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SEGUINDO O DINHEIRO: UMA ANÁLISE DA ATUAÇÃO DO BANCO MUNDIAL NO BRASIL (1990-2020)

FOLLOWING THE MONEY: AN ANALYSIS OF THE ACTION OF THE WORLD BANK IN BRAZIL (1990-2020)

Resumo

Este artigo analisa a atuação do Banco Mundial no Brasil de 1990 a 2020. Para tanto, realiza uma avaliação da carteira de empréstimos, a fim de mapear para quais finalidades o financiamento foi destinado, mensurar o peso dos entes federativos como mutuários, entender as razões que levaram o Banco a emprestar cada vez mais para esferas subnacionais e, por fim, identificar os governos que mais tomaram empréstimos e relacioná-los aos partidos políticos no poder. O artigo também discute as formas de atuação do Banco, argumentando que os empréstimos têm baixo peso na economia brasileira, mas funcionam como veículos para difundir ideias, normas e práticas sobre o que os governos devem fazer, e como, em matéria de políticas públicas. O trabalho mostra o alto peso relativo dos empréstimos de ajuste e evidencia que os partidos do centro à direita, quando no governo, tenderam a recorrer mais a empréstimos desse tipo do que partidos à esquerda.

Palavras-chave:
Ajuste Fiscal; Liberalização Econômica; Reforma do Estado; Federalismo; Banco Mundial; Cooperação Internacional

Abstract

This article analyses the actions of the World Bank in Brazil from 1990 to 2020. For this, it uses an assessment of the loan portfolio in order to map the purposes funding was used for, measure the weight of the federative spheres as borrowers, understand the reasons which led the Bank to increasingly lend to subnational entities and, finally, to identify the governments which most took out loans and relate them to political parties in power. Also discussed are the ways the Bank acted, and it is argued that loans have a low weight in the Brazilian economy, but function as vehicles to spread ideas, norms and practices which governments should adopt, and how to do so, in questions of public policies. The paper highlights the high relative weight of adjustment loans and shows that, when in government, parties from the center-right tend to resort more to loans of this type than parties of the left.

Keywords:
Fiscal Adjustment; Economic Liberalization; State Reform; Federalism; World Bank; International Cooperation

Bom conselho é raro, e bom conselho que é ouvido é ainda mais raro. Mas o Banco oferece um amplificador poderoso - a perspectiva de assistência de capital para financiar suas recomendações. Edward Mason e Robert Asher (1973MASON, Edward S.; ASHER, Robert E. 1973. The World Bank since Bretton Woods. Washington, DC: The Brookings Institution. , p. 331).

O Banco Mundial é o maior e mais antigo banco multilateral de desenvolvimento em atividade. Diferentemente do Fundo Monetário Internacional (FMI), que atua em situações de crise no balanço de pagamentos e concede empréstimos de grande volume condicionados à adoção de políticas de austeridade fiscal e reformas macroeconômicas - normalmente bastante impopulares -, o Banco Mundial atua de maneira contínua e discreta em uma miríade de áreas da vida econômica, político-administrativa e social dos países em desenvolvimento. Enquanto o FMI exerce o papel de “bombeiro”, atendendo principalmente a governos que precisam desesperadamente de dinheiro a curto prazo, o Banco Mundial desempenha um papel muito mais amplo, de reforma e construção institucional, cobrindo todas as áreas do desenvolvimento.

A relação da entidade com o Brasil começou em 1949, quando o país contraiu o primeiro empréstimo. À exceção dos anos de 1953 a 1964 - quando um acúmulo de tensões com o governo federal resultou no declínio de sua carteira, a ponto de nenhum financiamento ter sido autorizado entre 1960 e 1964 (Gonzalez et al., 1990GONZALEZ, Manuel et al. 1990. O Brasil e o Banco Mundial: um diagnóstico das relações econômicas (1949-1989). Brasília: IPEA.; Mason e Asher, 1973MASON, Edward S.; ASHER, Robert E. 1973. The World Bank since Bretton Woods. Washington, DC: The Brookings Institution.) -, a carteira da instituição cresceu e se expandiu ainda mais no país, ainda que de forma irregular e com destinações variadas. Historicamente, o país é o terceiro maior mutuário, atrás apenas da Índia e da China.

Este artigo analisa a atuação do Banco Mundial no Brasil no período de 1990 a 2020. Com base em uma avaliação da carteira de empréstimos, os objetivos são: mapear para quais finalidades e com qual volume o financiamento foi direcionado; mensurar o peso dos entes federativos (União, estados e municípios) como mutuários; entender as razões que levaram o Banco a emprestar cada vez mais para esferas subnacionais; e, por fim, identificar os governos que mais tomaram empréstimos em âmbito federal, estadual e municipal e relacioná-los aos partidos políticos no poder.

Dando sequência a pesquisas anteriores e em andamento (cf. Pereira, 2010PEREIRA, João M. M. 2010. O Banco Mundial como ator político, intelectual e financeiro (1944-2008). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., 2015PEREIRA, João M. M. 2015. Continuidade, ruptura ou reciclagem? Uma análise do programa político do Banco Mundial após o Consenso de Washington. Dados, v. 58, n. 2, pp. 461-98. DOI: 10.1590/00115258201550
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, 2021PEREIRA, João M. M. A construção do Banco Mundial como ator político, intelectual e financeiro do desenvolvimento capitalista internacional (1940-81). História Unisinos, v. 25, n. 1, pp. 77-93. DOI: 10.4013/hist.2021.251.07
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, 2022aPEREIRA, João M. M. 2022a. As estratégias de assistência do Banco Mundial para o Brasil em perspectiva política (1990-2020). Tempo e Argumento, v. 14, n. 37, pp. 01-37. DOI: 10.5965/2175180314372022E0301
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, 2022bPEREIRA, João M. M. 2022b. O Banco Mundial no Brasil (1990-2020). Curitiba: Appris.), o artigo está organizado em três partes. Inicialmente, são discutidas as principais funções e atividades realizadas pelo Banco Mundial. Em seguida, é apresentada uma breve avaliação da carteira geral, com ênfase para o peso relativo dos empréstimos de ajuste, a alta concentração dos créditos em alguns grandes clientes e as oscilações da carteira dos principais mutuários a nível global. No mesmo item, examina-se a carteira para o Brasil, detalhando a quais finalidades se destinaram, quais unidades federativas os contrataram e quais partidos políticos governavam a União, estados e municípios quando os empréstimos foram autorizados. Por sua vez, a terceira parte identifica os governos que mais tomaram empréstimos em âmbito federal, estadual e municipal e os relaciona aos partidos políticos que encabeçavam o governo. Ao final, os pontos centrais do argumento são sintetizados.

Banco Mundial: funções e formas de ação

A origem do Banco Mundial remonta à conferência de Bretton Woods, ocorrida em julho de 1944, quando se acordou a criação do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e de sua instituição gêmea, o Fundo Monetário Internacional (FMI). Em 1960, criou-se a Associação Internacional de Desenvolvimento (AID). Juntos, BIRD e AID constituem o Banco Mundial. Sediado em Washington, DC, o Banco tem 189 países membros, cerca de 12.300 funcionários em tempo integral de mais de 170 nacionalidades e escritórios espalhados em mais de 130 países, além de pouco mais de 5,5 mil consultores temporários (Banco Mundial, 2020aBANCO MUNDIAL. 2020a. Annual Report. Washington, DC., p. 76).

O que faz o Banco Mundial? Basicamente, ele fornece empréstimos e créditos para projetos e políticas, provê aconselhamento e assistência técnica aos governos dos países clientes, produz pesquisas econômicas especializadas combinadas com serviços de consultoria em todas as áreas do desenvolvimento e, por fim, mobiliza e articula agentes públicos e privados em favor de determinadas pautas e campanhas em escala global.

