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VIGIANDO O PROTESTO: RECONFIGURAÇÕES DAS TÁTICAS POLICIAIS DE CONTROLE AS MANIFESTAÇÕES SOCIAIS DURANTE A COPA DO MUNDO DE 20141 1 Agradeço às pareceristas da revista Lua Nova pelos comentários ao texto. O artigo baseia-se na pesquisa realizada para a elaboração da tese “Entre ruas, câmeras e redes: as transformações das táticas policiais de controle à ação coletiva contestatória em Porto Alegre (2013-2014)”, de Eduardo Georjão Fernandes, defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2020. A tese recebeu a menção honrosa para teses em ciências sociais no Concurso Brasileiro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) de Obras Científicas e Teses Universitárias em Ciências Sociais - Edição 2021.

SURVEILLING THE PROTEST: RECONFIGURATIONS OF POLICE TACTIC TO CONTROL SOCIAL DEMONSTRATIONS DURING THE 2014 WORLD CUP

Resumo

Este artigo objetiva explicar, a partir do caso empírico do policiamento a protestos em Porto Alegre durante a Copa do Mundo de 2014, como a incorporação de novas tecnologias de informação e comunicação (TIC) compõe e/ou transforma as táticas policiais de vigilância à ação coletiva. Metodologicamente são utilizadas como fontes entrevistas com agentes policiais e um banco de notícias sobre a cobertura dos protestos à época. Os resultados apontam que o uso de TIC envolve o Centro Integrado de Comando e Controle, o imageamento aéreo, o monitoramento das ruas e o monitoramento das redes sociais, tendendo a produzir o policiamento antecipatório e a ampliação seletiva da visibilidade sobre os manifestantes. A combinação das táticas de vigilância com o controle espacial configura um modelo de incapacitação estratégica do protesto, embora sejam identificadas limitações institucionais na operacionalização das TIC.

Palavras-chave:
Protestos; Policiamento; Vigilância; Novas Tecnologias de Informação e Comunicação; Megaeventos

Abstract

The paper aims to explain, based on the empirical case of policing protests in Porto Alegre during the 2014 World Cup, how the incorporation of new information and communication technologies (ICTs) composes and/or transforms police surveillance tacTIC against collective action. Methodologically, interviews with police agents and a database of the news coverage of the protests are used as sources. The results indicate that the use of ICTs involves the Integrated Command and Control Center, aerial imagery, street monitoring and social media monitoring, tending to produce anticipatory policing and selective expansion of visibility over protesters. The combination of surveillance tacTIC with spatial control configures a model of strategic incapacitation of the protest, although institutional limitations are identified in the operationalization of ICTs.

Keywords:
Protests; Policing; Surveillance; New Information and Communication Technologies; Megaevents

Introdução

O policiamento a eventos de protesto tem sido, ao menos desde o ciclo de protestos de 2013, objeto de controvérsias no debate público nacional. Embora a história das interações entre forças policiais e movimentos sociais no Brasil seja marcada pelo caráter confrontacional, o ano de 2013 marca a ampla divulgação da faceta mais visível do confronto político nas ruas das principais cidades do país. Naquele período, a emergência da ação de grupos identificados com as táticas black bloc levantou discussões acerca da legitimidade do uso da ação direta disruptiva como forma de ativismo. Por outro lado, a repressão policial tornou-se pauta dos próprios protestos, e diversas violações do direito ao protesto foram documentadas: a falta de identificação dos agentes policiais nas ruas, o uso desproporcional da força, o recurso a detenções arbitrárias etc. (Artigo 19, 2014ARTIGO 19. 2014. Protestos no Brasil 2013. Brasil: creative Commons. São Paulo. Disponível em: Disponível em: http://artigo19.org/blog/2014/06/23/relatorio-protestos-no-brasil-2013/ . Acesso em: 22 set. 2019.
http://artigo19.org/blog/2014/06/23/rela...
).

No ano seguinte, o Brasil sediou a Copa do Mundo de Futebol Masculino. O evento foi marcado tanto por um conjunto de protestos contrários à sua realização quanto pelo alto investimento em equipamentos de segurança. Entre 2011 e 2016, por exemplo, mais da metade dos recursos da Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos (SESGE) direcionou-se à criação dos Centros Integrados de Comando e Controle (CICC), centros que utilizam novas tecnologias para controle sobre o espaço e integração entre órgãos de segurança pública, nas cidades que sediaram jogos da Copa do Mundo.2 2 Cf.: http://apublica.org/vigilancia/vigilancia-em-numeros/. Acesso em: 1 ago. 2022. Tais centros foram mobilizados para o controle a eventos de protesto durante a Copa (Maciel e Machado, 2021MACIEL, Débora; MACHADO, Marta de Assis. 2021. Flows of Protest Control in São Paulo (2013-2014). Novos Estudos, v. 40, n.2, pp. 227-241.; Machado, Maciel e Souza, 2021MACHADO, Marta de Assis; MACIEL, Débora; SOUZA, Rafael de. 2021. Intertwining Public Security Policy and Protest Control in Brazil: Sports Mega-events and International Diffusion of Repression. Latin American Law Review, n. 7, pp. 81-100.).

Esses aspectos apontam para a centralidade da interação entre ação coletiva e ação repressiva nas arenas do confronto político, tanto no âmbito extra institucional - ou seja, nas ruas - quanto nos gabinetes da política institucional. A emergência do debate público sobre policiamento a protestos tem sido incorporada pela literatura nacional sob diversos ângulos.

Ao dialogar centralmente com os estudos que buscam entender como as características institucionais e culturais das forças policiais impactam o policiamento a protestos, identifico que um aspecto ainda pouco estudado pela literatura nacional são os efeitos que a incorporação de novas tecnologias da informação e comunicação (TIC) pelas forças policiais produz no controle aos movimentos sociais e aos eventos de protesto. Os efeitos das TIC, em especial a amplificação do uso das redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter), têm sido estudados para entender os diferentes aspectos de organização, disseminação e promoção da ação coletiva (Bennett e Segerberg, 2012BENNETT, Lance; SEGERBERG, Alexandra. 2012. The Logic of Connective Action. Information, Communication & Society, v. 15, n. 5, pp. 739-768.), mas pouco se sabe a respeito dos impactos das TIC para a repressão e o controle dos movimentos sociais e dos eventos de protesto. Além disso, a literatura dos movimentos sociais, quando analisa a repressão policial, tende a abordar as táticas mais visíveis, como episódios de violência policial, detenções e o uso de armamento menos letal, relegando as táticas de vigilantismo a segundo plano (Cable, 2017CABLE, Jonathan. 2017. Communication Sciences and the Study of Social Movements. In: ROGGEBAND, Conny; KLANDERMANS, Bert. (ed.). Handbook of Social Movements Across Disciplines. 2. ed. New York: Springer, 2017. pp. 185-202.; Earl, 2004EARL, Jennifer. 2004. Controlling Protest: New Directions for Research on the Social Control of Protest. Research in Social Movements , Conflicts and Change, v. 25, pp. 55-83.).

Essas questões apontam para a importância de pesquisas que abordam como as TIC têm sido mobilizadas como forma de vigilância policial aos movimentos sociais, aos eventos de protesto e à ação coletiva contestatória de modo geral. Frente a tal lacuna, este estudo busca explicar, a partir do caso empírico do policiamento a protestos em Porto Alegre durante a Copa do Mundo de 2014, como a incorporação das TIC compõe e/ou transforma as táticas policiais de vigilância à ação coletiva.

O artigo está assim subdivido: na próxima seção, apresento o debate da literatura sobre táticas de vigilância e policiamento ao protesto; em seguida, descrevo os procedimentos metodológicos da pesquisa; na seção posterior, apresento a análise empírica; a seguir, sintetizo a discussão, relacionando a empiria com o referencial teórico; por fim, as considerações finais resumem os principais resultados da pesquisa.

Da infiltração à vigilância digital: as táticas policiais de vigilância à ação coletiva

A vigilância pode ser definida como “qualquer recuperação e processamento de dados pessoais, seja identificável ou não, para os propósitos de influenciar ou gerenciar aqueles cujos dados foram recuperados” (Lyon, 2001LYON, David. 2001. Surveillance Society: Monitoring Everyday Life. Oxford: Open University Press., p. 2). Dado que o exercício do ato de vigiar pressupõe o acesso a recursos e técnicas cuja distribuição tende a ser desigual entre atores e grupos sociais, a vigilância geralmente envolve relações assimétricas de poder (Foucault, 2002FOUCAULT, Michel. 2002. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes.; Fuchs, 2011FUCHS, Christian. 2011. Como podemos definir vigilância? MATRIZes, v. 5, n. 1, pp. 109-136.). As pesquisas dedicadas a compreender os fenômenos ligados a essas relações têm sido abarcadas sob a expressão: estudos em vigilância (Ball e Haggerty; Lyon, 2001LYON, David. 2001. Surveillance Society: Monitoring Everyday Life. Oxford: Open University Press., 2007LYON, David. 2007. Surveillance Studies: An Overview. Oxford: Polity Press. 2012BALL, Kirstie; HAGGERTY, Kevin; LYON, David (ed.). 2012. Routledge Handbook of Surveillance Studies. New York: Routledge.).

