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O PROBLEMA DA TOLERÂNCIA RELIGIOSA NO PENSAMENTO POLÍTICO DE LUTERO1

THE ISSUE OF RELIGIOUS TOLERANCE IN LUTHER’S POLITICAL THOUGHT

Resumo

O objetivo deste artigo é oferecer um pequeno panorama da evolução do pensamento político de Lutero a respeito da tolerância religiosa. Nossa hipótese é que uma teoria política tolerantista, isto é, que afirma a ilegitimidade da coerção em matéria religiosa, se insinua no jovem Lutero, especialmente no panfleto Da autoridade secular (1523) para depois ser abandonada no devir da Reforma. Num segundo momento, procuramos situar essa mudança no pensamento político mais amplo do reformador e na própria marcha histórica da Reforma.

Palavras-chave:
Lutero; Reforma; Tolerância; Liberdade; Autoridade

Abstract

This article aims to offer an overview of the evolution of Luther’s political thought concerning religious tolerance. Our hypothesis is that a tolerantist political theory, i.e., one which affirms the illegitimacy of religious coercion, makes appearance in the young Luther, especially in his little tract On secular authority (1523), before being abandoned in the course of Reformation. As a second step, we try to situate this change in the broader political thinking of the Reformer and in the changing winds of the Reformation.

Keywords:
Luther; Reformation; Tolerance; Freedom; Authority

Introdução

No primeiro semestre de 2015, a ex-deputada holandesa de origem somali, Ayaan Hirsi Ali, entrou no vértice da controvérsia pública na Europa e alhures com a publicação do livro Heretic. Para Hirsi Ali (2015)ALI, Ayaan Hirsi. 2015. Heretic: why Islam needs a Reformation now.Nova Iorque: Harper Collins. - e aqui reside nosso interesse no livro -, o islão necessitaria de uma reforma (este é o subtítulo do livro). Vale destacar que Hirsi Ali não está sozinha, uma vez que afirmações semelhantes a essa se multiplicaram pela imprensa ocidental nos últimos tempos.1 1 Ver por exemplo o artigo de opinião de Mehdi Hasan no jornal britânico The Guardian: https://bit.ly/4a1KRX0

Tais declarações podem ser entendidas de forma genérica, caso no qual a consigna “O islão precisa de uma reforma” significa simplesmente que essa tradição metafísica precisa de mudanças devido, digamos, à influência de vertentes doutrinárias perturbadoras no seu interior. Muitas vezes, contudo, a consigna assume sentido diferente, segundo o qual o islão precisaria de atravessar um processo que espelhasse aquele atravessado pelo cristianismo no século XVI, isto é, a Reforma (com maiúscula) Religiosa. O jornal Financial TimesKHALAF, Roula. January 14. 2015. The search for a Muslim Martin Luther. Financial Times, London. Disponível em: Disponível em: https://on.ft.com/46IjwX8 . Acesso em: 30 nov. 2023.
https://on.ft.com/46IjwX8...
chegou a apontar um candidato a Martinho Lutero muçulmano: o ditador egípcio Abdel Fattah el-Sisi.2 2 Ver em: https://on.ft.com/46IjwX8 Nesse caso, supõe-se que o regime de liberdade de consciência e tolerância religiosa alcançado em boa parte do Ocidente seja o resultado direto e consciente do movimento iniciado por Lutero em 1517. Contudo, tal pressuposto precisa ser examinado com cuidado.

Uma visão da Reforma e dos principais reformadores bastante diferente dessa também tem ampla circulação. Na introdução a O Liberalismo Político, Rawls afirma que Lutero e Calvino “eram tão dogmáticos e intolerantes quanto o catolicismo romano havia sido” (Rawls, 2005RAWLS, John. 2005. Political Liberalism - Expanded edition. New York: Columbia University Press., p. XXVI). O historiador whig Henry Kamen, por exemplo, em sua já clássica história da tolerância, afirma que “a perseguição é o pecado original mortal das Igrejas Reformadas” e que a Reforma trouxe maior liberdade religiosa “apesar dos reformadores”3 3 Todas as traduções de citações em língua estrangeira foram feitas pelo autor. (Kamen, 1967KAMEN, Henry. 1967. The Rise of Toleration. London: Weidenfeld and Nicolson., pp. 54-55). Se ele está correto, pode-se dizer que a tolerância foi, para nos valer de um vocabulário próprio dos economistas, uma espécie de subproduto da Reforma, isto é, uma consequência não visada do processo, ou ao menos não visada pelos principais atores do processo.4 4 Não desconhecemos nem negamos a presença de atores e doutrinas pró-tolerância desde muito cedo, no processo da Reforma. Henry Kalven menciona vários exemplos em seu já aludido livro The Rise of Toleration (com as respectivas páginas entre parentes): podemos falar de Hubmaier, o anabatista que escreveu contra a queima de hereges em 1524. Ou os fundadores da fé menonita, Menno Simons e David Joris, que diziam que um sinal da “verdadeira igreja” é ser perseguida, não perseguir. Ou ainda Sebastião Castellio, que polemizou e rompeu com Calvino e Beza quando Genebra queimou Miguel de Servet por heresia. Ou o italiano Faustus Socinus (Sozzini), que emprestou aos Unitários radicais o nome de socinianos (85). Podemos mencionar ainda o calvinismo liberal e heterodoxo que nasce na Holanda ainda no século XVI: num primeiro momento, havia apenas a voz solitária do pastor Hubert Duifhuis (1531-81), “cuja oposição à perseguição em matéria religiosa era absoluta”, como diz Kalven. No século XVII, a heterodoxia toma corpo e se torna uma corrente influente no interior do calvinismo, encontrando em Simon Episcopius (1583-1643) um defensor da liberdade religiosa. G. R. Elton menciona ainda a Shwenckfeld, cujo “individualismo” em matéria religiosa o levava a rejeitar igrejas institucionalizadas, e o levou a romper inclusive com os anabatistas. Por essa razão, diz Elton, a posteridade o transformou num defensor avant la lettre da tolerância reliogosa (Elton, [1963] 1999, p. 57). De qualquer forma, o mesmo autor afirma que na segunda metade já circulava “propaganda séria” em favor da tolerância (Elton, 1999, p. 15).

Fosse qual fosse a intenção dos reformadores, o fato é que a Reforma comprometeu aquilo que o medievalista Christopher Dawson identificou como um dos elementos centrais da filosofia política medieval: o ideal unitário (Dawson, [1950] 1997DAWSON, Christopher. [1950] 1997. Historia de la cultura cristiana [1950; 1954]. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica.). Um sentido mais óbvio dessa unidade é o da Cristandade como comunidade de fé. Um segundo sentido, de certa forma dependente e derivado do primeiro, é o da unidade de propósitos entre autoridades eclesiásticas e seculares: “O homem medieval, ao fazer a distinção entre Igreja e Estado, não pensava em duas sociedades perfeitas e independentes, mas em duas diferentes autoridades e hierarquias que administravam os assuntos espirituais e temporais de uma mesma comunidade cristã” (Dawson, [1954] 1997DAWSON, Christopher. [1950] 1997. Historia de la cultura cristiana [1950; 1954]. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica., p. 244).

Assim, a diferenciação entre autoridades temporais e religiosas era uma mera diferenciação funcional de um organismo complexo no qual cada um tinha “uma função vital […] a serviço de todo o corpo” (Dawson, [1954] 1997DAWSON, Christopher. [1950] 1997. Historia de la cultura cristiana [1950; 1954]. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica., p. 328) e antes reforçava do que comprometia a unidade. “A maioria dos pensadores medievais”, afirma Sheldon Wolin, “acreditava que regnum e sacerdotium formavam jurisdições complementares na respublica christiana” (Wolin, [1960] 2004WOLIN, Sheldon. [1960] 2004. Politics and Vision. Princeton: Princeton University Press., p. 127), razão pela qual, adverte-nos o mesmo autor, as tentativas de transpor antíteses modernas (como Estado e Igreja) para o pensamento medieval devem ser recebidas com desconfiança. Poder-se-á objetar que a tensão entre autoridades seculares e religiosas nunca foi bem resolvida nem no pensamento nem na vida política medieval.5 5 Um clássico (e dramático) exemplo dos tantos casos de conflito medieval de jurisdições foi o choque entre o Papa Bonifácio VIII e o rei Felipe, o Belo, de França (Felipe IV). Ver a informativa introdução de J. A. Watt (1971) ao tratado On Royal and Papal Power [De potestate regia et papali], escrito por João de Paris no início do século XIV (provavelmente em 1302) em defesa do rei francês. Contudo, tais conflitos, tipicamente envolvendo a tributação do clero e a investidura de bispos, ocorriam contra o pano de fundo conforme os valores fundamentais (Wolin, [1960] 2004WOLIN, Sheldon. [1960] 2004. Politics and Vision. Princeton: Princeton University Press.). Esse acordo é rasgado pela Reforma (Wolin, [1960] 2004WOLIN, Sheldon. [1960] 2004. Politics and Vision. Princeton: Princeton University Press., p. 128). Em outras palavras: o rompimento da comunidade de fé compromete a justificativa da unidade de propósito entre a espada e o cajado.

Nosso objetivo neste texto é apresentar os elementos de uma teoria política da tolerância insinuada no jovem Lutero. Apesar de seus fundamentos serem essencialmente teológicos, podemos qualificá-la de política por ter como tema fundamental critérios para o uso legítimo do poder secular. É apenas insinuada, já que foi deixada de lado pelo próprio autor antes de a questão amadurecer filosoficamente, o que aconteceria apenas no século seguinte, com Locke, Pierre Bayle e outros autores.

E ainda haverá o que dizer sobre Lutero? Haverá justificativas para dedicarmos energias intelectuais a este tema e a este autor? Pedimos ao leitor que nos permita oferecer umas breves palavras à guisa de autojustificativa. Em primeiro lugar, creio que a grande contribuição do artigo é derivar, a partir de evidências históricas e textuais, uma visão mais complexa e matizada do tema da tolerância em Lutero. Em nosso entender, não se trata de uma visão nem autoevidente nem suficientemente consolidada, considerando que as visões muito diferentes das defendidas neste artigo (e opostas entre si) possuem ampla circulação. Em segundo lugar, creio ser importante, no Brasil, reivindicar o espaço de Lutero no campo da Teoria Política, tratando-o como um autor de primeira grandeza. Se internacionalmente Lutero é tratado como um autor canônico,6 6 A despeito, claro, de Lutero, como notamos logo abaixo, jamais ter pretendido ser um filósofo político. seja por todos os grandes compiladores e divulgadores do cânone (Sabine; Strauss; Cropsey e Wolin, por exemplo7 7 As respectivas obras estão nas referências deste artigo: Sabine (1994) e Wolin ([1960] 2004). ), seja em trabalhos mais densos (como os de Skinner e Forst8 8 Skinner (1978); Forst (2003). ), no Brasil, o iniciador da Reforma ainda é um autor confinado ao campo da teologia, permanecendo subexplorado no âmbito da teoria política histórica.

Nosso artigo está estruturado em três seções, além desta introdução. Num primeiro momento, esmiuçamos os argumentos de Lutero, o contexto de sua formulação, bem como as prováveis motivações de seu autor. Num segundo momento, tentamos mostrar como a contingência política e a marcha histórica da Reforma tornaram o problema da contenção do poder secular pouco atraente para Lutero. Finalmente, na última parte, revisitamos a velha e espinhosa questão da relação entre a Reforma e a Modernidade.

Lutero e o problema da tolerância religiosa

Antes de prosseguirmos, cremos ser importante esclarecer que, o que estamos a chamar de tolerância religiosa, aqui, é apenas e tão somente a recusa do uso da coerção por parte do magistrado com o intuito de produzir uniformidade religiosa. Essa recusa é algo bem menos exigente, do ponto de vista normativo, do que a noção, comumente consagrada no constitucionalismo moderno, de liberdade religiosa, segundo a qual os indivíduos têm o direito a aderir à religião que lhes apraza. Feito esse esclarecimento, podemos retomar nossa exposição.

O ceticismo quanto à inclinação dos principais reformadores em relação à tolerância religiosa parece razoavelmente justificado. No entanto, creio haver espaço para alguns matizes, especialmente no caso de Lutero, que parece ter inicialmente flertado com um espírito de tolerância. Convidamos o leitor a analisar mais de perto suas posições e argumentos sobre esta questão.

Aquele que se atreva a embrenhar-se na obra de Lutero em busca da posição do teólogo sobre a tolerância religiosa corre muitos riscos, além de enfrentar grandes dificuldades para tal. A primeira delas é a imensa prolificidade do autor.9 9 G.R Elton calcula que, ao longo de trinta anos, e levando em conta livros, panfletos e pequenos textos, Lutero tenha escrevido uma obra a cada quinze dias, em média (Elton, 1999, p. 3). O mesmo número é mencionado por Patrick Collinson (Collinson, 2006, p. 49). A edição-padrão das obras de Lutero preenche quase cem grossos volumes. Há também o desafio da assistematicidade de seus escritos, quase sempre textos de intervenção, respondendo à contingência e elaborados “na medida das necessidades de ocasião” (Collinson, 2006COLLINSON, Patrick. 2006. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva., p. 49; Allen, [1928] 2012ALLEN, John William. [1928] 2012. A History of Political Thought in the Sixteenth Century. Montana: Literary Licensing., p. 15). A atenção de Lutero frequentemente “estava voltada para pessoas, ocasiões e problemas específicos” (Höpfl, 1991HÖPFL, Harro. 1991. Introduction. In: HÖPFL, Harro. Luther & Calvin on secular authority. Cambridge: Cambridge University Press , 1991., p. 10). Além do mais, há a dificuldade de que Lutero (pode-se dizer o mesmo de Calvino) não foi ou pretendeu ser filósofo político (Allen, [1928] 2012ALLEN, John William. [1928] 2012. A History of Political Thought in the Sixteenth Century. Montana: Literary Licensing., p. 15): a reflexão de natureza propriamente política ocupa na melhor das hipóteses uma posição lateral tanto no pensamento de um quanto no de outro. Embora toque em temas como o lugar do governo secular no plano divino, os deveres recíprocos de magistrados e governados ou a relação entre lei divina, lei natural e direito positivo, suas posições são dependentes, auxiliares e derivadas de sua reflexão teológica (Forrester, 1993FORRESTER, Duncan B. 1993. Martín Lutero y Juan Calvino. In: STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph (org.). Historia de la Filosofía Política. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica ., p. 305). De qualquer forma, no curso da Reforma, considerações políticas ganharam peso crescente no debate religioso (Edwards, 2003EDWARDS Jr., Mark. 2003. Luther’s polemical controversies. In: MCKIM, Donald K. (org.). The Cambridge Companion to Martin Luther. Cambridge: Cambridge University Press.).

A bem da verdade, mesmo no campo da teologia, Lutero não oferece um pensamento estruturado. “Mais vale compreender que o agostiniano de Erfurt ou de Wittenberg não tem nada de um ajuntador preciso de conceitos devidamente polidos”, diz Lucien Febvre ([1928] 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 83), mas costumava se expressar obedecendo a uma lógica adversarial, mais como polemista do que como expositor sistemático (Hillerbrand, 2003HILLERBRAND, Hans J. 2003. The legacy of Martin Luther. In: MCKIM, Donald K. (org.). The Cambridge Companion to Martin Luther . Cambridge: Cambridge University Press ., p. 230).10 10 O que não quer dizer, naturalmente, que ele não tivesse uma teologia coerente (ao menos em seus aspectos fundamentais). Lucien Febvre, por exemplo, afirma que, no que toca à fé, isto é, na estrutura teológica, não há “verdadeira ruptura” entre o Lutero de 1520 e o do pós-1525 (2012, p. 16), há uma coerência que perdura ao longo da vida do Reformador, a despeito de outras marcações temporais na sua vida e na sua obra. “Todos os seus livros são livres de circonstance e parte de uma controvérsia enraivecida” (Allen, [1928] 2012ALLEN, John William. [1928] 2012. A History of Political Thought in the Sixteenth Century. Montana: Literary Licensing., p. 15). Num registro mais biográfico e psicologizante,11 11 Se é de registro psicologizante que estamos a falar: na sua biografia de Bach, John Eliot Gardiner refere-se ao luteranismo como o resultado “de uma crise psicológica de um monge profundamente neurótico que encontrou a paz ao entregar seu problema para Cristo”. Nesse sentido, o contraste com a natureza “sistemática e intelectual” do calvinismo (afinal, o fundador era um advogado, brinca Gardiner) não podia ser maior (2015, pp. 34-35). talvez Febvre estivesse afirmando algo semelhante quando escreveu que “Lutero era um instinto seguindo seu impulso” ([1928] 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 140). O impulso é o do polemista furioso contra “qualquer um incapaz de ver a verdade como ele a enxergava” (Rowland, 2017ROWLAND, Ingrid. June 8, 2017. Martin Luther´s burning questions. New York Review of Books, New York.).