A atividade financeira é central para o funcionamento da instituição. O BIRD concede empréstimos ao setor público de países de renda per capita média e média-baixa em condições próximas às do mercado financeiro internacional (hard loans). Já a AID efetua empréstimos de longo prazo sem juros (soft loans) e doações (grants) ao setor público de países de renda per capita baixa. Enquanto o BIRD dá lucros anuais (advindos das taxas de juros cobradas) e seus títulos gozam da máxima pontuação atribuída por agências de credit rating - o que é fundamental para pagar os altos salários relativos de funcionários e consultores temporários -, a AID é recorrentemente deficitária. O Brasil sempre foi cliente apenas do BIRD.

Embora o lucro seja importante para o BIRD, não é esse o objetivo essencial do Banco Mundial. Na verdade, dentro da instituição, o dinheiro tem sido visto como um veículo para difundir e internalizar ideias, normas e práticas sobre o que os governos devem fazer, e como fazê-lo, em matéria de desenvolvimento capitalista.

O financiamento embute condicionalidades (exigências) e pressões informais definidas pelo credor, seja autorizando a liberação de empréstimos em troca de promessas de ações futuras, seja impondo o cumprimento das condições antes da liberação de qualquer recurso. Quanto ao conteúdo, há três modalidades básicas de condicionalidade (Babb e Carruthers, 2008BABB, Sarah L.; CARRUTHERS, Bruce G. 2008. Conditionality: forms, function, and history. Annual Review of Law and Social Science, v. 4, pp. 13-29. DOI: 10.1146/annurev.lawsocsci.4.110707.172254
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). A primeira é a financeira e diz respeito à taxa de juros e ao cronograma de pagamento. Caso o mutuário descumpra o calendário de pagamento, o empréstimo é cancelado ou reprogramado. A segunda modalidade é a macroeconômica, segundo a qual se exige que o mutuário administre variáveis econômicas (como o nível de endividamento público e as taxas de juros, câmbio e inflação) de determinada maneira. É uma forma politicamente mais intrusiva do que a condicionalidade financeira e supõe a vigilância do credor sobre o comportamento do devedor. A terceira modalidade é a condicionalidade estrutural, e se volta para mudanças mais profundas na economia, nas instituições e nas políticas públicas do país. Em termos políticos, é a mais intrusiva de todas e requer alto grau de vigilância sobre as ações do mutuário. O instrumento principal para tanto é o empréstimo de ajuste (adjustment loan), iniciado em 1980 e, em 2005, rebatizado de Empréstimo para Políticas de Desenvolvimento (Development Policy Loan, DPL). Empréstimos de ajuste são baseados em políticas (por isso, diferem da maioria dos empréstimos, que são baseados em projetos) e, no período de 1980 a 2020, cumpriram um papel importante na indução e difusão de políticas neoliberais no Sul global, restringindo em maior ou menor grau o espaço político dos governos dos países mutuários (cf. Babb, 2009BABB, Sarah L. 2009. Behind the development banks: Washington politics, world poverty, and the wealthy of nations. Chicago: The University of Chicago Press., 2013BABB, Sarah L. 2013. The Washington Consensus as transnational policy paradigm: its origins, trajectory and likely successor. Review of International Political Economy, v. 20, n. 2, pp. 268-97. DOI: 10.1080/09692290.2011.640435
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; Babb e Kentikelenis, 2021BABB, Sarah L.; KENTIKELENIS, Alexander. 2021. Markets everywhere: the Washington Consensus and the sociology of global institutional change. Annual Review of Sociology, v. 47, n. 1, pp. 521-41.; Carroll, 2010CARROLL, Toby. 2010. Delusions of development: the World Bank and the Post-Washington Consensus in Southeast Asia. London: Palgrave.; Engel, 2010ENGEL, Susan. 2010. The World Bank and the post-Washington Consensus in Vietnam and Indonesia. London: Routledge.; Harrison, 2004HARRISON, Graham. 2004. The World Bank and Africa: the construction of governance states. London: Routledge .; Kirk, 2010KIRK, Jason A. 2010. India and the World Bank: the politics of aid and influence. London: Anthem Press. DOI: 10.2307/j.ctt1gxpdrw.
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; Williams, 2008WILLIAMS, David. 2008. The World Bank and social transformation in international politics. London: Routledge .; Woods, 2006WOODS, Ngaire. 2006. The globalizers: the IMF, the World Bank and their borrowers. Ithaca: Cornell University Press.).

Normalmente, os empréstimos são contraídos em moeda forte e os mutuários têm de desembolsar uma contrapartida, que pode ser muito maior do que a quantia contratada, o que induz a mudanças de prioridades no gasto público, deixando uma dívida que haverá de ser paga quando os governantes já serão outros. O Banco também pode fazer operações consorciadas com outros financiadores, o que potencializa o alcance das suas ações.

O grau de coerção das condicionalidades varia conforme diversos fatores. Por exemplo, países pobres ou cujas economias se encontram em crise de endividamento externo dispõem, em geral, de menor poder de barganha do que países de renda média ou em crescimento (cf. Babb e Carruthers, 2008BABB, Sarah L.; CARRUTHERS, Bruce G. 2008. Conditionality: forms, function, and history. Annual Review of Law and Social Science, v. 4, pp. 13-29. DOI: 10.1146/annurev.lawsocsci.4.110707.172254
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; Brown, 1995BROWN, Michael Barratt. 1995. Africa’s choices after thirty years of the World Bank. London: Penguin Books.; Kirk, 2010KIRK, Jason A. 2010. India and the World Bank: the politics of aid and influence. London: Anthem Press. DOI: 10.2307/j.ctt1gxpdrw.
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; Kofas, 2001KOFAS, Jon V. 2001. The IMF, the World Bank, and U.S. foreign policy in Ecuador, 1956-1966. Latin American Perspectives, v. 28, n. 50, pp. 50-83. DOI: 10.1177/0094582X0102800504
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; Payer, 1982PAYER, Cheryl. 1982. The World Bank: a critical analysis. New York: Monthly Review Press.; Xu, 2017XU, Jiajun. 2017. Beyond US hegemony in international development: The contest for influence at the World Bank. Cambridge: Cambridge University Press . DOI: 10.1017/9781316779385
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). Ademais, o Banco pode sofrer pressões dos seus principais acionistas para continuar emprestando a determinado país, por razões geopolíticas ou econômicas, independentemente do cumprimento das condicionalidades, podendo também ser compelido a seguir emprestando a grandes clientes, para se manter como fonte relevante de crédito. De todo modo, as condicionalidades são mais eficazes quando há agentes políticos domésticos com poder dispostos a implantá-las, por razões ideológicas ou pragmáticas (cf. Babb e Kentikelenis, 2021BABB, Sarah L.; KENTIKELENIS, Alexander. 2021. Markets everywhere: the Washington Consensus and the sociology of global institutional change. Annual Review of Sociology, v. 47, n. 1, pp. 521-41.; Williams, 2008WILLIAMS, David. 2008. The World Bank and social transformation in international politics. London: Routledge .; Woods, 2006WOODS, Ngaire. 2006. The globalizers: the IMF, the World Bank and their borrowers. Ithaca: Cornell University Press.). Em casos assim, políticos locais costumam utilizar tais condicionalidades para justificar políticas de austeridade fiscal, ou para destravar investimentos (como contrapartida nacional).