Historicamente, a vigilância é uma das formas sutis e pouco visíveis de controle social à ação coletiva. As pesquisas pioneiras da literatura sobre vigilância e movimentos sociais preocuparam-se com a tática da infiltração, uma forma mais tradicional e menos dependente do uso de novas tecnologias. Os trabalhos de Gary T. Marx (1974MARX, Gary T. 1974. Thoughts on a Neglected Category of Social Movement Participant: The Agent Provocateur and the Informant. American Journal of Sociology, v. 80, n. 2, pp. 402-442., 1979MARX, Gary T. 1979. “External Efforts to Damage or Facilitate Social Movements: Some Patterns, Explanations, Outcomes and Complications”. In: McCARTHY, John; ZALD, Mayer N. (ed.). The Dynamics of Social Movements, pp. 94-125. Cambridge: Winthrop Publishing, 1979., 1988MARX, Gary T. 1988. Undercover. Berkeley: University of California Press .), por exemplo, analisam o papel dos agentes provocadores e dos informantes estatais na relação com movimentos sociais, mapeando as características desses atores, suas motivações e seus dilemas, bem como as respostas de movimentos sociais à infiltração. Cunningham (2004CUNNINGHAM, David. 2004. There’s Something Happening Here: The New Left, the Klan, and FBI Counterintelligence. Berkeley: University of California Press.) estuda a ação do Federal Bureau of Investigation (FBI) no desenvolvimento do counterintelligence program (COINTELPRO), um programa de contrainteligência direcionado ao controle de grupos ativistas no Estados Unidos entre 1956 e 1971. O autor identifica diversas funções executadas pela infiltração, como a criação de uma imagem pública negativa do movimento, a quebra da organização interna das organizações de movimento social e a criação de dissenso entre grupos ativistas.

Enquanto a infiltração não necessariamente depende da mobilização de tecnologias digitais, o período recente, identificado por Marx (2002MARX, Gary T. 2002. What’s New About the ‘New Surveillance’? Classifying for Change and Continuity. Surveillance and Society, v. 1, n. 1, pp. 9-29., 2012MARX, Gary T. 2012. Preface: ‘Your Papers, please’: personal and professional encounters with surveillance. In: BALL, Kirstie; HAGGERTY, Kevin; LYON, David (ed.). 2012. Routledge Handbook of Surveillance Studies . New York: Routledge .) como de nova vigilância, é marcado pela proliferação de aparatos tecnológicos (TIC), os quais diminuem consideravelmente os custos do controle social da ação coletiva (Earl, 2011EARL, Jennifer. 2011. “Political repression: Iron fists, velvet gloves and diffuse control”. Annual Review of Sociology, v. 37, pp. 261-284.). No contexto do século XXI, em especial com a difusão dos protestos vinculados ao Movimento por Justiça Global,3 3 O Movimento por Justiça Global (Global Justice Movement) é uma série de eventos de escala global, conectados pela oposição às grandes corporações comerciais e por reivindicações direcionadas a uma distribuição mais igualitária dos recursos econômicos. A “batalha de Seattle” de 1999, um protesto contra reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) no qual houve um intenso confronto entre forças policiais e manifestantes, é considerado o evento inaugural desse ciclo. algumas pesquisas têm abordado a relação entre TIC, controle social e ação coletiva. O foco central dessas pesquisas é análise do uso de novos aparatos tecnológicos pelas forças policiais, desde drones a redes sociais. Essas transformações no repertório de ação policial, qualificadas por Cable (2017CABLE, Jonathan. 2017. Communication Sciences and the Study of Social Movements. In: ROGGEBAND, Conny; KLANDERMANS, Bert. (ed.). Handbook of Social Movements Across Disciplines. 2. ed. New York: Springer, 2017. pp. 185-202., p. 197) como “vigilância digital”, têm sido identificadas sob duas dimensões centrais: uma, relativa à temporalidade; outra, relativa à visibilidade.

A dimensão da temporalidade diz respeito à reflexão sobre como a incorporação das TIC pelas forças policiais impacta o tempo de execução das ações de controle sobre ativistas, manifestantes e protestos e sobre quais são as implicações dessas mudanças para a ação coletiva contestatória (Binder, 2016BINDER, Clemens. 2016. Happenings Foreseen: Social Media and the Predictive Policing of Riots. S+F, v. 34, n. 4, pp. 242-274.; Dencik, Hintz e Carey, 2018DENCIK, Lina; HINTZ, Arne; CAREY, Zoey. 2018. Prediction, pre-emption and limits to dissent: social media and big data uses for policing protests in the United Kingdom. New Media & Society, v. 20, n. 4, pp. 1433-1450.; Perry et al., 2013PERRY, Walter; McINNIS, Brian; PRICE, Carter; SMITH, Susan; HOLLYWOOD, John. S. 2013. Predictive Policing: The Role of Crime Forecasting in Law Enforcement Operations. Washington, DC: RAND Corporation.). O principal argumento dessa literatura é de que as ações mais tradicionais de controle tendem a ser reativas (por exemplo, o uso de armamento menos letal e/ou de detenções para dispersão de um protesto), enquanto a incorporação de TIC amplia a possibilidade de um policiamento antecipatório ou preditivo (Binder, 2016BINDER, Clemens. 2016. Happenings Foreseen: Social Media and the Predictive Policing of Riots. S+F, v. 34, n. 4, pp. 242-274.; Dencik, Hintz e Carey, 2018DENCIK, Lina; HINTZ, Arne; CAREY, Zoey. 2018. Prediction, pre-emption and limits to dissent: social media and big data uses for policing protests in the United Kingdom. New Media & Society, v. 20, n. 4, pp. 1433-1450.). Assim, parte da ação policial se concentraria sobre os atos preparatórios do protesto, com a ampliação das possibilidades de coleta de informações sobre quem são os ativistas, quais suas reivindicações, qual o planejamento para a realização de um evento de protesto etc. O uso das tecnologias, nesse sentido, conferiria vantagens táticas às forças policiais por meio da possibilidade de antecipação à ação dos manifestantes.

Dencik, Hintz e Carey (2018DENCIK, Lina; HINTZ, Arne; CAREY, Zoey. 2018. Prediction, pre-emption and limits to dissent: social media and big data uses for policing protests in the United Kingdom. New Media & Society, v. 20, n. 4, pp. 1433-1450.), por exemplo, analisam o uso de redes sociais e grandes bases de dados (big data) pela polícia do Reino Unido para produção de um policiamento mais proativo do que reativo, focado em prever a ocorrência e as características de eventos de protesto. No mesmo sentido, Binder (2016BINDER, Clemens. 2016. Happenings Foreseen: Social Media and the Predictive Policing of Riots. S+F, v. 34, n. 4, pp. 242-274.) analisa a influência das redes sociais no policiamento a protestos e afirma que esse processo de incorporação de novas tecnologias tende à configuração de um “policiamento preditivo”. Este pode ser definido como “a aplicação de técnicas analíticas - particularmente técnicas quantitativas - para identificar alvos prováveis para intervenção policial e prevenir crimes ou resolver crimes passados realizando previsões estatísticas” (Perry et al., 2013PERRY, Walter; McINNIS, Brian; PRICE, Carter; SMITH, Susan; HOLLYWOOD, John. S. 2013. Predictive Policing: The Role of Crime Forecasting in Law Enforcement Operations. Washington, DC: RAND Corporation., p. 1).

