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INTERNACIONALISMO REPUBLICANO E SOBERANIA GLOBALIZADA

REPUBLICAN INTERNATIONALISM AND GLOBALIZED SOVEREIGNTY

Resumo

O artigo concentra-se na análise do modelo normativo da soberania globalizada, concebido por Philip Pettit, com o objetivo de ampliar sua teoria neorrepublicana da liberdade como não dominação, originalmente desenvolvida para promover a liberdade dos cidadãos dentro das fronteiras nacionais para o âmbito internacional. Esse modelo, fundamentado no internacionalismo republicano e crítico tanto do cosmopolitismo (seja de orientação liberal ou republicana) quanto do não intervencionismo westfaliano, emerge como uma perspectiva promissora para a abordagem de questões teóricas acerca de justiça e legitimidade na ordem global contemporânea. No entanto, a plena realização das potencialidades desse modelo exige o enfrentamento de limitações decorrentes da insuficiência crítica em sua análise do papel desempenhado por Estados representativos e instituições internacionais. A parte final do artigo destaca essas limitações e sugere caminhos para sua superação.

Palavras-chave:
Teoria Política Internacional; Neorrepublicanismo; Internacionalismo Republicano; Soberania Globalizada; Philip Pettit

Abstract

This article analyzes the normative model of globalized sovereignty, defined by Philip Pettit, to further extend his neo-republican theory of freedom as non-domination, originally developed to promote citizens’ freedom within national borders into the international sphere. Based on republican internationalism and critical of both cosmopolitanism (whether liberal or republican) and Westphalian non-interventionism, this model emerges as a promising perspective for tackling theoretical issues related to justice and legitimacy in the contemporary global order. But the full realization of its potential requires addressing limitations stemming from its critical insufficiency in analyzing the role played by representative states and international institutions. Finally, the article highlights these limitations and suggests paths for overcoming them.

Keywords:
International Political Theory; Neo-republicanism; Republican Internationalism; Globalized Sovereignty; Philip Pettit

Introdução

A partir da segunda metade da década de 1990, sob a decisiva influência dos trabalhos do historiador Quentin Skinner (1999SKINNER, Quentin. 1999. A Liberdade antes do Liberalismo. São Paulo: Editora Unesp.) e do filósofo Philip Pettit (1997PETTIT, Philip. 1997. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford: Oxford University Press .), o programa de pesquisas do neorrepublicanismo progrediu aceleradamente em várias frentes da teoria política normativa e institucional contemporânea1 1 Para a caracterização do neorrepublicanismo como um programa de pesquisas de teoria política institucional e normativa, ver Lovett e Pettit, 2010. O presente artigo é resultado parcial de pesquisa mais ampla realizada com o apoio de bolsa de produtividade (nível 1D) do CNPq, a quem presto meus agradecimentos. . Iniciando-se como uma investigação histórica sobre o caráter distintivo do ideal de liberdade que remonta aos valores e instituições da antiga república romana, o neorrepublicanismo passou, em seguida, a mobilizar seu principal instrumento analítico e normativo, o conceito da liberdade como não dominação, em debates centrais sobre temas que vão do constitucionalismo à teoria democrática, da economia política à teoria da justiça, da legislação criminal à legislação trabalhista. Tão intensa tem sido a repercussão desse programa de pesquisas que uma crítica moderada do neorrepublicanismo chegou a afirmar que “a teoria neorromana da liberdade como não dominação adquiriu um status de liderança na ciência política e redesenhou a geografia dos estudos políticos” (Urbinati, 2012URBINATI, Nadia. 2012. Competing for liberty: the republican critique of democracy. American Political Science Review, v. 106, n. 3, pp. 607-621. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/23275436 . Acesso em: 15 set. 2016.
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, p. 607).

Um dos mais recentes desdobramentos dessa expansiva vaga neorrepublicana vem ocorrendo no campo de estudos das relações internacionais. A despeito da teoria política internacional permanecer sob o inegável predomínio de abordagens tributárias do realismo estatista e do liberalismo cosmopolita, o neorrepublicanismo tem, principalmente na última década, se apresentado como como uma nova perspectiva para o equacionamento teórico de questões de segurança, justiça e legitimidade em escala internacional, transnacional e global. O presente artigo tem o objetivo de intervir nesse debate por meio de um exame do modelo normativo da “soberania globalizada”, formulado por Philip Pettit como alternativa às abordagens dominantes. Trata-se da tentativa do principal teórico do republicanismo contemporâneo de expandir para o âmbito da política global sua teoria neorromana da liberdade como não dominação, tipicamente articulada para compreender e promover a liberdade dos cidadãos no âmbito doméstico.

O artigo organiza-se em quatro seções. A primeira apresenta o que denomino como a dupla dimensão da teoria neorromana da liberdade, destacando a indissociável conexão entre a liberdade dos cidadãos no interior de um Estado e a liberdade do próprio Estado na arena externa. A segunda seção apresenta a alternativa entre as perspectivas cosmopolita e internacionalista no neorrepublicanismo. A terceira seção discute os princípios e a arquitetura do modelo internacionalista articulado por Pettit, partindo de sua rejeição aos extremos da soberania autorreferenciada, típica do não intervencionismo da ordem westfaliana, e da declaração de caducidade das soberanias nacionais, própria do cosmopolitismo de persuasão liberal ou mesmo republicana. A quarta seção conclui indicando ao menos dois sérios limites do modelo da soberania globalizada, os quais, a meu ver, dificultam o próprio objetivo de Pettit de expansão do ideal da não dominação em escala global. A atenção aqui concentra-se em dois pontos: 1) em sua proposta de incluir somente os “Estados representativos” como participantes plenos, protagonistas exclusivos, da soberania globalizada; 2) em seu excessivo otimismo em relação ao potencial das instituições internacionais e do direito internacional para operar no sentido da não dominação dos povos de Estados ineficazes ou opressivos.

As duas dimensões da liberdade republicana

Em seus estudos sobre a história da liberdade republicana, Quentin Skinner definiu com clareza o caráter do que ele denominou de teoria neorromana dos Estados livres. A teoria em questão concebe a liberdade em uma dupla dimensão, uma externa e outra interna. Ou seja, a liberdade decorre da independência de um Estado em relação aos demais e da ausência de dominação no interior do próprio Estado. Assim, segundo Skinner, os republicanos indicam que há duas possibilidades de um corpo político perder a capacidade de agir conforme sua própria vontade, perdendo com isso a condição de Estado livre:

uma é quando o poder do Estado passa para o controle de qualquer agente que não seja o corpo soberano dos cidadãos, seja o agente usurpador um monarca, uma oligarquia ou uma classe dominante. A outra possibilidade é o Estado cair na condição de dependência da vontade de um outro Estado, como resultado de conquista, colonização ou qualquer outro processo que tem o efeito de ignorar a vontade dos cidadãos como a fonte da lei. (Skinner, 2010SKINNER, Quentin. 2010. On the slogans of republican political theory. European Journal of Political Theory , v. 9, n.1. DOI: 10.1177/1474885109349407
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, p. 99)2 2 Todas as traduções das citações em língua estrangeira são de minha livre autoria.

Elaborada originalmente por historiadores e moralistas do último século da república romana, e codificada, no século VI, no Digesto de direito romano, a referida teoria definia a pessoa livre como aquela que vive sob sua própria jurisdição ou direito, fora da esfera de dominação de terceiros. O contraste absoluto à figura do homem livre (liber homo) era representado pela figura do escravo, “alguém cuja ausência de liberdade deriva do fato de estar ‘sujeito à jurisdição de alguém mais’ e estar consequentemente ‘dentro do poder’ de uma outra pessoa”, como observa Skinner, mobilizando os termos do Digesto (Skinner, 1999SKINNER, Quentin. 1999. A Liberdade antes do Liberalismo. São Paulo: Editora Unesp., p. 43).

É saliente a conotação jurídica nesse modo de compreender o estatuto de pessoa livre. A liberdade à qual se referiam as fontes romanas da antiguidade só poderia ser assegurada dentro de um apropriado regime legal, destinado a coibir a dominação entre os membros de uma comunidade. Essa conotação jurídica da liberdade republicana foi plenamente compreendida por Maquiavel, o mais notável republicano neorromano no alvorecer da época moderna. Em sua inovadora defesa do conflito social como a “causa” da grandeza e da liberdade da república romana, o pensador florentino esclarecia que a natureza virtuosa da desunião entre os grandes e o povo decorria dos “bons efeitos” dessa desunião, sobretudo “das leis que se fazem em favor da liberdade” (Maquiavel, 2007MAQUIAVEL, Nicolau. 2007. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes., p. 22).

A ênfase jurídica dessa modalidade de compreensão da liberdade republicana manifesta-se na preocupação dos teóricos neorromanos com o acervo institucional que regula o modo de vida livre. Tradicionalmente, as instituições de uma república bem ordenada devem ser dispostas de modo a promover a dispersão do poder no âmbito da polity. Da constituição mista dos antigos à tripartição funcional dos poderes dos modernos, a crença de que se deve evitar a concentração de poder em um único lócus institucional tem sido um dos principais topoi da tradição republicana de extração neorromana.

Um regime legal apropriado e uma institucionalidade que promova a dispersão do poder no interior do sistema político são meios pelos quais a liberdade civil é protegida numa república. Trata-se de uma dupla proteção: por um lado, contra ameaça do dominium, a dominação, na esfera privada, de cidadãos ou grupos de cidadãos sobre outros cidadãos ou grupos; por outro lado, contra a ameaça do imperium, a dominação que se realiza na esfera pública e que se expressa na capacidade de interferência arbitrária dos agentes públicos (governantes, legisladores e magistrados) sobre o conjunto dos cidadãos ou sobre grupos específicos de cidadãos (Pettit, 1997PETTIT, Philip. 1997. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford: Oxford University Press .). Aos agentes públicos é conferido um poder, no limite coercitivo, para obviar a dominação entre cidadãos, mas tal atribuição de poder deve ser regulada por uma institucionalidade que impeça a conversão desse poder discricionário em poder arbitrário. Isso explica o constitucionalismo como uma das características definidoras da liberdade dos cidadãos no interior das repúblicas.