Finalmente, há a dificuldade trazida pelo fato de que, ao longo de sua vida, Lutero mudou de posição sobre os limites que a consciência do fiel poderia legitimamente colocar ao poder secular, passando de uma “hesitação inicial” para uma “intolerância inflexível” (Kamen, 1967KAMEN, Henry. 1967. The Rise of Toleration. London: Weidenfeld and Nicolson., p. 41). Kamen fornece alguns exemplos concretos desse câmbio:

Em 1522, ele se opôs à supressão à força da missa; Em 1525 ele considerava tal medida um dever, uma vez que a missa era blasfêmia pública contra Deus. No começo ele defendera os direitos subjetivos de consciência; Em 1526, ele se recusava a sustentar o argumento apenas em nome da consciência, e em vez disso estabelecia as Escrituras como um critério objetivo, já que ‘uma boa consciência não deseja mais do que ouvir os ensinamentos das Escrituras’. Em 1528, ele se opunha à pena de morte para anabatistas. Em 1530 ele a aprovava. Em 1523 ele mostrara preocupação com os judeus; em 1536 aprovou sua expulsão da Saxônia, da mesma forma como em 1532 ele aconselhou o governante prussiano a expulsar os zuinglianos de seu território por eles discordarem dos luteranosquanto à teologia da Eucaristia. (Kamen, 1967KAMEN, Henry. 1967. The Rise of Toleration. London: Weidenfeld and Nicolson., p. 41)

Assim, o pensamento político de Lutero, especialmente a questão dos limites do uso legítimo do poder secular, é um território movediço12 12 Num artigo de 2020, o teólogo luterano brasileiro Wilhelm Wachholz apresenta a intolerância de Lutero para com os anabatistas (crescente ao longo da sua vida) como caso exemplar do percurso do reformador com relação à tolerância tomada de forma mais ampla (ver referências bibliográficas). Agradeço a um dos pareceristas anônimos por me chamar a atenção para a obra de Wachholz, razão pela qual cheguei ao artigo mencionado. , um dos temas em que o reformador se infligiu “mil desmentidos […] de página em página e de ano em ano” (Febvre, [1928] 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 83). Ao que tudo indica, a Guerra dos Camponeses13 13 A Guerra dos Camponeses começou na Floresta Negra em 1524, espalhou-se primeiro pelo sul, depois pelo centro e chegou ao norte da Alemanha em 1525. O movimento chacoalhou cerca de um terço do território europeu onde se falava alemão (Rieth, 1996, p. 274). O nome convencional induz a erro, porque não se tratou de um movimento estritamente camponês. A liderança do movimento era constituída principalmente por artesãos (Elton, 1999, p. 33). Como nota Rieth (1996, p. 273), o termo “guerra” tampouco é muito exato: o movimento foi mais uma revolta ou levante do que propriamente uma guerra. - que Lutero viu com horror - foi um dos eventos decisivos nessa inflexão (embora não o único: voltaremos a este ponto mais adiante). Nosso interesse aqui recai especialmente sobre o Lutero amadurecido do período 1517-1525, em contraposição tanto ao “Lutero hipotético” dos anos de formação quanto ao Lutero “cansado e exaurido” dos anos 1525-1546.14 14 Devo esta periodização da biografia de Lutero a Lucien Febvre (2012, pp. 11-2). De qualquer forma, a percepção de 1525 como um ano crucial e bifurcador no pensamento de Lutero é onipresente na bibliografia especializada, além de ter raízes firmes na própria tradição luterana. De acordo com Hillerbrand, a dicotomia entre um jovem Lutero (pré-1525) e um Lutero velho (pós-1525) teve uma primeira expressão no livro Unpartheyische Kirchen - und Ketzer - Historie, de Gottfried Arnold, publicado em 1699. Num contexto de disputas teológicas entre “pietistas” e o establishment luterano, os primeiros apelavam para “jovem” Lutero -os textos de antes de 1525- para sustentar suas próprias posições teológicas, contra o “velho” Lutero (Hillerbrand, 2003, p. 233). Para mais informações sobre o movimento pietista luterano e seu conflito com a ortodoxia, ver Gardiner, 2015, p. 33.

Feitas estas ressalvas, contudo, e conscientes de nossos limites e dos riscos que corremos, avaliamos ser possível explorar o tema da tolerância em Lutero, ainda que de forma especulativa. Tentaremos apontar algumas evidências de uma inclinação de Lutero na direção da defesa de um regime de relativa tolerância religiosa. A posição do teólogo é incerta, hesitante e repleta de contradições; além disso, não chegou a se desenvolver como uma doutrina acabada. Essa posição está sintetizada melhor do que em qualquer lugar no opúsculo Da autoridade secular, publicado por Lutero em 1523,15 15 No original: “Von weltlicher Oberkeit”. e que muitos consideram o texto político mais importante de reformador.16 16 Por exemplo, Collinson, 2006, p. 173. Esse texto tendeu a ser lido pela posteridade como uma defesa da tolerância, como se diz na apresentação de uma das edições brasileiras da obra.17 17 Lutero e Calvino (2005). Esclarecemos que não foi esta a edição citada neste trabalho. Tentaremos chamar a atenção para os elementos que marcam a excepcionalidade desse escrito, capaz de destacá-lo de outros escritos do reformador no período.

Febvre considera essa obra um dos grandes “tratados liberais” luteranos ([1928] 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 17). Fosse apenas por ela, talvez Lutero pudesse ser considerado um pioneiro defensor da liberdade de consciência. Parece significativo que, anos mais tarde, quando a Genebra de Calvino executou na fogueira o unitarista espanhol Michaelis Servetus (ou Miguel Servet), Sébastien Châteillon (ou Castellio) opôs-e à execução simplesmente reproduzindo trechos inteiros de Da autoridade secular na defesa que fez do acusado (Höpfl, 1991HÖPFL, Harro. 1991. Introduction. In: HÖPFL, Harro. Luther & Calvin on secular authority. Cambridge: Cambridge University Press , 1991., p. 11).18 18 “O martírio de Servetus sedimentou a reputação de Calvino como líder intolerante” (Kamen, 1967, p. 76).

Mas vejamos mais de perto alguns dos argumentos que Lutero mobilizou em defesa da liberdade religiosa. Da autoridade secular é um curto (como soem ser os textos de Lutero) texto de intervenção com três propósitos, aproximadamente correspondentes às três partes do ensaio: a defesa da legitimidade do poder secular, a defesa de limites ao poder secular e o oferecimento de conselhos a príncipes pios. Cada um desses temas possui desdobramentos e subtemas mutuamente relacionados com os demais pontos. Por exemplo, se o poder secular não é em si mesmo ilegítimo, os postos e cargos associados cujos ocupantes têm por dever de exercer a violência, como os de militar, carrasco ou mesmo de magistrado podem ser ocupados por cristãos sem que estes incorram em pecado. Nem todos os temas abordados ali nos interessam na mesma medida. Estamos particularmente interessados na forma como Lutero entende e fundamenta os limites do poder secular, particularmente em matéria de fé: “Temos que aprender agora qual é o alcance” desse poder “e até onde se estende sua mão, para que não ultrapasse seus limites e interfira no reino e no regime de Deus”, pois “resulta em dano insuportável e terrível quando se lhe abre espaço demais “ (Lutero, [1523] 1996aLUTERO, Martinho. [1523] 1996a. Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 97). Mas como sabemos que o poder secular alcança mais do que deve? “Quando se impõe uma lei humana à alma, exigindo que creia isto ou aquilo” (Lutero, [1523] 1996aLUTERO, Martinho. [1523] 1996a. Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 97). Assim, o Lutero de Da autoridade secular é cristalino na rejeição do uso da coerção em matéria religiosa. Nas palavras de Febvre:

Não há, nunca houve e nunca haverá [para o Lutero “idealista” de 1520] uma coletividade religiosa que possa se dizer incumbida pelo próprio Deus de definir o sentido da Palavra; nenhuma que possa, a esse título, exigir a cega submissão das consciências; nenhuma, enfim, possui o direito de recorrer ao braço secular para impor aos homens crenças determinadas ou o uso dos sacramentos. ‘Aquele que não quer o batismo que o deixe para lá’, declara categoricamente Lutero em 1521 […] E acrescenta: ‘Aquele que quiser passar sem a comunhão tem o direito a tanto’. […] Para a indiferença, a hostilidade, a incredulidade, o Lutero de 1520 conhece um único remédio: pregar a Palavra e deixá-la agir. ‘Se ela nada consegue, muito menos conseguirá a força, mesmo mergulhando o mundo nesses banhos de sangue. A heresia é uma força espiritual. Não pode ser golpeada com o ferro, queimada pelo fogo, afogada na água. Existe, porém, a Palavra de Deus: ela é que triunfará! (Febvre, 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 186)

A coerção em matéria de fé é, em primeiro lugar, intrinsecamente errada, mas um elemento surpreendente na rationale de Lutero é que a coerção religiosa também é fútil, isto é, incapaz de produzir os resultados pretendidos: convicções religiosas sinceras e genuínas não têm como ser infundidas à força: “[…] não se poder forçar a ninguém a ser cristão” (Lutero, [1523] 1996aLUTERO, Martinho. [1523] 1996a. Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 95), isso porque “ os pensamentos e intenções a ninguém são manifestos, a não ser a Deus. Por isso é vão e impossível ordenar a alguém ou forçá-lo a crer isto ou aquilo. Para isso é necessário outro método; a violência nada alcança” (Lutero, [1523] 1996aLUTERO, Martinho. [1523] 1996a. Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 99). A força física que compõe a substância da autoridade tem natureza diferente da força espiritual e por isso seria inadequada para confrontar a fé. A heresia não tem como ser evitada com coerção (Mitchell, 1992MITCHELL, 1992. Joshua. Protestant Thought and Republican Spirit: how Luther enchanted the World. American Political Science Review, v. 86, n. 3, pp. 688-695.). O resultado da aplicação da coerção em matéria de fé seria que débeis consciências se sentiriam forçadas a mentir, a “negar e dizer algo diferente do que sentem no coração” (Lutero, [1523] 1996aLUTERO, Martinho. [1523] 1996a. Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 100). Este é um argumento com forte sabor liberalizante que, no século seguinte, teria importância na defesa que Bayle e Locke fariam de um regime de tolerância religiosa.

Se a coação em matéria de fé é errada, como se depreende do texto de Lutero, se não é legítimo o uso da coerção, de tribunais e da aplicação de penalidades, temos como consequência que o pertencimento à igreja é voluntário, ou seja, a igreja é entendida como congregatio fidelium, isto é, como instituição puramente associacional , destituída do poder da espada (Skinner, 1978SKINNER, Quentin. 1978. The Foundations of Modern Political Thought: The Age of Reformation. Cambridge: Cambridge University Press . v. 2., p. 14): a igreja é uma associação em que se entra e da qual se sai de forma livre e voluntária. Mas como observa Höpfel, talvez Lutero não tenha percebido que isso inviabilizava uma igreja cujo pertencimento coincidisse com o pertencimento a uma ordem política (Höpfel, 1991HÖPFL, Harro. 1991. Introduction. In: HÖPFL, Harro. Luther & Calvin on secular authority. Cambridge: Cambridge University Press , 1991., p. xi).

Lutero é enfático na retórica da separação dos âmbitos carnal (a Lei, o Velho Testamento) e espiritual (o Evangelho, o Novo Testamento), que pertencem a ordens diferentes (Mitchell, 1992MITCHELL, 1992. Joshua. Protestant Thought and Republican Spirit: how Luther enchanted the World. American Political Science Review, v. 86, n. 3, pp. 688-695., p. 689) e na diferenciação entre competências próprias a cada uma dessas esferas (Höpfl, 1991HÖPFL, Harro. 1991. Introduction. In: HÖPFL, Harro. Luther & Calvin on secular authority. Cambridge: Cambridge University Press , 1991., p xii). Dada a sua importância, este tema merece atenção especial, aqui. Sheldon Wolin atribui a Lutero (e aos primeiros reformadores) uma investida para despolitizar -por assim dizer- a religião (Wolin, 2004WOLIN, Sheldon. [1960] 2004. Politics and Vision. Princeton: Princeton University Press., p. 128), do ponto de vista conceitual. Nesse sentido é que afirma que Lutero criou um “vocabulário religioso destituído de categorias políticas” (Wolin, 2004WOLIN, Sheldon. [1960] 2004. Politics and Vision. Princeton: Princeton University Press., p. 129) da mesma forma como Maquiavel teria criado um vocabulário político destituído de categorias religiosas.19 19 Mitchell destaca a importância desse movimento para o pensamento político, ao criar um vácuo de justificativa do poder temporal, abriu o caminho para uma ética política eminentemente secular (Mitchell, 1992, pp. 688-689). O fato é que Lutero “nunca pensou em termos de uma instituição teócrática”, diz um comentador, justamente por ter mantido de forma coerente (ou aproximadamente coerente, diríamos) a separação entre essas competências (Elseroad, 1979ELSEROAD, Richard. 1979. Luther’s Atitude Toward Religious Toleration in Light of his Two Kingdom Doctrine. Masters of Divinity. Saint Louis: Concordia Seminary., p. 82).

A diferenciação entre as jurisdições da espada e do cajado, por si só, não é novedosa. Trata-se de elemento aninhado na tradição medieval. Manter a paz, fazer cumprir as leis, oferecer proteção aos cidadãos que observam as leis e punir os transgressores são deveres tradicionalmente associados ao poder temporal, e Lutero acompanha a tradição neste ponto (Höpfl, 1991HÖPFL, Harro. 1991. Introduction. In: HÖPFL, Harro. Luther & Calvin on secular authority. Cambridge: Cambridge University Press , 1991., p. viii). “Corpo, honra e propriedade” são assuntos seculares, para ele (Höpfl, 1991HÖPFL, Harro. 1991. Introduction. In: HÖPFL, Harro. Luther & Calvin on secular authority. Cambridge: Cambridge University Press , 1991., p. xiii).20 20 Mitchell, no mesmo sentido: “O governo secular abrange vida e propriedade, mas sobre a alma ele não tem domínio; crença e descrença são matéria de consciência, não de poder” (Mitchell, 1992, pp. 690-691). De qualquer modo, Lutero não se empenha muito na definição de ambos os domínios, e talvez seja fácil apontar certa fragilidade conceitual ali. Mas a própria coerência da ideia de separação é fragilizada pelo Reformador, quando afirma que “a religião não é uma esfera da vida […]” mas “pertence a todas as esferas da vida”? (Höpfl, 1991, p. xiii). Podemos perguntar-nos também até que ponto a o conhecido desdém de Lutero pela existência de um clero especializado e separado do restante dos fiéis (o “sacerdócio universal” dos fiéis tornar-se-ia um ponto importante da doutrina luterana) não contribui para enfraquecer a separação funcional das esferas. Como nota Mitchell, o fato de que Lutero enfatize a distinção entre as esferas (Locke faria o mesmo mais tarde) significava que para ele, Lutero, eles se haviam confundido além do que seria aceitável. A expressão máxima desse desarranjo estava em que bispos governavam cidades e senhores seculares governavam almas humanas (Lutero, 1996LUTERO, Martinho. [1523] 1996a. Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6.). Separar as duas esferas é importante para a salvação, sendo assim um imperativo teológico, mais do que político (Mitchell, 1992MITCHELL, 1992. Joshua. Protestant Thought and Republican Spirit: how Luther enchanted the World. American Political Science Review, v. 86, n. 3, pp. 688-695., p. 691).