Um segundo argumento articulado à questão da temporalidade é de que, para atuar de forma antecipada, os agentes policiais mobilizariam estereótipos sobre “bons” e “maus” manifestantes (Della Porta e Atak, 2015DELLA PORTA, Donatella; ATAK, Kivanç. 2015. The police. In: DUYVENDAK, Jan Willem; JASPER, James (ed.). Breaking down the state. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2015.; de Fazio, 2017), priorizando a coleta seletiva de informações sobre ativistas classificados como potencialmente perigosos. O policiamento preditivo mobiliza dados disponíveis, o conhecimento sobre eventos históricos e as características dos manifestantes para prever a possibilidade de ocorrência de protestos ou de atos violentos durante uma manifestação (Binder, 2016BINDER, Clemens. 2016. Happenings Foreseen: Social Media and the Predictive Policing of Riots. S+F, v. 34, n. 4, pp. 242-274.). Essa avaliação preditiva, assim, recorrentemente é atravessada pelos vieses prévios dos agentes de controle, o que pode reforçar um policiamento seletivo baseado em estereótipos, reforçando a criminalização de determinados grupos (Dencik, Hintz e Carey, 2018DENCIK, Lina; HINTZ, Arne; CAREY, Zoey. 2018. Prediction, pre-emption and limits to dissent: social media and big data uses for policing protests in the United Kingdom. New Media & Society, v. 20, n. 4, pp. 1433-1450.).

Sobre a dimensão da visibilidade, o principal argumento da literatura é de que a incorporação das TIC nas operações policiais forneceria, em relação às táticas tradicionais, possibilidades ampliadas de coleta de informações sobre ativistas, manifestantes e eventos de protesto. Enquanto a infiltração considerada tradicional envolve um intenso trabalho de construção de relações e coleta não sistemática de informações, as tecnologias envolvem possibilidades como o acesso a fontes de dados abertos (principalmente as redes sociais digitais) e o uso de softwares para sistematização da coleta de dados. As tecnologias, nesse aspecto, forneceriam vantagens táticas às forças policiais, dado que as instituições estatais tenderiam a acessar mais recursos tecnológicos em relação aos ativistas e às organizações de movimentos sociais, reforçando assim uma assimetria nas relações de poder entre esses atores.

Um segundo argumento é de que, enquanto as ações policiais tradicionais (por exemplo, uso de armamento menos letal) são mais visíveis e, portanto, mais passíveis de críticas e sujeitas ao controle social, as táticas de vigilância pelo uso de tecnologias recorrentemente são operadas de forma pouco transparente. Esse caráter opaco do uso das tecnologias pelas forças policiais dificultaria o controle da legalidade dessas ações (Artigo 19, 2017ARTIGO 19. 2017. Repressão às escuras - uma análise sobre transparência em assuntos de segurança pública e protestos. Brasil: Creative Commons.São Paulo. Disponível em: Disponível em: https://artigo19.org/?p=11270 . Acesso em: 7 jan. 2020.
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).

Sobre a dimensão da visibilidade, Brighenti (2010BRIGHENTI, Andrea Mubi. 2010. Visibility in social theory and social research. Basingstoke: Palgrave Macmillan., pp. 148-149) afirma que a vigilância é baseada em um “esforço para alcançar e subsequentemente gerenciar, em uma forma de rotina, a visibilidade de várias identidades, condutas e eventos em benefício do agente ou agência que promove a atividade de vigilância”. Nesse sentido, plataformas sociais digitais, quando se constituem como fonte de coleta informações por forças de segurança, podem se tornar um espaço de securitização, ou seja, um espaço permeado pela lógica da ordem e da punição (Binder, 2016BINDER, Clemens. 2016. Happenings Foreseen: Social Media and the Predictive Policing of Riots. S+F, v. 34, n. 4, pp. 242-274.).

Trottier, em sua pesquisa sobre o uso das redes sociais pelas polícias, demonstra como as forças policiais se adaptam à quantidade de informações de plataformas digitais como o Facebook em protestos recentes (2012TROTTIER, Daniel. 2012. Policing Social Media: Policing Social Media. Canadian Review of Sociology, v. 49, n. 4, pp. 411-425.) e como se dá, de modo geral, o monitoramento das fontes de dados abertos pelas instituições policiais (2015TROTTIER, Daniel. 2015. Open source intelligence, social media and law enforcement: Visions, constraints and critiques. European Journal of Cultural Studies, v. 18, n. 4-5, pp. 530-547.). O autor identifica tensões quanto às fronteiras entre o público e privado ao abordar os riscos ligados ao amplo uso de informações das plataformas digitais para fins de controle e criminalização. Esse fenômeno de visbilização intensa de determinados atores com fins de punição tende a criar, segundo Trottier (2017TROTTIER, Daniel. 2017. Digital Vigilantism as Weaponisation of Visibility. Philosophy & Technology, v. 30, n. 1, pp. 55-75., p. 55), uma “forma paralela de justiça criminal”, conceituada pelo autor como “armamento da visibilidade”.

Também na discussão sobre visibilidade, Monaghan e Walby (2012aMONAGHAN, Jeffrey; WALBY, Kevin. 2012a. Making up ‘Terror Identities’: security intelligence, Canada’s Integrated Threat Assessment Centre and social movement suppression. Policing & Society, v. 22, n. 2, pp. 133-151., 2012bMONAGHAN, Jeffrey; WALBY, Kevin. 2012b. They attacked the city’: Security intelligence, the sociology of protest policing and the anarchist threat at the 2010 Toronto G20 summit. Current Sociology, v. 60, n. 5, pp. 653-671.) analisam o uso de práticas de inteligência pelas polícias no Canadá durante a ocorrência de megaeventos recentes. Os autores identificam que o megaevento se constitui como uma oportunidade para a formação de redes policiais de inteligência e vigilância, com a ampliação das capacidades para “intimidar, ameaçar e desmobilizar grupos de movimentos sociais” (Monaghan; Walby, 2012aMONAGHAN, Jeffrey; WALBY, Kevin. 2012a. Making up ‘Terror Identities’: security intelligence, Canada’s Integrated Threat Assessment Centre and social movement suppression. Policing & Society, v. 22, n. 2, pp. 133-151., p. 146). Especificamente, os autores entendem que, na relação assimétrica de visibilidade, as forças policiais mobilizam um mecanismo de “ampliação da ameaça” ao superdimensionar os potenciais riscos ligados a determinados grupos ativistas (Monaghan e Walby, 2012bMONAGHAN, Jeffrey; WALBY, Kevin. 2012b. They attacked the city’: Security intelligence, the sociology of protest policing and the anarchist threat at the 2010 Toronto G20 summit. Current Sociology, v. 60, n. 5, pp. 653-671., p. 667).

Grinberg (2019GRINBERG, Daniel. 2019. Tracking movements: Black activism, aerial surveillance, and transparency optics. Media, Culture & Society, v. 41, n. 3, pp. 294-316.), estudando a ação do FBI na vigilância aérea a protestos, propõe o conceito de ótica da transparência para tratar da ampla visibilização que o uso das tecnologias promove sobre a ação coletiva e questionar como as informações são construídas e disseminadas, também levantando reflexões críticas quanto à seletividade das forças de controle na produção de discursos de risco sobre determinados grupos. Melgaço e Monaghan (2018MELGAÇO, Lucas; MONAGHAN, Jeffrey. (ed.). 2018. Protests in the Information Age: Social Movements, Digital Practices and Surveillance. London: Routledge.) também enfatizam a expansão das possibilidades de controle policial sobre a ação coletiva com base na dialética entre visibilidade e invisibilidade, processo visto pelos autores como uma luta por poder; assim, as tecnologias policiais de vigilância, ao ampliar a visibilidade de determinados grupos perante as agências policiais, permitiriam um maior controle sobre a ação coletiva.

Em suma, os estudos acima mencionados tendem a girar em torno de dois argumentos principais: na dimensão temporal, a incorporação das TIC produziria um policiamento mais preditivo/antecipatório e menos reativo; na dimensão da visibilidade, a incorporação das TIC ampliaria a visibilidade sobre ativistas e manifestantes, reduzindo os custos do controle da ação coletiva. Ambos os argumentos levantam preocupações quanto aos efeitos do uso das TIC pelas forças policiais na restrição do direito de protesto, como será analisado empiricamente a seguir.

Dados e métodos

Este artigo é resultado de um projeto mais amplo de análise do policiamento a protestos em Porto Alegre. Para este estudo, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com agentes de segurança pública atuantes na cidade de Porto Alegre e no estado do Rio Grande do Sul. Buscou-se abranger uma ampla diversidade de instituições e funções ocupadas pelos atores nas respectivas instituições. Foram entrevistados agentes da Polícia Militar (PMRS), da Polícia Civil (PCRS) e da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSPRS), além de agentes da Guarda Municipal (GM) e da Secretaria Municipal de Segurança de Porto Alegre (SMSEG). Foram priorizadas entrevistas com agentes que trabalharam com o controle de eventos de protesto, movimentos sociais e ação coletiva de forma geral,em especial agentes que atuaram no controle policial a eventos promovidos durante a Copa do Mundo de 2014, bem como profissionais que atuam ou atuaram em serviços de inteligência e/ou em centros integrados de comando e controle.