A segunda atividade do Banco Mundial consiste em fornecer aconselhamento e assistência técnica aos governos. O Banco sempre se relacionou discretamente com interlocutores nacionais bastante seletos (em geral, da área econômica ou de planejamento), buscando socializar os quadros técnicos e políticos dos países membros no mesmo “senso comum” acerca do desenvolvimento e de como promovê-lo (Bazbauers, 2016BAZBAUERS, Adrian Robert. 2016. The World Bank as a development teacher. Global Governance, v. 22, n. 3, pp. 409-27. DOI: 10.1163/19426720-02203007
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, 2020BAZBAUERS, Adrian Robert. 2020. World Bank technical assistance: participation, policy movement, and sympathetic interlocutors. Policy Studies, v. 41, n. 6, pp. 567-85. DOI: 10.1080/01442872.2019.1581156
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; Broome et al., 2018BROOME, André; HOMOLAR, Alexandra; KRANKE, Matthias. Bad science: international organizations and the indirect power of global benchmarking. European Journal of International Relations, v. 24, n. 3, pp. 514-39. DOI: 10.1177/1354066117719320
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). Porém, à medida que a agenda política do Banco evoluiu do ajuste macroeconômico e fiscal dos anos 1980 para complexas reformas institucionais (previdenciária, tributária, em saúde, educação, gestão pública, etc.) desde meados da década de 1990 (cf. Banco Mundial, 1997BANCO MUNDIAL. 1997. World Development Report: the state in a changing world. Washington, DC.; Kuczynski e Williamson, 2004KUCZYNSKI, Pedro Pablo; WILLIAMSON, John (org.). 2004. Depois do Consenso de Washington: retomando o crescimento e a reforma na América Latina. São Paulo: Saraiva.; Naím, 1994NAÍM, Moisés. 1994. Latin America: the second stage of reform. Journal of Democracy, v. 5, n. 4, pp. 32-48. DOI: 10.1353/jod.1994.0057
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), o Banco assumiu cada vez mais o papel de articulação e advocacia em favor de determinadas pautas, alargando as funções de aconselhamento e assistência técnica.

A terceira atividade consiste na produção de pesquisas especializadas sobre desenvolvimento. Com ampla difusão, a pesquisa do Banco envolve a construção de conceitos, definições e normas, com o objetivo de delimitar os termos legítimos do debate, além da elaboração de indicadores e classificações, com base nas quais a instituição constrói rankings internacionais abrangentes (Best, 2014BEST, Jacqueline. 2014. Governing failure: provisional expertise and the transformation of global development finance. Cambridge: Cambridge University Press.; Broome et al., 2018BROOME, André; HOMOLAR, Alexandra; KRANKE, Matthias. Bad science: international organizations and the indirect power of global benchmarking. European Journal of International Relations, v. 24, n. 3, pp. 514-39. DOI: 10.1177/1354066117719320
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; Doshi et al., 2019DOSHI, Rush, KELLEY; Judith K.; SIMMONS, Beth A. 2019. The power of ranking: the ease of Doing Business indicator and global regulatory behavior. International Organization, v. 73, n. 3, pp. 611-43. DOI: 10.1017/S0020818319000158). O Banco também faz pesquisas vinculadas diretamente à assessoria a governos (Stern e Ferreira, 1997STERN, Nicholas; FERREIRA, Francisco. 1997. The World Bank as ‘intellectual actor’. In: KAPUR, Devesh; LEWIS, John P.; WEBB, Richard. (ed.) The World Bank: its first half century - Perspectives. Washington, DC: Brookings Institution Press , v. 2, pp. 523-610.). Em alguns temas, o Banco pode incorporar seletivamente ideias e pautas de outras organizações internacionais (Nay, 2014NAY, Oliver. 2014. International organisations and the production of hegemonic knowledge: how the World Bank and the OECD helped invent the fragile state concept. Third World Quarterly, v. 35, n. 2, pp. 210-31.). Apesar da imagem de excelência técnica e imparcialidade, a pesquisa feita pelo Banco cumpre o papel de apoiar as operações financeiras e legitimar a agenda política da instituição (Bayliss et al., 2011BAYLISS, Kate; FINE, Ben; VAN WAEYENBERGE, Elisa. (ed.). 2011. The political economy of development: the World Bank, neoliberalism and development research. London: Pluto Press. DOI: 10.2307/j.ctt183gzdj
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; Wade, 1996WADE, Robert. 1996. Japan, the World Bank, and the art of paradigm maintenance: the East Asian Miracle in political perspective. New Left Review, n. 217, pp. 3-36. Disponível em: Disponível em: https://shre.ink/9u6j . Acesso em: 25 jul. 2023.
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, 2002WADE, Robert Hunter. 2002. US hegemony and the World Bank: the fight over people and ideas. Review of International Political Economy , v. 9, n. 2, pp. 215-43. Disponível em: Disponível em: https://shre.ink/9uTq . Acesso em: 25 jul. 2023.
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).

Um tema que une aconselhamento, assistência técnica e pesquisa é o da reforma do Estado. Não por acaso, o gerencialismo (ou Nova Gestão Pública, NGP) é assumido e impulsionado pelo Banco Mundial (1991BANCO MUNDIAL. 1991. World Development Report: the challenge of development. Washington, DC. e 1997BANCO MUNDIAL. 1997. World Development Report: the state in a changing world. Washington, DC.) como referência para uma reforma global do setor público. Essa vertente aplica conhecimentos e instrumentos da gestão empresarial ao setor público, com o objetivo de aumentar a eficiência, a eficácia e a responsabilização (cf. Osborne e Gaebler, 1992OSBORNE, David; GAEBLER, Ted. 1992. Reinventing government: how the entrepreneurial spirit is transforming the public sector. New York: Plume.). A NGP promove como princípios a separação radical das funções de provedor, executor e usuário, a fragmentação dos serviços públicos em unidades de gestão mais autônomas (para que concorram por recursos) e a gestão baseada em resultados aferíveis por métricas. Nessa lógica, o Estado não deve ser o único (ou mesmo o principal) fornecedor do serviço público, o qual pode ser prestado por entidades privadas sem fins lucrativos, mediante terceirização ou parcerias público-privadas (cf. Harrison, 2004HARRISON, Graham. 2004. The World Bank and Africa: the construction of governance states. London: Routledge .; Seabrooke e Sending, 2019SEABROOKE, Leonard.; SENDING, Ole Jacob. 2019. Contracting development: managerialism and consultants in intergovernmental organizations. Review of International Political Economy , v. 27, n. 4, pp. 202-27. DOI: 10.1080/09692290.2019.1616601
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).

A quarta atividade consiste em mediar, destilar e articular interesses e visões sobre o desenvolvimento, e canalizá-los para iniciativas multilaterais que envolvam governos, empresas, ONGs, fundações filantrópicas, setores da academia e outras organizações internacionais em matéria de saúde, meio ambiente, educação, entre outros (Goldman, 2005GOLDMAN, Michael. 2005. Imperial nature: the World Bank and struggles for social justice in the age of globalization. New Haven: Yale University Press.; Williams, 2008WILLIAMS, David. 2008. The World Bank and social transformation in international politics. London: Routledge .). Com efeito, à medida que as pressões cobrando transparência e responsabilização se avolumaram durante as décadas de 1980 e 1990, o Banco Mundial passou a se abrir a processos de consulta pública que envolvem uma gama mais diversa de agentes sociais (Gwin, 1997GWIN, Catherine. 1997. U.S. relations with the World Bank, 1945-1992. In: KAPUR, Devesh; LEWIS, John P; WEBB, Richard C. (ed.) The World Bank: its first half century - Perspectives. Washington, DC: Brookings Institution Press, v. 2, pp. 195-274.; Park, 2010PARK, Susan. 2010. World Bank Group interactions with environmentalists. Manchester: Manchester University Press.; Wade, 1997WADE, Robert. 1997. Greening the Bank: the struggle over the environment, 1970-1995. In: KAPUR, Devesh; LEWIS, John P.; WEBB, Richard (ed.). The World Bank: its first half century: perspectives. Washington, DC: Brookings Institution Press . v. 2, pp. 611-734.).

