo de formação de classe no Brasil.

Clóvis Moura (1977MOURA, Clóvis. 1977. O negro: de bom escravo a mau cidadão? Rio de Janeiro: Tavares & Tristão. ), entretanto, representa uma exceção fundamental dentro do pensamento marxista brasileiro acerca da questão entre raça e classe, sobretudo por reformular a história da formação da sociedade brasileira através da luta da população negra. Apesar de grande parte da sua obra ser de cunho historiográfico sobre a luta do escravo e da população recém liberta, em Moura (1977)MOURA, Clóvis. 1977. O negro: de bom escravo a mau cidadão? Rio de Janeiro: Tavares & Tristão. há uma valiosa análise do racismo estruturante no país. Nesse sentido, embora haja um referencial contraditório da teoria de classes marxistas, o autor consegue avanços extremamente relevantes na compreensão do papel do racismo dentro da constituição social do capitalismo brasileiro.

Assim, há uma descrição muito rica de como as relações de classes no Brasil ganham um caráter racial por meio dos processos de diferenciação e especificação, em que as classes dominantes buscam por intermédio do racismo manter seus privilégios na sociedade capitalista. Dessa forma, “as classes dominantes, através de uma série de mecanismos de defesa, inconscientes, mas atuantes, conseguem, com o preconceito de cor, manter o equilíbrio da mão de obra, garantindo-lhe alta taxa de mais-valia” (Moura 1977MOURA, Clóvis. 1977. O negro: de bom escravo a mau cidadão? Rio de Janeiro: Tavares & Tristão. , p. 86).

Moura (1977MOURA, Clóvis. 1977. O negro: de bom escravo a mau cidadão? Rio de Janeiro: Tavares & Tristão. ) mesmo com um arcabouço problemático sobre teoria de classes, conforme veremos na próxima seção, consegue incorporar a centralidade da relação racial. Contudo, essa incorporação se dá limitada por uma espécie de usurpação dos preconceitos raciais pelas classes dominantes para o benefício de seus interesses. Não há, consoante defenderemos nas duas próximas seções, uma análise de um processo de construção de classificação social, em que o elemento racial é indissociável das estruturas produtivas e econômicas. Em outras palavras, ao invés de compreender como uma classe já estabelecida se apropria de uma relação social passada (no caso, o racismo), é preponderante compreender como as próprias classes são constituídas em termos raciais, não só historicamente, mas também logicamente na relação capitalista.

Nas últimas décadas, o debate sobre o racismo avançou muito com valiosas contribuições que passaram a revelar o caráter mais estruturante da questão racial, assim como as suas várias formas de manifestação e opressão. A difusão do dito capitalismo neoliberal com manutenção do racismo e das desigualdades raciais impôs às mais diversas linhas teóricas a urgência em abordar a relação entre classe e raça.

Nos EUA, a visão do racismo como fator estruturante na sociedade já apresentava uma longa tradição, conforme assinalou Cedric Robinson (1983ROBINSON, Cedric. 1983. Black Marxism: the making of the black radical tradition. London: Zed Press.), com a sua noção de tradição negra radical em que mostra uma genealogia em torno do trabalho de C. L. R. James, W. E. B. Du Bois e Richard Wright.4 4 A plena consciência da existência de um racismo estruturante na democracia capitalista também constitui importantes estudos pioneiros dos intelectuais vinculados aos panteras negras, como a noção de racismo institucional (Hamilton e Ture, 1992). Contudo, foi dentro do contexto da nova face neoliberal do capitalismo que houve a expansão de uma leitura crítica de como a equiparação de direitos não garante a igualdade racial, colocando o racismo estrutural5 5 No Brasil, uma ótima introdução sobre o racismo estrutural pode ser vista em Almeida (2019), assim como a importante leitura histórica de construção desse racismo estrutural em Oliveira (2022). como algo intrínseco à formação do Estado capitalista (entre outros, Banton, 1987BANTON, Michael. 1987. Racial theories. Cambridge: Cambridge University Press.; Omi e Winant, 1994OMI, Michael; WINANT, Howard. 1994. Racial formation in the United States: from the 1960s to the 1990s. Abingdon: Routledge.; Bonilla-Silva, 1997BONILLA-SILVA, Eduardo. 1997. Rethinking racism: toward a structural interpretation. American Sociological Review, v. 62, n. 3, pp. 465-480.; Füredi, 1998FÜREDI, Frank. 1998. The silent war: imperialism and changing perceptions of race. New Brunswick: Rutgers University Press.; Goldberg, 2002GOLDBERG, David Theo. 2002. The racial state. New Jersey: Wiley-Blackwell. e Jung, 2015JUNG, Moon-Kie. 2015. Beneath the surface of white supremacy: denaturalizing U.S. racisms past and present. Stanford: Stanford University Press.). Na via contrária ao processo de igualdade racial na democracia capitalista, a inexistência de diferenciações jurídicas levou a novas formas de ocultamento do racismo (color blind racism), em que o antirracismo se torna um antirracialismo (Goldberg, 2002GOLDBERG, David Theo. 2002. The racial state. New Jersey: Wiley-Blackwell.) em uma “sociedade racista aparentemente sem raça” (Bonilla-Silva, 2003BONILLA-SILVA, Eduardo. 2003. Racism without racists: color-blind racism and the persistence of racial inequality in the United States. Lanham: Rowman & Littlefield.).