As entrevistas, realizadas com 13 agentes, seguiram um roteiro semiestruturado e as perguntas adequaram-se aos vínculos institucionais, aos cargos ocupados e à experiência de cada um dos entrevistados. Resguardadas as diferenças de abordagem para cada entrevistado, o roteiro foi composto por quatro blocos de perguntas, abordando: a trajetória dos entrevistados e os pontos de conexão entre tal trajetória e o objeto da pesquisa; a estrutura institucional e os aparatos tecnológicos; o controle à ação coletiva; a conexão entre TIC, táticas de vigilância e o controle da ação coletiva. As entrevistas foram transcritas pelo pesquisador e em seguida foi realizada a análise de conteúdo (Bardin, 2010BARDIN, Laurence. 2010. Análise de conteúdo. 4. ed. Lisboa: Edições 70.) com auxílio do software NVivo 12.

A pesquisa também utilizou de forma subsidiária um banco de dados formado por notícias de jornal de Zero Hora e Sul21 com todos os protestos ocorridos em Porto Alegre durante a Copa de 2014. O banco é composto pela cobertura aos quatro eventos de protesto ocorridos na cidade durante a Copa, além de notícia a respeito da preparação das forças policiais para o megaevento.

Para operacionalização da análise empírica, buscou-se identificar, primeiramente, quais as táticas de vigilância utilizadas pelas forças policiais em eventos de protesto a partir do relato dos entrevistados e das notícias. Em seguida, por meio da articulação entre a análise de conteúdo das entrevistas e o banco de eventos de protestos, buscou-se identificar como as TIC compuseram as táticas a partir da interpretação dos agentes, bem como quais os efeitos do uso das tecnologias para a relação entre agentes policiais e manifestantes. Para diálogo com a literatura, a análise centrou-se principalmente sobre as dimensões da temporalidade e da visibilidade.

Vigiando o protesto: o controle policial a manifestações sociais durante a Copa de 2014 em Porto Alegre

Durante a Copa do Mundo em Porto Alegre, foram realizados quatro protestos (em 12 de junho, 15 de junho, 18 de junho e 23 de junho de 2014) contra o megaevento. Esses protestos estão inseridos em um contexto nacional mais amplo. Enquanto no ciclo de protestos 2013 a contrariedade à realização da Copa do Mundo no Brasil já era uma das pautas, em junho de 2014 essa reivindicação assume centralidade nas ruas. Sob o nome de “Não vai ter Copa” ou “Fifa go home”, os protestos de junho de 2014 constituem uma crítica aos gastos governamentais com a realização do megaevento - em comparação ao não investimento em serviços públicos de qualidade -, além da denúncia a situações específicas, como remoções forçadas de populações para a construção de estádios e a violência policial. Os protestos durante a Copa se concentraram nas capitais no Brasil (principalmente aqueles que receberam jogos do megaevento) e foram compostos, geralmente, por um número baixo de manifestantes comparativamente ao que ocorrera em 2013.4 4 Ver: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2014/05/doze-cidades-do-brasil-tem-protestos-contra-copa-do-mundo.html. Acesso em: 1 out. 2023. Ainda assim, foram registradas situações de tensão entre manifestantes e forças policiais em diversos protestos desse período.5 5 Ver: https://g1.globo.com/politica/noticia/2014/06/com-mais-de-20-protestos-1-semana-de-copa-tem-180-detidos-em-atos.html. Acesso em: 1 out. 2023.

Em Porto Alegre, os protestos foram protagonizados pelos grupos integrantes do Bloco de Lutas, um coletivo heterogêneo formado por artistas, estudantes e a juventude de partidos progressistas. O Bloco de Lutas havia também protagonizado os protestos de junho de 2013 na cidade, embora nos atos contra a Copa em 2014 o número de manifestantes tenha sido baixo. Enquanto em junho de 2013 houve manifestações com até 20 mil pessoas, os protestos contra a Copa reuniram, em média, de uma a duas centenas de pessoas (Fernandes, 2016FERNANDES, Eduardo Georjão. 2016. Campos de batalha jornalística: os enquadramentos construídos por Zero Hora, Diário Gaúcho e Sul21 na luta pela (i)legitimidade do ciclo de manifestações de 2013, em Porto Alegre/RS. Dissertação de Dissertação de Mestrado em Sociologia. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.).

Assim como no ano anterior, porém, alguns manifestantes adotaram táticas disruptivas (como depredação a patrimônios) nos protestos contra a Copa. Além disso, de modo similar ao que ocorreu em outros casos de megaeventos estudados pela literatura (Monaghan e Walby, 2012aMONAGHAN, Jeffrey; WALBY, Kevin. 2012a. Making up ‘Terror Identities’: security intelligence, Canada’s Integrated Threat Assessment Centre and social movement suppression. Policing & Society, v. 22, n. 2, pp. 133-151., 2012bMONAGHAN, Jeffrey; WALBY, Kevin. 2012b. They attacked the city’: Security intelligence, the sociology of protest policing and the anarchist threat at the 2010 Toronto G20 summit. Current Sociology, v. 60, n. 5, pp. 653-671.), as forças policiais construíram estratégias operacionais com foco sobre as manifestações que poderiam ocorrer durante o evento, o que culminou em um ambiente de tensão nas ruas.

A seguir, a partir de entrevistas com agentes policiais combinadas com a análise de protestos específicos, são identificadas as principais táticas de vigilância policial e seus efeitos sobre as dimensões da temporalidade e da visibilidade. A análise empírica se inicia com a tática denominada garimpagem para em seguida abordar o contexto da Copa de 2014, considerando: o Centro Integrado de Comando e Controle; o imageamento aéreo; o monitoramento nas ruas; o monitoramento das redes. Por fim, são feitas considerações sobre o modelo de incapacitação estratégica dos protestos e os limites das tecnologias.

Uma história de garimpagem

O uso de táticas de vigilância não é uma novidade para as polícias do Rio Grande do Sul. Os policiais entrevistados citam a importância da sessão de inteligência da Brigada, a PM2, para o planejamento e a operacionalização de estratégias de controle da ação coletiva. O entrevistado Clóvis6 6 Todos os agentes policiais entrevistados foram anonimizados a partir de nomes fictícios. enfatiza que a inteligência da PMRS trabalha em diferentes campos,7 7 Clóvis afirma que os quatro principais campos de atuação da inteligência da PMRS são: assuntos institucionais; crime organizado; crime eventual; eficiência policial. sendo um desses o campo institucional, no qual se insere a temática dos movimentos sociais.

Segundo Clóvis, o trabalho de inteligência historicamente é fundamentado na prática que ele denomina garimpagem, ou seja, na coleta de informações de forma relativamente artesanal e não sistemática realizada pelos policiais desse setor. A lógica da garimpagem não utiliza aparatos tecnológicos avançados e automatizados para coleta e análise de dados. Pelo contrário, atribui-se ênfase ao fator humano, às ações tomadas e às relações construídas pelos profissionais da inteligência.

A garimpagem tende a adotar a tática de infiltração para construção de vínculos entre agentes policiais e pessoas que possam vir a ser objetos de controle policial. Essa tática envolve a aproximação de agentes policiais a ativistas e a manifestantes ou mesmo a entrada de agentes policiais em organizações de movimentos sociais para mapeamento de perfil desses atores. Clóvis exemplifica tal prática a partir de sua experiência profissional: “em todos os lugares que eu trabalhei […] eu sempre mantive contato muito próximo com o pessoal, então sabia que tinha um cara mais radical e tudo, o que o cara está pensando, o que o cara vai fazer, que tipo de protesto vai acontecer” (Clóvis, 2019). No caso específico da realização de um evento de protesto, Clóvis afirma que a inteligência adota o seguinte planejamento:

Clóvis: Se tu tens uma capacidade de antecipar tu vais fazer um relatório que vai contemplar as probabilidades da manifestação. “A manifestação X vai acontecer”. Então tu tens as probabilidades ali. “Quem é que vai participar? Fulano, beltrano, sindicatos abc, movimentos sociais…”. Aí claro: bota “liderança fulano e beltrano, ligações, até ligações políticas. Quem é que banca isso daqui? É o deputado fulano, senador beltrano. Coloca isso daí para o comandante ter um panorama da situação”. (Clóvis, 2019)

Esse mapeamento culminaria, segundo Clóvis, na identificação do sistema de vínculos entre os diferentes atores mapeados. De acordo com Clóvis, o trabalho da inteligência baseia-se na antecipação, a qual significa coletar e processar informações para que se adquiram vantagens táticas sobre manifestantes, ativistas e organizações de movimentos sociais, no limite prevendo e/ou impedindo a prática da ação coletiva. Para Clóvis, a eficácia das táticas de vigilância está também relacionada à discrição, ou seja, à baixa visibilidade desse tipo de ação policial, dado que caso essas táticas se tornem visíveis ao público elas perdem a vantagem de operar de forma antecipada.