Embora o Banco Mundial empreste apenas para o setor público, o setor privado figura em suas operações de inúmeras formas. Afinal, faz parte da sua missão institucional a criação de mercados e a promoção de oportunidades para o capital privado (sobretudo, estrangeiro) em países em desenvolvimento. Uma das formas mais importantes de imbricação do setor privado no Banco Mundial se dá por meio dos milhares de contratos abertos anualmente em decorrência dos projetos financiados pela instituição, que envolvem grande volume de compra e venda de bens e serviços, os quais são historicamente abocanhados, em maior parte, por empresas sediadas nos países mais ricos graças a lobbies que contam com o apoio dos seus respectivos governos (Woods, 2006WOODS, Ngaire. 2006. The globalizers: the IMF, the World Bank and their borrowers. Ithaca: Cornell University Press.). Ademais, associada ao Banco Mundial e compartilhando a mesma agenda política, a Corporação Financeira Internacional (CFI)1 1 Disponível em: https://www.ifc.org/wps/wcm/connect/corp_ext_content/ifc_external_corporate_site/home. Acesso em: 25 jul. 2023. empresta diretamente a empresas privadas, vende serviços de consultoria àquelas interessadas em abrir capital em bolsas de valores e assessora governos na formatação de programas de privatização2 2 Como no caso da assessoria ao governo paulista para a venda da Sabesp. Disponível em: http://glo.bo/3OsKOuB. Acesso em: 25 jul. 2013. .

As relações do Banco Mundial com os Estados clientes são bastante diferenciadas, pois os países dispõem de condições políticas, econômicas e técnicas muito desiguais de negociação, sendo bastante distintas as relações com países como China, Índia e Brasil (clientes do BIRD) daquelas estabelecidas com os países mais pobres da África Subsaariana (clientes da AID). Igualmente, o relacionamento do Banco com um mesmo país pode variar bastante no tempo, dependendo das circunstâncias e das prioridades dos governos. Também é importante salientar que, no período estudado, tais relações se deram para além da burocracia estatal e envolveram organizações da sociedade civil (como fundações empresariais, entidades filantrópicas, institutos de pesquisa, firmas de consultoria, ONGs, nichos da academia, entre outros). Por fim, em qualquer caso, quem executa determinado projeto ou política é sempre o governo, por meio de agências e instrumentos do Estado, e não o Banco Mundial, por mais que sua influência seja significativa, o que significa dizer que tais relações envolvem barganha, filtragem e tradução local das normas e ações prescritas pela instituição. Dependendo da situação econômica do país, das prioridades do governo, do histórico de relações com elites políticas e burocráticas e da mobilização de agentes da sociedade civil, as relações podem assumir um perfil mais programático ou mais pragmático, mas envolvem escolhas dos agentes nacionais sobre que rumos seguir e como fazê-lo em matéria de políticas de desenvolvimento. Em outras palavras, a eficácia das ações do Banco Mundial depende da construção de visões de mundo e interesses mútuos com agentes políticos, intelectuais e econômicos entrincheirados tanto em aparelhos do Estado como na sociedade civil.

Seguindo o dinheiro

O Brasil é o principal mutuário na América Latina e, até 2016, era o segundo maior cliente em termos globais, quando foi ultrapassado pela China. A Tabela 1 mostra o montante financiado até julho de 2020 aos 30 maiores clientes. Note-se a extrema concentração da carteira em poucos países, não necessariamente os mais pobres, sendo que somente os dez maiores clientes (dos quais quatro latino-americanos) concentravam 46% de todos os empréstimos.

Tabela 1
Empréstimos acumulados do BIRD e da AID (de 1945 até julho de 2020) - 30 maiores mutuários Milhões de dólares

A partir de meados da década de 1990, a pauta do Banco gradativamente se expandiu e se diversificou, abarcando, além dos setores tradicionais de infraestrutura, transporte e energia, cada vez mais serviços sociais (como educação e saúde), meio ambiente e gestão pública. Os empréstimos de ajuste (baseados em políticas) continuaram em alta e foram utilizados como veículos para reformar os Estados clientes em diversas áreas.

O Gráfico 1 informa os compromissos financeiros e empréstimos de ajuste autorizados no período 1990-2020, mostrando que as operações de ajuste representaram, na média, 28% dos compromissos financeiros, chegando à metade em 1999 e 2002. Por outro lado, o Banco Mundial (mais o BIRD do que a AID) respondeu às crises financeiras mais severas (em 1995, 1998-99, 2002 e 2008-11) e à pandemia em 2020 aumentando sua carteira total e para empréstimos de ajuste, confirmando o cliché de que as crises constituem oportunidades para a instituição ampliar a sua alavancagem financeira e sua influência política.

Gráfico 1
Compromissos financeiros do Banco Mundial (total e ajuste) (anos fiscais 1990-2020) Bilhões de dólares

Obs.: o ano fiscal se inicia em 1º de julho e termina em 30 de junho.


Por sua vez, o Gráfico 2 mostra a alocação regional dos compromissos financeiros de 1991 a 2020. Novamente, constata-se a forte correlação entre crises e aumentos expressivos na participação de certas regiões na carteira total (Leste da Ásia e Pacífico em 1997-98, África em 1998-2001, Europa e Ásia Central em 2001-02, América Latina e Caribe em 2008-09). Dos trinta anos da série, em onze a América Latina foi a maior receptora (clientes do BIRD), respondendo, em média, por um quinto do montante das operações, mas em alguns anos chegando a quase um terço. Vale destacar também que, no período de 2012 a 2020, a África foi a destinatária de fatias crescentes do financiamento, o que está relacionado ao aumento da importância relativa da AID na base de Estados clientes (os mais pobres) do Banco Mundial.

Gráfico 2
Compromissos financeiros do Banco Mundial por região - anos fiscais 1991 a 2020

Obs.: O ano fiscal se inicia em 1º de julho do ano anterior e termina em 30 de junho do ano de referência.


O Gráfico 3 ilustra a carteira do Banco Mundial para os três maiores clientes de 1990 a 2020. É interessante observar como a China apresenta as menores oscilações relativas, variando de pouco menos de 1 bilhão de dólares por ano a pouco mais de 3 bilhões. Igualmente, destaca-se a indiferença da carteira contratada pela China em relação às crises financeiras do período. De outro lado, o Brasil apresenta maior variação, oscilando de pouco menos de 2 bilhões a quase 4 bilhões ao ano, e um período de alta claramente delimitado - iniciado em 2008, com auge em 2010 e queda significativa a partir de 2014 -, durante o qual os empréstimos foram redirecionados da União para os estados (como será visto adiante). Já o caso da Índia se destaca pela elevada irregularidade dos empréstimos, saltando de dois bilhões a pouco mais de 9 bilhões, claramente em resposta à crise financeira ocorrida em 2008.

Gráfico 3
Empréstimos autorizados pelo Banco Mundial aos 3 maiores clientes: anos fiscais 1990 a 2020

Obs.: O ano fiscal se inicia em 1º de julho do ano anterior e termina em 30 de junho do ano de referência.


O uso intenso de empréstimos de ajuste ocorreu no Brasil. A Tabela 2 apresenta a carteira de empréstimos autorizados para o país no período de 1990 a dezembro de 2020, tanto em valores como em número de operações. Em primeiro lugar, constata-se que o total acumulado da carteira é de US$ 45,9 bilhões em 315 operações, dos quais US$ 13,4 bilhões (29,3%) destinados a empréstimos de ajuste. Ou seja, na média, o Banco autorizou o empréstimo de US$ 1,48 bilhão por ano. Ora, em comparação com o Orçamento Geral da União de 2019 (R$ 3,2 trilhões), pode-se afirmar que o peso econômico do Banco no país é pequeno. Como se verá adiante, os empréstimos, mais do que causarem impactos econômicos significativos diretamente, funcionam como veículos para difundir ideias, normas e práticas sobre o que os governos devem fazer, e de que modo fazer, em matéria de políticas públicas.