Omi e Winant (1994OMI, Michael; WINANT, Howard. 1994. Racial formation in the United States: from the 1960s to the 1990s. Abingdon: Routledge.) terão uma grande repercussão nesse debate, tornando-se um marco de reconstituição do Estado-nação norte americano e da formação racista em seu interior. De matriz gramsciana, a leitura de Omi e Winant (1994)OMI, Michael; WINANT, Howard. 1994. Racial formation in the United States: from the 1960s to the 1990s. Abingdon: Routledge. apresenta um forte peso da dimensão ideológica-cultural quanto à questão racial na formação do Estado norte americano. Bonilla-Silva (1997)BONILLA-SILVA, Eduardo. 1997. Rethinking racism: toward a structural interpretation. American Sociological Review, v. 62, n. 3, pp. 465-480., pretendendo avançar na análise do “racismo estrutural” com um arcabouço da obra de Poulantzas, buscará retirar o peso daquilo que ele chama de reducionismo idealista sobre o racismo. Na análise de Bonilla-Silva (1997)BONILLA-SILVA, Eduardo. 1997. Rethinking racism: toward a structural interpretation. American Sociological Review, v. 62, n. 3, pp. 465-480., o racismo se torna a facção ideológica de um Estado-nação “em que os níveis económico, político, social e ideológico são parcialmente estruturados pela colocação de atores em categorias raciais ou raças”6 6 No original: “in which economic, political, social, and ideological levels are partially structured by the placement of actors in racial categories or races” (Bonilla-Silva 1997, p. 469). (Bonilla-Silva 1997, p. 469BONILLA-SILVA, Eduardo. 1997. Rethinking racism: toward a structural interpretation. American Sociological Review, v. 62, n. 3, pp. 465-480.). Goldberg (2002GOLDBERG, David Theo. 2002. The racial state. New Jersey: Wiley-Blackwell.) e Jung (2015JUNG, Moon-Kie. 2015. Beneath the surface of white supremacy: denaturalizing U.S. racisms past and present. Stanford: Stanford University Press.) partirão da análise de Bonilla-Silva para aprofundarem o processo de formação racial no Estado norte americano. Enquanto Goldberg (2002)GOLDBERG, David Theo. 2002. The racial state. New Jersey: Wiley-Blackwell. foca em analisar a formação de uma Estado racial, com suas particularidades neoliberais do racismo oculto na negação da raça (raceless racism, conforme Goldberg, 2008GOLDBERG, David Theo. 2008. The threat of race: reflections on racial neoliberalism. New Jersey: Wiley-Blackwell.), Jung (2015)JUNG, Moon-Kie. 2015. Beneath the surface of white supremacy: denaturalizing U.S. racisms past and present. Stanford: Stanford University Press. expandirá o conceito de estrutura racial na sustentação de um Estado-império. A matriz expansionista dos EUA não seria de uma nação, ou seja, partindo de um referencial neo-weberiano, o estado-racial norte americano teria uma lógica imperial de conquista e dominação sobre povos e territórios (Jung, 2015JUNG, Moon-Kie. 2015. Beneath the surface of white supremacy: denaturalizing U.S. racisms past and present. Stanford: Stanford University Press.).

Apesar da extrema importância desses estudos sobre o racismo estrutural, eles ficam presos dentro do arcabouço estatal, transformando o racismo, ou a estrutura racial, em um apêndice de manutenção do Estado. A visão estruturalista se assenta em uma interseccionalidade de esferas, dividindo a relação social em vários campos distintos, os quais se unificariam no Estado. A unificação dessas estruturas no Estado implica em uma forte objetificação da política estatal, “apagando as relações sociais de dominação e exploração internas às estruturas” (Clarke, 1977CLARKE, Simon. 1977. Marxism, sociology and poulantzas theory of the state. Capital & Class, v. 1, n. 2, pp. 1-31., p. 17). Nesse caso, é justamente essa problemática que precisa ser discutida, sobretudo porque os processos de constituição de raça e classe não devem ficar engessados às estruturas estatais, uma vez que o próprio Estado é uma construção social e não o contrário, tal qual a sua aparência objetificada nos faz ver.7 7 A discussão do Estado como a forma política da sociedade capitalista pode ser vista no longo debate já presente em Pachukanis (1988), nos teóricos derivacionistas do Estado (Offe, 1975; Hirsch, 2010) e nas novas leituras da obra de Marx (Clarke, 1991; Bonnefeld, 1992; Holloway e Picciotto, 1978). Em razão disso, mesmo trazendo a questão racial como uma estrutura importante que perpassaria os diferentes campos sociais, ela continuaria sendo uma parte em separado, um acessório passível de correção ou assimilação, mesmo que essa “perspectiva possível não estivesse próxima” (King e Smith, 2005KING, Desmond; SMITH, Rogers. 2005. Racial orders in American political development. American Political Science Review, v. 99, n. 1, pp. 75-92., p. 75).

No Brasil, o estudo da formação do Estado brasileiro através da centralidade da questão racial foi amplamente difundido pelo trabalho de Souza (2017SOUZA, Jessé. 2017. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: LeYa.). Se por um lado tem um grande mérito de difundir a centralidade da questão racial para um público mais amplo, por outro lado, sua análise traz uma série de problemas que retomam “a perspectiva integracionista que transfere para o negro a responsabilidade (decorrente de sua inadaptabilidade) pela condição na qual se encontra” (Araújo, 2019ARAÚJO, Danielle Pereira de. 2019. A cota paulista é mais inteligente: o programa de inclusão com mérito no ensino superior público paulista e o confinamento racial da classe média branca. Tese de Doutorado em Ciência Política. Campinas: IFCH/Unicamp., p.78). Em Souza (2017)SOUZA, Jessé. 2017. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: LeYa., o racismo passa a ser visto como um déficit de capitais simbólicos que seriam aproveitados por uma elite parasitária, por isso a necessidade dos negros se assimilarem na sociedade para o pleno avanço das forças de desenvolvimento capitalista.8 8 Souza (2017) continuará sua trilha teórica já trabalhada em Souza (2015), em que busca expandir o referencial teórico de Pierre Bourdieu, através da incorporação das teorias de Michael Foucault e Charles Taylor, para a construção de um processo de formação nacional, mas agora com a centralidade da escravidão e da questão racial. Em sua concepção, os déficits de capitais simbólicos da população negra seriam utilizados pela elite brasileira na construção de um Estado extremamente desigual, por isso a necessidade de uma espécie de um desenvolvimentismo simbólico para a readequação do negro e o pleno florescimento do capitalismo no Estado brasileiro. Dessa forma, Souza (2017) ao invés de ressaltar o caráter estrutural do racismo para a formação capitalista brasileira, retoma a abordagem do negro como um problema para o florescimento do Estado brasileiro, acreditando na capacidade plena das forças capitalistas, uma vez que deixem de ser atrapalhadas pelas elites parasitárias que impedem a igualdade dos tais capitais simbólicos.