A tática de garimpagem, em suma, consiste na forma mais tradicional de infiltração (Marx, 1974MARX, Gary T. 1974. Thoughts on a Neglected Category of Social Movement Participant: The Agent Provocateur and the Informant. American Journal of Sociology, v. 80, n. 2, pp. 402-442., 1979MARX, Gary T. 1979. “External Efforts to Damage or Facilitate Social Movements: Some Patterns, Explanations, Outcomes and Complications”. In: McCARTHY, John; ZALD, Mayer N. (ed.). The Dynamics of Social Movements, pp. 94-125. Cambridge: Winthrop Publishing, 1979., 1988MARX, Gary T. 1988. Undercover. Berkeley: University of California Press .), a qual é menos dependente das tecnologias digitais e se baseia na construção de vínculos emocionais e organizativos com ativistas para obtenção de informações que possam conferir vantagens táticas às forças policiais. Nesse tipo de tática, a dimensão da temporalidade evidencia-se pela busca de antecipação aos manifestantes por meio da coleta informal e não sistemática de dados. Já na dimensão da visibilidade, as vantagens táticas das forças policiais buscam-se por meio da invisibilização (ou negação) da identidade policial, mecanismo sem o qual a construção de vínculos de confiança com os ativistas seria inviabilizada. Pela omissão ou pelo falseamento de informações quanto à identidade do agente policial, esse tipo de tática recorrentemente se situa nas fronteiras entre o legal e o ilegal.

O Centro Integrado de Comando de Controle

Enquanto a garimpagem assume uma função histórica como tática de vigilância tradicional, o contexto da Copa do Mundo é caracterizado pelo forte investimento em tecnologias digitais. O principal marco nesse sentido é o Centro Integrado do Comando de Controle do Rio Grande do Sul (CICCRS), inaugurado em junho de 2014 especificamente para a Copa do Mundo. O CICCRS é uma solução de gestão de segurança pública e se baseia no investimento em tecnologia da informação para planejamento e operacionalização de ações, com ênfase sobre a integração entre diferentes instituições vinculadas à área da segurança. Dentre outras funções, o CICCRS integra órgãos do estado em grandes eventos e em operações “dirigidas à diminuição da violência e da criminalidade”.8 8 Cf.: http://www.ssp.rs.gov.br/departamento-de-comando-e-controle-integrado. Acesso em: 20 jul. 2017. O centro é administrado pela Secretaria de Segurança Pública (SSPRS) e mais especificamente pelo Departamento de Comando e Controle Integrado (DCCI). Os órgãos que compõem a sua operacionalização são a PC, a PM, o Corpo de Bombeiros, o Instituto-Geral de Perícias (IGP) e a Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe).

Os CICC de cada cidade-sede da Copa possuem um painel de vídeos composto por monitores de alta tecnologia. As imagens reproduzidas no painel de vídeos são captadas por câmeras de videomonitoramento, situadas em diferentes pontos da cidade. O projeto do CICCRS previu a reprodução de imagens de até 2,1 mil câmeras de videomonitoramento em Porto Alegre.9 9 Cf.: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2014/06/conheca-estrutura-do-cicc-o-big-brother-da-copa-em-porto-alegre.html. Acesso em: 11 fev. 2020. Os CICC ainda são compostos por outras tecnologias, como imageamento aéreo, estruturas móveis e gravadores de áudio.

Quanto ao papel dos CICC, os policiais entrevistados destacam a relevância da integração, ou seja, a construção de fluxos de informação entre diferentes atores e órgãos de segurança pública, facilitando as operações em tempo real. As tecnologias do centro ficam à disposição dos comandos para que estes decidam utilizar tais aparatos em operações específicas:

Fernando: Quando tu tens uma manifestação, um movimento social qualquer […] O 9º batalhão e o Batalhão de Operações Especiais, que normalmente lida com esse fato quando o 9º pede ajuda. Então essas pessoas são as que buscam interagir com manifestações e tal. O Centro de Operações fica sabendo das decisões tomadas. […] A gente coloca todos os sistemas [do Centro de Operações] à disposição, mas a decisão final de como vai ser feito o trabalho não é do Centro de Operações. […] O Centro de Operações ajuda, coloca tudo à disposição, mas quem vai definir o que que vai ser feito e o trato são os comandantes de unidades operacionais. (Fernando, 2019)

Em cada evento de protesto contra a Copa, as tecnologias utilizadas nas ruas foram conectadas ao CICCRS, permitindo que as decisões fossem tomadas de dentro do Centro:

Carlos: […] sob o argumento da Copa, nós tínhamos por exemplo robô anti-bomba […], helicóptero, […] duas aeronaves. Tinha uma mochila que filmava. Então o soldado carregava aquela mochila e ele ia filmando e aquela imagem repercutia dentro do QG da Brigada, na sala de Comando e Controle, onde nós poderíamos comandar as tropas. “Olha, vai pra cá, vai pra lá, faz isso faz aquilo, prende aquele, solta esse, ignora esse”. Então tecnologia que ajudou muito e uma viatura. Nós tínhamos uma viatura em experiência que tinha também câmeras que a gente colocava aqui nos viadutos e tal onde a gente monitorava todo o movimento. (Carlos, 2019)

Assim, embora não constitua por si só uma tática de vigilância, o CICCRS forneceu o aparato tecnológico nos moldes de outros megaeventos (Monaghan; Walby, 2012aMONAGHAN, Jeffrey; WALBY, Kevin. 2012a. Making up ‘Terror Identities’: security intelligence, Canada’s Integrated Threat Assessment Centre and social movement suppression. Policing & Society, v. 22, n. 2, pp. 133-151., 2012bMONAGHAN, Jeffrey; WALBY, Kevin. 2012b. They attacked the city’: Security intelligence, the sociology of protest policing and the anarchist threat at the 2010 Toronto G20 summit. Current Sociology, v. 60, n. 5, pp. 653-671.), favorecendo a construção de estratégias e ações de inteligência baseadas na integração interinstitucional. As tecnologias digitais do CICCRS, nesse sentido, agenciam oportunidades de vigilantismo, as quais podem ou não ser efetivadas a depender da articulação entre as tecnologias e a ação humana. A partir desse contexto paradigmático, a seguir são destacadas as principais táticas de vigilância mobilizadas durante os protestos contra a Copa em Porto Alegre, evidenciando-se o papel de dispositivos tecnológicos específicos. Para a análise empírica são descritas situações de interação entre agentes policiais e manifestantes nos eventos de protesto.

Imageamento aéreo

Na abertura da Copa do Mundo, em 12 de junho de 2014, foi realizado o protesto Fifa, go home contra o megaevento em Porto Alegre, contando com cerca de 500 mil manifestantes. A passeata foi acompanhada por soldados da PMRS nas ruas, além de um helicóptero que sobrevoou a caminhada. Durante o trajeto, alguns manifestantes com os rostos cobertos depredaram agências bancárias, estabelecimentos comerciais e peças publicitárias alusivas à Copa. As forças policiais, porém, não responderam às depredações com a dispersão imediata do ato e seguiram realizando o seu acompanhamento.

Após a chegada dos manifestantes ao Largo Zumbi dos Palmares - local típico de encerramento de marchas na cidade -, um grupo reduzido de manifestantes decidiu marchar até a Fan Fest;10 10 Evento festivo promovido pela FIFA e por patrocinadores da Copa, com um telão no qual a população local e turistas podiam acompanhar os jogos do megaevento. no entanto, a PM havia construído barreiras que cerravam todos os acessos ao local. Sem conseguir romper a barreira, o grupo de manifestantes retornou ao centro, onde foi perseguido pela cavalaria da PM. Também foram disparadas bombas de gás lacrimogêneo pelos policiais. Ao fim, foram registrados dois soldados da PM e dois manifestantes feridos, além de cerca de 15 manifestantes detidos.