Tabela 2
Empréstimos do Banco Mundial autorizados para o Brasil, conforme sua finalidade principal (mar 1990 a dez 2020)

Em segundo lugar, do total de 315 operações financeiras, 145 foram contratadas pela União (46%), 147 por estados (47%) e 23 por municípios (7%). Em valores, a rigor, este é o grande diferencial do Brasil em relação a todos os demais países da América Latina: a importância de estados e municípios como clientes do Banco Mundial.

Em terceiro lugar, observe-se que os empréstimos de ajuste tiveram grande peso na carteira para o Brasil, assim como na geral, representando cerca de 30% do financiamento para a União e os estados, e quase 56% para municípios. Esse dado é muito relevante, pois mostra o interesse dos governos subnacionais em contratar empréstimos para reformar políticas específicas e, eventualmente, a própria gestão pública.3 3 Cabe uma explicação metodológica sobre a classificação da “finalidade principal” referente às tabelas 2, 4 e 6. Ao longo do período em análise, o Banco Mundial modificou algumas vezes a nomenclatura dos setores e temas conforme os quais os empréstimos são etiquetados (p.ex., “administração pública”, “gestão pública” ou “governança do setor público”, entre outras). Assim, tomei como referência a formulação mais simples. Em segundo lugar, o Banco dilui os empréstimos de ajuste em diferentes setores ou destinações, ao passo que este artigo os concentrou em uma rubrica específica, exatamente para chamar atenção para sua importância relativa.

A Tabela 3, por sua vez, apresenta os empréstimos autorizados para o Brasil (em valores e número de operações) entre os anos de 1990 a 2020. Novamente, os dados são muito reveladores e alguns pontos merecem consideração. Foi durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva que a atividade financeira do Banco foi mais intensa como um todo, bem acima daquela ocorrida durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Dilma Rousseff. Igualmente, foi durante o governo Lula que o Banco autorizou à União mais empréstimos (pouco mais do que durante o governo FHC), ao contrário do que sugeria o discurso oficial da época de “adeus” às instituições de Bretton Woods.4 4 Em 31 de outubro de 2008, p.ex., o então presidente Lula afirmou: “Vocês não imaginam a alegria que tive. Eu que passei a vida inteira dizendo ‘Fora, FMI’, e, como presidente da República, ter chamado o FMI para dizer ‘Adeus, FMI’”. Disponível em: http://glo.bo/3rB6o7g. Acesso em: 29 mar. 2023. Por outro lado, considerando o tempo de mandato, o governo Dilma foi o de menor contratação de empréstimos pela União - chegando a um patamar irrelevante -, mas foi durante seu mandato que a carteira da instituição junto aos estados chegou ao máximo histórico, ultrapassando a fatia contratada pela União durante os governos dos demais presidentes pós-1989. Os empréstimos do Banco Mundial para o Brasil se concentraram nos estados (53%) - puxados pela alta ocorrida durante os mandatos de Lula e Dilma -, depois na União (42%) e, por fim, em municípios (5%), envolvendo um conjunto significativo, mas seleto, de relações entre a instituição e setores da burocracia e elites políticas em praticamente todo o país. Por fim, chamam atenção a queda aguda da carteira durante o governo Temer - mas com relevante atividade de consultoria por parte do Banco (BM, 2017BANCO MUNDIAL. 2017. Um ajuste justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil. Brasília.) - e a recuperação tímida durante os dois primeiros anos do governo Bolsonaro, em larga medida puxada pelo empréstimo de US$ 1 bilhão (IBRD91720) para o Bolsa Família autorizado em outubro de 2020, como parte de uma onda mais geral de empréstimos para combate à extrema pobreza na América Latina durante a pandemia.

Tabela 3
Empréstimos do Banco Mundial aprovados para o Brasil (março de 1990 a dezembro de 2020)

O Gráfico 4 detalha o montante de compromissos financeiros autorizados ao Brasil no período de 1990 a 2020. Pode-se ver que o fluxo de empréstimos à União praticamente zerou em 2007-08, quando então o Banco Mundial redirecionou a sua carteira aos estados. Esse deslocamento da carteira aos estados não se deu por oposição do governo federal, mas com sua anuência (garantia) e apoio, até 2014.

Gráfico 4
Compromissos financeiros do Banco Mundial autorizados para o Brasil (mar 1990 a dez 2020)

A razão dessa guinada do Banco Mundial em direção aos estados está indicada na Estratégia de Parceria com o País (EPP)5 5 Trata-se do documento mais relevante na relação entre o Banco Mundial e seus Estados clientes, pois condensa um diagnóstico da economia do país e projeta as linhas gerais de atuação da instituição em dado período (normalmente, a cada quatro anos). referente ao período de 2008 a 2011. Aprovada em maio de 2008 pela Diretoria do Banco, a EPP destacou que a instituição atuava em nichos específicos no país, emprestando cerca de US$ 2 bilhões por ano, em uma economia cujo Produto Interno Bruto (PIB) era de US$ 1 trilhão e onde o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) fornecia então cerca de US$ 35 bilhões por ano. Para o Banco Mundial, tal cenário exigia uma atuação mais seletiva, a fim de auxiliar as prioridades ditadas pelo governo federal. Literalmente:

  • O Banco não deve participar de áreas nas quais o Brasil possui conhecimento e capacidade de administração própria;

  • O Banco não pode atuar como um “governo paralelo” no Brasil, engajando-se em todos os desafios enfrentados pelo País;

  • O trabalho analítico do Banco precisa se concentrar menos em “o quê” e mais em “como”, e na melhor interação das atividades de transmissão de conhecimento, de empréstimo e naquelas financiadas por fundos fiduciários; e

  • O Grupo Banco Mundial deveria enfocar principalmente os desafios estruturantes de longo prazo, para os quais o Brasil ainda não encontrou soluções e a experiência internacional pode ter especial valor, que foram identificados pelos líderes brasileiros como desafios paradigmáticos. (Banco Mundial, 2008BANCO MUNDIAL. 2008. Estratégia de Parceria com o País: Brasil: 2008 a 2011. Washington, DC. Relatório n. 42677-BR., pp. 17-18, grifo nosso)

A citação acima reflete uma postura essencialmente pragmática, com o objetivo de preservar um grande cliente, em um contexto bastante singular na história brasileira, dada a combinação de manutenção sólida do tripé macroeconômico (baseado em superávits primários, metas de inflação e câmbio flutuante) herdado do governo anterior, crescimento da economia brasileira (em 2008 o país obteve o “grau de investimento” atribuído por agências de classificação de risco), grande volume de reservas internacionais (que passaram de US$ 32 bilhões em 2002 para US$ 206 bilhões no final de 2008), afirmação política do país diante da banca multilateral (recorde-se a devolução de recursos e a quitação antecipada da dívida com o FMI em 2005-06) e protagonismo diplomático do Brasil nas relações internacionais. Sob tais condições, “o risco para o Banco de não adotar uma nova abordagem flexível em um dos nossos maiores clientes de renda média é a irrelevância” (Banco Mundial, 2008BANCO MUNDIAL. 2008. Estratégia de Parceria com o País: Brasil: 2008 a 2011. Washington, DC. Relatório n. 42677-BR., p. 6).

A situação do Brasil não era única àquela altura. De fato, a necessidade do Banco Mundial de se adaptar às circunstâncias e prioridades de grandes clientes marcou as primeiras décadas do século XXI. Em um contexto marcado por maior multipolaridade internacional, acirramento da concorrência entre financiadores do desenvolvimento (com relevante papel assumido pela China) e governos mais seletivos quanto a reformas empurradas por condicionalidades, o Banco Mundial passou a atuar de forma mais pragmática e flexível junto a diversos mutuários, especialmente os de maior volume (cf. Güven, 2016GÜVEN, Ali B. 2016. The World Bank and emerging powers: beyond the multipolarity-multilateralism conundrum. New Political Economy, v. 22, n. 5, pp. 1-25. DOI: 10.1080/13563467.2017.1257596
https://doi.org/10.1080/13563467.2017.12...
, 2018GÜVEN, Ali B. 2018. Whither the Post-Washington Consensus? International financial institutions and development policy before and after the crisis. Review of International Political Economy , v. 25, n. 3, pp. 1-25. DOI: 10.1080/09692290.2018.1459781
https://doi.org/10.1080/09692290.2018.14...
).