Além do constitucionalismo - com ênfase nos mecanismos institucionais de dispersão de poderes -, o modo de vida livre das repúblicas bem ordenadas requer também a presença de uma cidadania ativa e contestatória. Ou seja, o próprio acervo institucional republicano deve ser animado por uma cultura cívica que predisponha os cidadãos a insurgirem-se contra as diversas formas de arbitrariedade que atentem contra suas liberdades, especialmente as básicas (Pettit, 2008PETTIT, Philip. 2008. The basic liberties. In: KRAMER, Matthew; GRANT, Claire; COLBURN, Ben; HATZISTAVROU, Antony (ed.). The Legacy of H. L. A. Hart: Legal, Political and Moral Philosophy. Oxford: Oxford University Press .). Diversos são os meios de contestação que os cidadãos têm a seu dispor em uma república bem ordenada. Estes vão do recurso às leis protetivas das liberdades, já dispostas no aparato institucional republicano, a formas mais radicais, como o recurso à desobediência civil ou a movimentos sociais e protestos públicos, tais como os endossados por Maquiavel na descrição das ações da plebe romana para conter o desejo de dominação do patriciado (McCormick, 2011MCCORMICK, John P. 2011. Machiavellian Democracy. New York: Cambridge University Press.).

Esbocei acima os contornos da dimensão interna da liberdade republicana. Mas, como vimos, a teoria neorromana dos Estados livres postula a necessidade de uma dimensão externa como pré-requisito da primeira. Ainda que os cidadãos gozem do status de igual liberdade assegurado pelo Estado e detenham o controle de meios para evitar a arbitrariedade de seus governantes, eles não serão livres se os Estados em que vivem forem dominados por potências estrangeiras, tais como outros Estados, agências internacionais ou mesmo corporações privadas transnacionais.

Essa preocupação com a defesa e a segurança da liberdade de cidades e Estados contra a dominação estrangeira é central na história das teorias republicanas das relações internacionais. Como observou Daniel Deudney (2007DEUDNEY, Daniel. 2007. Bounding Power: Republican security theory from the polis to the global Village. Oxford: Princeton University Press.), a teoria republicana da segurança internacional representa uma tradição que se inicia na antiguidade greco-romana, antecipando-se em muito ao realismo e ao liberalismo, tradições polarizadas que se alimentam de diferentes aspectos da herança da teoria republicana.

A solução aventada pelos clássicos do republicanismo para o problema da segurança internacional alterou-se ligeiramente com o tempo. Maquiavel, por exemplo, considerava a defesa militar da pátria realizada por cidadãos-soldados o mais eficaz instrumento para repelir a dominação estrangeira, indicando seu ceticismo acerca da eficácia de forças mercenárias ou auxiliares. Na verdade, a predisposição patriótica dos cidadãos à guerra externa em defesa da liberdade é um traço marcante das repúblicas da antiguidade, enfatizado no modelo romano defendido por Maquiavel (Pocock, 1975POCOCK, John. G. A. 1975. The Machiavellian Moment: Florentine political thought and Atlantic republican tradition. Princeton: Princeton University Press.). Mas foi somente a partir do iluminismo do século XVIII que pensadores republicanos passaram a considerar mais seriamente a hipótese de uma ordem internacional regida por uma paz resiliente entre os Estados (Kant, 2020KANT, Immanuel. 2020. À Paz Perpétua. Petrópolis: Vozes.). Assim, seja pela via da preparação para a guerra, seja por esforços de construção e manutenção da paz, a missão precípua das repúblicas é sempre a de obstar a dominação estrangeira para, com isso, garantir a liberdade de seus cidadãos. Só assim adquire pleno sentido a máxima da teoria neorromana segundo a qual só é possível ser uma pessoa livre em um Estado livre.

Há, portanto, uma conexão indissociável entre as dimensões interna e externa da liberdade republicana. Ocorre que, por diversos motivos, quer se olhe do ponto de vista da cultura cívica, quer do ponto de vista da arquitetura institucional, a ordem interna para a manutenção da liberdade republicana não pode ser inteiramente replicada no contexto internacional. Como, então, promover a extensão do ideal da não dominação além dos limites internos às repúblicas? Essa questão vem mobilizando os esforços mais recentes de teóricos do neorrepublicanismo e ensejando diferentes respostas.

Cosmopolitismo e internacionalismo

Os estudos recentes sob a ótica do neorrepublicanismo na teoria política internacional distribuem-se em duas amplas vertentes, no interior das quais competem diferentes modelos teóricos: a vertente cosmopolita e a vertente internacionalista. A orientação normativa de ambas é basicamente a mesma: expandir e assegurar a liberdade como não dominação além das fronteiras dos Estados nacionais. Além disso, é consensual o fato de que, na atualidade, a realização desse ideal de liberdade deve pressupor o que Bohman (2007BOHMAN, James. 2007. Democracy Across Borders: From demos to demoi. Cambridge, MA: MIT Press.) denominou como “a nova circunstância global da política”, ocasionada pelo aprofundamento da interdependência e interconexão entre nações e pelo fenômeno da globalização em suas várias frentes (econômica, financeira, tecnológica, cultural). Diferentemente das visões celebratórias dos processos de globalização, “a interpretação republicana vê a crescente interconexão global produzindo impactos diferenciais que aumentam o potencial de dominação” (Bohman, 2004BOHMAN, James. 2004. Republican cosmopolitanism. Journal of Political Philosophy, v. 12, n. 3. DOI: 10.1111/j.1467-9760.2004.00203.x
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, p. 337).

A tendência cosmopolita pode ser verificada em autores como Besson (2009aBESSON, Samantha. 2009a. Ubi ius, ibi civitas: A republican account of international community. In: BESSON, Samantha; MARTÍ, José Luiz (ed.). Legal Republicanism: national and international perspectives. Oxford: Oxford University Press., 2009bBESSON, Samantha. 2009b. Institutionalizing global demoi-cracy. In: MEYER, Lukas H. (ed.). International Law, Justice and Legitimacy. Cambridge: Cambridge University Press.), Bohman (2004BOHMAN, James. 2004. Republican cosmopolitanism. Journal of Political Philosophy, v. 12, n. 3. DOI: 10.1111/j.1467-9760.2004.00203.x
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, 2007BOHMAN, James. 2007. Democracy Across Borders: From demos to demoi. Cambridge, MA: MIT Press., 2008BOHMAN, James. 2008. Nondomination and transnational democracy. In: MAYNOR, John; LABORDE, Cécile (ed.). Republicanism and Political Theory. Oxford: Blackwell.), Lovett (2016LOVETT, Frank. 2016. Should republicans be cosmopolitans?. Global Justice: Theory, Practice, Rhetoric, v. 9, n. 1. DOI: 10.21248/gjn.9.1.100
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), Martí (2010MARTÍ, Jose L. 2010. A global republic to prevent global domination. Diacrítica, v. 24, n. 2.), Nierderberger (2013)NIERDERBERGER, Andreas. 2013. Republicanism and transnational democracy. In: NIERDERBERGER, Andreas; SCHINK, Philip (ed.). Republican Democracy: liberty, law and politics . Edinburgh: Edinburgh University Press ., Quill (2006QUILL, Lawrence. 2006. Liberty after Liberalism: Civic Republicanism in a Global Age. London: Macmillan Palgrave.), e Wood (2015WOOD, Nathan. 2015. Republicanism and international relations. Kriterion - Journal of Philosophy, v. 29, n. 1, pp. 51-78. DOI: 10.1515/krt-2015-290105
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). Sem desconsiderar a heterogeneidade interna desse grupo, observamos que todos compartilham a opinião de que, na nova circunstância global da política, os Estados nacionais tornaram-se incapazes de responder aos principais problemas de escala global, tornando incontornável a busca de novos fundamentos para a legitimidade de instituições transnacionais. O ponto de partida desse raciocínio é o alargamento da noção de cidadania, que passa a ser concebida para além das fronteiras dos Estados nacionais. Inspirado na herança republicana do iluminismo anticolonial do século XVIII, Bohman advoga que a cidadania é um bem muito precioso para ficar limitado à contingência do nascimento no interior das fronteiras territoriais de determinado Estado. A vulnerabilidade à dominação, que marca, por exemplo, a experiência de indivíduos na condição de refugiados ou imigrantes, explicita os limites da ideia de cidadania territorialmente limitada.

Bohman sustenta que a expansão do ideal dos direitos humanos cria uma sólida base normativa para que cada indivíduo da população global, não importando sua nacionalidade, detenha um conjunto sumário de direitos (o que ele chama de “mínimo democrático”) que o qualifique como cidadão de uma “república da humanidade” (2008BOHMAN, James. 2008. Nondomination and transnational democracy. In: MAYNOR, John; LABORDE, Cécile (ed.). Republicanism and Political Theory. Oxford: Blackwell., p. 201). O autor defende que o ideal é menos utópico do que parece. Sua inspiração é a ideia de federação de repúblicas, concebida entre iluministas republicanos do século XVIII. Diderot, Kant, Madison e outros advogaram o ideal de uma federação transnacional de repúblicas pacíficas, produzindo, na visão de Bohman “a inovação institucional do republicanismo moderno que finalmente transcendia os limites de todos os modelos antigos” (Bohman, 2008BOHMAN, James. 2008. Nondomination and transnational democracy. In: MAYNOR, John; LABORDE, Cécile (ed.). Republicanism and Political Theory. Oxford: Blackwell., p. 193).

Do ponto de vista da expansão da liberdade como não dominação, o modelo federativo da “república da humanidade” teria a virtude de gerar legitimidade para um conjunto de instituições transnacionais voltadas à implementação do “mínimo democrático” em escala global. Tal legitimidade é fundamental para que o apelo aos direitos humanos possa contar com mais do que a simples boa vontade de organizações humanitárias, sendo também resguardados por “leis e uma autoridade civil” (Bohman, 2008BOHMAN, James. 2008. Nondomination and transnational democracy. In: MAYNOR, John; LABORDE, Cécile (ed.). Republicanism and Political Theory. Oxford: Blackwell., p. 204), com poderes de intervenção na soberania dos Estados nacionais em um número limitado de situações, especialmente em casos de violação de direitos humanos.