Para a realização dessas detenções, foram utilizadas as imagens da câmera acoplada ao helicóptero da PM - imageamento aéreo. Segundo o jornal Zero Hora, o equipamento, que transmite imagens em tempo real, foi utilizado para identificação, localização e prisão em flagrante de três manifestantes. Também com auxílio do equipamento outros 12 manifestantes teriam sido detidos e chamados a depor. Sobre a forma de realização das abordagens, um delegado da PC informou ao Zero Hora que as prisões envolveram o uso das TIC e a integração entre os atores policiais: “O equipamento identificou, e as informações foram passadas ao pessoal que estava em terra. Na dispersão, a BM fez as abordagens”. O então subcomandante geral da PM, Silanus Mello, defendeu a tática de monitoramento dos manifestantes e de uma intervenção policial seletiva, que não atacasse a totalidade da marcha, priorizando a integridade física dos manifestantes:

Nossa linha é de acompanhar a manifestação, tentar evitar depredações, mas, se acontecem, monitoramos quem está depredando, dentro daquela linha de não atacar toda a manifestação. Tem presos que foram monitorados, filmados e depois, na dispersão, a gente fez a prisão. […] A linha que adotamos é manter a integridade física dos manifestantes e das pessoas que não estão na manifestação.11 11 Nova arma contra o vandalismo: BBB da Brigada. Zero Hora, Rio Grande do Sul, 14 jun. 2014. p. 12. (Silanus Mello, 2014)

As situações e as falas acima indicam a utilização das TIC para monitoramento em tempo real dos manifestantes durante o evento e, em especial, o uso do imageamento aéreo para, seletivamente, identificar e deter manifestantes que teriam realizado atos de depredação. O uso dessa tecnologia direcionou-se no sentido de não se dispersar o protesto de forma generalizada e violenta, buscando-se selecionar, entre o conjunto de manifestantes, aqueles que seriam detidos. A respeito dessa situação afirma o policial Carlos:

Carlos: […] o que ajuda muito são tecnologias de videomonitoramento, câmeras. Eu me recordo no episódio da Copa do Mundo, […] eu estava no Centro de Comando e Controle, e nós monitoramos toda a ação de dois ou três pessoas, duas ou três pessoas que estavam depredando, estavam vandalizando, vamos chamar assim, pelo meio do imageador colocado na aeronave da Brigada. Portanto, aí a gente conseguiu identificar e conseguiu prender aquelas pessoas e tirá-las digamos assim, três pessoas, e isso sem nenhuma violência, sem nenhum constrangimento a quem quer que seja. (Carlos, 2019)

As interações neste protesto apontam para a utilização do imageamento aéreo como forma de ampliação da visibilidade sobre os manifestantes e expõe a assimetria nas relações entre forças policiais e ativistas a partir da desigualdade de recursos. Nessa dialética da visibilidade (Melgaço e Monaghan, 2018MELGAÇO, Lucas; MONAGHAN, Jeffrey. (ed.). 2018. Protests in the Information Age: Social Movements, Digital Practices and Surveillance. London: Routledge.), o imageamento aéreo confere vantagens táticas às forças policiais e produz, em certa medida, a ótica de transparência (Grinberg, 2019GRINBERG, Daniel. 2019. Tracking movements: Black activism, aerial surveillance, and transparency optics. Media, Culture & Society, v. 41, n. 3, pp. 294-316.) ao permitir a identificação seletiva de manifestantes em meio à multidão. Quanto à temporalidade, o uso do imageamento aéreo, nesse caso, foi significativo para a atuação in locu e pós-protesto durante a dispersão.

Monitoramento nas ruas

O protesto seguinte, em 15 de junho, dia da primeira partida da Copa em Porto Alegre, foi formado por um grupo pequeno com cerca de 30 manifestantes que concordaram em marchar em direção ao estádio Beira-Rio, onde ocorreria a partida. O número baixíssimo de manifestantes contrastou com o número de agentes policiais deslocados para acompanhar a passeata - pelo menos 200 segundo estimativa de Zero Hora.12 12 Protesto em Porto Alegre. Futebol em ato contra a Copa. Zero Hora, Rio Grande do Sul, 16 jun. 2014. p. 15.

O controle das forças policiais sobre o espaço durante a passeata destacou-se. A PM construiu barreiras impedindo a chegada ao estádio e acompanhou os poucos manifestantes por todos os lados. Os manifestantes foram seguidos mais proximamente por uma tropa de policiais mascarados e com mais distância pela cavalaria e pela tropa de choque.

Os policiais portavam diversos equipamentos, como máscaras, granadas de mão, motos, viaturas e camburões, utilizando assim os equipamentos que haviam sido adquiridos para a segurança do megaevento. Para o monitoramento em tempo real do protesto, foram utilizadas câmeras GoPro nos ombros e capacetes de agentes policiais, conectadas a mochilas Mochilink LiveU, equipamento utilizado para transmitir imagens em tempo real pela Internet; além disso, novamente foi utilizado o helicóptero para imageamento aéreo.

Dada a impossibilidade de ultrapassar as barreiras policiais que impediam o acesso ao estádio, os manifestantes retornaram ao parque Redenção e encerraram a passeata. O policial Fernando enfatiza a função tanto das câmeras fixas posicionadas na cidade quanto das câmeras móveis carregadas por agentes policiais para a identificação seletiva de manifestantes que viessem a cometer ações ilícitas:

Fernando: Se tem um grupo que todos estão caminhando numa boa e um sujeito de repente resolve jogar um molotov numa parede, tu estás vendo. Então o monitoramento para isso é feito muito mais com as câmeras fixas se por acaso tiveres uma. E nós tínhamos uma câmera móvel. Era uma câmera móvel, que nem de TV, que transmitia imagens ao vivo para o Centro de Operações. Era uma mochila. Era uma mochila assim: o ‘cara’ carregava uma câmera, tipo uma GoPro, e ele acompanhava as manifestações e tal. E aí tu conseguias […] quando acontecia um evento, se acontecesse um evento do tipo depredação, identificar exatamente quem foi. Para não dizer “foi o grupo todo”. […] Então se tu identificares um só e souberes quem é tu sabes exatamente quem tu precisas afastar se for o caso ou eventualmente prender para não precisar, por exemplo, desnecessariamente dispersar todo mundo.

(Fernando, 2019)

O policial Marcos enfatiza também que o monitoramento em tempo real de protestos é mais sofisticado quando envolve o uso de TIC em virtude da possibilidade amplificada de comunicação entre diferentes agentes. A visualização de imagens em tempo real e a transmissão das informações torna, segundo Marcos, a ação policial menos intuitiva. O entrevistado Marcos enfatiza também, citando aplicativos como Google Maps e Waze, a conexão entre o uso das TIC e a possibilidade amplificada de controle sobre o espaço. Segundo Marcos, esse controle maior sobre o espaço - espécie de georreferenciamento - diminuiria a probabilidade de adoção de ações confrontacionais pelas forças de segurança.

O monitoramento nas ruas tende, assim como o imageamento aéreo, a reforçar a ampliação da visibilidade sobre os manifestantes (Melgaço e Monaghan, 2018MELGAÇO, Lucas; MONAGHAN, Jeffrey. (ed.). 2018. Protests in the Information Age: Social Movements, Digital Practices and Surveillance. London: Routledge.) e o discurso em torno da seletividade no controle dos protestos. Na dimensão temporal, o foco, neste caso, recai sobre as ações in locu, articulando-se à táticas de controle do espaço.

Monitoramento das redes

Outra tática de vigilância recorrente na fala dos entrevistados é o monitoramento das redes sociais. O policial Fernando, enfatizando a lógica da antecipação, afirma que as redes são um termômetro do que ocorrerá nas ruas para as forças policiais não serem pegas de surpresa. O policial Marcos narra como se dá esse tipo de monitoramento, enfatizando o caráter sigiloso de parte desses procedimentos e a sistematização desse tipo de coleta de dados pelos agentes da inteligência:

[As redes sociais têm] um impacto muito grande [sobre o policiamento]. Aí tem um limite que […] os detalhes não devem ser contados às vezes para funcionar de novo, porque ontem eu estava vendo uma notícia no jornal, uma notícia do telejornal que o pessoal lá de São Paulo estava contando lá, exatamente como foi policiais infiltrados […] isso não se deve contar. Mas o Facebook hoje, qualquer rede social, Twitter […] há vários mecanismos de controle semelhantes aos que a gente usa para pesquisa, fazer etnografia ou alguma coisa assim. Os Órgãos de segurança usam isso. A Secretaria de Segurança estava trabalhando com isso aí. E isso ajudou muito, porque você consegue identificar grupos e subgrupos infiltrados. […] Funciona tipo mais ou menos um NVivo. Por exemplo, tem um tronco lá falando em “protesto”, tem um tronco ali falando as palavras assim “nova ordem” alguma coisa assim e tal, aí você tem um tronco falando em queimar contêiner. Então […] isso aí ajuda. Principalmente o Facebook […]. E tem um pessoal […] da inteligência que trabalha com isso aí e aí consegue inclusive identificar pessoas e tudo aí que às vezes nem o movimento social quer eles lá. Isso foi bastante usado [nos protestos durante a Copa]. (Marcos, 2019, acréscimo nosso)