O fundamento da distinção entre as esferas está em outro par conceitual que devemos trazer à baila -uma formulação especificamente teológica- que é o contraste entre a Igreja visível e a Igreja invisível, ou entre o Reino Mundano e o Reino de Deus21 21 Esta dicotomia aparece em diversas obras de Lutero, mesmo as anteriores ao rompimento com Roma (que fica claro apenas em 1520), e provavelmente é mesmo uma marca agostiniana no Reformador (lembramo-nos de que Lutero era, no final das contas, um monge da ordem agostiniana). Veja-se por exemplo, esta passagem de “Explicação do Pai Nosso”, fruto de uma série de sermões proferidos em latim na Quaresma de 1517 e publicados posteriormente (em 1519) em alemão e em versão editada: “Importa saber que há dois reinos. O primeiro é o reino do Demônio. No Evangelho, Nosso Senhor chamou-lhe o Príncipe ou o Rei deste mundo. Contudo, para os crentes, deve ser uma grande miséria e uma prisão […] O Segundo Reino é o Reino de Deus, isto é, o Reino da justiça e da verdade aque Cristo se refere: Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça” (Lutero, [1519] 1990, pp. 36-38). (os ecos agostinianos aqui são evidentes).22 22 Joshua Mitchell refere-se ao “êxito da luta ansiosa de Lutero e outros reformadores para descobrir e proclamar novamente, como Agostinho uma vez o fizera, a distinção entre os reinos carnal e espiritual” (Mitchell, 1992, p. 689). Contudo, o agostinianismo está mais na estrutura dicotômica e na semântica do que no conteúdo dos respectivos domínios. Como lembra Zachhuber (citando o teólogo luterano do século XIX Albrecht Ritschl), Agostinho identificava o Reino de Deus com a Igreja, vista como uma instituição pareada com o poder secular. Os Reformadores identicaram a Igreja como a comunidade dos fiéis, o poder secular como uma instituição “chancelada pelo Poder Divino” e a justiça civil como um “bem moral positivo” (Zachhuber, 2017, p. 9). O poder repressivo e a aplicação da lei com o emprego dos meios coercitivos pertenciam ao primeiro, enquanto a este último faltariam as qualidades do político (Wolin, 2004WOLIN, Sheldon. [1960] 2004. Politics and Vision. Princeton: Princeton University Press.).23 23 Veja-se que embora faltem as qualidades do político ao mundo espiritual, o mundo secular não é destituído de vínculos com o mundo espiritual: este mundo não se emancipou do outro. Em outras palavras: continua encantado. Assim, a distinção espiritual-carnal não equivale nem se superpõe ao par encantado-desencantado Na interessante interpretação oferecido por Mitchell, o poder secular é justificado com base no pacto de Deus-Pai com Israel, na Lei de Moisés, no Velho Testamento, que ainda se aplicaria aos ímpios. A espada secular (a qual não é justificada secularmente, portanto) é necessária para manter os filhos do mundo em ordem. Mas há o poder espiritual, estabelecido pelo Novo Testamento. Deus-Pai é poder, e Deus-Filho é espírito (Mitchell, 1992, pp. 689-691). Rainer Forst, no mesmo sentido, afirma que, em Lutero, a despeito da separação das esferas, o poder secular “permanece ancorado numa ordem divina abrangente […], mas, por outro lado, torna-se uma instituição independente que é indiretamente dotada de autoridade divina (no seu próprio domínio)”(Forst, 2003, p. 121). A igreja visível é a comunidade terrena de fiéis, todos aqueles que se entendem por cristãos. Muitos desses fiéis, contudo, dada a queda, a natureza decaída da humanidade, por suas fraquezas, por sua hipocrisia, estão condenados à danação eterna. Assim, a Igreja visível inclui tantos os salvos quanto os condenados.24 24 O conhecimento a respeito de quem está salvo e quem está condenado, no entanto, não é autoevidente nem público, mas um segredo conhecido apenas por Deus. Por essa razão, diz Elton, ninguém pode ser excluído da comunhão com a Igreja, a menos como punição por ter cometido um pecado público e grave. Elton afirma ainda que a excomunhão nunca foi uma questão muito importante no luteranismo (Elton, 1999, p. 32). A Igreja invisível é a comunhão dos santos, aqueles a quem Deus conferiu sua graça.25 25 A imagem da “verdadeira igreja” como invisível e etérea é não deixa de servir de contraponto à pesada institucionalidade da Igreja Católica. Febvre capta o contraste imagético: “A Igreja cujo conceito ele define em 1520, após alguns tateios prévios, não é uma ampla e poderosa organização como a Igreja romana, instituição secular que, agrupando-se em dioceses todos os homens que receberam o batismo, impõe-lhes a autoridade de padres consagrados, predicadores de um credo dogmático e moedeiros de graças pelo mágico canal dos sete sacramentos. Tudo isso com apoio dos poderes temporais. A essa igreja visível, e, digamos, maciça, Lutero, opõe sua verdadeira igreja: a Igreja invisível. Composta apenas daqueles que vivem a verdadeira fé, daqueles que, crendo nas mesmas verdades, sensíveis aos mesmos aspectos da divindade, esperando as mesmas beatitudes celestes, encontram-se unidos não por laços externos de uma submissão meramente militar ao papa, e sim por laços íntimos e secretos que tecem, de coração a coração, de espírito a espírito, uma comunhão profunda dentro das alegrias espirituais” (Febvre, 2012, pp. 184-5).

Fôssemos todos verdadeiros cristãos (integrantes da igreja invisível), saberíamos como proceder uns em relação aos outros: “Ora, essas pessoas não precisam de espada ou direito secular. E se todas as pessoas fossem cristãos autênticos, isto é, verdadeiros crentes, não seriam necessários nem de proveito príncipe, rei ou senhor, nem espada nem lei” (Lutero, [1525] 1996bLUTERO, Martinho. [1525] 1996b. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 85). Há um governo espiritual que diz respeito só aos verdadeiros cristãos; e há o governo secular, que é uma necessidade imposta pelos “acristãos e maus” (Lutero, [1525] 1996bLUTERO, Martinho. [1525] 1996b. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 86). A lei e a espada existem para conter a inclinação dos não cristãos (no sentido dos que pertencem ao reino mundano) para o mal. Embora os nominalmente cristãos sejam muitos (Lutero, [1525] 1996bLUTERO, Martinho. [1525] 1996b. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6.,, p. 87), os verdadeiros cristãos são poucos (“um em mil”, arrisca Lutero ([1525] 1996LUTERO, Martinho. [1525] 1996b. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 86), inclusive entre os príncipes (há verdadeiros patifes a quem chamamos de “príncipes cristãos e obedientes”, diz ele) ([1525] 1996bLUTERO, Martinho. [1525] 1996b. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 82). Nos termos de Lutero, o governo das almas cristãs é um governo invisível pelo qual “todos são sujeitos uns aos outros”, reciprocamente. No entanto, como a grande maioria da humanidade nunca será cristã, o governo invisível e espiritual deve ser suplementado por um governo visível que imponha a paz (Mitchell, 1992MITCHELL, 1992. Joshua. Protestant Thought and Republican Spirit: how Luther enchanted the World. American Political Science Review, v. 86, n. 3, pp. 688-695., p. 691). Um governo cristão (que governasse evangelicamente, sem o uso da violência) sobre uma grande multidão perversa seria inviável (Lutero, [1525] 1996bLUTERO, Martinho. [1525] 1996b. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 86).

Pois bem, há, então, duas arenas, que têm fundamentos de legitimidade diferentes. Como diz Febvre, para Lutero: “[…] se, em um Estado monárquico, o príncipe age como membro da comunidade dos crentes ou, em um Estado democrático, os representantes válidos do povo soberano tratam de organizar o ensinamento da Palavra […] em nada participam, jamais, da autoridade divina.” (Febvre, [1928] 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., pp. 185-186). Além disso, elas operam com lógicas, fins e âmbitos de aplicação distintos. Ambas as arenas são imprescindíveis e nenhuma delas é suficiente. O governo secular é essencial para constranger externamente os não cristãos (ou cristãos nominais, ou pseudocristãos) forçando-os a se comportar bem e pacificamente. No entanto, por si só, aplicado ao plano espiritual, ele gera hipocrisia, “mesmo que fossem [obrigados a cumprir] os próprios mandamentos de Deus” (Lutero, [1525] 1996bLUTERO, Martinho. [1525] 1996b. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 87, grifo e acréscimo nosso). Sozinho, o governo secular é incapaz de tornar alguém justo aos olhos de Deus: consegue apenas produzir conformidade no comportamento exterior, não inclinação ou convicção íntima. Para ser justo, não bastam boas obras (o comportamento externo correto) mas é preciso levar “o Espírito Santo no coração” (Lutero, [1525] 1996bLUTERO, Martinho. [1525] 1996b. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 87). Como a coerção opera sobre o comportamento externo, mas não sobre o coração, a coerção é fútil é incapaz de produzir bons frutos espirituais: Cristo quis “um povo livre, sem pressões e atropelos, sem lei e espada” (Lutero, [1525] 1996bLUTERO, Martinho. [1525] 1996b. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., 88). O perigo, diz Lutero, é misturarmos essas duas arenas. “Por isso tem que se distinguir cuidadosamente esses dois regimes” (Lutero, [1525] 1996bLUTERO, Martinho. [1525] 1996b. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 87).26 26 Na sua ira despertada pela Revolta dos Camponeses, Lutero censurava aos revoltosos a falta de entendimento do que era a liberdade cristã. Acusava-os de “confundir os dois reinos” (Collinson, 2006, p. 202; Forst, 2003, p. 122; Elseroad, 1979, p. 24).

Se governo secular existe para conter apenas os perversos (como vimos, os verdadeiros cristãos não necessitariam de coerção para agir moralmente), nem por isso os cristãos estão eximidos do dever de obediência. Antes, esse dever lhes é imperioso: embora cristãos não precisem da espada para si mesmos, o fato de que vivem em meio aos perversos cria a obrigação de contribuir com sua obediência para que a autoridade do governo seja preservada, porque essa é uma necessidade dos demais, do “próximo”, por assim dizer (Lutero, [1525] 1996bLUTERO, Martinho. [1525] 1996b. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 88). Em suma, não importa quão pio seja o cristão nem quão ímpio e perverso seja o magistrado, aquele deve obediência a este. “O mais odioso tirano deve ser obedecido, assim como o mais paternal dos reis. Seus atos? Deus os quer tais como são. Suas ordens? Deus aceita que ele as dite” (Febvre, 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., pp. 290). Os príncipes perversos “são flagelos de Deus. São os capangas, os tubarões, os carrascos que ele emprega para domar os maus e fazer reinar, pelo terror, a ordem e a paz externas em uma sociedade de homens corruptos” (Febvre, [1928] 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 260). Assim, o príncipe perverso é uma espécie de instrumento da ira de Deus-Pai, “necessária para constranger a fera nietzscheana” (Mitchell, 1992MITCHELL, 1992. Joshua. Protestant Thought and Republican Spirit: how Luther enchanted the World. American Political Science Review, v. 86, n. 3, pp. 688-695., p. 691). A natureza decaída da humanidade impõe a necessidade de governos, assim como a obediência à magistratura civil, qualquer que seja o temperamento ou a inclinação do magistrado, é parte da ordem de Deus para suas criaturas (Elton, [1963] 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 37).27 27 Mais tarde, nas conversas à mesa com seus alunos, Lutero “se revela de modo mais brutal: ‘Os príncipes do mundo, deuses; o vulgo, Satã.’ Como, então, se revoltar? Quem ousaria? Em nome de quê? Não, não, ‘mais vale os tiranos cometerem mil injustiças contra o povo, do que o povo, uma única injustiça contra os tiranos’” (Febvre, [1928] 2012, p. 290). Febvre retira esta passagem das “Tischreden” (Lutero, [1566] 2016), isto é, coletâneas de anotações de seus alunos das conversas que mantinham com o mestre à mesa. Embora bem estabelecidas como fonte na tradição luterana, têm status epistêmico um pouco mais incerto do que os textos publicados pelo próprio reformador.

Assim, por um lado, é parte do dever religioso do súdito cristão prestar obediência ao governante. Por outro, o governo secular não deve “dominar as consciências e a fé” (Lutero, 1996LUTERO, Martinho. [1523] 1996a. Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 81), já que esta última está no coração e não depende das obras e comportamentos externos. Um possível curto-circuito dessas duas normas ocorreria com um magistrado que ordena um comportamento contrário à palavra de Deus. Não se trata de questão esotérica ou hipotética, Lutero está pensando precisamente num caso como esse ao indignar-se com que “agora [magistrados] até começaram a ordenar ao povo que entregue livros, creia e cumpra o que eles ordenam” (Lutero, 1996LUTERO, Martinho. [1523] 1996a. Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 81), uma referência aos príncipes católicos que proibiam e recolhiam a tradução da Bíblia feita pelo próprio reformador, como ocorreu na Baviera em Brandemburgo, por exemplo (Forst, 2003FORST, Rainer. 2003. Toleration in Conflict. Cambridge: Cambridge University Press ., p. 129). Estariam então os cristãos eximidos do dever de obediência diante de ordens como essas, especificamente em matéria de fé?

Eis como Lutero resolve esta antinomia: sim, há limites ao que o magistrado pode legitimamente exigir dos súditos. Contudo, se o magistrado ultrapassar esses limites (por exemplo, com uma ordem contrária à “verdadeira religião”) e passar a agir de modo ilegítimo, nem por isso o súdito tem o direito de lhe oferecer resistência ativa. Cumprir a ordem do magistrado é um pecado aos olhos de Deus, mas oferecer-lhe resistência também o é (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 37), porque já dissemos, mesmo o magistrado ímpio e perverso só existe por autorização e providência divina (Albuquerque e Cabral, 2020ALBUQUERQUE, Adriana Reis de; CABRAL, Gustavo César Machado. 2020. A legitimação da autoridade secular e a teorização do ‘Direito de Resistência’ na filosofia da Reforma Protestante. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 1, pp. 17-45., p. 30). Em caso de “conflito entre sentimentos cristãos e deveres mundos” (Febvre, 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 261), o verdadeiro cristão não pode rebelar-se, mas deve anunciar abertamente sua recusa a cumprir ordens e leis iníquas, uma espécie de desobediência resignada, “passiva e individual” (Albuquerque e Cabral, 2020ALBUQUERQUE, Adriana Reis de; CABRAL, Gustavo César Machado. 2020. A legitimação da autoridade secular e a teorização do ‘Direito de Resistência’ na filosofia da Reforma Protestante. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 1, pp. 17-45., p. 30) e, portanto, sofrer a punição estipulada pelo magistrado (Forst, 2003FORST, Rainer. 2003. Toleration in Conflict. Cambridge: Cambridge University Press ., p. 129). O magistrado iníquo terá de haver-se com Deus, quando chegar a sua hora (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 37).

Compreende-se a asserção frequente - e em linhas gerais - segundo a qual a teologia política luterana (e a própria Reforma) contribuiu para o fortalecimento do poder secular e, para usar um termo anacrônico, foi um vetor de “soberanismo”.28 28 Evidentemente, o termo só pode ser usado com muitas aspas. Estamos de acordo com Mitchell neste ponto: “A definição weberiana de poder político como ‘o monopólio do uso legítimo da violência num dado território’ pode parecer-nos axiomática, hoje; mas a ideia teria parecido absurda a Lutero (nós tendemos a sequer considerar isto como uma dificuldade teórica). Lutero diria que a visão weberiana só poderia assemelhar-se a húbris e que é anticristã - a que Weber responderia enfaticamente ‘Sim’” (Mitchell, 1992, p. 692). Mas é um equívoco enxergar neste texto apenas uma hipertrofia do dever de obediência, porque Lutero está tratando justamente das condições de suspensão desse dever. Se a questão do texto é “até que ponto a autoridade secular pode legitimamente exigir obediência”, a conclusão retirada do texto só pode ser “não completamente e não em tudo” (Collinson, 2006COLLINSON, Patrick. 2006. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva., p. 173). Não se trata, portanto, como querem alguns, da afirmação de um dever irrestrito de obediência, e sim de uma proibição incondicional da revolta, o que é outra coisa, conforme o opúsculo:

revela um Lutero no seu ponto de maior hostilidade à autoridade secular: a verdadeira religião é apresentada aqui como algo mais divorciado da vida da comunidade civil do que em suas obras anteriores ou posteriores, como mais privada e mais pessoal. Uma jurisdição mais restrita é atribuída aos magistrados. E a verdadeira igreja é retratada como mais independente de sua autoridade. Em contrapartida, vemos Lutero aqui oferecendo uma justificação da tolerância religiosa que não se encaixa em sua atitude posterior de repressão da heresia e da blasfêmia, nem em boa parte das questões de sua teologia.(Höpfl, 1991HÖPFL, Harro. 1991. Introduction. In: HÖPFL, Harro. Luther & Calvin on secular authority. Cambridge: Cambridge University Press , 1991., p. x)

Nesse aspecto, Febvre soa parcialmente equivocado quando afirma que ideias sobre a “obediência absoluta aos reis, mesmo que a ordem seja injusta” permeiam “do começo ao fim o tratado de 1522 sobre a autoridade secular” (Febvre, [1928] 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 264). Como toda a obra de Lutero, esse é um panfleto até certo ponto “soberanista”, um texto em geral com muita boa-vontade para com o poder secular, mas hesitantemente soberanista e carregado de ambiguidades: a tendência soberanista é equilibrada por outra tendência em sentido contrário, que podemos chamar de “tolerantista”. Uma das razões pelas quais Febvre está enganado é que o texto sequer tem como propósito tratar dos deveres dos súditos. É bastante instrutivo contrastar Da autoridade secular com À nobreza cristã da nação alemã, outro panfleto de juventude de Lutero que, este sim, podemos definir como decididamente “soberanista”. O próprio Lutero abre Da autoridade secular enfatizando uma diferença fundamental entre os dois textos: “Há algum tempo”, diz Lutero na abertura do opúsculo, “escrevi um panfleto à nobreza alemã” em que tratava de suas tarefas e deveres como cristãos. Agora, tomava “outra direção”, escrevendo sobre o que os príncipes “não devem fazer” (Lutero, [1525] 1996aLUTERO, Martinho. [1523] 1996a. Da autoridade secular, até que ponto se lhe deve obediência. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 81). Isso explica (mas só em parte) o grande contraste entre ambos os textos: eles respondem a problemas diferentes.

Voltemos por um momento nossa atenção ao panfleto À nobreza cristã da nação alemã, de agosto de 1520. É um dos textos que assinala a ruptura com Roma. Como o próprio nome do panfleto sugere, trata-se de um apelo de Lutero ao poder secular contra o papado, defendendo inclusive que aqueles que possuem força para tanto podem legitimamente depor um “pontífice infiel ou culpado” “para preservar as liberdades cristãs” (Febvre, [1928] 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 179). É, efetivamente, um convite para que a nobreza ponha fim ao poder temporal do papado (Elseroad, 1979ELSEROAD, Richard. 1979. Luther’s Atitude Toward Religious Toleration in Light of his Two Kingdom Doctrine. Masters of Divinity. Saint Louis: Concordia Seminary., p. 32), e também a alguns poderes na própria instituição eclesiástica, como a exclusividade da prerrogativa de convocar um concílio. Observe-se que mesmo a passagem “tolerantista” (pelo valor de face), em que condena o uso da força contra as heresias, não é uma advertência ao poder secular, mas uma censura do papado, que queimou João Hus29 29 “Os hereges deveriam ser vencidos com escritos, como fizeram os antigos pais, e não com fogo. Se vencer hereges com fogo fosse sinônimo de conhecimento, os carrascos seriam os mais cultos doutores sobre a terra; tampouco teríamos necessidade de estudar, mas quem vencesse o outro por meio da força poderia queimá-lo” (Lutero, [1520] 1992, p. 326). (cujo nome é mencionado explicitamente). Collinson também vê a obra como uma tentativa de ganhar o apoio secular à causa da Reforma, acenando com a vantagem que a secularização dos bens (2006COLLINSON, Patrick. 2006. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva., p. 172) e de autoridade (Wolff, 2017WOLFF, Elias. 2017. A Reforma de Lutero: uma releitura ecuménica. Theologica Xaveriana, v. 67, n. 183, pp. 237-268., p. 250) podiam trazer. A agenda é de fortalecimento do poder secular como estratégia defensiva contra o papado, visível desde muito. Como diz Mitchell, precisa-se de poder físico para ser contraposto ao poder igualmente físico exercido pela Igreja Romana sobre os estados alemães (1992MITCHELL, 1992. Joshua. Protestant Thought and Republican Spirit: how Luther enchanted the World. American Political Science Review, v. 86, n. 3, pp. 688-695., p. 692). Por isso a obra é “soberanista”: advoga claramente pela subordinação da instituição eclesiástica (no caso, a Igreja Romana) ao poder secular.