Voltando à EPP 2008-11, o documento ressaltou o fato de que, no quadriênio anterior, os empréstimos para a União haviam predominado, principalmente grandes operações de ajuste. Agora, porém, a conjuntura econômica havia mudado e o governo federal requeria do Banco um programa de novo tipo, centrado nos estados:

Com o rápido aumento de suas reservas cambiais, o Governo deseja que o enfoque do programa da instituição mude na direção de: (a) um sólido programa de assistência técnica, de tamanho relativamente modesto, no nível federal; e (b) um grande programa de financiamento com os estados, que atenda às suas prioridades e em conformidade com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Este novo programa, voltado predominantemente para os estados, é caracterizado por um “senso de oportunidade baseado em princípios” no qual os governadores que estiverem interessados em trabalhar com o Banco definem suas prioridades e a instituição responderá apresentando um conjunto bem articulado de princípios (apoiados em trabalho analítico e experiência no Brasil e no estrangeiro). (Banco Mundial, 2008BANCO MUNDIAL. 2008. Estratégia de Parceria com o País: Brasil: 2008 a 2011. Washington, DC. Relatório n. 42677-BR., p. 5, grifo nosso)

De fato, sem o alinhamento com os ministérios da Fazenda e do Planejamento, não seria possível ao Banco deslocar sua carteira nessa magnitude, pois são esses órgãos que estabelecem o equilíbrio entre os empréstimos para os três níveis da federação, a prioridade a ser atribuída às demandas de financiamento e assistência técnica de todos os ministérios, bem como as normas de envolvimento do Banco com as administrações subnacionais. A partir desse guarda-chuva da União, os governadores interessados definiam as áreas nas quais a participação do Banco era solicitada, e o Banco avaliava onde e como ele deveria (ou não) se engajar (Banco Mundial, 2008BANCO MUNDIAL. 2008. Estratégia de Parceria com o País: Brasil: 2008 a 2011. Washington, DC. Relatório n. 42677-BR., p. 23-24).

Ademais, segundo o Banco Mundial, empréstimos aos estados podiam servir como veículos para planejar e dar vazão a grandes programas federais nas áreas de saúde, educação, energia, meio ambiente e gestão de recursos hídricos. Assim, iniciativas estaduais apoiadas pelo Banco seriam vistas por tais ministérios como “uma excelente oportunidade para expandir seus programas nacionais, que a instituição ajuda com frequência a planejar” (Banco Mundial, 2008BANCO MUNDIAL. 2008. Estratégia de Parceria com o País: Brasil: 2008 a 2011. Washington, DC. Relatório n. 42677-BR., p. 25).

Além dos estados, foi nesta EPP 2008-11 que apareceu, pela primeira vez, uma diretriz clara sobre o relacionamento do Banco com municípios:

O Governo Federal especificou que o Banco poderá se envolver com os municípios apenas em circunstâncias especiais […], quando houver externalidades significativas […] e quando o projeto gerar receita para o município. De modo geral, o governo não deseja que o Banco conceda empréstimos aos municípios quando houver recursos internos disponíveis. (Banco Mundial, 2008BANCO MUNDIAL. 2008. Estratégia de Parceria com o País: Brasil: 2008 a 2011. Washington, DC. Relatório n. 42677-BR., p. 26)

Segundo o Banco Mundial (2008BANCO MUNDIAL. 2008. Estratégia de Parceria com o País: Brasil: 2008 a 2011. Washington, DC. Relatório n. 42677-BR.), sua atuação junto aos municípios se concentraria na reforma da gestão pública e no aumento da competitividade municipal pela atração de capitais, assim como na adoção de mecanismos orientados para resultados na oferta de serviços urbanos.

Vale ressaltar a importância das atividades de análise e assessoria (AAA) na relação com o Brasil. Assim, dizia a EPP 2008-11, “como uma resposta à constante demanda do Brasil, será atribuída maior ênfase às atividades de AAA que abordam mais como a política deve ser implementada e menos o que deve ser feito” (Banco Mundial, 2008BANCO MUNDIAL. 2008. Estratégia de Parceria com o País: Brasil: 2008 a 2011. Washington, DC. Relatório n. 42677-BR., p. 29). O aconselhamento e o aval do Banco eram entendidos como ativos estratégicos, a serem calibrados conforme as prioridades governamentais: “Fundos também serão reservados para aconselhamento no tempo certo sobre questões estratégicas de conteúdo político altamente sensíveis […] nas quais o governo brasileiro valoriza a combinação do conhecimento e do ‘selo de aprovação’ do Banco” (Banco Mundial, 2008BANCO MUNDIAL. 2008. Estratégia de Parceria com o País: Brasil: 2008 a 2011. Washington, DC. Relatório n. 42677-BR., p. 29).

Voltando à carteira de financiamento, a Tabela 4 classifica os empréstimos autorizados para a União, estados e municípios segundo sua finalidade principal. Ela revela ao menos oito pontos importantes. Primeiro, o governo FHC contraiu mais empréstimos de ajuste do que todas as demais administrações federais, e esse tipo de operação representou 47% de toda a carteira do Banco destinada à União naquele período, evidenciando claramente uma opção política por parte desse governo e uma sintonia com as pautas do Banco Mundial. Segundo, a orientação do Banco em direção aos estados - iniciada na década de 1990, ampliada durante o governo Lula e radicalizada durante o governo Dilma - se deu, também, mediante a empréstimos de ajuste, ultrapassando o montante contratado pelo governo Lula e, sob o governo Dilma, superando até mesmo o montante autorizado à União durante o governo FHC. Em outras palavras, os empréstimos de ajuste contraídos pelos estados durante a gestão Dilma ultrapassaram com folga o montante destinado ao governo FHC. Terceiro, chama atenção a concentração de créditos para desenvolvimento rural (que abrangem os projetos de “reforma agrária assistida pelo mercado” e de alívio da pobreza rural) à União e a alguns estados durante o governo FHC, em uma conjuntura política (1996-1998) de intensa mobilização no campo, ocupações de terra e grande visibilidade do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em prol da desapropriação de latifúndios para fins de reforma agrária. Quarto, os governos Lula e Dilma, ao contrário dos seus antecessores e da gestão Temer, não contrataram empréstimos para a educação, o que não exclui a priori a possível articulação do Banco Mundial com políticas educacionais federais por outros meios (aconselhamento, assessoria técnica e pesquisa), mas sinaliza concretamente uma inflexão em relação aos governos anteriores. Quinto, os empréstimos para transporte aos estados nos governos Lula e Dilma cresceram bastante, pegando carona no financiamento mais geral concedido pela União através do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Sexto, chama atenção as operações de crédito (junto com assistência técnica) para apoiar o programa Bolsa Família, contratadas duas vezes pelo governo Lula (em 2003 e 2010) e pelo governo Bolsonaro (em 2020), fato pouco problematizado nas discussões sobre esse programa. Sétimo, destaca-se o montante relativamente elevado de empréstimos para a área do meio ambiente durante o governo Lula, modalidade em que a participação de ONGs na cogestão de projetos é especialmente alta. Por fim, vale destacar que o protagonismo dos municípios na contratação de empréstimos foi mais intensa durante o período Lula, precisamente em operações de ajuste.