Apesar do importante avanço recente das teorias sobre o racismo estrutural, além da força das denúncias das várias formas de racismo e da luta dos movimentos negros, ainda é necessário aprofundar a compreensão do racismo como uma não exceção (seja de um indivíduo, de um déficit com o passado, seja por uma característica do Estado), mas como constituinte da própria formação das relações sociais que norteiam as nossas vidas cotidianas. O racismo não pode ser visto fora de contexto, como uma disputa política a-histórica entre grupos e interesses, como se não existisse uma forma de se relacionar socialmente. Conforme lembrado por Mbembe (2018MBEMBE, Achille. 2018. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 Edições.), o racismo já existia antes da sociedade capitalista, entretanto, representava outro processo social, a forma atual do racismo só pode ser compreendida em sua totalidade dentro das relações capitalistas.

É preponderante entender o que e como se constitui o racismo na sociedade capitalista, não apenas em uma relação de poder abstrata unificada pelo Estado. Grande parte da omissão desse caráter totalizante do racismo se deve a uma má leitura sobre o processo de constituição das classes sociais, principalmente do marxismo tradicional historicamente fundado em um reducionismo economicista. Por isso, na próxima seção, será apresentada uma outra leitura quanto à constituição das classes sociais para assim poder compreender de forma mais adequada as formas do racismo e sua importância na gênese da nossa formação social.

A máscara da contradição

A omissão das teorias sociais ao tratar da questão racial como constituidora das relações sociais gerais, não apenas vinculada em alguma estrutura estatal, se deve em grande parte a uma má leitura sobre o conteúdo das relações capitalistas. O próprio marxismo tradicional (Postone, 2014POSTONE, Moishe. 2014. Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. São Paulo: Boitempo .) apresenta uma visão economicista, que compreende as classes sociais como um grupo de função específica dentro da produção, reduzindo a constituição social a uma mecânica de distribuição de renda, em que todas as outras esferas da vida, com exceção da econômica, desaparecem ou se tornam secundárias. Em uma leitura oposta, a classe deve ser entendida por meio da relação de constituição social, na qual classifica a humanidade na forma de indivíduo capitalista, separando-o tanto do seu sentido de coletividade quanto dos seus meios de vida autônomos. É nessa constituição de ser humano separado, classificado e dividido em indivíduo, que a questão racial (e o racismo) se torna central para a gênese da relação social atual.

As classes não são coisas ou grupos definidos por meio de posições fixas dentro de uma estrutura econômica imaginada. “Existe atualmente uma tentação generalizada em supor que a classe é uma coisa”, a tal ponto que poderia ser capaz de defini-la “quase matematicamente - uma quantidade de homens que se encontra numa certa proporção com os meios de produção” (Thompson, 2004THOMPSON, Edward Palmer. 2004. A formação da classe operária inglesa. São Paulo: Paz e Terra., p. 10). Logo, a ideia de classe não deve ser entendida como uma estrutura ou uma categoria dada, mas como uma relação social de classificação e objetificação do ser humano. Sendo assim o proletariado não é nem um grupo de indivíduos em contraste com o capital (empiristas) nem um lugar na estrutura produtiva (estruturalista) (Gunn, 1987GUNN, Richard. 1987. Notes on class. Common Sense, n. 2, pp. 15-25.). A visão coisificada da classe como uma posição na estrutura produtiva leva ao desaparecimento da sua constituição social, apagando o próprio caráter social do seu processo.

Nas leituras sociológicas, a classe (assim como outros conceitos) é tomada como um dado, como categoria fixa, ao invés de ser compreendida como processo de constituição da própria relação que estão teorizando. A existência de classe e sua constituição não podem estar separadas. Logo, ao afirmar a sua existência deve-se evidenciar o processo de constituição de uma determinada relação (Holloway, 1999HOLLOWAY, John. 1999. Clase y clasificación. Cuadernos del Sur, n 29, pp. 143-144.). Isto é, as classes sociais não devem ser vistas como grupos econômicos, mas como um processo de classificação do ser humano. Portanto, a tal da luta de classe não pode ser reduzida a uma luta entre grupos sociais, pois isso é justamente o que essa forma de relação de dominação aparenta e quer que seja visto. “A luta de classe é uma luta para classificar e contra ser classificado” (Holloway, 1999HASENBALG, Carlos; LIMA, Márcia; SILVA, Nelson do Valle. 1999. Cor e estratificação social. Rio de Janeiro: Contracapa., p. 115).

A classe é uma relação social de dominação que através da sua aparência de competição e luta entre grupos sociais divide o ser humano da noção de sujeito coletivo e o separa das condições de vida autônoma (Dalla Costa, 1995DALLA COSTA, Mariarosa. 1995. Capitalism and reproduction. In: BONEFELD, Werner et al. (ed.). Open Marxism 3: emancipating Marx. London: Pluto Press .), categorizando grupos em superiores e inferiores - como legítimos vencedores e como dignos de trabalhos forçados e experiências de morte cotidiana. A luta de classe, portanto, ganha uma noção mais ampla, em que a totalidade das práticas sociais estão em questão, assim se luta contra o processo de classificação e, sobretudo, contra ser inferiorizado, coisificado e separado. Por isso a luta antirracista é uma questão central, já que se opõe à gênese da constituição social dominante e opressora, e não algo secundário ou resolvido com a assimilação de algum passado.