À carta dirige-se contra os romanistas, que, por assim, dizer, sequestraram (naturalmente, a expressão não é de Lutero) a igreja e o próprio cristianismo, astutamente bloqueando tentativas de reforma com três muros: a supremacia do poder eclesiástico sobre o secular, o monopólio papel da interpretação bíblica e o monopólio papal da convocação de concílios (Lutero, [1520] 1992LUTERO, Martinho. [1520] 1992. À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão. In: Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal . v. 2., p. 281). O que nos interessa mais de perto aqui é, claro, o primeiro dos muros. O muro tem dois apoios: o primeiro é a própria existência de um estamento eclesiástico separado dos demais cristãos. “Inventou-se” a “fraude muito refinada” segundo a qual “o papa, os bispos, os sacerdotes e os monges sejam chamados de estamento espiritual”, enquanto “príncipes, senhores, artesãos e agricultores, de estamento secular” (Lutero, [1520] 1992LUTERO, Martinho. [1520] 1992. À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão. In: Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal . v. 2., p. 282). Lutero rejeita a especialização sacerdotal e, ao fazê-la, afirma a famosa doutrina do sacerdócio universal, tão cheia de consequências para a individualização da fé e comprometedora para o papel de intermediação da Igreja: “todos os cristãos” são do “estamento espiritual, e não há qualquer diferença entre eles a não ser exclusivamente por força do ofício”. Desta forma, “todos nós somos ordenados sacerdotes através do Batismo” (Lutero, [1520] 1992LUTERO, Martinho. [1520] 1992. À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão. In: Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal . v. 2., p. 282). Assim, como relativiza a especialização sacerdotal, vê como descabida a pretensão do clero de estar acima e fora do alcance da justiça secular:

uma vez que o poder secular é ordenado por Deus para punir os maus e proteger os bons, deve-se deixar que seu ofício passe livre e desimpedidamente por todo o corpo da cristandade, sem acepção de pessoas, atinja ele o papa, bispo, padres, monges, freiras ou a quem for. (Lutero, [1520] 1992LUTERO, Martinho. [1520] 1992. À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão. In: Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal . v. 2., p. 284)

O que explica o contraste entre os dois opúsculos? A bibliografia especializada costuma explicar as guinadas de Lutero, apelando para mudanças de contexto. Assim, Collinson especula que Da autoridade secular marcaria uma “mudança de tática” em relação a À nobreza cristã da nação alemã: seria uma indireta a Jorge, o Barbudo, da Saxônia, o príncipe saxão que resistiu à Reforma em seu território e a sitiou na Saxônia eleitoral de Lutero ([1566] 2016LUTERO, Martinho. [1566] 2016. Tischreden - Vom Einfachen und Erhabenen. Viesbade: Marizverlag., p. 173).30 30 De acordo com Roper, autora de uma biografia recente e festejada de Lutero, Jorge, o Duque da Saxônia Ernestina, era inicialmente simpático à Reforma, mas mudou de ideia depois de Lutero deixar-lhe uma péssima impressão por ocasião do debate com o católico Eck em Lípsia (ou Leipzig). “A oposição em relação à Reforma do primo do Eleitor e dirigente da outra metade da Saxônia foi um problema constante para Lutero, até a morte do Duque em 1539” (Roper, 2020, p. 145).

Quaisquer que fossem as motivações de Lutero, no entanto, podemos dizer que Da autoridade secular acabou tendo um papel limitado no pensamento político do reformador. “Com palavras como aquelas”, escreve Elseroad, “Lutero poderia ser retratado como um campeão da liberdade religiosa. Mas esse não era nem seu destino nem sua causa” (Elseroad, 1979ELSEROAD, Richard. 1979. Luther’s Atitude Toward Religious Toleration in Light of his Two Kingdom Doctrine. Masters of Divinity. Saint Louis: Concordia Seminary., pp. 39-40). Seu objetivo era “a lealdade para com a Palavra de Deus [tal como ele a entendia, claro] e sua causa era garantir que ela permanecesse pura”. Essas duas causas “correriam por trilhos separados” (Elseroad, 1979ELSEROAD, Richard. 1979. Luther’s Atitude Toward Religious Toleration in Light of his Two Kingdom Doctrine. Masters of Divinity. Saint Louis: Concordia Seminary., pp. 39-40, acréscimo nosso), e o desenrolar dos acontecimentos terminará levando a uma aliança cada vez mais forte da Reforma luterana com o poder secular; assim, o próprio pensamento político de Lutero evoluiria num sentido não apenas diferente, mas oposto, isto é, as tendências soberanistas triunfaram, enquanto os elementos tolerantistas foram abandonados e se atrofiaram.

A Reforma e o fortalecimento do poder secular

A relação de causa e efeito entre a Reforma e o fortalecimento do poder secular não chega a ser uma questão controversa.31 31 A Reforma, escreve o teórico político Georges Sabine nos longínquos anos 30, “acelerou em conjunto a tendência, já existente, a aumentar e consolidar o poder das monarquias” (Sabine, [1937], 1994, p. 282). É significativo que Quentin Skinner, em tantos aspectos tão distinto de Sabine e frequentemente oposto a ele, desta vez dele não divirja ao escrever que “a principal influência da teoria política luterana no início da Europa moderna está no encorajamento e na legitimação de monarquias unidas e absolutistas” (Skinner, 1978, p. 113). Contudo, isso talvez não se aplique da mesma forma a qualquer poder secular, ou pelo menos não da mesma maneira, e sim, sobretudo, ao poder secular territorial.32 32 No começo da década de 1530, príncipes protestantes criam uma aliança defensiva contra o Imperador e as Dietas, a Liga de Esmalcalda (ou Schmalkalden) Os integrantes da Liga acordavam assistência militar recíproca no caso de qualquer deles ser atacado “a propósito da Palavra de Deus e da Doutrina do Evangelho” (Elton, 1999, p. 104). Como conciliar este gesto de desafio com a doutrina luterana da obediência? Lutero relativiza a ideia de obediência devida ao Imperador. Em caso de conflito entre o Império e o magistrado local, era o governante territorial quem tinha de ser obedecido (Elton, 1999, p. 121). Como notam Albuquerque e Cabral, as duas agências com pretensões universalistas paralelas, o papado e o império, saíram enfraquecidas do processo, “permitindo o desenvolvimento paulatino de um monismo político/jurídico” (Albuquerque e Cabral, 2020ALBUQUERQUE, Adriana Reis de; CABRAL, Gustavo César Machado. 2020. A legitimação da autoridade secular e a teorização do ‘Direito de Resistência’ na filosofia da Reforma Protestante. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 1, pp. 17-45., p. 42).33 33 Por vezes, Lutero parece muito autoconsciente dos efeitos que estava provocando: “‘Nosso ensinamento’, exclama ele, orgulhoso, em 1525, ‘deu à soberania secular a plenitude do seu direito e poder, realizando assim o que os papas nunca haviam feito nem desejavam fazer’” (Febvre, [1928] 2012, p. 290). Febvre não especifica de onde recolheu esta citação. Para o teórico político minimamente familiarizado com a história do conceito de Soberania, esta passagem - também citada por Febvre- é nada menos que fascinante: “Os príncipes, todos os príncipes são seus [de Deus] ajudantes. São deuses, e Lutero não espera por Bossuet para dizê-lo: ‘Os superiores são denominados deuses’, escreve ele em 1527, ‘em consideração a sua função, porque fazem as vezes de Deus e são ministros de Deus’” (Febvre, [1928] 2012, p. 290. A frase de Lutero tem outra vez origem não especificada).

O que move Lutero na década de 1520 é, principalmente, a rejeição do poder político do papado (Wolin, 2004WOLIN, Sheldon. [1960] 2004. Politics and Vision. Princeton: Princeton University Press., p. 131) e da jurisdição da Igreja romana (Skinner, 1978SKINNER, Quentin. 1978. The Foundations of Modern Political Thought: The Age of Reformation. Cambridge: Cambridge University Press . v. 2., p. 14). Para ele, pretensões de governo vindas do Papa ou de Roma deveriam ser vistas como usurpadoras em relação às autoridades temporais (Skinner, 1978SKINNER, Quentin. 1978. The Foundations of Modern Political Thought: The Age of Reformation. Cambridge: Cambridge University Press . v. 2., p. 14) e tirânicas em relação aos súditos (Höpfl, 1991HÖPFL, Harro. 1991. Introduction. In: HÖPFL, Harro. Luther & Calvin on secular authority. Cambridge: Cambridge University Press , 1991., p. viii). A motivação de Lutero para enfatizar este ponto não era apenas especulativa e filosófica, mas também estratégica (e nessa dimensão, também há continuidades em relação à tradição medieval). Enfatizar a separação das jurisdições deve ser entendido como um argumento defensivo dirigido contra as pretensões universalistas e abrangentes do poder papal. Após a sua excomunhão em junho 1520 e a sua proscrição pelo Imperador na Dieta de Worms, Lutero se tornou crescentemente dependente das autoridades seculares que não o próprio Imperador.34 34 Com isso, Lutero estava na ilegalidade pela decisão de ambas as espadas, a temporal e a espiritual. A Dieta de Espira (ou de Speyer), em 1529, reiterou o Édito de Worms, mantendo a proscrição de Lutero e seus seguidores. Se o Imperador Carlos V se mostrou um duro oponente da Reforma, Lutero pôde contar com o apoio de Frederico, apodado “o Sábio”, eleitor da Saxônia, um dos sete eleitores que escolhiam o Imperador. Frederico nunca se converteu ao luteranismo (Elton, 1999, p. 32). A ele Lutero paga “tributo oblíquo” (Höpfle, 1991, p. 7) em “Da autoridade secular”. Para mais detalhes sobre a estrutura política e outros detalhes do Império à época, ver Elton, 1999, pp. 8-15. Príncipes e magistrados engajaram-se na Reforma desde o princípio, fosse como “protetores, beneficiários ou oponentes” (Höpfl, 1991HÖPFL, Harro. 1991. Introduction. In: HÖPFL, Harro. Luther & Calvin on secular authority. Cambridge: Cambridge University Press , 1991., p. vii.

Elton afirma que o apoio principesco era o critério para definir o sucesso da Reforma. Onde triunfou, triunfou pela vontade dos príncipes e com ela (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., pp. 83-84).35 35 Por vezes, a Reforma foi um puro ato de Estado, ação estratégica respondendo a razões de Estado. Estamos de acordo com Hillerbrand quando afirma que este parece ter sido não apenas o caso mais conhecido da Inglaterra, mas também o da Suécia. A monarquia sueca “estava pouco interessada em questões teológicas mas percebeu astutamente que a turbulência política lhe permitira confiscar a propriedade da Igreja e comprometer o seu poder político. (Hillerbrand, 2003, p. 237). Se a Reforma dependia dos príncipes, estes também obtinham benefícios dela: o poder secular tendia a sair fortalecido onde a Reforma triunfava, seja por razões materiais (a secularização dos bens eclesiásticos) (Collinson, 2006COLLINSON, Patrick. 2006. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva., p. 230), seja pela razão mecânica, por assim dizer, da alteração do balanço de poder, com a anulação do contrapeso representado pelas instituições católicas. Em outras palavras, a anulação súbita da institucionalidade eclesiástica católica nas regiões de religião reformada cria um vácuo de poder que é ocupado pela expansão dos poderes seculares. Como consequência,

[…] a Igreja visível é colocada sob controle do príncipe pio [godly]. Isso nãosignifica que o rex se torna um sacerdos, ou que ele tenha autoridade para emitirdecretos sobre o conteúdo da religião. Seu dever é simplesmente estimular a pregação do Evangelho e apoiar a verdadeira fé. (Skinner, 1978SKINNER, Quentin. 1978. The Foundations of Modern Political Thought: The Age of Reformation. Cambridge: Cambridge University Press . v. 2., p. 14, destaque nosso)

Num contexto de hipertrofia do poder secular e de fraqueza relativa das novas igrejas, Lutero invoca a ajuda do poder secular para conter o papado e apoiar a verdadeira fé. Contudo, e previsivelmente, o “príncipe pio” muitas vezes não se conforma ao papel que Lutero lhe reserva e aspira a desempenhar um papel mais substantivo e doutrinário na igreja reformada. O chamamento para que o poder secular assumisse a tarefa de reformar a Igreja dificilmente é conciliável com a autonomia eclesiástica. Assim, Lutero frequentemente se vê às voltas com o problema de que os poderes que ofereciam proteção e assistência contra a tirania do Papado também ameaçavam a nova religião com formas renovadas de controle (Wolin, 2004WOLIN, Sheldon. [1960] 2004. Politics and Vision. Princeton: Princeton University Press., p. 133). Esse foi precisamente o mecanismo através do qual algumas autoridades acabaram por sedimentar seu poder sobre as novas estruturas eclesiásticas, o início da “aliança entre trono e altar” (Hillerbrand, 2003HILLERBRAND, Hans J. 2003. The legacy of Martin Luther. In: MCKIM, Donald K. (org.). The Cambridge Companion to Martin Luther . Cambridge: Cambridge University Press ., p. 232). Hillerbrand aponta também o que considera um efeito de certa forma positivo (para as igrejas) na interferência principesca em temas teológicos (esses novos Constantinos, um historiador do cristianismo podia dizer): as autoridades políticas arbitraram controvérsias teológicas persistentes que de outra forma se teriam arrastado por muito mais tempo (Hillerbrand, 2003HILLERBRAND, Hans J. 2003. The legacy of Martin Luther. In: MCKIM, Donald K. (org.). The Cambridge Companion to Martin Luther . Cambridge: Cambridge University Press .). Mas, para a tolerância, tal simbiose foi só negativa: “a tolerância de Lutero diminuiu na medida em que a sua dependência do magistrado aumentou” (Elseroad, 1979ELSEROAD, Richard. 1979. Luther’s Atitude Toward Religious Toleration in Light of his Two Kingdom Doctrine. Masters of Divinity. Saint Louis: Concordia Seminary., p. 65).

Assim, o que essa questão sugere é que é possível enxergar na retórica da separação das jurisdições não apenas um recurso antipapal, mas também uma antevisão desse horizonte por parte de Lutero, que tenta salvaguardar alguma integridade teológica da igreja reformada em relação aos príncipes ímpios ou com pretensões doutrinárias (e a parte II de Da autoridade secular tem essa questão no radar ao afirmar limites ao poder secular). Se o argumento de Lutero tinha gume duplo, contudo, não se pode dizer que fosse igualmente afiado dos dois lados: Lutero se protegeu do papado, mas se colocou, a si próprio e à sua igreja, em situação cada vez mais “dependente da autoridade secular para policiar a igreja visível e para garantir um grau de uniformidade religiosa” (Wolin, 2004WOLIN, Sheldon. [1960] 2004. Politics and Vision. Princeton: Princeton University Press., p. 140). A aliança entre o poder secular e clerical encarregou príncipes e outros governos seculares de supervisionar crenças dos súditos e foi “importante no processo de construção do Estado, especialmente nos Estados alemães” (Collinson, 2006COLLINSON, Patrick. 2006. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva., p. 236). Na Saxônia de Lutero, de acordo com Elton,

a autoridade [na estrutura institucional da igreja] realmente emanava do braço secular. Lutero atribuiu ao magistrado cristão o dever e o direito de supervisionar a boa ordem da igreja de Deus […] tornando de fato a igreja luterana da Saxônia uma igreja estatal. O sistema foi copiado onde quer que a reforma luterana fosse estabelecida. (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 32)

A retórica da separação, em suma, era ambígua (ou talvez mesmo confusa e contraditória) e ambíguos foram os resultados do argumento (supondo que os argumentos tenham tido importância, mesmo que limitada, nestas circunstâncias). A ambiguidade do reformador é entendida por Wolin como uma contradição entre o radicalismo religioso e o quietismo político, na dificuldade de conciliar a revolta num campo e a passividade em outro (Wolin, 2004WOLIN, Sheldon. [1960] 2004. Politics and Vision. Princeton: Princeton University Press., p. 147).36 36 Esclareço que Wolin refere-se aqui tanto a Lutero quanto a Calvino. Lutero, diz ele, “louvou o poder temporal mais do que qualquer pessoa desde Agostinho” (Wolin, 2004WOLIN, Sheldon. [1960] 2004. Politics and Vision. Princeton: Princeton University Press., p. 140). Foi sua doutrina do governo e da obediência - um dos vetores de desenvolvimento da doutrina da soberania - que acabou sufocando dois dos pilares da liberdade religiosa, onde quer que ela seria afirmada nos séculos vindouros: a autonomia da igreja - entendida como associação - e a liberdade de consciência. É neste sentido que Collinson afirma que “A Reforma (e a Contrarreforma) foi (foram) o alto-forno no qual se forjou o Estado moderno” (2006COLLINSON, Patrick. 2006. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva., p. 230).