Fornecendo mais detalhes sobre o monitoramento de redes, o policial Marcos afirma que esse tipo de tática reduz os custos do policiamento, dado que permite a antecipação das características de um protesto - por exemplo, quantos manifestantes vão se reunir e quais reivindicações que pleiteiam -, além de enfatizar o caráter aberto das informações nas redes sociais. Esse recurso às redes, segundo Marcos, tende a facilitar um planejamento mais sofisticado de operações policiais:

Outro componente […] é a análise de redes sociais. Então você consegue hoje […] com software de pesquisadores, você consegue entrar numa rede social e ver. Isso você tinha que fazer antes por telefone, pedir para alguém olhar. […] Você levava um tempo muito [grande] e não saía um levantamento muito fiel. E você mobiliza gente às vezes […] recursos demais, recursos de menos. […] Hoje você mobiliza rede social com 2, 3 softwares. Você consegue ter quase certeza de que “são tantas pessoas que vão estar lá”. E o central você consegue também ver assim: “reivindicando o que?” Que era um grande problema de alguns lugares. Você às vezes estava lidando com uma manifestação e você ficava pensando “mas o que que eles querem?” Para você negociar “o que que eu posso oferecer?” Mas às vezes eu não sabia o que eles estavam querendo. E hoje, com as redes sociais, isso mudou muito. Você consegue, livremente, sem nenhum acesso reservado, um acesso público, você entra e o software te dá o centro: as palavras-chave de comunicações estão sendo “dia 31 vamos nos manifestar alguns contra a ideia da ditadura no lugar tal, e outros vão se manifestar a favor disso no lugar tal”. Ok, você pode montar uma operação com uma certa tranquilidade. […] Os grandes eventos foram muito mais controlados. Eu não sei se os resultados foram tão melhores, mas […] o planejamento [foi] muito mais sofisticado do que era. (Marcos, 2019, acréscimo nosso)

Os policiais entrevistados mencionam ainda outros usos das redes sociais durante as operações da Copa. Um desses usos foi a criação de um grupo do Whatsapp para comunicação com a imprensa. Além disso, as redes foram mobilizadas para a divulgação ao público geral de informações sobre os protestos e sobre as táticas policiais adotadas:

Fernando: Eu acho que as ferramentas mais importantes [na Copa] foram o Facebook, o Twitter e o Whatsapp. Foi onde as pessoas interagiam. […] Mas eu diria assim que o Facebook [foi o mais importante]. Foi o criado o Facebook do BEPE […] e do Batalhão da Copa e o próprio da Brigada para colocar a público que a gente estava [fazendo e] ia fazer, o que já fez, notas oficiais acerca de ocorridos, por exemplo. […] O Twitter era mais para […] informar para as pessoas, a gente usava muito para dizer para as pessoas do resto da cidade onde é que tinha movimentos e bloqueios para eles não irem para ali. Para não criar conflito de circulação. (Marcos, 2019, acréscimo nosso)

O monitoramento das redes, nesse caso, tende a ser associado, assim como as demais táticas, à ampliação da visibilidade sobre os manifestantes a partir de buscas ativas, o que converge para o risco de securitização do espaço das redes sociais, como apontado por Binder (2016BINDER, Clemens. 2016. Happenings Foreseen: Social Media and the Predictive Policing of Riots. S+F, v. 34, n. 4, pp. 242-274.). Na dimensão temporal, a lógica preditiva faz-se evidente por meio da coleta de informações como meio de mensurar o que ocorrerá nas redes e evitar situações de imprevisibilidade (Dencik, Hintz e Carey, 2018DENCIK, Lina; HINTZ, Arne; CAREY, Zoey. 2018. Prediction, pre-emption and limits to dissent: social media and big data uses for policing protests in the United Kingdom. New Media & Society, v. 20, n. 4, pp. 1433-1450.).

Embretamento

Em 18 de junho de 2014, houve a tentativa de realização de um novo protesto contra a Copa no centro da cidade. Cerca de cem manifestantes reuniram-se na Praça Argentina e tentaram marchar em direção à Avenida Borges de Medeiros, onde se localizava o denominado Caminho do Gol - trajeto que percorria ruas do centro da cidade até o estádio Beira-Rio -, mas o ato foi rapidamente dispersado pela BM.

Apesar do número baixo de manifestantes, novamente um numeroso contingente policial - com centenas de agentes - foi mobilizado. De um lado, foi construída uma barreira policial que impedia que os manifestantes se dirigissem ao “Caminho do Gol”; do outro lado, uma barreira policial na Avenida João Pessoa impedia um caminho alternativo que levasse ao estádio Beira-Rio pela Avenida Ipiranga. Assim, os manifestantes ficaram cercados em praticamente todos os sentidos. O jornal Zero Hora, em sua manchete de cobertura do evento, definiu a situação como “um protesto embretado”.13 13 Copa nas ruas. Um protesto embretado. Zero Hora, Rio Grande do Sul, 19 jun. 2014. p. 11.

Assim como no evento anterior, o policiamento contou com motos, viaturas, camburões e um helicóptero. Diante da aproximação dos manifestantes da barreira que impedia o acesso à Avenida Borges de Medeiros, foram disparadas granadas de efeito moral contra os manifestantes. O uso de armamento menos letal resultou em ferimentos a cinco manifestantes e três jornalistas segundo Sul21. Sem alternativas de trajeto, os manifestantes dispersaram-se. Para legitimar a tática adotada, a Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul divulgou uma nota, relacionando o bloqueio espacial à “segurança dos manifestantes”14 14 Forte aparato policial impede manifestação contra a Copa em Porto Alegre. Sul21, 18/06/2014. Disponível em: https://www.sul21.com.br/cidades/2014/06/forte-aparato-policial-impede-manifestacao-contra-a-copa-em-porto-alegre/. Acesso em: 13 fev. 2020. .

A tática que denomino aqui como embretamento (ou envelopamento) aproxima-se da prática do kettling, inaugurada pela polícia alemã dos anos 1980 para impedir a ocorrência de protestos fora de uma determinada área (Maciel; Machado, 2021MACIEL, Débora; MACHADO, Marta de Assis. 2021. Flows of Protest Control in São Paulo (2013-2014). Novos Estudos, v. 40, n.2, pp. 227-241.). Embora o embretamento não constitua uma tática de vigilância, mas sim de controle do espaço, a situação deste protesto aponta para a articulação entre diferentes táticas. Por exemplo, o monitoramento de redes sociais digitais tende a facilitar a identificação prévia do local da manifestação e, por consequência, o posicionamento de bloqueios policiais em pontos estratégias, a ponto de inviabilizar a realização do protesto, conforme será discutido a seguir.

Discussão

Rumo à incapacitação estratégica dos protestos

O conjunto das táticas policiais de vigilância adotadas durante a Copa em Porto Alegre aponta para questões centrais sobre as dimensões da temporalidade e da visibilidade. Quanto à temporalidade, a preocupação de previsibilidade acerca das ações de manifestantes e ativistas emerge desde os relatos sobre a garimpagem. O uso das tecnologias tende a possibilitar a maior sistematização dos dados sobre eventos de protestos, bem como a reduzir os custos para a produção desses dados. Em especial, o monitoramento das redes é mobilizado para coletar informações sobre o número potencial de participantes em um evento, quais os participantes, as pautas reivindicadas etc. Esses achados confirmam hipóteses de estudos internacionais sobre formas de policiamento a protestos mais preditivas por meio do uso das TIC (Binder, 2016BINDER, Clemens. 2016. Happenings Foreseen: Social Media and the Predictive Policing of Riots. S+F, v. 34, n. 4, pp. 242-274.; Perry et al., 2013PERRY, Walter; McINNIS, Brian; PRICE, Carter; SMITH, Susan; HOLLYWOOD, John. S. 2013. Predictive Policing: The Role of Crime Forecasting in Law Enforcement Operations. Washington, DC: RAND Corporation.).

Outro aspecto da dimensão temporal é a possibilidade de que tecnologias, principalmente as de videomonitoramento (imageamento aéreo, câmeras fixas e móveis nas ruas), sejam mobilizadas em tempo real e mesmo após a ocorrência do evento. A situação em que manifestantes foram detidos após um protesto com base em imagens captadas de um helicóptero é paradigmática nesse sentido. Assim, é possível afirmar que o uso das tecnologias perpassa e produz efeito sobre os momentos pré, durante e pós-evento de protesto, o que significa que as formas mais preditivas de policiamento não excluem, mas sim se combinam a formas mais reativas.