Dentro dessa concepção, a separação das noções de classe e racismo é justamente o que apaga a possibilidade de compreensão do racismo como elemento fundante das relações sociais e não como um processo reduzido a um elemento moral/individual, um resquício histórico ou a um apêndice estrutural do Estado. O que a concepção dialética de classe proposta por Marx possibilita é exatamente fugir do reducionismo, por exemplo o caso da análise fragmentária e pluralista do estruturalismo, a qual acaba por “falsear a contradição fundamental que se pretende analisar” (Gunn, 1997, p. 6).

A gênese cotidiana das relações sociais é uma classificação do ser humano, em que ele se torna coisificado, perdendo a dimensão de sua construção humana coletiva para uma relação entre coisas - entre mercadorias. Dentro do marxismo tradicional, essa gênese é concebida apenas do ponto de vista histórico, sendo acumulação primitiva um momento passado de separação das pessoas de suas formas de vida, uma vez que os indivíduos são transformados em mercadorias disponíveis nos mercados de trabalho (na Europa) ou de escravos (nas Américas). A partir dessa acumulação originária, com a instituição formal das relações mercantis (fim da servidão e escravidão), a separação direta deixaria de existir para a consolidação das formas ditas capitalistas. Mais uma vez essa leitura que centra em atos do passado acaba por apagar a constituição presente, ou seja, desaparece o elemento de formação contínua da sociedade atual. Nessa esteira, uma vez que se institucionalizou a reprodução das classes sociais, o processo de classificação e racialização do ser humano desaparece na dinâmica de concorrência (ou disputa e competição) entre grupos de interesse. A acumulação primitiva não deve ser vista como algo simplesmente histórico, mas como um processo permanente (Bonefeld, 2011BONEFELD, Werner. 2011. Primitive accumulation and capitalist accumulation: notes on social constitution and expropriation. Science & Society, v. 75, n. 3, pp. 379-399. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/41290175 . Acesso em: 17 ago. 2023.
https://www.jstor.org/stable/41290175...
; De Angelis, 2012DE ANGELIS, Massimo. 2012. Marx y la acumulación primitiva: el carácter continuo de los ‘cercamientos’ capitalistas. Theomai, n. 26, pp. 1-21.; Midnight Notes Collective, 1990MIDNIGHT NOTES COLLECTIVE. 1990. The New Enclosures. n. 10.).

A noção de acumulação primitiva permanente, contudo, não deve ser entendida ainda em sua noção economicista reduzida, ou seja, como necessidade permanente de extração de mais valor de fora do sistema de acumulação.9 9 Dentro do marxismo tradicional, marcado em grande medida pelo debate sobre o imperialismo, há uma visão da análise de Marx, em O Capital, partindo de uma economia capitalista fechada (Pradella, 2013), como se a expansão e a origem do capitalismo estivessem dentro de um Estado-nação único, sendo o mercado mundial marcado pela concorrência de capitais nacionais muitas vezes corporificados nos interesses do Estado-nação. Dessa forma, o sistema capitalista moderno seria marcado pela concorrência entre esses capitais monopolizados nos Estados, fase imperialista (Lenin, 1917/2008), ou pela expropriação de mais valor de fora do sistema como necessidade de manutenção do processo de acumulação interna (Luxemburgo, 1913/1985). A redução ao processo mecanicista de extração de valor leva a um retorno ao sistema de competição de grupos, novamente apagando a constituição das relações sociais em suas formas específicas. Não por acaso, essa competição por mais valor leva à objetificação das disputas interestatais, concebendo novamente o Estado como um ente autônomo e composto por suas várias estruturas e campos de interesse. Mesmo nas melhores construções analíticas que salientam a importância da questão racial e colonial (Losurdo, 2015LOSURDO, Domenico. 2015. A luta de classes: uma história política e filosófica. São Paulo: Boitempo ., 2018LOSURDO, Domenico. 2018. O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode nascer. São Paulo: Boitempo.), ela sempre se encontra como um apêndice da competição e disputa dos Estados-imperiais. Outra vez, a classificação humana como relação social desaparece, restando apenas aparatos dos Estados-imperiais para práticas coloniais de desapropriação.

A acumulação primitiva permanente aqui exposta é entendida como a criação constantemente renovada dos pressupostos das relações sociais capitalistas, ou seja, a separação da massa da população dos meios de existência. Logo, se ela é vista conforme um momento histórico de separação do ser humano, a sua forma permanente consiste em naturalizar essa separação, reproduzindo os condicionantes das relações sociais capitalistas. Assim, “a acumulação primitiva que aparentemente desaparece na acumulação capitalista o faz somente para reaparecer como o resultado natural da sua reprodução” (Bonefeld, 2011BONEFELD, Werner. 2011. Primitive accumulation and capitalist accumulation: notes on social constitution and expropriation. Science & Society, v. 75, n. 3, pp. 379-399. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/41290175 . Acesso em: 17 ago. 2023.
https://www.jstor.org/stable/41290175...
, p. 385). Os processos sociais de violência, desapropriação, inferiorização, coisificação e classificação do ser humano que apareciam como singulares (históricos), tornam-se aparentemente naturalizados ao reproduzir as bases da atual relação social.