Embora detentoras desse poder intervencionista, as instituições da república da humanidade estariam organizadas de modo a evitar o risco do imperium, dificultando que elas próprias se tornem agentes dominantes. O espírito dessa organização reside na tradicional estratégia republicana de dispersão de poder, já presente no modelo da constituição mista da república romana. Conforme argumenta Bohman,

contrariamente à demanda do Estado por soberania exclusiva e monopólio de certos poderes, as instituições federais baseiam-se no princípio antidominação que Pettit chama de “condição de dispersão do poder” para reagir à tendência de centralização do poder do Estado. A defesa republicana das federações e a dispersão de poderes através de diferentes níveis institucionais, corpos deliberativos e vários cargos públicos pode ser consistentemente estendida transnacionalmente em proveito da realização da liberdade como não dominação. (Bohman, 2008BOHMAN, James. 2008. Nondomination and transnational democracy. In: MAYNOR, John; LABORDE, Cécile (ed.). Republicanism and Political Theory. Oxford: Blackwell., p. 196)

Ainda que o modelo da “república da humanidade” (também denominado “democracia transnacional”) avance muito além do modelo westfaliano, há teóricos neorrepublicanos que o criticam por não ir longe o bastante na direção do ideal cosmopolita. Martí, por exemplo, sustenta que os neorrepublicanos devem ir além do modelo federativo e propor “sem ambiguidades, a criação de uma república global, isto é, a criação de um sistema político global composto de um conjunto unificado de instituições políticas e democráticas” (Martí, 2010MARTÍ, Jose L. 2010. A global republic to prevent global domination. Diacrítica, v. 24, n. 2., p. 56). A diferença do modelo da república global em relação ao modelo federativo é a ausência de receio da unificação das instituições transnacionais, tão saliente entre os defensores do segundo modelo. Martí acredita que somente uma república global com plena unidade institucional teria “o poder de intervir em alguns dos assuntos domésticos dos Estados, limitando assim sua soberania, de modo a evitar a dominação global tanto sobre Estados como sobre indivíduos” (Martí, 2010MARTÍ, Jose L. 2010. A global republic to prevent global domination. Diacrítica, v. 24, n. 2., p. 58).

Posição semelhante é articulada por Wood, que compartilha da tese de que a concepção republicana de liberdade não pode ser entendida exclusivamente como um ideal doméstico, pois “requer a não dominação em todos os níveis da sociedade, seja individual, estatal ou internacional” (Wood, 2015WOOD, Nathan. 2015. Republicanism and international relations. Kriterion - Journal of Philosophy, v. 29, n. 1, pp. 51-78. DOI: 10.1515/krt-2015-290105
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, p. 52). Para a realização da não dominação no plano internacional, a única alternativa eficaz seria a criação de uma espécie de “Estado global”, uma “organização com poderes para remover qualquer potencial de arbitrariedade das decisões dos Estados” (Wood, 2015WOOD, Nathan. 2015. Republicanism and international relations. Kriterion - Journal of Philosophy, v. 29, n. 1, pp. 51-78. DOI: 10.1515/krt-2015-290105
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, p. 59). Mas uma organização com tais funções só terá efetividade “na medida que detenha alguma forma de poder coercitivo que possa ser mobilizado contra potenciais infratores”. Wood acredita que apenas quando o Estado global tiver a seu dispor algum “poder de polícia global” ele será capaz de “prover o cumprimento competente e garantido dos direitos requeridos para a não dominação internacional” (Wood, 2015WOOD, Nathan. 2015. Republicanism and international relations. Kriterion - Journal of Philosophy, v. 29, n. 1, pp. 51-78. DOI: 10.1515/krt-2015-290105
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, pp. 67-68).

Sejam quais forem os pontos fortes e as fragilidades das diferentes variantes da tendência cosmopolita, há no debate atual entre teóricos do neorrepublicanismo um nítido predomínio da tendência rival, a tendência internacionalista. Autores como Bellamy (2019BELLAMY, Richard. 2019. A Republican Europe of States. Cambridge: CUP.), Laborde (2010LABORDE, Cécile. 2010. Republicanism and global justice: a sketch. European Journal of Political Theory, v. 9, n. 1. DOI: 10.1177/1474885109349404
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) Laborde e Ronzoni, (2016LABORDE, Cecile; RONZONI, Mirian. 2016. What is a free State? Republican internationalism and globalization. Political Studies, v. 64, n. 2. DOI: 10.1111/1467-9248.12190
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), Maynor (2010MAYNOR, John. 2010. Fighting back against domination: republican citizenship and unbounded reciprocity. Diacrítica , v. 24, n. 2., 2015MAYNOR, John. 2015. Should republican liberty be outsourced? In: BUCKINX, Barbara; TREJO-MATHYS, Jonathan; WALIGORE, Timothy (ed.). Domination and Global Political Justice: conceptual, historical, and institutional perspectives . London: Routledge .), Pettit (2010aPETTIT, Philip. 2010a. Legitimacy in international institutions: a neo-Roman perspective. In: BESSON, Samantha; TASIOULAS, John; MARTÍ, Jose L. (ed.). The Philosophy of International Law. Oxford: Oxford University Press ., 2010bPETTIT, Philip. 2010b. A republican Law of Peoples. European Journal of Political Theory , v. 9, n. 1. DOI: 10.1177/1474885109349406
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, 2014PETTIT, Philip. 2014. Just Freedom. New York: Norton & Company., 2015PETTIT, Philip. 2015. The republican law of peoples: a restatement. In: BUCKINX, Barbara; TREJO-MATHYS, Jonathan; WALIGORE, Timothy (ed.). Domination and Global Political Justice: conceptual, historical, and institutional perspectives . London: Routledge .), Ronzoni (2017RONZONI, Miriam. 2017. Republicanism and global institutions: three desiderata in tension. Social Philosophy and Policy, v. 34, n. 1, pp. 186-208. DOI: 10.1017/S0265052517000097
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), Slaughter (2005SLAUGHTER, Steven. 2005. Liberty beyond Neo-Liberalism: A Republican Critique of Liberal Government in a Globalizing Age. London: Macmillan Palgrave ., 2010SLAUGHTER, Steven. 2010. Reconsidering the state: Cosmopolitanism, republicanism and global governance. In: HOOFT, Stan van; VANDEKERCKHOVE, Win. (ed.) Questioning Cosmopolitanism. Dordrecht: Springer.), Skinner (2010SKINNER, Quentin. 2010. On the slogans of republican political theory. European Journal of Political Theory , v. 9, n.1. DOI: 10.1177/1474885109349407
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), entre outros, destacam as vantagens dos modelos internacionalistas em relação aos modelos cosmopolitas para a expansão do ideal da não dominação em escala global. Não obstante divergências mais ou menos tópicas, esses teóricos sustentam um posicionamento comum favorável ao protagonismo dos Estados nacionais na configuração da ordem internacional republicana.

É importante frisar que o que afasta esses republicanos internacionalistas do cosmopolitismo não é propriamente uma questão de princípio. Trata-se mais de uma objeção pragmática, que diz respeito à exequibilidade dos modelos cosmopolitas. Para Pettit (2010bPETTIT, Philip. 2010b. A republican Law of Peoples. European Journal of Political Theory , v. 9, n. 1. DOI: 10.1177/1474885109349406
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, p. 70), o cosmopolitismo ignora que “os Estados manter-se-ão como uma característica permanente de nosso mundo”, e por isso alimentam aspirações excessivamente utópicas que oscilam de uma ordem global sem Estados a uma ordem com um Estado global. A análise a seguir da alternativa articulada por Pettit auxilia no esclarecimento das potencialidades e limites do internacionalismo republicano.

Soberania globalizada

Através de uma série de ensaios publicados ao longo das últimas duas décadas, Pettit vem procurando aplicar sua teoria neorromana da liberdade como não dominação para a resolução de problemas de justiça e legitimidade em escala global (Pettit, 2006PETTIT, Philip. 2006. Democracy, national and international. Monist, v. 89, n. 2, pp. 301-324. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/27903981 . Acesso em: 15 set. 2016.
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; 2010aPETTIT, Philip. 2010a. Legitimacy in international institutions: a neo-Roman perspective. In: BESSON, Samantha; TASIOULAS, John; MARTÍ, Jose L. (ed.). The Philosophy of International Law. Oxford: Oxford University Press .; 2010bPETTIT, Philip. 2010b. A republican Law of Peoples. European Journal of Political Theory , v. 9, n. 1. DOI: 10.1177/1474885109349406
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; 2014PETTIT, Philip. 2014. Just Freedom. New York: Norton & Company.; 2015PETTIT, Philip. 2015. The republican law of peoples: a restatement. In: BUCKINX, Barbara; TREJO-MATHYS, Jonathan; WALIGORE, Timothy (ed.). Domination and Global Political Justice: conceptual, historical, and institutional perspectives . London: Routledge .; 2016PETTIT, Philip. 2016. The globalized republican ideal. Global Justice: Theory and Practice , v. 9, n. 1. DOI: https://doi.org/10.21248/gjn.9.1.101
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). O resultado desses esforços tem se cristalizado em um modelo normativo que o autor denomina como “soberania globalizada” (Pettit, 2016PETTIT, Philip. 2016. The globalized republican ideal. Global Justice: Theory and Practice , v. 9, n. 1. DOI: https://doi.org/10.21248/gjn.9.1.101
https://doi.org/https://doi.org/10.21248...
), um desiderato do “direito republicano dos povos” (Pettit, 2010bPETTIT, Philip. 2010b. A republican Law of Peoples. European Journal of Political Theory , v. 9, n. 1. DOI: 10.1177/1474885109349406
https://doi.org/10.1177/1474885109349406...
; 2015PETTIT, Philip. 2015. The republican law of peoples: a restatement. In: BUCKINX, Barbara; TREJO-MATHYS, Jonathan; WALIGORE, Timothy (ed.). Domination and Global Political Justice: conceptual, historical, and institutional perspectives . London: Routledge .).