A aliança da Reforma foi percebida com certo incômodo em parte das próprias fileiras protestantes. Hillerbrand cita “um escritor anabatista” segundo o qual “Lutero quebrou a jarra do Papa, mas manteve os cacos em suas mãos”. Ainda de acordo com Hillerbrand, Müntzer, que mais tarde seria o líder da Guerra dos Camponeses, “concluiu que Lutero abriu mão de seus insights bíblicos em troca de uma acomodação fácil com as autoridades políticas” (Hillerbrand, 2003HILLERBRAND, Hans J. 2003. The legacy of Martin Luther. In: MCKIM, Donald K. (org.). The Cambridge Companion to Martin Luther . Cambridge: Cambridge University Press ., p. 229). Febvre faz referência aos contemporâneos que pensavam que “o homem de Worms” fora sucedido por um “lacaio dos príncipes” (Febvre, 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 284).

Edwards Jr. chama a atenção para a natureza perenemente política da Reforma (que se inicia com a convocação de Lutero à Dieta Imperial, não nos esqueçamos). Se o movimento tinha uma natureza tanto religiosa quanto política, destaca ele também que no curso do processo, a dimensão política do movimento se acentuou, isto é, considerações de natureza religiosa cederam espaço a considerações puramente políticas (Edwards Jr., 2003EDWARDS Jr., Mark. 2003. Luther’s polemical controversies. In: MCKIM, Donald K. (org.). The Cambridge Companion to Martin Luther. Cambridge: Cambridge University Press., pp. 200-201). Se ele está certo, podemos apontar o ano de 1525 como crucial para esse movimento. E se o annus mirabilis de 1525 (Collinson, 2006COLLINSON, Patrick. 2006. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva., p. 82) ocupa um lugar especial na história da Reforma, nenhum evento sozinho teve um impacto tão grande quanto a Guerra dos Camponeses. “Lutero talvez não tivesse escrevido ‘Da Autoridade Secular’ após 1525”, afirma Collinson (2006COLLINSON, Patrick. 2006. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva., p. 174).37 37 Albrecht Classen ressalta o contraste entre o olhar amigável de Lutero para o judaísmo no começo dos anos de 1520 e o agudo antissemitismo que o Reformador abraçou posteriormente (Classen, 2018, pp. 15-16). O tema do antissemitismo em Lutero é ao mesmo tempo um subcapítulo do nosso problema mais amplo da tolerância e uma questão que, por suas particularidades e consequências históricas e especificidades bibliográficas, expandiria este artigo já relativamente longo além dos limites do razoável. Por isso, consideramos que é um tema para ser tratado em separado, em outro texto, e aqui, limitamo-nos a mencioná-lo en passant. A bibliografia sobre o assunto é extensa; de qualquer forma, a eventuais interessados no assunto, recomendamos, como ponto de partida, além do referido artigo de Classen, o capítulo 18 da recente bibliografia de Lutero escrita por Lauren Roper, e um artigo de 1993 do prof. Walter Altmann, que ilustra e exemplifica textualmente a “perturbadora” mudança do pensamento de Lutero “de uma posição simpática aos judeus para uma posição francamente agressiva para com eles” (Altmann, 1993, p. 75). Também pode ser de interesse a esse eventual leitor o artigo de Diego Melo Carrasco (2020) sobre o prefácio escrito por Lutero a uma edição europeia do Alcorão publicada em 1543. Como mostra Melo Carrasco, o prefácio é revelador da visão de Lutero não apenas sobre os muçulmanos, mas também sobre os judeus, esses dois “outros” da Europa.

A bibliografia da História da Reforma costuma enfatizar 1525 como um momento em que perspectivas mais realistas ganham a mão, uma espécie de momento pé no chão (de formas muito diferentes e sem dizê-lo nestes termos, que são nossos e pelos quais assumimos a responsabilidade).38 38 As palavras “idealismo” e “ingenuidade” aprecem aqui e ali na bibliografia para qualificar o Lutero de antes de 1525. Desse ano, Febvre afirma: “Philosophia de coelo in terram evolavit [A filosofia desceu do céu para a Terra]” (Febvre, [1928] 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 292, tradução nossa). Por exemplo, esse momento de crise teria sepultado esperanças muito ambiciosas dos reformadores: ficou claro que a Reforma não conquistaria sequer a Alemanha inteira, o que dirá a Cristandade (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 33). Um aspecto menos enfatizado, mas que nos parece muito significativo, é que; de 1525 em diante, Lutero praticamente só escreve em alemão, renunciando ao latim (Febvre, [1928] 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 293).39 39 Na sua recente biografia de Lutero, Lyndal Roper enfatiza 1525 como o ano de uma mudança de grandes consequências na vida pessoal de Lutero: foi o ano em que o reformador se casou com a ex-freira Katharina von Bora. Além de reafirmar performaticamente, por assim dizer, o rompimento com o catolicismo, o casamento do ex-monge com uma ex-freira causou escândalo no movimento reformista e inflamou ainda mais a ira católica (Roper, 2020).

A Guerra dos Camponeses colocou Lutero contra a parede porque muitos - entre eles príncipes e os próprios revoltosos40 40 Elton afirma que os revoltosos acreditavam que Lutero, com seus ataques a “monges e a padres gordos” tinha chamado à ação (Elton, 1999, p. 34). Febvre afirma que Lutero foi “evocado” “pelas duas facções” “desde o início” (2012, p. 262). - presumiam o apoio do Reformador à revolta, o que o deixou com o ônus de desprovar qualquer conexão entre luteranismo e a anarquia política dos revoltosos.41 41 O verbete “Tolerância”, do Dicionário de Lutero, menciona a “postura” crescentemente intolerante do reformador “em meados da década de 1520”, em reação aos camponeses que “legitimaram sua revolta com argumentos da Reforma” (Schneider-Ludorff, 2021, p. 1086). Lutero tinha então duas fortes razões para condenar o levante nos termos duros em que o fez42 42 Lutero reage com fúria, escrevendo um virulento panfleto contra os envolvidos na rebelião: “Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses” (Lutero, [1525] 2016). Os rebelados são chamados pelo reformador de “cachorros loucos” (p. 332), “assassinos infiéis, desobedientes, perjuros e rebeldes, assaltantes e blasfemadores (p. 334), que merecem “a morte múltiplas vezes, tanto do corpo como da alma” (p. 332). Ele exorta as autoridades a reprimir duramente os revoltosos: “Aqui é hora de espada e de ira, e não hora de misericórdia” (p. 335). Essa linguagem tornou-se ainda mais chocante pelo fato de que o panfleto acabou sendo publicado apenas depois da derrota dos revoltosos, “quando os senhores cometiam atrocidades com os prisioneiros que julgavam em seus tribunais militares” (Reith, 1996, p. 281). : uma, estratégica, ou seja, derivada do temor de perder o crucial apoio dos príncipes ao movimento.43 43 “A guerra deu munição a críticos católicos da Reforma que viam no movimento como subversivo” (Edwards Jr. 2003, p. 196). Outra, aparentemente derivada das próprias convicções, isto é, eivada de sinceridade. A pretensão dos revoltosos de falar em nome dos valores do Evangelho é desqualificada por Lutero. “O Evangelho”, diz ele, “condena toda revolta” (Febvre, 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 263). A partir de 1525, Lutero deixaria de lado as ambiguidades de Da autoridade secular enfatizando e robustecendo ainda mais e de forma definitiva o dever de obediência.44 44 “[…] não pode haver coisa mais venenosa, prejudicial e diabólica do que uma pessoa rebelada”, escreve ele em “Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses” (Lutero, 1996b, p. 333). Ao leitor de inclinação liberal que olhe com desgosto para esse Lutero, Elton parece pedir um pouco de atenção ao contexto: não se pode fazer justiça aos ensinamentos de Lutero sem que se tenha em mente o “abismo” aberto pela “negação de toda autoridade” pelos revoltosos (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 55).45 45 Enquanto os principais Reformadores adotavam uma perspectiva crescentemente “soberanista”, não nos parece despropositado enxergar certa tendência anarquizante entre as franjas radicais da Reforma, algo captado pelo uso da expressão “negação de toda autoridade” por Elton no trecho citado acima. Veja-se, por exemplo, a forma como o mesmo historiador descreve a crença dos primeiros anabatistas: o suíço Conrad Grebel entendia a Igreja como “uma comunidade de crentes […] que elegia seu próprio pastores […], que não teria nada a ver com as instituições deste mundo. Eles não teriam relação com a ‘espada’ (a autoridade civil), não deveriam portar armas, fazer juramentos e realizar os deveres de cidadãos ou compor o governo” (Elton, 1999, p. 60). Collinson, no mesmo sentido: “espalhou-se um outro [modelo de Reforma], de não-conformismo sectário, que rejeitou a figura do magistrado, e até mesmo do Estado, que não teriam lugar no verdadeiro Cristianismo. Os partidários dessas ideias foram temidos e perseguidos sob o rótulo de ‘anabatistas’. Collinson também destaca as interdições cívicas que anabatistas se impunham: a oposição entre os “Schwertler” e os “Stäbler” (ou entre os portadores da espada e do cajado) foi persistente na doutrina anabatista (Collinson, 2006, pp. 100-101, acréscimo nosso). Uma condição absolutamente crucial para a viabilidade política da tolerância é a desvinculação entre dissidência religiosa e lealdade política. Elseroad afirma que, no pensamento político de Lutero, “a distinção entre incitar sedição e ensinar doutrinas falsas se torna cada vez menos nítida” depois da Revolta (Elseroad, 1979ELSEROAD, Richard. 1979. Luther’s Atitude Toward Religious Toleration in Light of his Two Kingdom Doctrine. Masters of Divinity. Saint Louis: Concordia Seminary., p. 40). Se ele está certo, podemos conjecturar que a Revolta pode ter inviabilizado in nuce o desenvolvimento de uma doutrina política da tolerância.

Finalmente, mencionamos outro fator contingente ocorrido em 1525 que provavelmente exerceu alguma influência, ainda que oblíqua, nos rumos da Reforma e nas posições políticas de Lutero: o rompimento com Erasmo de Roterdão. Os movimentos de Lutero contaram com o apoio inicial de Erasmo (já muito famoso em toda a Europa46 46 “De Cracóvia a Vallodolid”, diz Elton (1999, p. 68). ) e de humanistas. As críticas dos reformadores à ausência de devoção genuína e à exploração da piedade popular para fins pessoais ou por dinheiro eram endossadas pelos humanistas (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 195), que enxergavam no movimento desencadeado por Lutero uma oportunidade de reformar a Igreja, e não como o cisma religioso que acabaria por se tornar.

Esse não foi o único aspecto em que as expectativas dos humanistas para com Lutero terminaram frustradas: o projeto humanista de um cristianismo racionalizado e eticizado era incompatível com o retorno às “certezas intransigentes” de uma teologia dogmática (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 15), e, podemos acrescentar, excessivamente teocêntrica para o gosto humanista. A visão que Lutero nutria da humanidade como irremediavelmente corrupta e degradada (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 36) tampouco ajudava. Essa incompatibilidade já se insinuava fazia tempos: Em carta a Jorge Spalatino, secretário de Frederico, o Eleitor saxão, ainda em 1516, antes portanto da própria publicização das 95 teses, Lutero afirmava que suas desavenças teológicas com Erasmo podiam ser expressas assim: “quando se trata de interpretar as Escrituras, prefiro Agostinho a Jerônimo, na mesma medida em que Erasmo prefere Jerônimo a Agostinho” (apudFebvre, [1928] 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 148).

As discórdias teológicas entre ambos não tardariam em eclodir numa controvérsia sobre o livre-arbítrio, marcada pela troca, entre 1524 e 1527, de tratados tão eruditos quanto ásperos entre os dois homens: Erasmo abriu fogo em 1524, com diatribe ou o Discurso sobre o Livre-Arbítrio (atacando os conceitos luteranos de Graça e Justificação). A réplica de Lutero vem em 1525, com A Vontade Cativa (Lutero, [1525] 1993LUTERO, Martinho. [1525] 1993. Da Vontade Cativa. In: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 4.) e a tréplica de Erasmo vem em duas partes, nos dois anos que se seguem (Uma defesa da Diatribe, partes 1 e 2, em 1526 e 1527, respectivamente). Esse intercâmbio selou a ruptura entre ambos ao escancarar não apenas diferenças teológicas47 47 Para uma apresentação da dimensão teológica do debate Erasmo-Lutero, ver: Nascimento 2006, 2019. entre eles, mas também os respectivos horizontes de expectativas discrepantes. A dinâmica do conflito com a Igreja também diminuiu o espaço para posições intermediárias e matizadas. A ideia de uma Reforma da Igreja e na Igreja estava morta. A Reforma tornou-se um movimento extra ecclesiam. Ou se estava com a Reforma, ou se estava com a Contrarreforma. Tomás Moro, um aliado de Erasmo, cerrou fileiras com o papado (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 360), como sabemos.

O rompimento evidenciou antipatias a diferenças mais antigas entre os dois homens, que talvez permanecessem contidas diante da sensação de estarem do mesmo lado. “Lutero e Erasmo não apenas discordavam, mas se desgostavam mutuamente” (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 69). Para Erasmo, Lutero exalava “rancor e violência teológicos” (Collinson, 2006COLLINSON, Patrick. 2006. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva., p. 57), uma forma de apontar o irracionalismo do reformador. Este, por sua vez, retribuía a antipatia desde muito cedo: “Lutero ainda não era Lutero e já detestava, no autor de Enchiridion, a inteligência clara que se gaba de sua clareza, a razão inimiga do mistério e de todas essas coisas obscuras percebidas pela intuição” (Febvre, [1928] 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 279).

Reforma, vetor da Modernidade?48 48 A própria ideia de “Modernidade” é um tanto vaga e objeto de controvérsia, mas a exemplo de Zachhuber, podemos usá-la aqui para referir a uma distinta combinação de elementos como capitalismo, liberalismo, democracia e secularização (Zachhuber, 2017, p. 1). Inclui, portanto, elementos como a tolerância e a liberdade de consciência.

O debate sobre as sementes de tolerância nos reformadores está associado a uma questão mais ampla: a controvérsia da natureza modernizante da Reforma, o que por sua vez nos coloca no perigoso terreno das teses sobre a secularização como processo social contínuo e ascendente, que fogem ao interesse deste artigo. Tentaremos, contudo, circunscrever-nos à questão mais estreita, que pode ser assim formulada: se o espírito dos reformadores era tão dogmático e intolerante como o da Igreja Romana, se a Reforma fortaleceu a soberania contra o indivíduo e a igreja associativa e, por fim, se trocou teologia especulativa de Erasmo pela teologia dogmática de Calvino e de Beza, de que forma pode ter pavimentado a avenida em direção à tolerância, como dissemos no princípio?

Há uma larga (e controversa) tradição historiográfica (a qual inclui nomes como um Hegel49 49 Hegel é um dos grandes defensores da tese do Lutero moderno (Zachhuber, 2017): “[…] para Hegel o conceito que resume desenvolvimentos desde o século XVI é subjetividade. A virada para a subjetividade é mais do que uma ênfase no indivíduo ou na individualidade, embora a modernidade, de acordo com Hegel, acolha estas noções também. Subjetividade é a marca distintiva de uma era porque representa uma forma particular de os seres humanos assumirem sua posição no mundo. Na perspectiva subjetiva, a vida interior torna-se a arena de todos os aspectos da existência humana: o conhecimento torna-se um problema de cognição; a beleza é uma questão de prazer estético; a moralidade é uma qualidade da vontade, e assim por diante. Uma religião subjetiva, portanto, é uma religião baseada apenas na fé; ele tem em pouca conta ou rejeita, ritos e cerimônias externas” (Zachhuber, 2017, p. 5). e Weber) que associa a Reforma a uma revolução que dispara o processo de construção da Modernidade, que é associada a uma controvérsia sobre o suposto caráter moderno das próprias convicções teológicas ou sociais de Lutero. Essa tradição é tão larga quanto contestada. Os mais céticos quanto à modernidade de Lutero procuram enfatizar elementos medievais ou originalistas de sua teologia50 50 Hillerbrand menciona que o entusiasmo iluminista por Lutero significativamente enfatiza o homem em detrimento da teologia: “O Iluminismo continuou a expressar entusiasmo por Martinho Lutero, exceto pelo fato de agora era um Lutero flagrantemente não-teológico que era saudado e louvado. O século XVIII pouco se importava com a inclinação teológica de Lutero, como sua noção de “Deus Escondido”, o Deus Abscondidus, mas via-o como um indivíduo talentoso e virtuoso, alguém que compunha canções natalinas e cantava-as com a famíia e amigos em torno da árvore de Natal, alguém que privou ser um guerreiro contra a superstição medieval, um defensor da liberdade religiosa e de consciência […]. Ele era o libertador da servidão, do coletivismo estrangeiro, do sobrenaturalismo da superstição, em resumo, o arauto e herói de uma nova era e o criador do espírito moderno. O significado histórico de Lutero é visto no seu desafio corajoso da superstição medieval e da intolerância, contra as quais ele apresentou suas próprias convicções derivadas da Bíblia. Lutero era, de acordo com um autor do século XVIII, ‘um verdadeiro anjo-guardião pelos direitos da razão, da humanidade e da liberdade cristã de consciência’” (Hillerbrand, 2003, p. 234). (o último termo entre aspas é nosso, para significar um retorno a um suposto cristianismo primitivo ou primordial, como nas influências de Agostinho sobre o Reformador). Nesse caso, o caráter revolucionário da Reforma seria aquele mais compatível com o sentido etimológico de revolução, entendido como retorno às origens. De fato, a ideia de que a Reforma representava uma espécie de rompimento com o passado, encetando algo novo provavelmente teria espantado Lutero,51 51 É significativo que, em 1518, nos primórdios da Reforma, ao editar uma obra mística medieval, Lutero tenha tido a preocupação de afirmar no prefácio que a obra comprovava que “a teologia de Wittenberg de nenhuma forma se desviava da tradição, mas que, bem pelo contrário, com ela coincidia” (Leppin, 2021, p. 1084). que propõe o retorno a uma teologia mais teocêntrica (Elton, 199ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 196).