Esses pressupostos, que originalmente apareciam como condições de seu devir, […], aparecem agora como resultado de sua própria efetivação, de sua efetividade, como condições postas por ele - não como condições de sua gênese, mas como resultados de sua existência. (Marx, 2011MARX, Karl. 2011. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo ., p. 611)

A questão racial e da escravidão, conforme mostrou Marx, serão centrais para o processo da acumulação primitiva em sua forma histórica. “O extermínio, a escravização e a transformação da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos constituem momentos fundamentais da acumulação primitiva.” (Marx, 2013MARX, Karl. 2013. O capital: crítica da economia política: livro I. São Paulo: Boitempo ., p. 999). O sistema colonial se configurou de forma violenta e brutal ao lidar com as populações negra e indígena em um projeto perverso capaz de impulsionar o processo de transformação dos modos de relação social. Sobre os negros e indígenas se configurou a constituição de pressupostos baseados em relações sociais capitalistas, uma vez que o ser humano passou a ser classificado e separado dos seus meios de vida. Essa acumulação originária, contudo, não contém apenas a sua forma histórica, uma vez que a essência da sua lógica se torna presente permanentemente na reprodução dessa relação social.

O que é imprescindível, portanto, para a compreensão do racismo nas formas atuais das relações sociais (não reduzida a um aparato do Estado) não é seu congelamento em um déficit com o passado, como se fosse uma singularidade histórica, mas como resultado de sua própria efetivação, ou seja, como resultado da própria existência das formas atuais de relações sociais pautadas por classes racializadas. O racismo dentro da constituição das relações sociais não está apenas no passado, mas dentro da própria forma em que se efetiva a existência da nossa sociedade. O processo de constituição de classe na reprodução capitalista continua a operar através da brutal violência racializada, mas agora em sua forma naturalizada, como se fosse apenas fruto da competição entre os grupos de interesse. Na sua forma naturalizada, o racismo só se torna possível como resultado da competição capitalista, em que necessitaria maior esforço dos negros e indígenas (assim como do Estado) para a sua assimilação dessa população.

A relação entre essas duas formas de constituição de classe, histórica e permanente pode ser mais esclarecida pelo entendimento do termo alemão Aufhebung, traduzido aqui como superação dialética. Em termos hegelianos, Aufhebung indica um processo dialético de uma negação determinada (Gunn, 2015GUNN, Richard. 2015. Lo que usted siempre quiso saber sobre Hegel y no se atrevió a preguntar. Buenos Aires: Herramienta.), isto é, uma determinação que também nega o próprio termo, ao passo que, de tão negado, se transforma em um novo termo. Nessa negação determinada, o próprio termo negado perde a sua existência independente e faz isso ao mesmo tempo em que o seu caráter essencial é mantido no novo termo - o novo termo é informado pelo termo negado (Bonefeld, 2014BONEFELD, Werner. 2014. Critical theory and the critique of political economy. London: Bloomsbury.). O fato da manutenção da essência do termo negado ser mantido no novo termo implica que a essência de ambos seja a mesma, apesar de se apresentarem como diferentes.

Não por acaso, o termo Aufhebung expressa significados diferentes e contraditórios, tais quais: levantar, tornar inválido ou cancelar/eliminar, manter/preservar e até mesmo transcender/elevar. Dessa forma, a sociabilidade capitalista, como superação dialética da colônia (acumulação primitiva), mantém a essência da sua violência racializada no processo de constituição de classe, mas agora em sua forma naturalizada, eliminando a escravidão. Mesmo no mundo encantado da competição com direitos iguais, a sociabilidade capitalista imprescinde do racismo para o processo de classificação humana.

Na próxima seção, pretende-se avançar na análise do processo de constituição de classe racializada. Para isso, serão utilizadas valiosas contribuições quanto às formas do racismo em nossa sociedade. A intenção maior dessa próxima seção está em compreender a centralidade dessas formas sociais racistas para as relações capitalistas de classificação humana, tendo como dimensão a constituição da relação social que nos envolve, indo além de estruturas estatais ou aspectos psicológicos morais e individuais.

Derrubando a máscara

Grande parte do esforço desempenhado nesta pesquisa, parcialmente materializado neste artigo, trata de incorporar a análise de Frantz Fanon (2008FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba.) em termos da constituição social em classes capitalistas conforme apresentado na seção anterior.10 10 A dimensão da constituição social da análise de Fanon (2008) já havia sido apresentada pelo próprio autor: “A análise que empreendemos é psicológica. No entanto, permanece evidente que a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais.” (Fanon, 2008, p. 28). Não apenas em termos psicológicos, mas em termos da classificação social do ser humano, ou seja, como as máscaras brancas vestem a pele negra para sua alienação e objetificação. Nos últimos anos, essa expansão do pensamento de Frantz Fanon tem sido crucial para o pensamento crítico, trazendo uma revolução na maneira de compreensão da questão racial em nossa sociedade. Grande parte desse pensamento, entretanto, cai em uma individualização em forma de multitude dos processos sociais, com grande influência do chamado pós-estruturalismo presente nas obras de Foucault e de Deleuze. Por isso, a intenção nessa pesquisa é incorporar essas dimensões do racismo na constituição da totalidade do ser social, mas sem cair em um retorno nas particularizações das heteroestruturas, heterarquias e multitudes. Uma vez que se compreende a constituição da sociabilidade capitalista como um processo de classificação e separação do ser humano, não há razão para retornar aos processos já autonomizados das relações de poder, as quais sempre ficam dependentes de uma unidade estatal (seja nação, império, seja um sistema mundo global).