A ideia de um direito republicano dos povos é uma clara alusão ao direito dos povos formulado por John Rawls (2019RAWLS, John. 2019. O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes .), no espírito de uma “utopia realista” que “estende o que comumente pensamos ser os limites da possibilidade política praticável” (Rawls, 2019RAWLS, John. 2019. O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes ., p. 15). Considerar “os homens como são e as leis como poderiam ser” é a fórmula de Rousseau, apreciada e incorporada por Rawls (2019RAWLS, John. 2019. O Direito dos Povos. São Paulo: Martins Fontes ., p. 17). Adaptando esse princípio ao plano das relações internacionais, Pettit pretende “tomar os Estados como eles são” para projetar “a ordem internacional - o mundo - como ela deveria ser” (Pettit, 2010aPETTIT, Philip. 2010a. Legitimacy in international institutions: a neo-Roman perspective. In: BESSON, Samantha; TASIOULAS, John; MARTÍ, Jose L. (ed.). The Philosophy of International Law. Oxford: Oxford University Press ., p. 70).

A permanência dos Estados como os agentes protagonistas da ordem global é um pressuposto do modelo da soberania globalizada, e isso não apenas por imposição do realismo político. No limite, um mundo sem Estados é indesejável porque “não há possibilidade real de estabelecer justiça social sem o poder coercitivo com que cada Estado, como uma necessidade funcional, impõe as leis” (Pettit, 2014PETTIT, Philip. 2014. Just Freedom. New York: Norton & Company., p. 158). Mas tampouco é desejável algo como um único Estado mundial. Abstratamente, esse ideal pode parecer atraente. Contudo, na prática, surgiriam problemas de representação e de geração de laços de confiança que comprometeriam as bases democráticas do Estado mundial. Assim, para Pettit,

a causa da democracia, articulada em termos de liberdade, requer um mundo de muitos Estados. E ainda que isto não seja muito persuasivo, o mero realismo nos leva a focalizar nossas prescrições em um mundo em que há muitos Estados distintos; dificilmente veremos outro tipo de mundo num futuro realizável ou previsível. (Pettit, 2014PETTIT, Philip. 2014. Just Freedom. New York: Norton & Company., p. 158)

Assumindo que a soberania globalizada é também uma forma de “utopia realista”, Pettit, ao prognosticar a permanência e defender o protagonismo dos Estados nacionais na ordem global, enfatiza o lado realista desse ideal, sobretudo quando o compara com o cosmopolitismo, liberal ou republicano. Mas a soberania globalizada compreende também uma dimensão utópica, caracterizada pela robustez e pela natureza relativamente exigente dos dois ideais que a constituem: primeiro, o ideal de que “os seres humanos devem organizar-se como povos livres”; segundo, o ideal de que “povos livres devem constituir entes corporativos que desfrutam da liberdade como não dominação em suas relações uns com os outros e junto a outras corporações globais”. Para Pettit, esses dois ideais correlacionados “são relativamente utópicos, no sentido de que o mundo real está longe de os realizar” (Pettit, 2016PETTIT, Philip. 2016. The globalized republican ideal. Global Justice: Theory and Practice , v. 9, n. 1. DOI: https://doi.org/10.21248/gjn.9.1.101
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, p. 48).

Estados são instituições complexas. Em sua definição mais convencional, trata-se de um ente corporativo com população e território mais ou menos definidos, detentor do monopólio da violência no interior de suas fronteiras territoriais e do direito de falar em nome de seu povo no exterior. Como outros agentes corporativos, os Estados são também capazes de falar por si próprios, articulando razões e argumentos em suas relações com agentes externos, especialmente com organizações internacionais e outros Estados.

Estados são capazes de falar por si próprios, mas não falam em seu próprio nome. Eles falam em nome dos povos que os definem como seus representantes. No modelo de Pettit, há uma relação de reciprocidade entre Estado representativo e povo livre. Por um lado, sem um povo sobre o qual exerça jurisdição territorial o Estado não existe; por outro, na tradição republicana, um povo só se define enquanto tal quando organizado na forma de um Estado. O povo é o conjunto de indivíduos que contam como cidadãos de um Estado. Não importa tanto se esses indivíduos têm ou não “as marcas comuns associadas a uma nação ou cultura ou etnicidade”, o que importa “pode ser somente o fato de serem organizados sob o mesmo Estado”. Isso equivale a dizer que, em última análise, “não pode haver povo […] sem um Estado” (Pettit, 2016PETTIT, Philip. 2016. The globalized republican ideal. Global Justice: Theory and Practice , v. 9, n. 1. DOI: https://doi.org/10.21248/gjn.9.1.101
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, p. 51).

Um povo livre, no modelo da soberania globalizada, é um povo que, internamente, compõe-se de cidadãos protegidos por lei contra a dominação de seus concidadãos e governantes, ao passo que, externamente, conta com a não dominação de seus Estados por outros Estados ou outros agentes internacionais e transnacionais. À moda do direito dos povos de Rawls, a soberania globalizada configura-se como uma sociedade de povos livres. Assim como um cidadão é livre na medida em que se encontra isento de interferências arbitrárias no exercício de suas liberdades básicas, as quais incluem liberdade de pensamento, de expressão, de associação, de religião, de ocupação e residência, além de certos direitos de propriedade e troca, um povo é livre na medida em que não sofre interferência arbitrária em suas “liberdades soberanas”. De acordo com Pettit,

assim como uma pessoa é livre em sociedade com outras apenas na medida em que ela desfruta de proteção e talvez auxílio no exercício de um conjunto comum de escolhas - as liberdades básicas - da mesma forma um povo será livre na sociedade dos povos apenas na medida em que ele desfruta de proteção e talvez auxílio no exercício de um conjunto comum de escolhas: escolhas que podem ser descritas, na falta de melhor termo, como liberdades soberanas (Pettit, 2016PETTIT, Philip. 2016. The globalized republican ideal. Global Justice: Theory and Practice , v. 9, n. 1. DOI: https://doi.org/10.21248/gjn.9.1.101
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, p. 57).

As liberdades soberanas dos Estados não se confundem com o ideal westfaliano da autodeterminação como não interferência.3 3 A teoria republicana da liberdade como não dominação difere da teoria da liberdade como não interferência ao restringir o tipo de interferência que resulta em redução ou comprometimento da liberdade. Enquanto a vertente dominante da teoria liberal postula que qualquer forma de interferência nas escolhas individuais é lesiva à liberdade (Berlin, 2002; Carter, 1999; Kramer, 2003), a teoria republicana sustenta que apenas a interferência arbitrária o é. Assim, formas não arbitrárias de interferência, que condicionam certas escolhas dos indivíduos, são justificadas na teoria republicana. Este é o caso dos dispositivos legais de uma república bem ordenada. Que a lei limita as escolhas dos cidadãos, é fato indisputável. Mas tal limitação não apenas é inofensiva à liberdade como em alguma medida lhe é constitutiva. “Assim como as leis criam a autoridade de que os governantes desfrutam, elas criam a liberdade que os cidadãos compartilham” (Pettit, 1997, p. 36). Um arranjo legal apropriado cria as liberdades básicas dos cidadãos. Um aspecto definidor do conceito de liberdade básica reside no fato de que as liberdades desse tipo são aquelas em que nenhum cidadão pode sofrer interferência e que podem ser exercidas e desfrutadas concomitantemente por todos os cidadãos. Elas são, na terminologia de Pettit, “co-exercible” e “co-satisfaying” (Pettit, 2012). Para Pettit, a ordem internacional que emergiu dos tratados de paz Westfália, no século XVII, concebeu de modo excessivamente radical as liberdades soberanas dos povos, permitindo-lhes - ou a seus príncipes - agirem mais ou menos a seu bel prazer dentro de suas fronteiras ou em territórios e mares internacionais. A ordem legal internacional protetora das liberdades soberanas dos povos não inclui o direito desses povos “interferirem em outros povos de maneira militar, econômica ou diplomática, exceto talvez como retaliação por uma ofensa prévia”. Também não inclui a liberdade de explorar unilateralmente recursos globais e contribuir para “males globais como mudança climática prejudicial e cultivo de bactérias resistentes a antibióticos” (Pettit, 2016PETTIT, Philip. 2016. The globalized republican ideal. Global Justice: Theory and Practice , v. 9, n. 1. DOI: https://doi.org/10.21248/gjn.9.1.101
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, p. 58).

Embora Pettit não desenvolva a noção de liberdades soberanas a ponto de especificá-las, resta evidente que o modelo da soberania globalizada pressupõe certo nível de intervencionismo para conter as investidas de Estados e outros agentes corporativos internacionais e transnacionais movidos pelo anseio de dominação. A questão que se coloca, então, é a de quais são os agentes protagonistas das intervenções destinadas a proteger as liberdades soberanas dos povos e realizar a não dominação em escala global, e, uma vez identificados esses agentes, determinar qual sua fonte de legitimidade.

Para Pettit, nem todos os Estados estão aptos a participar ativamente da configuração institucional da soberania globalizada, embora idealmente os cidadãos de todos devam ser portadores do status de pessoas livres, protegidos de interferências arbitrárias em suas liberdades básicas. Apenas aqueles Estados que o autor define como “representativos” podem dispor da intenção e dos recursos para estabelecer um aparato institucional voltado à extensão da não dominação em escala global. Em breve definição, “Estados representativos” são aqueles controlados por seus próprios povos. O pressuposto da existência de um Estado representativo é sua “eficácia funcional” para prover serviços básicos a sua população. Indicadores de que um Estado carece de eficácia funcional incluem males como guerra civil, fome, genocídio, a existência de uma classe de senhores da guerra e a ausência generalizada de lei (Pettit, 2015PETTIT, Philip. 2015. The republican law of peoples: a restatement. In: BUCKINX, Barbara; TREJO-MATHYS, Jonathan; WALIGORE, Timothy (ed.). Domination and Global Political Justice: conceptual, historical, and institutional perspectives . London: Routledge ., p. 39). Um Estado funcionalmente ineficaz “é incapaz de reivindicar o direito de falar ou agir por seu povo” (Pettit, 2015PETTIT, Philip. 2015. The republican law of peoples: a restatement. In: BUCKINX, Barbara; TREJO-MATHYS, Jonathan; WALIGORE, Timothy (ed.). Domination and Global Political Justice: conceptual, historical, and institutional perspectives . London: Routledge ., p. 39).