Tabela 4
Empréstimos autorizados do Banco Mundial para o Brasil (União, estados e municípios) durante os governos de Collor a Bolsonaro, conforme sua finalidade principal (março 1990 a dez 2020)

Seguindo, a Tabela 5 informa a destinação dos empréstimos autorizados aos estados no período de 1990 a 2020, detalhando o número de operações e o total envolvido. É interessante notar que os três estados mais ricos da federação foram os que mais se endividaram com o Banco Mundial, mas quem encabeçou a lista foi o Rio de Janeiro, cujo PIB era menos da metade do PIB paulista. Nota-se aqui uma extrema concentração de empréstimos nos sete maiores clientes, que juntos responderam por 73% do total contratado (US$ 17,3 bilhões), em inúmeras operações cada um. À exceção de Roraima, Amapá e Pará, todos os demais estados e o Distrito Federal contraíram empréstimos do Banco Mundial.

Tabela 5
Empréstimos do Banco Mundial autorizados a estados brasileiros (mar 1991 a dez 2020)

A Tabela 6 examina mais de perto a composição da carteira de empréstimos dos sete maiores clientes estaduais. Novamente, o montante maior foi destinado a empréstimos de ajuste, puxado pelo RJ, seguido por RS, PE e MG. Chama atenção a ausência de operações desse tipo nos estados de SP e CE. Por outro lado, SP liderou com folga os empréstimos para transportes, com mais do que o dobro do valor contratado pelo RJ, o que é coerente com o tamanho da sua economia. Observe-se também o caso de MG, com um montante expressivo de financiamento externo para apoiar as finanças públicas do estado. Somando os empréstimos para ajuste, gestão pública e finanças públicas, tem-se o grosso dos veículos mais diretos de reforma do Estado brasileiro pela via estadual.

Tabela 6
Empréstimos autorizados do Banco Mundial para os sete maiores clientes estaduais no Brasil (mar. 1991 a dez. 2020)

A distribuição dos empréstimos à luz dos partidos no governo

Complementando a discussão anterior, o objetivo deste tópico é analisar a distribuição dos empréstimos do Banco Mundial aos entes federativos à luz dos partidos políticos nos respectivos governos. Nessa direção, a Tabela 7 detalha o montante de crédito autorizado aos estados entre os anos de 1991 a 2020, segundo os sucessivos mandatos e os respectivos partidos dos governadores em exercício. Há vários aspectos relevantes a destacar. O primeiro é a grande disparidade entre os montantes emprestados a cada estado nos sucessivos períodos, a qual se intensificou no período de 2007 a 2014, quando ocorreu exatamente a guinada do Banco Mundial aos estados. O segundo é a alta correlação entre os maiores clientes estaduais e os respectivos partidos no governo, de modo que: das 44 vezes que o PMDB governou, 16 desses governadores (36%) recorreram ao Banco; das 39 vezes que o PSDB governou, 22 desses governadores (56%) contrataram empréstimos; das 27 que o PT governou, 12 deles (44%) contraíram empréstimos; das 24 vezes que o PFL/DEM governou, 11 desses mandatários (45%) recorreram à instituição; das 15 vezes que o PSB governou, 11 dos seus governadores (73%) decidiram tomar empréstimos. Os dados mostram que, uma vez em exercício e por razões variadas, governadores filiados a partidos mais à direita e mais à esquerda contraíram dívidas com o Banco.

Tabela 7
Empréstimos do Banco Mundial autorizados a estados brasileiros, segundo o partido do governador em exercício (mar 1991-dez 2020)

A Tabela 8 informa o número de operações e o montante de empréstimos autorizados pelo Banco Mundial aos estados, conforme o partido dos governadores em exercício. Alguns pontos merecem destaque. Nota-se que governadores filiados a apenas cinco partidos contrataram 92,5% de todo o montante autorizado aos estados, sendo irrisório o peso dos demais. Ademais, tal concentração se deu em muitas operações, o que revela um acúmulo de experiência desses partidos (e também de nichos burocráticos estaduais) com o Banco. Governos do PSDB lideraram com folga a contratação de empréstimos do Banco (37,5%), concentrando mais do que o dobro do valor contraído por governos do PMDB (18,3). Por fim, 64,5% de todo montante autorizado foi negociado com partidos de centro, centro-direita e direita (PMDB, PSDB e PFL/DEM, respectivamente).

Tabela 8
Empréstimos do Banco Mundial autorizados a estados, conforme o partido no governo (mar. 1991 a dez. 2020)

A Tabela 9 complementa a anterior ao informar quais foram os governadores que mais recorreram financeiramente ao Banco Mundial. Tomando como linha de corte clientes que contrataram acima de US$ 500 milhões durante o mandato, constata-se que alguns poucos governadores contraíram grandes montantes de empréstimos da fatia dos seus respectivos partidos quando no governo, como Pezão (47,6%) e Cabral (19%) do PMDB, Eduardo Campos (41%) do PSB, Jaques Wagner (34,8%) e Tarso Genro (21,1%) do PT. Os casos de José Serra (26,6%), Aécio Neves (16,7%), Yeda Crusius (13%) e Anastasia (7,6%) ilustram a maior frequência relativa com que governadores do PSDB contrataram acima da linha de corte. De um total de 86 governadores no período 1991-2020, estes nove respondem, sozinhos, pela metade dos empréstimos autorizados aos estados pelo Banco Mundial.

Tabela 9
Principais governos estaduais clientes do Banco Mundial em 1990-2020 (acima de US$ 500 milhões)

Já a Tabela 10 informa quais municípios contraíram empréstimos do Banco Mundial. Trata-se de uma dinâmica recente para a instituição e para o país, dado que a primeira operação ocorreu somente em 2003. Dos 19 mutuários, 9 são capitais estaduais, além de Brasília. Alguns aspectos merecem ser ressaltados: o primeiro é que as operações envolveram valores pouco expressivos, à exceção do Rio de Janeiro, que acordou um empréstimo de mais de US$ 1 bilhão (46% do total autorizado aos municípios), no bojo de um programa abrangente de ajuste fiscal e reformas da gestão pública levado adiante pelo então prefeito Eduardo Paes (PMDB, egresso do PSDB) - que resultou, entre outras coisas, na adoção de organizações sociais (OSs) na saúde pública e na terceirização de aspectos centrais da política educacional à Fundação Ayrton Senna. O segundo aspecto é que chama atenção a quantidade de projetos voltados diretamente para reformas da gestão pública, em operações de pequeno volume, contratados por governos encabeçados por partidos diversos da esquerda à direita (PSDB e PT com mais frequência, mas também PDT, PL e PP). O terceiro aspecto é que quatro municípios gaúchos (Bagé, Uruguaiana, Santa Maria e Pelotas), embora governados por partidos diferentes, implementaram projetos de mesmo perfil, o que revela o “ecumenismo” político do Banco quando se trata de vender projetos e programas e, assim, avançar com suas pautas. Chama atenção também que municípios com receita robusta e corpo técnico qualificado (como São Paulo e Belo Horizonte), ainda que em uma conjuntura econômica bastante negativa, tenham contraído empréstimos internacionais para projetos de baixo valor em uma área tão tradicional e elementar como a de transporte. Por fim, vale destacar que, embora no plano federal os governos encabeçados pelo PT não tenham contratado financiamento do Banco para a educação, a gestão petista em Recife o fez, e foi o único município a fazê-lo.

Tabela 10
Empréstimos autorizados do Banco Mundial a municípios brasileiros (2003-2020)

Finalmente, a Tabela 11 informa a soma total do que os governos municipais de cada partido acordaram com o Banco Mundial. Note-se que não há proporcionalidade entre volume de empréstimos e tamanho da economia ou da população. Quase metade do valor autorizado foi contratado pelo Rio de Janeiro, governado pelo PMDB, em uma única operação, inserida em um programa abrangente de ajuste estrutural com implicações sentidas pela população durante anos. Descontando-se este caso excepcional, percebe-se que os governos do PSDB responderam por quase um quinto dos valores contratados, bem à frente dos governos do PT e do DEM, emparelhados cada qual com 11%. Os governos desses quatro partidos (PMDB, PSDB, PT e DEM) responderam por 90% do montante autorizado a municípios brasileiros. Os dados mostram que o recorte partidário revela tendências e preferências - prevalecendo, em número de operações e valores, partidos situados do centro à direita -, mas por si só não são suficientes para explicar por que determinados governos municipais recorreram financeiramente ao Banco Mundial.