Nos últimos anos, a corrente teórica dos estudos decoloniais tem trazido para o debate sobre o racismo uma importante contribuição crítica (entre outros, Quijano (2010QUIJANO, Aníbal. 2010. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez., 2019QUIJANO, Aníbal. 2019. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. Espacio Aberto, v. 28, n. 1, pp. 255-301.), Grosfoguel (2010GROSFOGUEL, Ramón. 2010. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez.), Verdesio (2018VERDESIO, Gustavo. 2018. Colonialidad, colonialismo y estudios coloniales: hacia un enfoque comparativo de inflexión subalternista. Tabula Rasa, n. 29, pp. 85-106.) e Mignolo (2003MIGNOLO, Walter. 2003. Histórias locais/ Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG., 2009MIGNOLO, Walter. 2009. El lado más oscuro del Renacimiento. Universitas Humanística, n. 67, pp. 165-203.). A reflexão sobre a decolonialidade traz a importante contribuição de romper com a tradição da economia-política em colocar a ênfase nos processos econômicos-produtivos, perdendo a dimensão social ampla de como as formas de dominação se constituem, tanto nos seus aspectos econômicos, quanto culturais, políticos e raciais. Contudo, essa reflexão decolonial mantém sua análise compartimentada, uma vez que entende o capitalismo como economia (Grosfoguel, 2010GROSFOGUEL, Ramón. 2010. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez.), em que se torna necessária a fragmentação em múltiplas matrizes de poder, voltando aos conceitos estruturais compartimentados dependentes da unidade estatal, como heterogeneidade estrutural (Quijano, 2010QUIJANO, Aníbal. 2010. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez.) e heterarquia (Kontopoulos, 1993KONTOPOULOS, Kyriakos. 1993. The logic of social structures. Cambridge: Cambridge University Press.).

Em contrapartida, Franz Fanon, em seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas (1952), traz uma contribuição essencial para a compreensão do racismo como processo de constituição da relação social capitalista não compartimentada. Fanon (2008)FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba. apresenta o racismo não como uma concepção reduzida aos termos discriminatórios que nasceriam de uma cultura de classe social, de um grupo ou de um povo, mas como um elemento estruturante da organização social vigente (Fanon, 2008FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba., p. 85). Nessa concepção construída por Fanon, uma sociedade é racista em sua totalidade, não dependendo de setores específicos em que a discriminação surja com maior eminência.

A concepção de racismo em Fanon está estabelecida no que ele chama de um complexo de autoridade (Fanon, 2008FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba.), o qual se constrói no “subjetivo social relações hierárquicas de classificação dos seres humanos em raças e etnias” (Fanon, 2008FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba., p. 90) Por meio da criação desse complexo de classificação, cria-se a concepção do negro como inferior. O racismo, portanto, além da sua forma direta de segregação, constitui-se como um fenômeno social de inferiorização subjetiva e simbólica na classificação de parte da sociedade, em que não só se realizam processos mais sutis de inferiorização, como o próprio agredido passa a se constituir subjetivamente e simbolicamente como inferiorizado.

O pensamento de Fanon (2008FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba.) é construído, principalmente, por uma base teórica do existencialismo de Sartre e da psicanálise de Lacan, tendo maior centralidade o aspecto psicológico em sua análise. Achille Mbembe, em seu livro Crítica da Razão Negra - Ensaio sobre o racismo contemporâneo, de 2013, construirá, em forte debate com a obra de Fanon, uma apresentação da evolução do pensamento racial no capitalismo e suas formas (máscaras) utilizadas para a manutenção de sua invisibilidade. Mbembe (2018) constrói de forma indissociável a subjugação do negro e a exploração capitalista, descrevendo como, desde a plantação na colônia, o conceito de escravo acaba por se fundir com o de negro, até estes se tornarem sobreponíveis. Dessa maneira, pela constituição das relações capitalistas, o negro passa de homem-metal (exploração mineira na África) a homem-mercadoria (tráfico negreiro de escravos) e, daí, a homem-moeda (como produto de troca no capitalismo). O racismo se constitui, assim, como modelo legitimador da opressão e da exploração ao serviço do capitalismo (Mbembe, 2018MBEMBE, Achille. 2018. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 Edições.), o qual tem como necessidade pressupostos raciais para validar uma superexploração.

A produção social do racismo é a produção social de um mundo classificado, como diria Mbembe, ou seja, “produzi-lo é gerar um vínculo social de sujeição e um corpo de extração, isto é, um corpo inteiramente exposto à vontade de um senhor e do qual nos esforçamos para obter o máximo rendimento” (2018, p. 42). O racismo é o que permite a classificação humana em “meio a categorias abstratas, aqueles que se procura estigmatizar e, eventualmente, internar ou expulsar” (Mbembe, 2018MBEMBE, Achille. 2018. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 Edições., p. 74).

Mbembe (2018MBEMBE, Achille. 2018. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 Edições.) permite que se compreenda o racismo social não como algo histórico ou um resquício estruturante de uma sociabilidade antiga, mas um processo presente e contínuo, agora com novas formas de manifestação. O processo de constituição social capitalista tem sua gênese como racial não apenas no período colonial, mas na própria forma contemporânea em que se separa a humanidade rotineiramente, os classificando em aptos e inaptos, em destinados ao mercado de trabalho, ao exército de reserva ou às prisões e à morte.

A importante percepção da internalização do racismo na estrutura da relação capitalista de Mbembe (2018MBEMBE, Achille. 2018. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 Edições.), contudo, ainda fica imposta na subjetivação desse indivíduo capitalista, dada sua matriz foucaultiana de pensamento,11 11 Os debates sobre as limitações das abordagens foucaultianas para a análise dos processos de constituição de classes sociais fogem do escopo deste artigo, contudo uma discussão teórica aprofundada pode ser vista em Bonnet (2009). por isso a relevância de compreender esse processo de racialização na própria constituição da relação social em si, não apenas no sujeito. A constituição de um mundo social dividido em que as relações de manutenção e reprodução da vida ocorrem por meio da relação entre coisas, às costas dos seres humanos, depende do processo permanente de criação dos seus pressupostos racializados, em que de forma natural parte da população é objetificada como inferior. O pressuposto racial constituído historicamente na acumulação originária colonial passa a ser reproduzido por meio da própria existência dessa relação. A reprodução da separação humana em classes parte da situação já pressuposta de uma vida social racializada, ou seja, ao reproduzir a sociabilidade capitalista também se reproduz a hierarquização racial.