Mas nem todo Estado funcionalmente eficaz pode ser considerado representativo. Um Estado pode cumprir razoavelmente os requisitos funcionais que justificam sua existência e, ainda assim, permanecer aquém do status de Estado representativo, o que inviabiliza sua participação como protagonista na ordem internacional da soberania globalizada. Isso acontece quando os cidadãos desse Estado não dispõem de mecanismos institucionais efetivos para influenciar e controlar as ações de seus governantes. Influência e controle populares são atributos típicos de Estados democráticos, cujas instituições interpelam o povo em seu papel autoral e editorial das leis (Pettit, 2012PETTIT, Philip. 2012. On the People’s terms: a republican theory and model of democracy. Cambridge: Cambridge University Press .). Na hipótese de inexistência ou disfuncionalidade das instituições que asseguram a influência e o controle dos cidadãos sobre legisladores e governantes, o Estado acaba capturado por grupos ou facções que desdenham do bem comum em benefício de seus interesses particulares. Nesse caso, embora funcionalmente eficaz, o Estado será politicamente opressivo, falhando renitentemente em assegurar ao conjunto dos cidadãos a não dominação.

Idealmente, o conceito de Estado representativo coincide com o de uma democracia plena. Mas Pettit pondera que “seria irrealista reduzir os Estados aos quais é atribuído o papel principal em nossa teoria internacional aos Estados completamente democráticos, ou mesmo democráticos em uma medida substancial” (Pettit, 2014PETTIT, Philip. 2014. Just Freedom. New York: Norton & Company., p. 157). Isso quer dizer que o modelo da soberania globalizada admite como Estados representativos aqueles que, não sendo ineficazes nem consistentemente opressivos, apresentam, contudo, déficits democráticos que os fazem oscilar entre momentos de maior ou menor influência e controle populares sobre suas instituições e agentes públicos. Essa concessão de Pettit ao realismo amplia significativamente o rol de Estados participantes da soberania globalizada, afinal, dependendo do grau de exigência de nossos critérios, poucos países - ou mesmo nenhum país realmente existente - poderiam ser considerados democracias plenas.

Mas por que limitar a participação na ordem internacional apenas aos Estados representativos? A razão sugerida por Pettit é simples, intuitiva, mas, como veremos a seguir, insuficiente: não cabe esperar de Estados que não disponham dos recursos ou da intenção de assegurar a liberdade de seus próprios povos no interior de suas fronteiras o cumprimento da tarefa de defender a liberdade de outros Estados e outros povos em âmbito global. Daí sua conclusão enfática (e talvez hiperbólica) de que “saudar como um ideal a não dominação externa de um Estado ineficaz ou opressor seria uma loucura; isso equivaleria a avalizar o caos ou o assassinato em massa” (Pettit, 2014PETTIT, Philip. 2014. Just Freedom. New York: Norton & Company., p. 153).

No entanto, o protagonismo dos Estados representativos só se justifica quando o horizonte de suas ações na arena global consiste em estender o ideal da não dominação a todos os povos. Os Estados representativos “devem estabelecer uma ordem internacional em que problemas de pobreza e opressão sejam efetivamente enfrentados” (Pettit, 2014PETTIT, Philip. 2014. Just Freedom. New York: Norton & Company., p. 174), e esses Estados são motivados a proceder dessa maneira tanto por auto interesse quanto por razões mais altruísticas. No primeiro caso porque é do interesse desses Estados evitar consequências negativas da miséria e da opressão de outros povos no interior de suas próprias fronteiras. Pense-se aqui no drama dos refugiados e imigrantes ilegais que, em busca de uma vida mais digna, acabam pressionando as fronteiras dos Estados mais afluentes. No segundo caso porque há entre os povos dos Estados representativos um sentimento de obrigação com o drama dos necessitados, onde quer que estes se encontrem. Isso explica por que os “cidadãos dos Estados representativos corretamente clamam para seu próprio Estado fazer algo para lidar com o sofrimento dos que são afligidos alhures por explosões de fome e violência”, buscando remediar “os males naturais dos tsunamis e terremotos e os males humanos da tortura e opressão” (Pettit, 2014PETTIT, Philip. 2014. Just Freedom. New York: Norton & Company., p. 176).

Pettit observa que a ordem global é povoada por três tipos específicos de agentes, todos com potencial de interferência arbitrária (dominação) sobre os Estados e seus povos:

primeiro, e de modo mais proeminente, outros Estados; segundo, corpos privados não domésticos comparáveis, em recursos, a muitos Estados, tais como corporações empresariais, igrejas, movimentos terroristas e até indivíduos poderosos; terceiro, corpos públicos não domésticos frequentemente criados por Estados, como a ONU, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a União Europeia ou a Organização do Tratado do Atlântico Norte. (Pettit, 2010bPETTIT, Philip. 2010b. A republican Law of Peoples. European Journal of Political Theory , v. 9, n. 1. DOI: 10.1177/1474885109349406
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, p. 77)

A questão é saber em que medida o potencial de interferência arbitrária inerente a cada um desses tipos de agentes pode ser contido ou neutralizado pelo direito internacional. Já observamos que, para Pettit, as ameaças provenientes do primeiro grupo, o conjunto dos Estados nacionais, podem ser neutralizadas pelo protagonismo atribuído aos Estados representativos em detrimento dos Estados não representativos ou ineficazes. Pettit é bem menos otimista em relação às ameaças provenientes do segundo grupo, ou seja, de corpos privados com alto poder de interferência arbitrária em escala global. A própria natureza privada desses agentes, quando não clandestina (como no caso de redes terroristas), torna improvável sua adequação ao ideal da soberania globalizada.

A esse grupo de agentes privados pertencem também as grandes corporações transnacionais. Como bem observam Laborde e Ronzoni, num esforço para ampliar o alcance do modelo de Pettit, as ameaças provenientes desse tipo de agente privado à liberdade dos povos cresceu exponencialmente com os processos recentes de abertura e desregulamentação dos mercados associados à globalização da economia, como se observa no aumento do poder de interferência arbitrária das corporações transnacionais nas decisões de muitos Estados. Decorre disso, aliás, a justificativa das autoras para um “controle regulatório mais rígido […] em áreas como taxação, mercado de trabalho e mercado financeiro” (Laborde e Ronzoni, 2016LABORDE, Cecile; RONZONI, Mirian. 2016. What is a free State? Republican internationalism and globalization. Political Studies, v. 64, n. 2. DOI: 10.1111/1467-9248.12190
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, p. 293).

Pettit restabelece seu otimismo quando avalia a probabilidade de contenção das ameaças à liberdade provenientes do terceiro grupo mencionado acima, as instituições internacionais formadas por acordos entre os Estados representativos. Para exercer suas funções, as instituições internacionais devem dispor de capacidade de interferir em certas escolhas dos Estados membros, respeitadas suas “liberdades soberanas”. A questão é como assegurar o caráter não arbitrário de suas intervenções. Conquanto reconheça alguma validade das críticas ao “déficit democrático” das instituições internacionais, geridas tipicamente por autoridades não eleitas, o autor argumenta que alinhá-las à ordem da soberania globalizada é possível por outros meios, não necessariamente eleitorais, como a ação vigilante de ONGs globais (Anistia Internacional, Greenpeace, Médicos sem Fronteiras etc.) e a publicidade midiática hostil sobre os possíveis desvios de tais agências (Pettit, 2014PETTIT, Philip. 2014. Just Freedom. New York: Norton & Company., pp. 169-170). Além disso - e mais importante -, essas instituições encontram-se sob relativo controle dos Estados soberanos, principais protagonistas da soberania globalizada, devido a um conjunto de dispositivos que vinculam a legitimidade dessas instituições às prerrogativas dos Estados. Em termos práticos,

os Estados normalmente indicam os cargos cruciais nesses órgãos; há compromissos com missões restritas e específicas; geralmente há altos padrões de accountability a serem alcançados; movimentos cívicos globais muitas vezes exercem um grau significativo de supervisão; e as decisões são rotineiramente sujeitas a objeção e revisão pelos Estados afetados. (Pettit, 2010bPETTIT, Philip. 2010b. A republican Law of Peoples. European Journal of Political Theory , v. 9, n. 1. DOI: 10.1177/1474885109349406
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, p. 81)

Mas será mesmo que esses dispositivos configuram um mecanismo eficaz de checagem voltados a coibir os eventuais desvios das agências internacionais, contendo suas iniciativas de interferência arbitrária e dominação e mantendo-as nos limites de suas funções na ordem neorrepublicana da soberania globalizada?

Limites do modelo de Pettit

Creio ser possível afirmar que o modelo neorrepublicano da soberania globalizada representa uma alternativa ao não intervencionismo westfaliano e ao cosmopolitismo (liberal ou republicano). O primeiro modelo, orientado pelo ideal da liberdade como ausência de qualquer forma de interferência na soberania dos Estados, revela-se claramente anacrônico diante de um mundo cada vez mais atribulado por problemas cuja solução escapam aos instrumentos dos Estados nacionais individualmente considerados, requerendo não apenas esforços concertados entre os Estados, mas também intervenções que desafiam a interpretação westfaliana da autodeterminação dos povos. Os modelos cosmopolitas, por sua vez, padecem de certa indeterminação institucional. Embora acertem ao estabelecer os direitos humanos de todos os indivíduos do globo como o horizonte normativo da liberdade como não dominação, negligenciam o lugar e o papel dos Estados soberanos em uma eventual nova ordem global republicana ao passarem ao largo da realidade de um mundo irremediavelmente constituído por eles.