Além de teocêntrica, a Reforma foi um vetor no sentido contrário ao da secularização, reinstalando a teologia em dimensões secularizadas da vida e liberando um “furor theologicus” (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 230) minucioso e com pretensões totalizantes. “O protestantismo tentou infundir religião a todos os aspectos da vida […]. Para tomar emprestada a famosa frase de Max Weber, seu ascetismo operava neste mundo, não fora dele” (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 198).

A linha triunfalista que une as 95 teses ao iluminismo e ao liberalismo e o Lutero “medieval” são pouco mais do que caricaturas, e felizmente desde o século XIX há um repertório de interpretações mais sofisticadas que em certa medida combinam e matizam esses dois “Luteros”. Zachhuber menciona o teólogo alemão Ernst Troeltsch (1856-1923), por exemplo, que rejeitava afirmações muito peremptórias sobre o assunto.52 52 Hillerbrand interpreta Troeltsch como alguém empenhado em desafiar a visão então prevalecente segundo a qual Lutero seria um campeão de “modernidade e proto-germanidade”. Daí chamar a atenção para elementos medievais na visão de mundo do Reformador (Hillerbrand, 2003, p. 235). Para ele, o protestantismo do século XVI tinha continuidades com o universo medieval53 53 Troeltsch destaca três componentes “medievalistas” nos reformadores do século XVI: em primeiro lugar, a visão da igreja como “instituição objetiva” e “justaposta ao mundo perdido no pecado original”; em segundo, a sacralização crescente da vida social (o contrário, portanto, do processo de secularização). Mesmo no terreno onde a oposição ao catolicismo era mais clara, que é o terreno doutrinário, Troeltsch enxergava continuidade: os problemas teológicos protestantes eram formulações medievais (como o próprio problema da justificação). (Zachhuber, 2017, pp. 11-12). ao mesmo tempo em que continha sementes do mundo moderno (Zachhuber, 2017ZACHHUBER, Johannes. 2017. Martin Luther and Modernity, Capitalism, and Liberalism. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Religion., p. 11). Entre o vetores modernizantes da Reforma, ele enumera a ênfase na fé (em detrimento do sacramentalismo), que transformou a religião em assunto “muito mais pessoal”; a individualização da relação do fiel com Deus (em detrimento da intermediação eclesiástica para a Salvação); a emergência de uma moralidade da consciência (“uma versão mais radical da ética interiorizada”, diz Zachhuber); Por último, a imanência, por assim dizer: o fato de que que o protestantismo favorece uma versão “aplicada” do cristianismo, uma religiosidade que é “exercida na vida ordinária” (Zachhuber, 1917ZACHHUBER, Johannes. 2017. Martin Luther and Modernity, Capitalism, and Liberalism. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Religion., p. 12) e que desenfatiza dimensões “sobrenaturais” do cristianismo. Fé em detrimento de boas obras e imanência em detrimento de ascetismo. Em todas estas dimensões, Lutero é “protomoderno” (Zachhuber, 2017ZACHHUBER, Johannes. 2017. Martin Luther and Modernity, Capitalism, and Liberalism. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Religion., p. 12).

É curioso notar que os vetores de modernidade estão todos associados à subjetivação e à individualização. Trata-se de diagnóstico bastante frequente: vimos acima que era a leitura que Hegel fazia de Lutero e da Reforma (Zachhuber, 2017ZACHHUBER, Johannes. 2017. Martin Luther and Modernity, Capitalism, and Liberalism. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Religion., p. 1).54 54 Como o leitor deverá ter percebido pela frequência com que esta obra aparece nas referências, devemos boa parte desta seção ao magnífico artigo de Johannes Zachhuber, “Martin Luther and Modernity, Capitalism, and Liberalism” (2017). O autor contrasta a recepção da leitura do papel modernizante de Lutero em autores como Joseph de Maistre, Hegel, Albrecht Ritschl, Ernst Troeltsch Weber e Maritain, inter alia. No Século XX, Jacques Maritain também enxerga Lutero como uma espécie de apóstolo da subjetividade. O axioma “Só pela fé” seria a face teológica da guinada subjetivista do reformador, que “colocou o self no centro do universo” (Zachhuber, 2017ZACHHUBER, Johannes. 2017. Martin Luther and Modernity, Capitalism, and Liberalism. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Religion., p. 19). Maritain identificava assim em Lutero as origens do que entende como “erros” do mundo moderno: a hipertrofia da subjetividade é um problema porque cria um ambiente hostil à transcendência (Zachhuber, 2017ZACHHUBER, Johannes. 2017. Martin Luther and Modernity, Capitalism, and Liberalism. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Religion., p. 18).55 55 Maritain tinha o cuidado de observar que Lutero mesmo “não era um homem moderno” (Zachhuber, 2017, p. 19) e, não chega, portanto ao anacronismo de ver nele um “liberal” (1929, p. 46). De qualquer forma, a visão que Maritain tinha de Lutero pareceu-nos menos generosa e mais negativa do que esperávamos de um teólogo católico não conservador do século XX: enfatiza o “egocentrismo” do reformador, acusa-o de promover o “misticismo do self e da vontade” (1929, p. 35) e de patrocinar uma filosofia extremamente centrada “na vontade e nos sentimentos”, ou seja, excessivamente marcada pelo que “afeta o sujeito” (1929, p. 44). Um reacionário como Joseph De Maistre manifesta uma visão furibunda da Reforma e de seu principal personagem: para ele, esse evento histórico seria a fonte original do niilismo da Revolução, porque teria ensinado os modernos a trocar os valores católicos do “respeito cego pela autoridade e a abnegação individual” pela “destruição das certezas e da autoridade”, o que fazia do Protestantismo o “inimigo jurado da ordem e do consenso”. Protestantes não conseguem concordar a respeito de coisa alguma exceto quanto à própria disposição de opor-se a tudo e a todos, diz ele (apudZachhuber, 2017ZACHHUBER, Johannes. 2017. Martin Luther and Modernity, Capitalism, and Liberalism. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Religion., p. 17).

Isso nos leva para uma questão que nos interessa mais de perto aqui: a da liberdade de consciência em Lutero, que, como sabemos, invocou a consciência como escudo em Worms.56 56 O “Aqui fico” de Worms provavelmente é apócrifo, mas ele invocou a consciência: “A menos que provem que estou enganado por meio do testemunho das Escrituras ou por razões evidentes, minha consciência está vinculada e atrelada à Palavra de Deus […] Portanto não posso retirar coisa alguma, e não o farei, pois não é seguro nem salutar contrariar a própria consciência. Deus me ajude. Amém” (Collinson, 2006, p. 82). Essa declaração soa aos nossos ouvidos em diapasão muito próximo ao das declarações de direitos dos primórdios do constitucionalismo moderno, do século XVIII. Como conciliar seu apelo à consciência com a ideia de que individualismo ético é simplesmente anacrônico na Reforma?

Lutero não estava reivindicando um direito a crer na verdade tal como se entenda essa verdade, um direito de permanecer no próprio caminho a despeito da oposição de quem ocupa o poder político, das instituições e da maioria. Em outras palavras, Lutero não está reivindicando a “o que Wilhelm Dilthey chamou ‘a autocracia do crente’”, expressão bem lembrada por Collinson (2006COLLINSON, Patrick. 2006. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva., pp. 31-32). Febvre, no mesmo registro, adverte-nos de que:

Há que evitar ver no Contra conscientiam agere de Worms a proclamação solene, diante do Velho Mundo, daquilo que denominamos liberdade de consciência ou de pensamento. Lutero nunca foi um ‘liberal’: o termo em si, pronunciado em relação a ele, fede a anacronismo. […] Não pretendia defender a tese de que cada um deve dispor livremente de suas faculdades, nem proclamar os direitos da razão humana sobre o dogma. Tencionava, ao contrário, submeter razão e consciência à única autoridade que reconhecia. Não a buscava fora de si mesmo, como um católico se refere à Igreja, à tradição, à autoridade. Encontrava-a dentro de si. Era essa Palavra de Deus que ele concebia como força viva; essa palavra de Deus, criadora, em cada um de nós, de uma necessidade mais forte que todas as imposições. (Febvre, [1928] 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 203-4)

A liberdade religiosa é, no fundo, o direito ao erro: o direito de professar uma fé mesmo e principalmente se a outrem essa fé pareça errada. Não há, em Lutero, a afirmação do direito abstrato de professar a fé que nos parece mais convincente, contra o entendimento de qualquer outro agente. “A liberdade de consciência [para Lutero] deve ser respeitada pela autoridade secular não porque seja um ‘direito subjetivo’ para decidir questões éticas de acordo com a própria consciência” (Forst, 2003FORST, Rainer. 2003. Toleration in Conflict. Cambridge: Cambridge University Press ., p. 120, acréscimo nosso). Em Lutero, não há defesa do direito ao erro, há uma investida contra o erro. “O que se deve respeitar não é a liberdade subjetiva de consciência, mas a possibilidade de ser cingido por Deus. Apenas Deus pode mostrar o caminho para os céus. Apenas ele, e não imperadores, pode governar almas” (Forst, 2003FORST, Rainer. 2003. Toleration in Conflict. Cambridge: Cambridge University Press ., p. 120). A Igreja Católica promove uma interpretação deturpada e pervertida do cristianismo e essa versão prevalece apenas porque a agência que a promove dispõe de poder coercitivo. Uma vez que lhe seja retirado o poder de coerção, a versão correta terminará por prevalecer, levando inclusive a conversões dos que que resistem ao cristianismo (Lutero pensa sobretudo nos judeus). A esperança de Lutero, que evidentemente não se cumprirá, não é assegurar o direito ao erro de acordo com a preferência do indivíduo: é desarmar a Igreja errada para que a verdade triunfe. Essa investida se faz contingentemente em nome da consciência do Reformador, não em nome da liberdade de consciência em geral. No seu livro clássico (e já antigo) sobre o pensamento político do século XVI, Allen vai pelo mesmo caminho:

Lutero não afirmava que qualquer um tem o direito de desobedecer a autoridade em nome de qualquer crença que se possa eventualmente ter. Ele declarava apenas que a verdade deveria, a todo custo, ser afirmada e defendida. Quanto a essa afirmação, ele nunca vacilou. A questão de até que ponto crenças errôneas deveriam ser toleradas era, para ele, uma questão inteiramente diferente. A distinção não era em última instância sustentável; mas em sua mente, era absoluta. (Allen, 2012ALLEN, John William. [1928] 2012. A History of Political Thought in the Sixteenth Century. Montana: Literary Licensing., p. 20)

A mais recente biógrafa de Lutero faz coro a Forst e a Allen: o apelo de Lutero à consciência “Não tinha nada a ver com a ideia de deixar as pessoas seguirem a sua própria consciência; significava nossa capacidade de conhecer com Deus, um conhecimento que ele acreditava ser uma verdade objetiva” (Roper, 2020ROPER, Lyndal. 2020. Martinho Lutero - Renegado e Profeta. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 431) Nesse sentido específico, alguém pode argumentar que Lutero não demanda mais liberdade religiosa. Como diz Butterfield, ao apontar os erros que a autoridade religiosa promovia, ele se ressente do excesso de liberdade religiosa (1977BUTTERFIELD, Herbert. 1977. Toleration in Early Modern Times. Journal of the History of Ideas, v. 38, n. 4, pp. 573-584., p. 574).

Não há, então, individualismo ético, nem demanda por liberdade de consciência. Lutero e Calvino não almejavam a “emancipação da mente e comunicação desimpedida do conhecimento” (Collinson, 2006COLLINSON, Patrick. 2006. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva., p. 230) e tampouco parecia remotamente provável que o fizessem (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 230). Quanto à incipiente formulação por liberdade religiosa esboçada em Da autoridade secular, ela prontamente se dilui na marcha dos acontecimentos e na crescente dependência da reforma do poder secular e esse fio é deixado solto, sendo retomado apenas no século seguinte. O que há então de moderno de Lutero?

Uma das possíveis respostas está na “privatização” da interpretação das Escrituras. Com o seu exemplo, Lutero abriu as portas para formas personalizadas do cristianismo e, com isso, para o dissenso. Como diz Wolfgang Wielan (atribuindo tal ideia a Heine), “[…] foi Lutero quem concedeu à razão humana o direito de explicar a Bíblia, independentemente de toda autoridade. A filosofia alemã é apenas um fruto tardio da liberdade de pensamento assim conquistada” (Wieland, 1991WIELAND, Wolfgang. 1991. Posfácio. In: HEINE, Heinrich. Contribuição à História da Religião e Filosofia na Alemanha. São Paulo: Iluminuras., p. 135). Se ele está certo, a modernidade para a qual se fechou a porta entrou pela janela.57 57 Podemos perfeitamente aplicar a Lutero os versos que Paulo Mendes Campos dedicou a Montaigne: desejando ser ¨herdeiro dos antigos”, foi também “ancestral dos modernos” (Campos, 2022, p. 25).

De Maistre certamente é um destemperado em suas diatribes contra Lutero, que não é um desordeiro: poucos foram tão amigos da ordem e da autoridade quanto o reformador. O consenso, no entanto, nunca mais foi possível depois dele, e essa ausência é um pilar do mundo moderno.