A morte, a segregação, a fome, o encarceramento e a inferiorização que ocorrem na sociedade capitalista dentro de um marco de liberdade legal também carregam em si, com uma aparência natural, a construção social racializada. É na sociedade invertida, em que o ser humano se transforma em objeto vendido e estocável - classificado e dividido -, que o racismo desaparece como construção social, aparecendo apenas como resquícios históricos, problemas morais ou partes de estruturas estatais. É impossível dissociar no processo de constituição social atual a distinção em classe e a distinção em raça, essa separação só se torna possível na aparência reificada de nossas vidas. Por meio das subjetividades hierarquizantes e fetichizantes, os seres humanos são classificados e inferiorizados, destituídos dos seus meios de vida autônomos e racializados em uma mesma unidade social.

A fetichização, em que as relações entre pessoas se tornam relações entre coisas, é caracterizada pela classificação humana em hierarquias sociais, dividindo em indivíduos capitalistas alienados, os quais ao se relacionarem como mercadorias estabelecem relações de dominação e de inferiorização social. O racismo se torna, portanto, central para a classificação no interior do processo de fetichização, mas restando às costas dos indivíduos, que compreendem como natural a sua vida em uma relação entre coisas compráveis e estocáveis. A segregação, o encarceramento, a inferiorização subjetivizante, as desigualdades materiais e as experiências de morte cotidianas das populações negras e indígenas que transformam o ser humano em mercadoria barata (ou em reserva latente) na sociedade capitalista perdem na aparência seu caráter de violência brutal direta dos tempos coloniais para se transformarem em problemas pontuais de assimilação e em déficits históricos de incorporação nos mercados competitivos.

Somente a partir da consolidação e reprodução dessa classificação capitalista do ser humano, o qual passa a se auto entender como indivíduo e como ser vendável racializado, que é possível compreender as demais formas sociais. O Estado, assim como todos os seus aparatos repressivos e racistas, se constitui como forma política dessa relação capitalista de classificação, não ao contrário, como se fosse uma espécie de ente autônomo capaz de criar e unificar relações sociais ao bel prazer de determinados grupos de interesse. A inversão aparente da gênese da sociedade capitalista, cujas formas se transformam no todo, impede a compreensão de como a luta antirracista não é apenas identitária, mas uma luta contra a própria classificação humana.

Conclusão

A omissão das teorias sociais ao tratar da questão racial como constituidora das relações sociais gerais, não apenas vinculada em alguma estrutura estatal, se deve em grande parte a uma má leitura sobre o conteúdo das relações capitalistas. Baseada em uma visão economicista, as classes sociais são compreendidas como um grupo de função específica dentro da produção, reduzindo a constituição social a uma mecânica de distribuição de renda, em que todas as outras esferas da vida, com exceção da econômica, desaparecem ou se tornam secundárias. Em uma leitura oposta, a classe deve ser entendida por meio de uma relação de constituição social, na qual classifica a humanidade na forma de indivíduo capitalista, separando-o tanto do seu sentido de coletividade quanto dos seus meios de vida autônomos. É nessa constituição de ser humano separado, classificado e dividido em indivíduo, que a questão racial (e o racismo) se torna central para a gênese da relação social atual.

O que é imprescindível, portanto, para a compreensão do racismo nas formas atuais das relações sociais (não reduzida a um aparato do Estado) não é seu congelamento em um déficit com o passado, como se fosse uma singularidade histórica, mas como resultado de sua própria efetivação, ou seja, como resultado da própria existência das formas atuais de relações sociais pautadas por classes racializadas. O processo de constituição de classe na reprodução capitalista continua a operar através da brutal violência racializada, mas agora em sua forma naturalizada aparente, como se fosse apenas fruto da competição entre os grupos de interesse.

A morte, a segregação, a fome, o encarceramento e a inferiorização que ocorrem na sociedade capitalista dentro de um marco de liberdade legal também carregam em si, com uma aparência natural, a construção social racializada. É na sociedade invertida, em que o ser humano se transforma em objeto vendido e estocável - classificado e dividido -, que o racismo desaparece como construção social, aparecendo apenas como resquícios históricos, problemas morais ou partes de estruturas estatais. A inversão aparente da gênese da sociedade capitalista, cujas formas se transformam no todo, impede a compreensão de como a luta antirracista não é apenas um caráter identitário, mas uma luta contra a própria classificação humana. A luta de classe, portanto, ganha uma noção mais rica, em que a totalidade das práticas sociais estão em questão, assim se luta contra o processo de classificação e, sobretudo, contra ser inferiorizado, coisificado e separado. Por isso a luta antirracista é uma questão central, já que se opõe à gênese da constituição social dominante e opressora, e não algo secundário resolvido com a assimilação de algum passado corporificado nas estruturas estatais.