Não obstante suas eventuais vantagens em relação aos modelos rivais, o modelo internacionalista de Pettit também apresenta limites, que devem ser superados em benefício da aplicação do ideal da liberdade como não dominação em escala global. Alguns desses limites, como a relativa indiferença à dimensão estrutural da dominação geopolítica (Rigstad, 2011RIGSTAD, Mark. 2011. Republicanism and geopolitical domination. Journal of Political Power, v. 4, n. 2. DOI: 10.1080/2158379X.2011.590041
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), têm sido eficientemente enfrentados por teóricos neorrepublicanos tributários da visão de Pettit (Laborde, 2010LABORDE, Cécile. 2010. Republicanism and global justice: a sketch. European Journal of Political Theory, v. 9, n. 1. DOI: 10.1177/1474885109349404
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; Ronzoni, 2017RONZONI, Miriam. 2017. Republicanism and global institutions: three desiderata in tension. Social Philosophy and Policy, v. 34, n. 1, pp. 186-208. DOI: 10.1017/S0265052517000097
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; Slaughter, 2018SLAUGHTER, Steven. 2018. Republicanism and international political theory. In: BROWN, Chris; ECKSERLEY, Robyn (ed.). The Oxford Handbook of International Political Theory. Oxford: Oxford University Press .). Outras insuficiências, porém, têm motivado objeções mais radicais, como a que aponta a natureza eurocêntrica da teoria política internacional da tradição republicana em geral, e do republicanismo neorromano em particular. Kevin Blachford, por exemplo, critica a tradição republicana por supostamente “negligenciar como a história de império e escravidão está interligada com os ideais normativos do pensamento republicano”, sugerindo que “os neorromanos modernos procuram aplicar os ideais republicanos da pólis na Cosmópolis sem reconhecer o eurocentrismo inerente a esta abordagem” (Blachford, 2021BLACHFORD, Kevin. 2021. The eurocentrism of neo-roman republicanism and the neglect of republican empire. Thesis Eleven, v. 166, n. 1. DOI: 10.1177/07255136211043950
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, pp. 2-5). Não obstante tratar-se de um tema ao qual teremos de retornar em outra ocasião, não há espaço aqui para discutirmos a validade desse desafio mais abrangente e externo à lógica da teoria política internacional do republicanismo neorromano.

Encaminhemo-nos para a parte final da presente discussão, chamando atenção, ainda que brevemente, para dois limites que podemos considerar internos ao modelo da soberania globalizada. O primeiro diz respeito à necessidade de torná-lo mais inclusivo, questionando o exclusivismo que o referido modelo confere aos Estados representativos como agentes protagonistas da ordem global. O segundo relaciona-se ao excessivo otimismo de Pettit em relação ao caráter potencialmente não arbitrário das agências de instituições públicas internacionais, bem como das regras constitutivas do próprio direito internacional.

Refletindo sobre o problema da inclusão, Dorothea Gädeke propõe um alargamento do modelo de Pettit, de modo a incluir a reivindicação do direito de todos os Estados - não apenas os representativos -usufruírem da liberdade republicana na arena internacional. Na visão da autora, “uma lei republicana dos povos precisa conferir status de não dominação a todos os Estados, sejam representativos ou não” (Gädeke, 2016GÄDEKE, Dorothea. 2016. The domination of states: towards an inclusive republican law of peoples. Global Justice: Theory and Practice, v. 9, n. 1. DOI: 10.21248/gjn.9.1.99
https://doi.org/10.21248/gjn.9.1.99...
, p. 22).

É importante lembrar que a dominação é sempre, em última análise, um fenômeno que afeta indivíduos. Certamente é possível falar, com Pettit, em dominação de agentes grupais, como Estados e povos, mas isso porque esses grupos consistem na incorporação de indivíduos, os suportes reais de relações de dominação. Para Pettit, a dominação de um povo e, consequentemente, de seus indivíduos membros, decorre da dominação de um Estado apenas se este for do tipo representativo. A dominação de um Estado não representativo não se traduziria na dominação de seu povo e dos indivíduos membros incorporados a ele porque, nesse caso, a coletividade dos indivíduos não chega a se constituir politicamente. Temos aí uma justificativa para a dominação de Estados não representativos. Dominá-los no plano internacional não significaria dominar o povo como coletividade nem os indivíduos membros do povo. Poderia até ocorrer o contrário, uma vez que a intervenção de agências internacionais nas escolhas de Estados opressivos pode se traduzir em uma intervenção favorável à não dominação do povo e dos indivíduos que o Estado deveria representar. “Se um Estado é não representativo”, afirma Pettit, “servir a essa entidade não deve ser uma preocupação da ordem internacional; a única preocupação deve ser a de servir a seus membros” (Pettit, 2010bPETTIT, Philip. 2010b. A republican Law of Peoples. European Journal of Political Theory , v. 9, n. 1. DOI: 10.1177/1474885109349406
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, p. 71).

Com propriedade, Gädeke questiona essa conclusão, pois ainda que um povo - enquanto a multidão de indivíduos de um Estado não representativo - não esteja plenamente incorporado na condição de “povo politicamente organizado”, ele permanece dotado de um poder constituinte fundamental, que pode ser mobilizado para reformar o Estado na direção de um Estado representativo. Esse poder constituinte pode ser ameaçado com a intervenção arbitrária em seus Estados por agentes protagonistas da soberania globalizada, sejam estes os Estados representativos ou as instituições internacionais. Por isso, argumenta a autora, “nenhum Estado, representativo ou não, deve ser dominado, uma vez que a dominação do Estado implica a dominação da coletividade do povo”. Mesmo que o povo não seja dominado em “pleno sentido”, dado que sua constituição como agente intencional depende de sua capacidade de controlar o Estado - capacidade inexistente nos Estados não representativos -, ele é dominado em sua condição de “um potencial agente grupal”, comprometendo seu “poder constituinte residual” (Gädeke, 2016GÄDEKE, Dorothea. 2016. The domination of states: towards an inclusive republican law of peoples. Global Justice: Theory and Practice, v. 9, n. 1. DOI: 10.21248/gjn.9.1.99
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, p. 19).

Poder-se-ia contornar a objeção acima, de natureza conceitual, mediante uma leitura mais claramente normativa da teoria de Pettit para a justificação da dominação dos Estados não representativos. Uma tentativa nessa direção consiste em mobilizar uma estratégia compensatória, aceitando a dominação dos povos dos Estados não representativos como o preço a pagar pela liberdade dos indivíduos pertencentes aos povos desses Estados. Tanto Pettit (2010bPETTIT, Philip. 2010b. A republican Law of Peoples. European Journal of Political Theory , v. 9, n. 1. DOI: 10.1177/1474885109349406
https://doi.org/10.1177/1474885109349406...
, p. 67) como Laborde e Ronzoni (2016LABORDE, Cecile; RONZONI, Mirian. 2016. What is a free State? Republican internationalism and globalization. Political Studies, v. 64, n. 2. DOI: 10.1111/1467-9248.12190
https://doi.org/10.1111/1467-9248.12190...
) mobilizam essa estratégia compensatória, argumentando que, sob circunstâncias excepcionais, “uma violação da não dominação básica pode ser necessária em benefício da minimização geral da dominação” (Laborde; Ronzoni, 2016LABORDE, Cecile; RONZONI, Mirian. 2016. What is a free State? Republican internationalism and globalization. Political Studies, v. 64, n. 2. DOI: 10.1111/1467-9248.12190
https://doi.org/10.1111/1467-9248.12190...
, p. 20). Ou seja,“intervenções externas, que violam a não dominação básica de um Estado, podem ser necessárias em casos de catástrofes humanitárias, Estados falidos e regimes opressivos”, não havendo dúvida de que “todas as intervenções desse tipo resultam em alguma forma de dominação internacional” (Laborde; Ronzoni, 2016LABORDE, Cecile; RONZONI, Mirian. 2016. What is a free State? Republican internationalism and globalization. Political Studies, v. 64, n. 2. DOI: 10.1111/1467-9248.12190
https://doi.org/10.1111/1467-9248.12190...
, p. 20).

Mas essa justificativa normativa e compensatória, segundo Gädeke, também pode ser contestada. Em primeiro lugar porque a relação do povo com seu Estado não se resume à sua incorporação política. Mesmo que “os indivíduos-membros não sejam igualmente incorporados no sentido político, eles ainda podem ser plenamente incorporados nos planos econômico ou cultural” (Gädeke, 2016GÄDEKE, Dorothea. 2016. The domination of states: towards an inclusive republican law of peoples. Global Justice: Theory and Practice, v. 9, n. 1. DOI: 10.21248/gjn.9.1.99
https://doi.org/10.21248/gjn.9.1.99...
, p. 20). Além disso, a dominação coletiva do Estado não representativo por outros Estados, por instituições públicas internacionais ou por corporações privadas transnacionais pode agravar a dominação dos indivíduos no plano doméstico, caracterizando uma situação definida por Rainer Forst como de “múltipla dominação”. Ou seja, uma situação em que o indivíduo é dominado “por seus (precariamente legitimados) governos, elites, ou guerreiros, que por sua vez estão tanto trabalhando em conjunto como sendo dominados por atores globais” (Forst, 2012FORST, Rainer. 2012. The Right to Justification. New York: Columbia University Press., p. 257).4 4 Rainer Forst é talvez o principal artífice de uma visão “kantiana” sobre a transnacionalização do ideal da não dominação. Forst contrapõe seu “republicanismo kantiano” ao que ele qualifica como o “republicanismo negativo” de Pettit (Forst, 2013, p. 169), interpretando o ideal da não dominação na esfera internacional mais como um princípio de justiça “além das fronteiras” do que como um princípio de legitimidade do direito e das instituições internacionais. Relativamente ao ponto que aqui mais diretamente nos interessa, Forst formula o princípio da “justiça transnacional fundamental”, que atribui “a todas as comunidades políticas o direito de participar além das fronteiras e em pé de igualdade nos discursos normativos” geradores de “estruturas de justificação” (Forst, 2015, p. 103).