Referências

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  • ZACHHUBER, Johannes. 2017. Martin Luther and Modernity, Capitalism, and Liberalism. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Religion.
  • 1
    Ver por exemplo o artigo de opinião de Mehdi Hasan no jornal britânico The GuardianHASAN, Mehdi. May 17. 2015. Why Islam doesn’t need a Reformation. The Guardian, London. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/4a1KRX0 . Acesso em: 30 nov. 2023.
    https://bit.ly/4a1KRX0...
    : https://bit.ly/4a1KRX0
  • 2
  • 3
    Todas as traduções de citações em língua estrangeira foram feitas pelo autor.
  • 4
    Não desconhecemos nem negamos a presença de atores e doutrinas pró-tolerância desde muito cedo, no processo da Reforma. Henry Kalven menciona vários exemplos em seu já aludido livro The Rise of Toleration (com as respectivas páginas entre parentes): podemos falar de Hubmaier, o anabatista que escreveu contra a queima de hereges em 1524. Ou os fundadores da fé menonita, Menno Simons e David Joris, que diziam que um sinal da “verdadeira igreja” é ser perseguida, não perseguir. Ou ainda Sebastião Castellio, que polemizou e rompeu com Calvino e Beza quando Genebra queimou Miguel de Servet por heresia. Ou o italiano Faustus Socinus (Sozzini), que emprestou aos Unitários radicais o nome de socinianos (85). Podemos mencionar ainda o calvinismo liberal e heterodoxo que nasce na Holanda ainda no século XVI: num primeiro momento, havia apenas a voz solitária do pastor Hubert Duifhuis (1531-81), “cuja oposição à perseguição em matéria religiosa era absoluta”, como diz Kalven. No século XVII, a heterodoxia toma corpo e se torna uma corrente influente no interior do calvinismo, encontrando em Simon Episcopius (1583-1643) um defensor da liberdade religiosa. G. R. Elton menciona ainda a Shwenckfeld, cujo “individualismo” em matéria religiosa o levava a rejeitar igrejas institucionalizadas, e o levou a romper inclusive com os anabatistas. Por essa razão, diz Elton, a posteridade o transformou num defensor avant la lettre da tolerância reliogosa (Elton, [1963] 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 57). De qualquer forma, o mesmo autor afirma que na segunda metade já circulava “propaganda séria” em favor da tolerância (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 15).
  • 5
    Um clássico (e dramático) exemplo dos tantos casos de conflito medieval de jurisdições foi o choque entre o Papa Bonifácio VIII e o rei Felipe, o Belo, de França (Felipe IV). Ver a informativa introdução de J. A. Watt (1971)WATT, J. A. 1971. Introduction. In: JOÃO DE PARIS. On Royal and Papal Power . Toronto: The Pontifical Institute of Mediaeval Studies . ao tratado On Royal and Papal Power [De potestate regia et papali], escrito por João de Paris no início do século XIV (provavelmente em 1302JOÃO DE PARIS. [c. 1302] 1971. On Royal and Papal Power. Toronto: The Pontifical Institute of Mediaeval Studies.) em defesa do rei francês.
  • 6
    A despeito, claro, de Lutero, como notamos logo abaixo, jamais ter pretendido ser um filósofo político.
  • 7
    As respectivas obras estão nas referências deste artigo: Sabine (1994)SABINE, George H. [1937] 1994. Historia de la teoría política. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica . e Wolin ([1960] 2004)WOLIN, Sheldon. [1960] 2004. Politics and Vision. Princeton: Princeton University Press..
  • 8
    Skinner (1978)SKINNER, Quentin. 1978. The Foundations of Modern Political Thought: The Age of Reformation. Cambridge: Cambridge University Press . v. 2.; Forst (2003)FORST, Rainer. 2003. Toleration in Conflict. Cambridge: Cambridge University Press ..
  • 9
    G.R Elton calcula que, ao longo de trinta anos, e levando em conta livros, panfletos e pequenos textos, Lutero tenha escrevido uma obra a cada quinze dias, em média (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 3). O mesmo número é mencionado por Patrick Collinson (Collinson, 2006COLLINSON, Patrick. 2006. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva., p. 49). A edição-padrão das obras de Lutero preenche quase cem grossos volumes.
  • 10
    O que não quer dizer, naturalmente, que ele não tivesse uma teologia coerente (ao menos em seus aspectos fundamentais). Lucien Febvre, por exemplo, afirma que, no que toca à fé, isto é, na estrutura teológica, não há “verdadeira ruptura” entre o Lutero de 1520 e o do pós-1525 (2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 16), há uma coerência que perdura ao longo da vida do Reformador, a despeito de outras marcações temporais na sua vida e na sua obra.
  • 11
    Se é de registro psicologizante que estamos a falar: na sua biografia de Bach, John Eliot Gardiner refere-se ao luteranismo como o resultado “de uma crise psicológica de um monge profundamente neurótico que encontrou a paz ao entregar seu problema para Cristo”. Nesse sentido, o contraste com a natureza “sistemática e intelectual” do calvinismo (afinal, o fundador era um advogado, brinca Gardiner) não podia ser maior (2015GARDINER, John Eliot. 2015. Bach - Music in the Castle of Heaven. New York: Vintage., pp. 34-35).
  • 12
    Num artigo de 2020WACHHOLZ, Wilhelm. 2020. A Reforma , Lutero e os Anabatistas: Intolerância religiosa? Caminhos, v. 18, pp. 272-288., o teólogo luterano brasileiro Wilhelm Wachholz apresenta a intolerância de Lutero para com os anabatistas (crescente ao longo da sua vida) como caso exemplar do percurso do reformador com relação à tolerância tomada de forma mais ampla (ver referências bibliográficas). Agradeço a um dos pareceristas anônimos por me chamar a atenção para a obra de Wachholz, razão pela qual cheguei ao artigo mencionado.
  • 13
    A Guerra dos Camponeses começou na Floresta Negra em 1524, espalhou-se primeiro pelo sul, depois pelo centro e chegou ao norte da Alemanha em 1525. O movimento chacoalhou cerca de um terço do território europeu onde se falava alemão (Rieth, 1996RIETH, Ricardo. 1996. A Reforma e a Guerra dos Camponeses. In: LUTERO, Martinho. Martinho Lutero: obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal . v. 6. pp. 276-83., p. 274). O nome convencional induz a erro, porque não se tratou de um movimento estritamente camponês. A liderança do movimento era constituída principalmente por artesãos (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 33). Como nota Rieth (1996RIETH, Ricardo. 1996. A Reforma e a Guerra dos Camponeses. In: LUTERO, Martinho. Martinho Lutero: obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal . v. 6. pp. 276-83., p. 273), o termo “guerra” tampouco é muito exato: o movimento foi mais uma revolta ou levante do que propriamente uma guerra.
  • 14
    Devo esta periodização da biografia de Lutero a Lucien Febvre (2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., pp. 11-2). De qualquer forma, a percepção de 1525 como um ano crucial e bifurcador no pensamento de Lutero é onipresente na bibliografia especializada, além de ter raízes firmes na própria tradição luterana. De acordo com Hillerbrand, a dicotomia entre um jovem Lutero (pré-1525) e um Lutero velho (pós-1525) teve uma primeira expressão no livro Unpartheyische Kirchen - und Ketzer - Historie, de Gottfried Arnold, publicado em 1699. Num contexto de disputas teológicas entre “pietistas” e o establishment luterano, os primeiros apelavam para “jovem” Lutero -os textos de antes de 1525- para sustentar suas próprias posições teológicas, contra o “velho” Lutero (Hillerbrand, 2003HILLERBRAND, Hans J. 2003. The legacy of Martin Luther. In: MCKIM, Donald K. (org.). The Cambridge Companion to Martin Luther . Cambridge: Cambridge University Press ., p. 233). Para mais informações sobre o movimento pietista luterano e seu conflito com a ortodoxia, ver Gardiner, 2015GARDINER, John Eliot. 2015. Bach - Music in the Castle of Heaven. New York: Vintage., p. 33.
  • 15
    No original: “Von weltlicher Oberkeit”.
  • 16
    Por exemplo, Collinson, 2006COLLINSON, Patrick. 2006. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva., p. 173.
  • 17
    Lutero e Calvino (2005)LUTERO, Martinho; CALVINO, João. 2005. Sobre a autoridade secular. São Paulo: Martins Fontes.. Esclarecemos que não foi esta a edição citada neste trabalho.
  • 18
    “O martírio de Servetus sedimentou a reputação de Calvino como líder intolerante” (Kamen, 1967KAMEN, Henry. 1967. The Rise of Toleration. London: Weidenfeld and Nicolson., p. 76).
  • 19
    Mitchell destaca a importância desse movimento para o pensamento político, ao criar um vácuo de justificativa do poder temporal, abriu o caminho para uma ética política eminentemente secular (Mitchell, 1992MITCHELL, 1992. Joshua. Protestant Thought and Republican Spirit: how Luther enchanted the World. American Political Science Review, v. 86, n. 3, pp. 688-695., pp. 688-689).
  • 20
    Mitchell, no mesmo sentido: “O governo secular abrange vida e propriedade, mas sobre a alma ele não tem domínio; crença e descrença são matéria de consciência, não de poder” (Mitchell, 1992MITCHELL, 1992. Joshua. Protestant Thought and Republican Spirit: how Luther enchanted the World. American Political Science Review, v. 86, n. 3, pp. 688-695., pp. 690-691). De qualquer modo, Lutero não se empenha muito na definição de ambos os domínios, e talvez seja fácil apontar certa fragilidade conceitual ali. Mas a própria coerência da ideia de separação é fragilizada pelo Reformador, quando afirma que “a religião não é uma esfera da vida […]” mas “pertence a todas as esferas da vida”? (Höpfl, 1991HÖPFL, Harro. 1991. Introduction. In: HÖPFL, Harro. Luther & Calvin on secular authority. Cambridge: Cambridge University Press , 1991., p. xiii). Podemos perguntar-nos também até que ponto a o conhecido desdém de Lutero pela existência de um clero especializado e separado do restante dos fiéis (o “sacerdócio universal” dos fiéis tornar-se-ia um ponto importante da doutrina luterana) não contribui para enfraquecer a separação funcional das esferas.
  • 21
    Esta dicotomia aparece em diversas obras de Lutero, mesmo as anteriores ao rompimento com Roma (que fica claro apenas em 1520), e provavelmente é mesmo uma marca agostiniana no Reformador (lembramo-nos de que Lutero era, no final das contas, um monge da ordem agostiniana). Veja-se por exemplo, esta passagem de “Explicação do Pai Nosso”, fruto de uma série de sermões proferidos em latim na Quaresma de 1517 e publicados posteriormente (em 1519) em alemão e em versão editada: “Importa saber que há dois reinos. O primeiro é o reino do Demônio. No Evangelho, Nosso Senhor chamou-lhe o Príncipe ou o Rei deste mundo. Contudo, para os crentes, deve ser uma grande miséria e uma prisão […] O Segundo Reino é o Reino de Deus, isto é, o Reino da justiça e da verdade aque Cristo se refere: Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça” (Lutero, [1519] 1990LUTERO, Martinho. [1519] 1990. Explicação do Pai Nosso. Lisboa: Edições 70., pp. 36-38).
  • 22
    Joshua Mitchell refere-se ao “êxito da luta ansiosa de Lutero e outros reformadores para descobrir e proclamar novamente, como Agostinho uma vez o fizera, a distinção entre os reinos carnal e espiritual” (Mitchell, 1992MITCHELL, 1992. Joshua. Protestant Thought and Republican Spirit: how Luther enchanted the World. American Political Science Review, v. 86, n. 3, pp. 688-695., p. 689). Contudo, o agostinianismo está mais na estrutura dicotômica e na semântica do que no conteúdo dos respectivos domínios. Como lembra Zachhuber (citando o teólogo luterano do século XIX Albrecht Ritschl), Agostinho identificava o Reino de Deus com a Igreja, vista como uma instituição pareada com o poder secular. Os Reformadores identicaram a Igreja como a comunidade dos fiéis, o poder secular como uma instituição “chancelada pelo Poder Divino” e a justiça civil como um “bem moral positivo” (Zachhuber, 2017ZACHHUBER, Johannes. 2017. Martin Luther and Modernity, Capitalism, and Liberalism. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Religion., p. 9).
  • 23
    Veja-se que embora faltem as qualidades do político ao mundo espiritual, o mundo secular não é destituído de vínculos com o mundo espiritual: este mundo não se emancipou do outro. Em outras palavras: continua encantado. Assim, a distinção espiritual-carnal não equivale nem se superpõe ao par encantado-desencantado Na interessante interpretação oferecido por Mitchell, o poder secular é justificado com base no pacto de Deus-Pai com Israel, na Lei de Moisés, no Velho Testamento, que ainda se aplicaria aos ímpios. A espada secular (a qual não é justificada secularmente, portanto) é necessária para manter os filhos do mundo em ordem. Mas há o poder espiritual, estabelecido pelo Novo Testamento. Deus-Pai é poder, e Deus-Filho é espírito (Mitchell, 1992MITCHELL, 1992. Joshua. Protestant Thought and Republican Spirit: how Luther enchanted the World. American Political Science Review, v. 86, n. 3, pp. 688-695., pp. 689-691). Rainer Forst, no mesmo sentido, afirma que, em Lutero, a despeito da separação das esferas, o poder secular “permanece ancorado numa ordem divina abrangente […], mas, por outro lado, torna-se uma instituição independente que é indiretamente dotada de autoridade divina (no seu próprio domínio)”(Forst, 2003FORST, Rainer. 2003. Toleration in Conflict. Cambridge: Cambridge University Press ., p. 121).
  • 24
    O conhecimento a respeito de quem está salvo e quem está condenado, no entanto, não é autoevidente nem público, mas um segredo conhecido apenas por Deus. Por essa razão, diz Elton, ninguém pode ser excluído da comunhão com a Igreja, a menos como punição por ter cometido um pecado público e grave. Elton afirma ainda que a excomunhão nunca foi uma questão muito importante no luteranismo (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 32).
  • 25
    A imagem da “verdadeira igreja” como invisível e etérea é não deixa de servir de contraponto à pesada institucionalidade da Igreja Católica. Febvre capta o contraste imagético: “A Igreja cujo conceito ele define em 1520, após alguns tateios prévios, não é uma ampla e poderosa organização como a Igreja romana, instituição secular que, agrupando-se em dioceses todos os homens que receberam o batismo, impõe-lhes a autoridade de padres consagrados, predicadores de um credo dogmático e moedeiros de graças pelo mágico canal dos sete sacramentos. Tudo isso com apoio dos poderes temporais. A essa igreja visível, e, digamos, maciça, Lutero, opõe sua verdadeira igreja: a Igreja invisível. Composta apenas daqueles que vivem a verdadeira fé, daqueles que, crendo nas mesmas verdades, sensíveis aos mesmos aspectos da divindade, esperando as mesmas beatitudes celestes, encontram-se unidos não por laços externos de uma submissão meramente militar ao papa, e sim por laços íntimos e secretos que tecem, de coração a coração, de espírito a espírito, uma comunhão profunda dentro das alegrias espirituais” (Febvre, 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., pp. 184-5).
  • 26
    Na sua ira despertada pela Revolta dos Camponeses, Lutero censurava aos revoltosos a falta de entendimento do que era a liberdade cristã. Acusava-os de “confundir os dois reinos” (Collinson, 2006COLLINSON, Patrick. 2006. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva., p. 202; Forst, 2003FORST, Rainer. 2003. Toleration in Conflict. Cambridge: Cambridge University Press ., p. 122; Elseroad, 1979ELSEROAD, Richard. 1979. Luther’s Atitude Toward Religious Toleration in Light of his Two Kingdom Doctrine. Masters of Divinity. Saint Louis: Concordia Seminary., p. 24).
  • 27
    Mais tarde, nas conversas à mesa com seus alunos, Lutero “se revela de modo mais brutal: ‘Os príncipes do mundo, deuses; o vulgo, Satã.’ Como, então, se revoltar? Quem ousaria? Em nome de quê? Não, não, ‘mais vale os tiranos cometerem mil injustiças contra o povo, do que o povo, uma única injustiça contra os tiranos’” (Febvre, [1928] 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 290). Febvre retira esta passagem das “Tischreden” (Lutero, [1566] 2016LUTERO, Martinho. [1566] 2016. Tischreden - Vom Einfachen und Erhabenen. Viesbade: Marizverlag.), isto é, coletâneas de anotações de seus alunos das conversas que mantinham com o mestre à mesa. Embora bem estabelecidas como fonte na tradição luterana, têm status epistêmico um pouco mais incerto do que os textos publicados pelo próprio reformador.
  • 28
    Evidentemente, o termo só pode ser usado com muitas aspas. Estamos de acordo com Mitchell neste ponto: “A definição weberiana de poder político como ‘o monopólio do uso legítimo da violência num dado território’ pode parecer-nos axiomática, hoje; mas a ideia teria parecido absurda a Lutero (nós tendemos a sequer considerar isto como uma dificuldade teórica). Lutero diria que a visão weberiana só poderia assemelhar-se a húbris e que é anticristã - a que Weber responderia enfaticamente ‘Sim’” (Mitchell, 1992MITCHELL, 1992. Joshua. Protestant Thought and Republican Spirit: how Luther enchanted the World. American Political Science Review, v. 86, n. 3, pp. 688-695., p. 692).
  • 29
    “Os hereges deveriam ser vencidos com escritos, como fizeram os antigos pais, e não com fogo. Se vencer hereges com fogo fosse sinônimo de conhecimento, os carrascos seriam os mais cultos doutores sobre a terra; tampouco teríamos necessidade de estudar, mas quem vencesse o outro por meio da força poderia queimá-lo” (Lutero, [1520] 1992LUTERO, Martinho. [1520] 1992. À Nobreza Cristã da Nação Alemã, acerca da Melhoria do Estamento Cristão. In: Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal . v. 2., p. 326).
  • 30
    De acordo com Roper, autora de uma biografia recente e festejada de Lutero, Jorge, o Duque da Saxônia Ernestina, era inicialmente simpático à Reforma, mas mudou de ideia depois de Lutero deixar-lhe uma péssima impressão por ocasião do debate com o católico Eck em Lípsia (ou Leipzig). “A oposição em relação à Reforma do primo do Eleitor e dirigente da outra metade da Saxônia foi um problema constante para Lutero, até a morte do Duque em 1539” (Roper, 2020ROPER, Lyndal. 2020. Martinho Lutero - Renegado e Profeta. São Paulo: Companhia das Letras ., p. 145).
  • 31