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  • 1
    A apresentação do debate sobre raça e classe feito nessa seção, tanto no Brasil quanto dos Estados Unidos (EUA), é apenas parcial, merecendo um aprofundamento que a extensão do artigo não comporta, dada a riqueza de toda a bibliografia sobre o assunto. Dessa forma, essa apresentação pretende construir uma linha (parcial) desse debate para auxiliar a compreensão de como o tema tem sido tratado e suas limitações teóricas sem, contudo, esgotar toda a literatura.
  • 2
    Não por acaso o pensamento posterior de Gunnar Myrdal terá um grande impacto nos estudos desenvolvimentistas da América Latina, construindo uma narrativa histórica da pobreza de forma dualística, em que o atraso traria o atraso em si, sendo necessário a modernização das partes atrasadas para o seu desenvolvimento e progresso.
  • 3
    Uma crítica mais detalhada às teorias de estratificação social e do estruturalismo marxista dentro da questão de classe será realizada na próxima seção. Para uma discussão teórica mais aprofundada, ver: Clarke (1978CLARKE, Simon. 1978. Capital, fractions of capital and the state. Capital & Class , v. 2, n. 2, pp. 32-77.) e Bonefeld (1992BONEFELD, Werner. 1992. Social constitution and the form of the capitalist state. In: BONEFELD, Werner; GUNN, Richard; PSYCHOPEDIS, Kosmas (ed.). Open Marxism vol. I: history and dialectics. London: Pluto Press.).
  • 4
    A plena consciência da existência de um racismo estruturante na democracia capitalista também constitui importantes estudos pioneiros dos intelectuais vinculados aos panteras negras, como a noção de racismo institucional (Hamilton e Ture, 1992HAMILTON, Charles; TURE, Kwame. 1992. Black power: politics of liberation in America. New York: Vintage Books.).
  • 5
    No Brasil, uma ótima introdução sobre o racismo estrutural pode ser vista em Almeida (2019ALMEIDA, Silvio Luiz de. 2019. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento.), assim como a importante leitura histórica de construção desse racismo estrutural em Oliveira (2022OLIVEIRA, Dennis. 2022. Racismo estrutural: uma perspectiva histórico-crítica. São Paulo: Dandara: Friedrich Ebert Stiftung.).
  • 6
    No original: “in which economic, political, social, and ideological levels are partially structured by the placement of actors in racial categories or races” (Bonilla-Silva 1997BONILLA-SILVA, Eduardo. 1997. Rethinking racism: toward a structural interpretation. American Sociological Review, v. 62, n. 3, pp. 465-480., p. 469).
  • 7
    A discussão do Estado como a forma política da sociedade capitalista pode ser vista no longo debate já presente em Pachukanis (1988PACHUKANIS, Evgeny. 1988. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica.), nos teóricos derivacionistas do Estado (Offe, 1975OFFE, Claus. 1975. The capitalist state and the problem of policy formation. In: LINDBERG, Leon et al. (ed.). Stress and contradiction in contradiction contemporary Capitalism. Pennsylvania: Lexington Books.; Hirsch, 2010HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010.) e nas novas leituras da obra de Marx (Clarke, 1991CLARKE, Simon (ed.). 1991. The state debate. London: Palgrave.; Bonnefeld, 1992BONEFELD, Werner. 1992. Social constitution and the form of the capitalist state. In: BONEFELD, Werner; GUNN, Richard; PSYCHOPEDIS, Kosmas (ed.). Open Marxism vol. I: history and dialectics. London: Pluto Press.; Holloway e Picciotto, 1978HOLLOWAY, John; PICCIOTTO, Sol. 1978. State and capital. London: Edward Arnold.).
  • 8
    Souza (2017SOUZA, Jessé. 2017. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: LeYa.) continuará sua trilha teórica já trabalhada em Souza (2015), em que busca expandir o referencial teórico de Pierre Bourdieu, através da incorporação das teorias de Michael Foucault e Charles Taylor, para a construção de um processo de formação nacional, mas agora com a centralidade da escravidão e da questão racial. Em sua concepção, os déficits de capitais simbólicos da população negra seriam utilizados pela elite brasileira na construção de um Estado extremamente desigual, por isso a necessidade de uma espécie de um desenvolvimentismo simbólico para a readequação do negro e o pleno florescimento do capitalismo no Estado brasileiro. Dessa forma, Souza (2017)SOUZA, Jessé. 2017. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: LeYa. ao invés de ressaltar o caráter estrutural do racismo para a formação capitalista brasileira, retoma a abordagem do negro como um problema para o florescimento do Estado brasileiro, acreditando na capacidade plena das forças capitalistas, uma vez que deixem de ser atrapalhadas pelas elites parasitárias que impedem a igualdade dos tais capitais simbólicos.
  • 9
    Dentro do marxismo tradicional, marcado em grande medida pelo debate sobre o imperialismo, há uma visão da análise de Marx, em O Capital, partindo de uma economia capitalista fechada (Pradella, 2013PRADELLA, Lucia. 2013. Imperialism and capitalist development in Marx’s Capital. Historical Materialism, v. 2, n. 21, pp. 117-147.), como se a expansão e a origem do capitalismo estivessem dentro de um Estado-nação único, sendo o mercado mundial marcado pela concorrência de capitais nacionais muitas vezes corporificados nos interesses do Estado-nação. Dessa forma, o sistema capitalista moderno seria marcado pela concorrência entre esses capitais monopolizados nos Estados, fase imperialista (Lenin, 1917/2008LENIN, Vladimir. [1917] 2008. O imperialismo: fase superior do capitalismo. Tradução Leila Prado. 3. ed. São Paulo: Centauro.), ou pela expropriação de mais valor de fora do sistema como necessidade de manutenção do processo de acumulação interna (Luxemburgo, 1913/1985LUXEMBURGO, Rosa. [1913] 1985. A acumulação do capital: contribuição ao estudo econômico do imperialismo. São Paulo: Nova Cultural.).
  • 10
    A dimensão da constituição social da análise de Fanon (2008FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba.) já havia sido apresentada pelo próprio autor: “A análise que empreendemos é psicológica. No entanto, permanece evidente que a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais.” (Fanon, 2008FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba., p. 28).
  • 11
    Os debates sobre as limitações das abordagens foucaultianas para a análise dos processos de constituição de classes sociais fogem do escopo deste artigo, contudo uma discussão teórica aprofundada pode ser vista em Bonnet (2009BONNET, Alberto. 2009. Antagonism and Difference: Negative Dialectics and Poststructuralism in view of the Critique of Modern Capitalism. In: HOLLOWAY, John; MATAMOROS, Fernando; TISCHLER, Sergio. Negativity and Revolution: Adorno and political activism. London: Pluto Press .).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Jul 2020
  • Aceito
    12 Jul 2023
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