Outro problema do argumento compensatório é a dificuldade de estabelecer critérios para definir os agentes aptos a estimar os efeitos benéficos capazes de compensar os efeitos deletérios da intervenção nos Estados não representativos. Possivelmente essas funções seriam exercidas por um Estado forte ou por instituições internacionais, mas se couber a esses próprios agentes decidir unilateralmente sobre a intervenção, estaremos diante de uma relação de dominação. Como bem observa Gädeke, “o poder arbitrário não pode ser transformado em poder não arbitrário por meramente prover uma justificação moral em nome de um bem maior”. A teoria republicana da liberdade estabelece sem ambiguidades que “a autoridade para legitimar a interferência só pode ser atribuída dentro de uma estrutura institucional comum de não dominação” (Gädeke, 2016GÄDEKE, Dorothea. 2016. The domination of states: towards an inclusive republican law of peoples. Global Justice: Theory and Practice, v. 9, n. 1. DOI: 10.21248/gjn.9.1.99
https://doi.org/10.21248/gjn.9.1.99...
, p. 21).

Assim, quer do ponto de vista de sua estrutura conceitual, quer do ponto de vista normativo, o modelo pettitiano da soberania globalizada encontra dificuldades para justificar, em nome do próprio ideal da não dominação, a exclusão dos Estados não representativos da condição de agentes com demandas legítimas e dignas de consideração junto à ordem global.

Somando-se a essa dificuldade de justificação da exclusão de Estados não representativos, o modelo de Pettit padece ainda de outro limite, presente em sua avaliação do papel das instituições e leis internacionais na promoção da não dominação na ordem global. Como vimos, Pettit entende que as mais graves ameaças às liberdades soberanas dos Estados provêm de outros Estados e de corporações privadas transnacionais. Já as instituições internacionais, segundo o autor, “não representam uma ameaça equivalente aos perigos provenientes de outros Estados e de organismos privados como as corporações” (Pettit, 2010bPETTIT, Philip. 2010b. A republican Law of Peoples. European Journal of Political Theory , v. 9, n. 1. DOI: 10.1177/1474885109349406
https://doi.org/10.1177/1474885109349406...
, p. 85). Porém, como observou acertadamente Christopher Thomas (2015THOMAS, Christopher Alexander. 2015. ‘Globalizing sovereignty’? Pettit’s neo-republicanism, international law, and international institutions. The Cambridge Law Journal, v. 74, n. 3, pp. 568-591. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/24693847 . Acesso em: 15 set. 2016.
https://www.jstor.org/stable/24693847...
), o “profundo otimismo” de Pettit em relação ao papel não dominante das instituições internacionais o faz subdimensionar o potencial de dominação inerente a tais instituições. Se os Estados fortes podem dispor de mecanismos que os habilitam a controlar as intervenções de instituições - como a ONU, OMC, OTAN FMI, Banco Mundial etc. -, o mesmo não pode ser dito acerca dos Estados fracos ou em desenvolvimento. Além disso, “o foco de Pettit no exercício do controle pelas instituições internacionais agindo em sentido puramente autônomo ignora como tais instituições são usadas instrumentalmente, especialmente por Estados poderosos” (Thomas, 2015THOMAS, Christopher Alexander. 2015. ‘Globalizing sovereignty’? Pettit’s neo-republicanism, international law, and international institutions. The Cambridge Law Journal, v. 74, n. 3, pp. 568-591. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/24693847 . Acesso em: 15 set. 2016.
https://www.jstor.org/stable/24693847...
, p. 22).5 5 Vale observar, também, o alto grau de heterogeneidade no rol de instituições internacionais, o que impede uma avaliação única que se aplique a todas indiscriminadamente. Amy Allen sugere que a confiança depositada por Pettit na accountability dessas instituições pode até justificar-se, ainda que precariamente, no caso de certas instituições, mas de modo algum em todos os casos. “O ponto sobre a accountability pode ter alguma validade no caso da ONU - embora a composição dos membros permanentes do Conselho de Segurança e o papel do poder de veto em suas operações torne essa alegação altamente suspeita - mas esse, definitivamente, não é o caso de instituições financeiras internacionais extremamente poderosas tais como o FMI e o Banco Mundial, que são largamente conduzidas e compostas por funcionários oriundos de países ricos e industrializados e que são grandemente responsivos aos interesses desses países em vez dos interesses dos países aos quais elas doam ou emprestam dinheiro” (Allen, 2015, p. 125).

A hipossuficiência crítica e o excessivo otimismo de Pettit em relação ao papel efetivamente exercido pelas instituições internacionais na ordem global repetem-se na consideração dispensada ao papel do direito internacional. Pettit parece ignorar o fato de que “o próprio direito internacional é produto de uma longa história de desigualdade e exploração” (Thomas, 2015THOMAS, Christopher Alexander. 2015. ‘Globalizing sovereignty’? Pettit’s neo-republicanism, international law, and international institutions. The Cambridge Law Journal, v. 74, n. 3, pp. 568-591. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/24693847 . Acesso em: 15 set. 2016.
https://www.jstor.org/stable/24693847...
, p. 25). Embora isso ganhe consistência com sua afirmação de que sua teoria deliberadamente “ignora questões de justiça histórica” (Pettit, 2014PETTIT, Philip. 2014. Just Freedom. New York: Norton & Company., p. 153), tal desconsideração acaba cobrando alto preço do ponto de vista crítico e dando margem a uma visão pouco realista sobre os alcances e limites da lei internacional na promoção da não dominação em escala global. Como resume Thomas, “a grande promessa da lei internacional contribuindo para o ‘curso das razões globais’ parece quimérica em face do desenvolvimento histórico fraturado e desigual do direito internacional” (Thomas, 2015THOMAS, Christopher Alexander. 2015. ‘Globalizing sovereignty’? Pettit’s neo-republicanism, international law, and international institutions. The Cambridge Law Journal, v. 74, n. 3, pp. 568-591. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/24693847 . Acesso em: 15 set. 2016.
https://www.jstor.org/stable/24693847...
, p. 26).

Conclusão

Em suma, embora o modelo neorrepublicano da soberania globalizada contenha considerável potencial de contribuição no campo da teoria política normativa internacional, no mínimo fornecendo uma alternativa a ser considerada para além do consenso polarizado entre estatistas e cosmopolitas, há ainda muito trabalho a ser realizado para o aprimoramento dessa perspectiva republicana internacionalista, especialmente para capacitá-la a uma percepção mais crítica dos agentes protagonistas da ordem internacional e para torná-la mais sensível ao drama de indivíduos e povos dominados interna e externamente na ordem global contemporânea.

É compreensível o ceticismo de Pettit a propósito da participação virtuosa de Estados não representativos para a expansão da liberdade republicana em escala global. Isso significaria pedir muito dos Estados falidos, que sequer reúnem as condições para cumprir as funções básicas que justificam a existência dos Estados em geral, as quais envolvem o provimento de um mínimo de bem-estar, segurança e capacidade de aplicação da lei no interior das fronteiras estatais. E seria pedir mais ainda de Estados opressivos e tirânicos, que, mesmo funcionalmente eficazes, violam sistematicamente a liberdade de seus povos em benefício dos interesses particulares de grupos que monopolizam o aparelho estatal. Normalizar a participação dos agentes desses Estados em associações voltadas à realização da liberdade em escala global significa, em alguma medida, avalizar a tirania e a opressão sobre os povos que eles deveriam representar, mas sobre os quais na realidade exercem dominação.

Contudo, Pettit não deixa suficientemente claro os contornos da noção de Estado representativo, levantando suspeitas de que sua teoria internacional simplesmente mimetiza o discurso de Estados poderosos na cena global contemporânea, bem como de instituições multilaterais controladas por estes. Dependendo de onde é traçada, na prática, a linha divisória entre Estados representativos e não representativos, o resultado poderia ser a mera justificação da atual ordem global, largamente controlada por poucos e poderosos Estados e caracterizada por evidentes déficits de justiça e legitimidade. Embora, como observamos, Pettit procure se precaver dessa suspeita, alertando que os Estados representativos de sua teoria não precisam ser democracias plenas, isso não parece o bastante para a definição de agentes legítimos e ilegítimos na conformação da soberania globalizada, como vimos com Dorothea Gädeke. Porém, a solução que atribui legitimidade à participação de todo e qualquer Estado na ordem republicana global, sugerida por Gädeke, tampouco parece satisfatória. Sem falar nos Estados arrasados por guerras civis ou devastados por catástrofes naturais, funcionalmente incapazes de incorporar seus povos e de os representar externamente, não podemos simplesmente ignorar a existência de tiranias que desejam apenas permanecer como são: regimes destinados a sufocar qualquer vestígio de constituição da vontade popular e sem qualquer compromisso com o bem-estar de seus cidadãos. Regimes que, não raro, só se sustentam com a violação massiva dos direitos humanos dos indivíduos submetidos à sua jurisdição.

O que falta ao modelo de Pettit é uma perspectiva mais crítica sobre a atuação dos próprios Estados representativos e das instituições internacionais na arena global, atuação frequentemente mais orientada para consolidação de assimetrias geradoras de dominação do que para expansão da liberdade republicana. Falta a transição do neorrepublicanismo ao republicanismo crítico.6 6 Na justa observação de Gädeke (2020, p. 23), “o neorrepublicanismo de Pettit possui um poderoso potencial crítico, muitas vezes facilmente ignorado por alguns de seus críticos”, mas, “esse potencial crítico pode ser fortalecido ao reconceituar sua teoria da dominação a partir de uma perspectiva inspirada na vertente kantiana do pensamento republicano e na teoria crítica contemporânea da Escola de Frankfurt. Isso abrirá caminho para o desenvolvimento do que chamo de republicanismo crítico.” E o meio mais promissor para esse fim parte do tensionamento dos limites internos ao modelo da soberania globalizada, não de seu simples abandono. É exatamente esse caminho que começa a ser trilhado por teóricos do internacionalismo republicano influenciados por Pettit. Gädeke é um exemplo, mas há outros esforços dignos de nota.