    A Reforma, escreve o teórico político Georges Sabine nos longínquos anos 30, “acelerou em conjunto a tendência, já existente, a aumentar e consolidar o poder das monarquias” (Sabine, [1937], 1994SABINE, George H. [1937] 1994. Historia de la teoría política. Ciudad de México: Fondo de Cultura Económica ., p. 282). É significativo que Quentin Skinner, em tantos aspectos tão distinto de Sabine e frequentemente oposto a ele, desta vez dele não divirja ao escrever que “a principal influência da teoria política luterana no início da Europa moderna está no encorajamento e na legitimação de monarquias unidas e absolutistas” (Skinner, 1978SKINNER, Quentin. 1978. The Foundations of Modern Political Thought: The Age of Reformation. Cambridge: Cambridge University Press . v. 2., p. 113).
  • 32
    No começo da década de 1530, príncipes protestantes criam uma aliança defensiva contra o Imperador e as Dietas, a Liga de Esmalcalda (ou Schmalkalden) Os integrantes da Liga acordavam assistência militar recíproca no caso de qualquer deles ser atacado “a propósito da Palavra de Deus e da Doutrina do Evangelho” (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 104). Como conciliar este gesto de desafio com a doutrina luterana da obediência? Lutero relativiza a ideia de obediência devida ao Imperador. Em caso de conflito entre o Império e o magistrado local, era o governante territorial quem tinha de ser obedecido (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 121).
  • 33
    Por vezes, Lutero parece muito autoconsciente dos efeitos que estava provocando: “‘Nosso ensinamento’, exclama ele, orgulhoso, em 1525, ‘deu à soberania secular a plenitude do seu direito e poder, realizando assim o que os papas nunca haviam feito nem desejavam fazer’” (Febvre, [1928] 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 290). Febvre não especifica de onde recolheu esta citação. Para o teórico político minimamente familiarizado com a história do conceito de Soberania, esta passagem - também citada por Febvre- é nada menos que fascinante: “Os príncipes, todos os príncipes são seus [de Deus] ajudantes. São deuses, e Lutero não espera por Bossuet para dizê-lo: ‘Os superiores são denominados deuses’, escreve ele em 1527, ‘em consideração a sua função, porque fazem as vezes de Deus e são ministros de Deus’” (Febvre, [1928] 2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 290. A frase de Lutero tem outra vez origem não especificada).
  • 34
    Com isso, Lutero estava na ilegalidade pela decisão de ambas as espadas, a temporal e a espiritual. A Dieta de Espira (ou de Speyer), em 1529, reiterou o Édito de Worms, mantendo a proscrição de Lutero e seus seguidores. Se o Imperador Carlos V se mostrou um duro oponente da Reforma, Lutero pôde contar com o apoio de Frederico, apodado “o Sábio”, eleitor da Saxônia, um dos sete eleitores que escolhiam o Imperador. Frederico nunca se converteu ao luteranismo (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 32). A ele Lutero paga “tributo oblíquo” (Höpfle, 1991HÖPFL, Harro. 1991. Introduction. In: HÖPFL, Harro. Luther & Calvin on secular authority. Cambridge: Cambridge University Press , 1991., p. 7) em “Da autoridade secular”. Para mais detalhes sobre a estrutura política e outros detalhes do Império à época, ver Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., pp. 8-15.
  • 35
    Por vezes, a Reforma foi um puro ato de Estado, ação estratégica respondendo a razões de Estado. Estamos de acordo com Hillerbrand quando afirma que este parece ter sido não apenas o caso mais conhecido da Inglaterra, mas também o da Suécia. A monarquia sueca “estava pouco interessada em questões teológicas mas percebeu astutamente que a turbulência política lhe permitira confiscar a propriedade da Igreja e comprometer o seu poder político. (Hillerbrand, 2003HILLERBRAND, Hans J. 2003. The legacy of Martin Luther. In: MCKIM, Donald K. (org.). The Cambridge Companion to Martin Luther . Cambridge: Cambridge University Press ., p. 237).
  • 36
    Esclareço que Wolin refere-se aqui tanto a Lutero quanto a Calvino.
  • 37
    Albrecht Classen ressalta o contraste entre o olhar amigável de Lutero para o judaísmo no começo dos anos de 1520 e o agudo antissemitismo que o Reformador abraçou posteriormente (Classen, 2018CLASSEN, Albrecht. 2018. Toleration, Tolerance, or Intolerance in the Works of the Young Martin Luther - The Issue with Jews in Early Sixteenth-Century Christian World View. Humanities and Social Science Research, v. 1, n. 1, pp. 9-20., pp. 15-16). O tema do antissemitismo em Lutero é ao mesmo tempo um subcapítulo do nosso problema mais amplo da tolerância e uma questão que, por suas particularidades e consequências históricas e especificidades bibliográficas, expandiria este artigo já relativamente longo além dos limites do razoável. Por isso, consideramos que é um tema para ser tratado em separado, em outro texto, e aqui, limitamo-nos a mencioná-lo en passant. A bibliografia sobre o assunto é extensa; de qualquer forma, a eventuais interessados no assunto, recomendamos, como ponto de partida, além do referido artigo de Classen, o capítulo 18 da recente bibliografia de Lutero escrita por Lauren Roper, e um artigo de 1993 do prof. Walter Altmann, que ilustra e exemplifica textualmente a “perturbadora” mudança do pensamento de Lutero “de uma posição simpática aos judeus para uma posição francamente agressiva para com eles” (Altmann, 1993ALTMANN, Walter. 1993. Lutero - Defensor dos Judeus ou Anti-Semita? Exercícios a partir de Textos de Lutero. Estudos Teológicos, v. 33, n. 1, pp. 74-82., p. 75). Também pode ser de interesse a esse eventual leitor o artigo de Diego Melo Carrasco (2020)MELO CARRASCO, Diego. 2020. Martín Lutero y el Prefacio del Corán de Bibliander. Revista Cultura y Religión, v. 14, n. 1, pp. 26-40. sobre o prefácio escrito por Lutero a uma edição europeia do Alcorão publicada em 1543. Como mostra Melo Carrasco, o prefácio é revelador da visão de Lutero não apenas sobre os muçulmanos, mas também sobre os judeus, esses dois “outros” da Europa.
  • 38
    As palavras “idealismo” e “ingenuidade” aprecem aqui e ali na bibliografia para qualificar o Lutero de antes de 1525.
  • 39
    Na sua recente biografia de Lutero, Lyndal Roper enfatiza 1525 como o ano de uma mudança de grandes consequências na vida pessoal de Lutero: foi o ano em que o reformador se casou com a ex-freira Katharina von Bora. Além de reafirmar performaticamente, por assim dizer, o rompimento com o catolicismo, o casamento do ex-monge com uma ex-freira causou escândalo no movimento reformista e inflamou ainda mais a ira católica (Roper, 2020ROPER, Lyndal. 2020. Martinho Lutero - Renegado e Profeta. São Paulo: Companhia das Letras .).
  • 40
    Elton afirma que os revoltosos acreditavam que Lutero, com seus ataques a “monges e a padres gordos” tinha chamado à ação (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 34). Febvre afirma que Lutero foi “evocado” “pelas duas facções” “desde o início” (2012FEBVRE, Lucien. [1928] 2012. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Três Estrelas., p. 262).
  • 41
    O verbete “Tolerância”, do Dicionário de Lutero, menciona a “postura” crescentemente intolerante do reformador “em meados da década de 1520”, em reação aos camponeses que “legitimaram sua revolta com argumentos da Reforma” (Schneider-Ludorff, 2021SCHNEIDER-LUDORFF, Gury . 2021. Tolerância. In: LEPPIN, Volker ; SCHNEIDER-LUDORFF, Gury (ed.). Dicionário de Lutero . São Leopoldo: Sinodal . pp. 1085-88., p. 1086).
  • 42
    Lutero reage com fúria, escrevendo um virulento panfleto contra os envolvidos na rebelião: “Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses” (Lutero, [1525] 2016). Os rebelados são chamados pelo reformador de “cachorros loucos” (p. 332), “assassinos infiéis, desobedientes, perjuros e rebeldes, assaltantes e blasfemadores (p. 334), que merecem “a morte múltiplas vezes, tanto do corpo como da alma” (p. 332). Ele exorta as autoridades a reprimir duramente os revoltosos: “Aqui é hora de espada e de ira, e não hora de misericórdia” (p. 335). Essa linguagem tornou-se ainda mais chocante pelo fato de que o panfleto acabou sendo publicado apenas depois da derrota dos revoltosos, “quando os senhores cometiam atrocidades com os prisioneiros que julgavam em seus tribunais militares” (Reith, 1996RIETH, Ricardo. 1996. A Reforma e a Guerra dos Camponeses. In: LUTERO, Martinho. Martinho Lutero: obras selecionadas. São Leopoldo: Sinodal . v. 6. pp. 276-83., p. 281).
  • 43
    “A guerra deu munição a críticos católicos da Reforma que viam no movimento como subversivo” (Edwards Jr. 2003EDWARDS Jr., Mark. 2003. Luther’s polemical controversies. In: MCKIM, Donald K. (org.). The Cambridge Companion to Martin Luther. Cambridge: Cambridge University Press., p. 196).
  • 44
    “[…] não pode haver coisa mais venenosa, prejudicial e diabólica do que uma pessoa rebelada”, escreve ele em “Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses” (Lutero, 1996bLUTERO, Martinho. [1525] 1996b. Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses. in: Obras Selecionadas . São Leopoldo: Sinodal . v. 6., p. 333).
  • 45
    Enquanto os principais Reformadores adotavam uma perspectiva crescentemente “soberanista”, não nos parece despropositado enxergar certa tendência anarquizante entre as franjas radicais da Reforma, algo captado pelo uso da expressão “negação de toda autoridade” por Elton no trecho citado acima. Veja-se, por exemplo, a forma como o mesmo historiador descreve a crença dos primeiros anabatistas: o suíço Conrad Grebel entendia a Igreja como “uma comunidade de crentes […] que elegia seu próprio pastores […], que não teria nada a ver com as instituições deste mundo. Eles não teriam relação com a ‘espada’ (a autoridade civil), não deveriam portar armas, fazer juramentos e realizar os deveres de cidadãos ou compor o governo” (Elton, 1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 60). Collinson, no mesmo sentido: “espalhou-se um outro [modelo de Reforma], de não-conformismo sectário, que rejeitou a figura do magistrado, e até mesmo do Estado, que não teriam lugar no verdadeiro Cristianismo. Os partidários dessas ideias foram temidos e perseguidos sob o rótulo de ‘anabatistas’. Collinson também destaca as interdições cívicas que anabatistas se impunham: a oposição entre os “Schwertler” e os “Stäbler” (ou entre os portadores da espada e do cajado) foi persistente na doutrina anabatista (Collinson, 2006COLLINSON, Patrick. 2006. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva., pp. 100-101, acréscimo nosso).
  • 46
    “De Cracóvia a Vallodolid”, diz Elton (1999ELTON, Geoffrey Rudolph. [1963] 1999. Reformation Europe 1517-1559. Malden: Blackwell Publishers., p. 68).
  • 47
    Para uma apresentação da dimensão teológica do debate Erasmo-Lutero, ver: Nascimento 2006NASCIMENTO, Sidnei Francisco do. 2006. Erasmo e Lutero: o Livre-Arbítrio da Vontade Humana. Revista de Filosofia Aurora, v. 18, n. 23, pp. 89-103., 2019NASCIMENTO, Sidnei Francisco do. 2019. O Livre-Arbítrio, o Servo-Arbítrio e a Presciência Divina. Pensando - Revista de Filosofia, v. 10 n. 21, pp. 57-66..
  • 48
    A própria ideia de “Modernidade” é um tanto vaga e objeto de controvérsia, mas a exemplo de Zachhuber, podemos usá-la aqui para referir a uma distinta combinação de elementos como capitalismo, liberalismo, democracia e secularização (Zachhuber, 2017ZACHHUBER, Johannes. 2017. Martin Luther and Modernity, Capitalism, and Liberalism. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Religion., p. 1). Inclui, portanto, elementos como a tolerância e a liberdade de consciência.
  • 49
    Hegel é um dos grandes defensores da tese do Lutero moderno (Zachhuber, 2017ZACHHUBER, Johannes. 2017. Martin Luther and Modernity, Capitalism, and Liberalism. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Religion.): “[…] para Hegel o conceito que resume desenvolvimentos desde o século XVI é subjetividade. A virada para a subjetividade é mais do que uma ênfase no indivíduo ou na individualidade, embora a modernidade, de acordo com Hegel, acolha estas noções também. Subjetividade é a marca distintiva de uma era porque representa uma forma particular de os seres humanos assumirem sua posição no mundo. Na perspectiva subjetiva, a vida interior torna-se a arena de todos os aspectos da existência humana: o conhecimento torna-se um problema de cognição; a beleza é uma questão de prazer estético; a moralidade é uma qualidade da vontade, e assim por diante. Uma religião subjetiva, portanto, é uma religião baseada apenas na fé; ele tem em pouca conta ou rejeita, ritos e cerimônias externas” (Zachhuber, 2017ZACHHUBER, Johannes. 2017. Martin Luther and Modernity, Capitalism, and Liberalism. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Religion., p. 5).
  • 50
    Hillerbrand menciona que o entusiasmo iluminista por Lutero significativamente enfatiza o homem em detrimento da teologia: “O Iluminismo continuou a expressar entusiasmo por Martinho Lutero, exceto pelo fato de agora era um Lutero flagrantemente não-teológico que era saudado e louvado. O século XVIII pouco se importava com a inclinação teológica de Lutero, como sua noção de “Deus Escondido”, o Deus Abscondidus, mas via-o como um indivíduo talentoso e virtuoso, alguém que compunha canções natalinas e cantava-as com a famíia e amigos em torno da árvore de Natal, alguém que privou ser um guerreiro contra a superstição medieval, um defensor da liberdade religiosa e de consciência […]. Ele era o libertador da servidão, do coletivismo estrangeiro, do sobrenaturalismo da superstição, em resumo, o arauto e herói de uma nova era e o criador do espírito moderno. O significado histórico de Lutero é visto no seu desafio corajoso da superstição medieval e da intolerância, contra as quais ele apresentou suas próprias convicções derivadas da Bíblia. Lutero era, de acordo com um autor do século XVIII, ‘um verdadeiro anjo-guardião pelos direitos da razão, da humanidade e da liberdade cristã de consciência’” (Hillerbrand, 2003HILLERBRAND, Hans J. 2003. The legacy of Martin Luther. In: MCKIM, Donald K. (org.). The Cambridge Companion to Martin Luther . Cambridge: Cambridge University Press ., p. 234).
  • 51
    É significativo que, em 1518, nos primórdios da Reforma, ao editar uma obra mística medieval, Lutero tenha tido a preocupação de afirmar no prefácio que a obra comprovava que “a teologia de Wittenberg de nenhuma forma se desviava da tradição, mas que, bem pelo contrário, com ela coincidia” (Leppin, 2021LEPPIN, Volker. 2021. Theologia Deutsch. In: LEPPIN, Volker; SCHNEIDER-LUDORFF, Gury (ed.). Dicionário de Lutero. São Leopoldo: Sinodal., p. 1084).
  • 52
    Hillerbrand interpreta Troeltsch como alguém empenhado em desafiar a visão então prevalecente segundo a qual Lutero seria um campeão de “modernidade e proto-germanidade”. Daí chamar a atenção para elementos medievais na visão de mundo do Reformador (Hillerbrand, 2003HILLERBRAND, Hans J. 2003. The legacy of Martin Luther. In: MCKIM, Donald K. (org.). The Cambridge Companion to Martin Luther . Cambridge: Cambridge University Press ., p. 235).
  • 53
    Troeltsch destaca três componentes “medievalistas” nos reformadores do século XVI: em primeiro lugar, a visão da igreja como “instituição objetiva” e “justaposta ao mundo perdido no pecado original”; em segundo, a sacralização crescente da vida social (o contrário, portanto, do processo de secularização). Mesmo no terreno onde a oposição ao catolicismo era mais clara, que é o terreno doutrinário, Troeltsch enxergava continuidade: os problemas teológicos protestantes eram formulações medievais (como o próprio problema da justificação). (Zachhuber, 2017ZACHHUBER, Johannes. 2017. Martin Luther and Modernity, Capitalism, and Liberalism. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Religion., pp. 11-12).
  • 54
    Como o leitor deverá ter percebido pela frequência com que esta obra aparece nas referências, devemos boa parte desta seção ao magnífico artigo de Johannes Zachhuber, “Martin Luther and Modernity, Capitalism, and Liberalism” (2017ZACHHUBER, Johannes. 2017. Martin Luther and Modernity, Capitalism, and Liberalism. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Religion.). O autor contrasta a recepção da leitura do papel modernizante de Lutero em autores como Joseph de Maistre, Hegel, Albrecht Ritschl, Ernst Troeltsch Weber e Maritain, inter alia.
  • 55
    Maritain tinha o cuidado de observar que Lutero mesmo “não era um homem moderno” (Zachhuber, 2017ZACHHUBER, Johannes. 2017. Martin Luther and Modernity, Capitalism, and Liberalism. Oxford: Oxford Research Encyclopedia of Religion., p. 19) e, não chega, portanto ao anacronismo de ver nele um “liberal” (1929MARITAIN, Jacques. 1929. Three Reformers: Luther -Descartes - Rousseau. New York: Charles Scribner’s Sons., p. 46). De qualquer forma, a visão que Maritain tinha de Lutero pareceu-nos menos generosa e mais negativa do que esperávamos de um teólogo católico não conservador do século XX: enfatiza o “egocentrismo” do reformador, acusa-o de promover o “misticismo do self e da vontade” (1929MARITAIN, Jacques. 1929. Three Reformers: Luther -Descartes - Rousseau. New York: Charles Scribner’s Sons., p. 35) e de patrocinar uma filosofia extremamente centrada “na vontade e nos sentimentos”, ou seja, excessivamente marcada pelo que “afeta o sujeito” (1929MARITAIN, Jacques. 1929. Three Reformers: Luther -Descartes - Rousseau. New York: Charles Scribner’s Sons., p. 44).
  • 56
    O “Aqui fico” de Worms provavelmente é apócrifo, mas ele invocou a consciência: “A menos que provem que estou enganado por meio do testemunho das Escrituras ou por razões evidentes, minha consciência está vinculada e atrelada à Palavra de Deus […] Portanto não posso retirar coisa alguma, e não o farei, pois não é seguro nem salutar contrariar a própria consciência. Deus me ajude. Amém” (Collinson, 2006COLLINSON, Patrick. 2006. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva., p. 82).
  • 57
    Podemos perfeitamente aplicar a Lutero os versos que Paulo Mendes Campos dedicou a Montaigne: desejando ser ¨herdeiro dos antigos”, foi também “ancestral dos modernos” (Campos, 2022CAMPOS, Paulo Mendes. 2022. Poesia. São Paulo: Companhia das Letras., p. 25).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2022
  • Aceito
    02 Out 2023
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