Tabela 11
Clientes municipais do Banco Mundial, conforme o partido no governo (2003-2020)

Conclusões

A atuação multifacetada e difusa do Banco Mundial no Brasil merece mais investigação, dada sua importância política, econômica e social. Este artigo buscou apresentar um balanço sintético com foco em um período mais recente, reconhecendo a necessidade de estudos de maior amplitude histórica e mais específicos sobre as relações entre governos das unidades da federação e a instituição, bem como sobre a construção, a implementação e os resultados de políticas públicas que contaram com financiamento e/ou assistência técnica do Banco.

O exame da carteira do Banco Mundial autorizada para o Brasil - terceiro maior cliente histórico - durante o período de 1990 a 2020 trouxe evidências relevantes para a compreensão do modus operandi da instituição.

No período analisado, as relações do Brasil com o Banco Mundial envolveram barganha, filtragem e tradução local das normas e orientações prescritas pela instituição. Ora mais programáticas, ora mais pragmáticas, tais relações envolveram seletividade e escolhas por parte dos agentes nacionais sobre quando, para quê e em que grau contrair empréstimos, demandar assistência técnica e seguir conselhos em matéria de políticas públicas. Nesse sentido, para além do financiamento, o “selo de aprovação” do Banco foi utilizado como ativo estratégico tanto pela instituição como por governantes (nos três níveis da federação) interessados em utilizar a expertise e o capital simbólico do Banco para angariar apoio e legitimar determinadas iniciativas.

Mostrou-se que os empréstimos de ajuste - que costumam ter condicionalidades mais abrangentes e incidir sobre políticas públicas, quando não sobre a própria organização institucional do Estado - representaram, em média, 29% do total dos compromissos financeiros, o que evidencia a relevância desse tipo de operação no país.

Comparado ao PIB doméstico ou ao tamanho do orçamento público nacional, o financiamento oriundo do Banco Mundial revelou-se pouco significativo, muito aquém das necessidades do país. Mesmo assim, ao longo dos trinta anos aqui considerados, a instituição autorizou 315 operações financeiras (média de 10,5 por ano), direcionadas a inúmeras áreas e finalidades, o que revela um alto grau de atividade no país e amplitude setorial. Cabe perguntar, então: o Brasil precisa mesmo do Banco Mundial, ou é o Banco Mundial que precisa do Brasil? Aparentemente simples, a questão remete a uma relação complexa, que abarca os três níveis da federação e uma gama de elites políticas e intelectuais, nichos burocráticos, interesses econômicos privados e organizações sociais “parceiras” da instituição envolvidos com a construção da “demanda” brasileira à assistência financeira do Banco, com destaque para a União.

Mostrou-se que o governo FHC foi o que mais contraiu empréstimos de ajuste (mais do que o dobro do governo Lula) e que esse tipo de operação representou 47% de toda a carteira do Banco destinada à União naquele período, sinalizando claramente uma opção política por parte desse governo, no sentido de utilizar tais empréstimos como alavancas para reformar políticas públicas. Por outro lado, foi durante o governo Lula que o financiamento total autorizado pelo Banco chegou ao máximo, bem acima do patamar alcançado durante os governos FHC e Dilma, puxado pela “marcha aos estados”. Foi também durante o governo Lula que o Banco autorizou mais empréstimos à União (pouco acima do que ao governo FHC), ao contrário do que sugeria o discurso oficial da época de “libertação” frente às instituições de Bretton Woods. Nesse caso, o “adeus” valia para o FMI, mas não para o Banco Mundial - que rapidamente se adequou às demandas de um dos seus maiores clientes em 2007-2008, as quais levaram à diminuição significativa dos empréstimos de ajuste à União durante a gestão Lula, tendência que culminou com a completa anulação desse tipo de operação ao governo federal durante a gestão de Dilma Rousseff. De 2008 a 2014, a relação do Banco Mundial com a União se tornou mais pragmática, flexível, discreta e dependente das circunstâncias e prioridades do governo federal.

Ademais, a análise revelou que, na República Federativa do Brasil, não apenas a União, mas também estados e municípios se tornaram clientes relevantes do Banco Mundial. Evidenciou-se que o valor contratado pela União durante o governo Dilma desceu a níveis irrisórios, o que foi contrabalançado pelo pico de empréstimos aos estados, ultrapassando o que a União contraiu durante os demais governos no período. De fato, nos anos de 2008 até 2014, os estados se tornaram os maiores clientes do Banco Mundial e sustentaram a carteira da instituição no país, com a garantia do governo federal, e o fizeram contraindo fortemente empréstimos para políticas. Segundo a documentação do Banco, a instituição, inclusive, teria funcionado muitas vezes como agente do governo federal para reorganizar a situação fiscal subnacional e a implementação de programas nacionais. Até que ponto isso se deu, em quais áreas e que resultados produziu é algo difícil de mensurar e demanda estudos de caso detalhados. Eis aqui uma excelente agenda de pesquisas.

Por fim, o exame dos empréstimos a estados e municípios mostrou que, por razões muito variadas, governadores e prefeitos de partidos mais à direita e mais à esquerda fecharam acordos com o Banco Mundial, mas duas evidências se destacam. Em primeiro lugar, houve extrema concentração da carteira em alguns estados (RJ, SP, MG, BA e RS) e alguns governadores de partidos situados do centro à direita (com o PSDB na liderança, muito à frente do PMDB). Em segundo lugar, no caso dos municípios, a experiência do Rio de Janeiro (então governado pelo PMDB) se notabilizou pela abrangência do programa de ajuste fiscal e reformas da gestão pública.

De todo modo, afinidades ideológicas à parte, o Banco Mundial se revelou politicamente bastante “ecumênico” ao cultivar relações muito variadas com os entes federativos, ramificadas em inúmeras áreas e setores da vida econômica, político-administrativa e social do país. O financiamento de projetos e políticas funcionou como veículo e instrumento para relações concretas da instituição com os governos da União, de estados e municípios, contribuindo decisivamente para difundir as pautas e orientações do Banco no interior da aparelhagem estatal e na sociedade civil.

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  • 1
  • 2
    Como no caso da assessoria ao governo paulista para a venda da Sabesp. Disponível em: http://glo.bo/3OsKOuB. Acesso em: 25 jul. 2013.
  • 3
    Cabe uma explicação metodológica sobre a classificação da “finalidade principal” referente às tabelas 2, 4 e 6. Ao longo do período em análise, o Banco Mundial modificou algumas vezes a nomenclatura dos setores e temas conforme os quais os empréstimos são etiquetados (p.ex., “administração pública”, “gestão pública” ou “governança do setor público”, entre outras). Assim, tomei como referência a formulação mais simples. Em segundo lugar, o Banco dilui os empréstimos de ajuste em diferentes setores ou destinações, ao passo que este artigo os concentrou em uma rubrica específica, exatamente para chamar atenção para sua importância relativa.
  • 4
    Em 31 de outubro de 2008, p.ex., o então presidente Lula afirmou: “Vocês não imaginam a alegria que tive. Eu que passei a vida inteira dizendo ‘Fora, FMI’, e, como presidente da República, ter chamado o FMI para dizer ‘Adeus, FMI’”. Disponível em: http://glo.bo/3rB6o7g. Acesso em: 29 mar. 2023.
  • 5
    Trata-se do documento mais relevante na relação entre o Banco Mundial e seus Estados clientes, pois condensa um diagnóstico da economia do país e projeta as linhas gerais de atuação da instituição em dado período (normalmente, a cada quatro anos).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2021
  • Aceito
    27 Mar 2023
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