Em Laborde (2010LABORDE, Cécile. 2010. Republicanism and global justice: a sketch. European Journal of Political Theory, v. 9, n. 1. DOI: 10.1177/1474885109349404
https://doi.org/10.1177/1474885109349404...
) e Laborde e Ronzoni (2016LABORDE, Cecile; RONZONI, Mirian. 2016. What is a free State? Republican internationalism and globalization. Political Studies, v. 64, n. 2. DOI: 10.1111/1467-9248.12190
https://doi.org/10.1111/1467-9248.12190...
), por exemplo, encontramos convincentes argumentos para o refinamento da crítica neorrepublicana à atual ordem global. Laborde entende que parte das dificuldades do modelo de Pettit ancora-se em sua concepção de dominação exclusivamente focada na relação entre agentes. Por isso, “ele ignora o fato de que o sistema global é apenas em alguns aspectos análogo a um estado de natureza não regulamentado, onde relações de dominação (relativas aos agentes) ocorrem”. Mas o fato é que, em importantes aspectos, trata-se de “uma ordem sistêmica (estruturalmente injusta) que autoriza e agrava a subserviência e a dependência pré-institucional de Estados fracos”. Exemplo disso é a “forma como os processos de globalização e liberalização têm sido gerenciados por organizações internacionais como o FMI, a OMC e o Banco Mundial.” (Laborde, 2010LABORDE, Cécile. 2010. Republicanism and global justice: a sketch. European Journal of Political Theory, v. 9, n. 1. DOI: 10.1177/1474885109349404
https://doi.org/10.1177/1474885109349404...
, p. 57).

É preciso, portanto, complementar a dimensão da dominação focada nos agentes com sua dimensão sistêmica e estrutural. Com isso, a teoria política do internacionalismo republicano torna-se mais bem equipada para lidar com o grave problema da desigualdade material em escala internacional. Na verdade, a própria noção de que pode haver dominação sem interferência efetiva, um dos principais topoi da teoria neorromana da liberdade, só pode ser adequadamente formulada quando se tem em perspectiva a dimensão sistêmica da dominação. Assim, por exemplo, “quando países pobres se submetem para agradar aos Estados mais ricos dos quais dependem, sem que os Estados mais poderosos façam qualquer demanda ou ameaça explícita, temos um caso paradigmático de dominação internacional sem interferência.” (Laborde e Ronzoni, 2016LABORDE, Cecile; RONZONI, Mirian. 2016. What is a free State? Republican internationalism and globalization. Political Studies, v. 64, n. 2. DOI: 10.1111/1467-9248.12190
https://doi.org/10.1111/1467-9248.12190...
, p. 289). O combate a essa dimensão estrutural da dominação internacional não requer a pressuposição da virtude dos Estados representativos. O interesse é um poderoso fator de obstrução da virtude, enquanto esse tipo de intervenção regulatória na ordem global deve realizar-se a despeito de alguns dos mais entrincheirados interesses dos Estados mais ricos e poderosos. Iniciativas nessa direção requerem profundas reformas institucionais, mirando especialmente na adequada regulação dos mercados mundiais, pois “uma economia bem regulada pode muito bem ser a melhor forma de garantir a não dominação mútua entre os agentes no mercado, ao passo que um mercado sem regras poderá dar origem a um poder arbitrário.” (Laborde e Ronzoni, 2016LABORDE, Cecile; RONZONI, Mirian. 2016. What is a free State? Republican internationalism and globalization. Political Studies, v. 64, n. 2. DOI: 10.1111/1467-9248.12190
https://doi.org/10.1111/1467-9248.12190...
, p. 280)

Por fim, assim como a concepção de dominação de Pettit, fortemente centrada no agente, deve ser complementada (não substituída) por uma perspectiva mais sistêmica e estrutural, a abordagem predominantemente institucional do internacionalismo pettitiano deve ser complementada por uma abordagem voltada à agência cívica de cidadãos e movimentos sociais que atuam em redes transnacionais no combate às diversas formas de dominação em escala global. Para os internacionalistas republicanos, os Estados nacionais são agentes privilegiados da soberania globalizada, mas não devem ser pensados como agentes exclusivos. Tal complementação é também resultante de uma crítica interna ao modelo de Pettit. Como advoga Steven Slaughter (2018SLAUGHTER, Steven. 2018. Republicanism and international political theory. In: BROWN, Chris; ECKSERLEY, Robyn (ed.). The Oxford Handbook of International Political Theory. Oxford: Oxford University Press ., p. 636), outro discípulo de Pettit ocupado em realizar o potencial crítico do internacionalsimo republicano, “o impulso gerado pelo republicanismo crítico” exige que “a abordagem dos problemas globais” considere “o potencial dos cidadãos e dos ativistas juntamente aos argumentos institucionais e normativos dos acadêmicos republicanos”.

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    » https://doi.org/10.1515/krt-2015-290105
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    Para a caracterização do neorrepublicanismo como um programa de pesquisas de teoria política institucional e normativa, ver Lovett e Pettit, 2010LOVETT, Frank; PETTIT, Philip. 2010. Neo-republicanism: a normative and institutional research program. Annual Review of Political Science, v. 12, pp.11-29. DOI: 10.1146/annurev.polisci.12.040907.120952
    https://doi.org/10.1146/annurev.polisci....
    . O presente artigo é resultado parcial de pesquisa mais ampla realizada com o apoio de bolsa de produtividade (nível 1D) do CNPq, a quem presto meus agradecimentos.
  • 2
    Todas as traduções das citações em língua estrangeira são de minha livre autoria.
  • 3
    A teoria republicana da liberdade como não dominação difere da teoria da liberdade como não interferência ao restringir o tipo de interferência que resulta em redução ou comprometimento da liberdade. Enquanto a vertente dominante da teoria liberal postula que qualquer forma de interferência nas escolhas individuais é lesiva à liberdade (Berlin, 2002BERLIN, Isaiah. 2002. Dois conceitos de liberdade. In: HARDY, Henry; HAUSHEER, Roger (org.). Estudos sobre a Humanidade. São Paulo: Companhia das Letras.; Carter, 1999CARTER, Ian. 1999. A Measure of Freedom. Oxford: Oxford University Press .; Kramer, 2003KRAMER, Mattew. 2003. The Quality of Freedom. Oxford: Oxford University Press .), a teoria republicana sustenta que apenas a interferência arbitrária o é. Assim, formas não arbitrárias de interferência, que condicionam certas escolhas dos indivíduos, são justificadas na teoria republicana. Este é o caso dos dispositivos legais de uma república bem ordenada. Que a lei limita as escolhas dos cidadãos, é fato indisputável. Mas tal limitação não apenas é inofensiva à liberdade como em alguma medida lhe é constitutiva. “Assim como as leis criam a autoridade de que os governantes desfrutam, elas criam a liberdade que os cidadãos compartilham” (Pettit, 1997PETTIT, Philip. 1997. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford: Oxford University Press ., p. 36). Um arranjo legal apropriado cria as liberdades básicas dos cidadãos. Um aspecto definidor do conceito de liberdade básica reside no fato de que as liberdades desse tipo são aquelas em que nenhum cidadão pode sofrer interferência e que podem ser exercidas e desfrutadas concomitantemente por todos os cidadãos. Elas são, na terminologia de Pettit, “co-exercible” e “co-satisfaying” (Pettit, 2012PETTIT, Philip. 2012. On the People’s terms: a republican theory and model of democracy. Cambridge: Cambridge University Press .).
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    Rainer Forst é talvez o principal artífice de uma visão “kantiana” sobre a transnacionalização do ideal da não dominação. Forst contrapõe seu “republicanismo kantiano” ao que ele qualifica como o “republicanismo negativo” de Pettit (Forst, 2013FORST, Rainer. 2013. A Kantian republican conception of justice as nondomination. In: NIERDERBERGER, Andreas; SCHINK, Philipp (ed.). Republican Democracy: liberty, law and politics Edinburgh: Edinburgh University Press., p. 169), interpretando o ideal da não dominação na esfera internacional mais como um princípio de justiça “além das fronteiras” do que como um princípio de legitimidade do direito e das instituições internacionais. Relativamente ao ponto que aqui mais diretamente nos interessa, Forst formula o princípio da “justiça transnacional fundamental”, que atribui “a todas as comunidades políticas o direito de participar além das fronteiras e em pé de igualdade nos discursos normativos” geradores de “estruturas de justificação” (Forst, 2015FORST, Rainer. 2015. Transnational justice and nondomination. In: BUCKINX, Barbara; TREJO-MATHYS, Jonathan; WALIGORE, Timothy (ed.). Domination and Global Political Justice: conceptual, historical, and institutional perspectives . London: Routledge ., p. 103).
  • 5
    Vale observar, também, o alto grau de heterogeneidade no rol de instituições internacionais, o que impede uma avaliação única que se aplique a todas indiscriminadamente. Amy Allen sugere que a confiança depositada por Pettit na accountability dessas instituições pode até justificar-se, ainda que precariamente, no caso de certas instituições, mas de modo algum em todos os casos. “O ponto sobre a accountability pode ter alguma validade no caso da ONU - embora a composição dos membros permanentes do Conselho de Segurança e o papel do poder de veto em suas operações torne essa alegação altamente suspeita - mas esse, definitivamente, não é o caso de instituições financeiras internacionais extremamente poderosas tais como o FMI e o Banco Mundial, que são largamente conduzidas e compostas por funcionários oriundos de países ricos e industrializados e que são grandemente responsivos aos interesses desses países em vez dos interesses dos países aos quais elas doam ou emprestam dinheiro” (Allen, 2015ALLEN, Amy. 2015. Domination in global politics: a critique of Pettit’s neo-republican model. In: BUCKINX, Barbara; TREJO-MATHYS, Jonathan; WALIGORE, Timothy (ed.). Domination and Global Political Justice: conceptual, historical, and institutional perspectives. London: Routledge., p. 125).
  • 6
    Na justa observação de Gädeke (2020GÄDEKE, Dorothea. 2020. From neo-republicanism to critical republicanism. In: LEIPOLD, Bruno; NABULSI, Karma; WHITE, Steven (ed.). Radical Republicanism: recovering tradition’s popular heritage. Oxford: Oxford University Press ., p. 23), “o neorrepublicanismo de Pettit possui um poderoso potencial crítico, muitas vezes facilmente ignorado por alguns de seus críticos”, mas, “esse potencial crítico pode ser fortalecido ao reconceituar sua teoria da dominação a partir de uma perspectiva inspirada na vertente kantiana do pensamento republicano e na teoria crítica contemporânea da Escola de Frankfurt. Isso abrirá caminho para o desenvolvimento do que chamo de republicanismo crítico.”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2022
  • Aceito
    08 Set 2023
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