Na dimensão da visibilidade, evidencia-se a busca pela ampliação da visibilidade sobre os manifestantes, principalmente a partir do videomonitoramento, o que corrobora com os estudos que apontam para a sofisticação nas formas de controle visual sobre a ação coletiva (Grinberg, 2019GRINBERG, Daniel. 2019. Tracking movements: Black activism, aerial surveillance, and transparency optics. Media, Culture & Society, v. 41, n. 3, pp. 294-316.; Meglaço e Monaghan, 2018; Trottier, 2012TROTTIER, Daniel. 2012. Policing Social Media: Policing Social Media. Canadian Review of Sociology, v. 49, n. 4, pp. 411-425.). Porém, as justificativas dos agentes policiais para a ampliação desse olhar não giram em torno da mera visualização generalizada dos protestos e dos manifestantes. A produção extensiva de imagens facilitaria a identificação de pessoas envolvidas em atos criminosos, o que permitiria a ação seletiva para o controle sobre tais pessoas (ao invés da dispersão generalizada do protesto). É importante, porém, considerar que o processo de identificação dos manifestantes perigosos não é neutro, tendendo a ser informado por vieses prévios dos agentes policiais, reforçando estigmas em torno de determinadas categorias de manifestantes (Monaghan e Walby, 2012bMONAGHAN, Jeffrey; WALBY, Kevin. 2012b. They attacked the city’: Security intelligence, the sociology of protest policing and the anarchist threat at the 2010 Toronto G20 summit. Current Sociology, v. 60, n. 5, pp. 653-671.). No caso analisado, a atuação de manifestantes identificados com as táticas black bloc nos protestos de junho de 2013 tendeu a direcionar o olhar das forças policiais para esses grupos nos protestos de 2014 (Fernandes, 2016FERNANDES, Eduardo Georjão. 2016. Campos de batalha jornalística: os enquadramentos construídos por Zero Hora, Diário Gaúcho e Sul21 na luta pela (i)legitimidade do ciclo de manifestações de 2013, em Porto Alegre/RS. Dissertação de Dissertação de Mestrado em Sociologia. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.).

Por outro lado, a eficácia da mobilização de táticas de vigilância envolve o processo oposto no caso da ação policial, ou seja, a invisibilização das formas de controle. Um dos entrevistados afirma, por exemplo, que as metodologias policiais de monitoramento das redes não podem ser reveladas, caso contrário poderiam deixar de funcionar. Essa questão aponta para o debate sobre o nível de transparência das ações policiais em eventos de protesto (Artigo 19, 2017ARTIGO 19. 2017. Repressão às escuras - uma análise sobre transparência em assuntos de segurança pública e protestos. Brasil: Creative Commons.São Paulo. Disponível em: Disponível em: https://artigo19.org/?p=11270 . Acesso em: 7 jan. 2020.
https://artigo19.org/?p=11270...
).

Ainda no âmbito da visibilidade, salienta-se a utilização das redes sociais como meio de comunicação entre as forças policiais e a população, o que indica a produção de versões “oficiais” que buscam defender as instituições policiais contra críticas de manifestantes, ativistas e outros atores. Além disso, tecnologias (como o imageamento aéreo) estão imersas em um imaginário social de eficácia e modernização, o que faz com que a mobilização de TIC (independentemente de seus resultados práticos em termos de eficácia) seja utilizada como uma forma de legitimação das ações policiais (Cardoso, 2015CARDOSO, Bruno. 2015. Todos os olhos: videovigilâncias, vouyerismos e (re)produção imagética. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.).

Por fim, nos protestos analisados também é evidente a mobilização de um conjunto de táticas para controle espacial, como grandes contingentes policiais, cordões de isolamento e a definição de áreas em que o protesto seria proibido. Essas táticas articulam-se ao uso das tecnologias (como aplicativos de georreferenciamento) e indicam a importância de atenção sobre a dimensão espacial do controle ao protesto.

A análise dessas dimensões em seu conjunto aponta para a configuração, nos protestos contra a Copa em Porto Alegre, de um modelo de incapacitação estratégica (Gillham e Noakes, 2007GILLHAM, Patrick; NOAKES, John. 2007. More Than a March in a Circle: Transgressive Protests and the Limits of Negotiated Management. Mobilization, v. 12, n. 4, pp. 341-357.; Gillham, Edwards e Noakes, 2013GILLHAM, Patrick F.; EDWARDS, Bob; NOAKES, John A. 2013. Strategic incapacitation and the policing of occupy Wall Street protests in New York City, 2011. Policing and Society, v. 23, n. 11, pp. 81-102.). Esse modelo de policiamento, amplamente adotado nos protestos do Movimento por Justiça Global desde o início dos anos 2000, é assim descrito por Gillham e Noakes:

[A incapacitação estratégica] caracteriza-se por uma série de inovações táticas destinadas a temporariamente incapacitar manifestantes transgressores, incluindo o estabelecimento de extensas ‘no-protestos zones’, o aumento do uso de armas menos letais, o uso estratégico de prisões e o revigoramento de vigilância e da infiltração de organizações de movimento. Essa mudança de tática policial durante protestos é consistente com mudanças mais amplas nos fundamentos ideológicos do controle do crime, incluindo uma ênfase na gestão de riscos e na prevenção (em vez de reação ao) crime e desordem. (2007GILLHAM, Patrick; NOAKES, John. 2007. More Than a March in a Circle: Transgressive Protests and the Limits of Negotiated Management. Mobilization, v. 12, n. 4, pp. 341-357., p. 343, tradução nossa, acréscimo nosso)

Gillham, Edwards, Noakes (2013GILLHAM, Patrick F.; EDWARDS, Bob; NOAKES, John A. 2013. Strategic incapacitation and the policing of occupy Wall Street protests in New York City, 2011. Policing and Society, v. 23, n. 11, pp. 81-102.) afirmam que essa estratégia é fundamentada em três repertórios centrais: as táticas voltadas à contenção do espaço; as táticas de vigilância; a gestão da informação. Todas essas táticas foram identificadas no caso empírico analisado nesta pesquisa. Porém, é importante salientar que tais táticas não substituíram táticas mais tradicionais e reativas, como o uso de armamento menos letal e a realização de detenções. Pelo contrário: essas últimas táticas foram mobilizadas para reforçar a incapacitação dos protestos.

Esse cenário aponta para relevantes implicações quanto aos direitos civis e políticos e ao regime democrático brasileiro. Primeiramente, o uso de TIC para a produção de vigilância sobre manifestantes levanta a necessidade de discussão sobre os limites da atuação policial, tendo em vista a garantia de proteção dos direitos de privacidade de ativistas e manifestantes (Aston, 2017ASTON, Valerie. 2017. State surveillance of protest and the rights to privacy and freedom of assembly: a comparison of judicial and protester perspectives. European Journal of Law and Technology, v. 8, n. 1, pp. 1-19.; Joh, 2013JOH, Elizabeth. 2013. Privacy Protests: Surveillance Evasion and Fourth Amendment Suspicion. Arizona Law Review, v. 55, pp. 997-1029.). É fundamental que se debata, nesse sentido, quando, sob quais circunstâncias e mediante quais fundamentos jurídicos o direito de privacidade pode ser relativizado para a produção de táticas de vigilância contra ativistas e manifestantes.

Ademais, a invisibilização das formas de controle policial indica preocupações quanto à transparência das estratégias, protocolos e ações policiais diante de eventos de protesto, uma vez que o caráter opaco da ação policial opõe dificuldades para o exercício do controle institucional e social sobre práticas eventuais ou sistemáticas de violação do direito de manifestação (Artigo 19, 2017ARTIGO 19. 2017. Repressão às escuras - uma análise sobre transparência em assuntos de segurança pública e protestos. Brasil: Creative Commons.São Paulo. Disponível em: Disponível em: https://artigo19.org/?p=11270 . Acesso em: 7 jan. 2020.
https://artigo19.org/?p=11270...
). Ainda, táticas de controle espacial, como o envelopamento, expõem a necessidade de discussão sobre o uso do espaço público e os riscos de violação do direito ao protesto sob justificativas baseadas na securitização do espaço urbano (Maciel e Machado, 2021MACIEL, Débora; MACHADO, Marta de Assis. 2021. Flows of Protest Control in São Paulo (2013-2014). Novos Estudos, v. 40, n.2, pp. 227-241.).

Em suma, esse contexto indica uma série de problemáticas quanto à compatibilidade entre o uso de táticas de vigilância policial e o Estado Democrático de Direito. Em especial em um país caracterizado por forças policiais com traços culturais autoritários e estruturas institucionais pouco transparentes (Fernandes, 2020FERNANDES, Eduardo Georjão. 2020. Entre ruas, câmeras e redes: as transformações das táticas policiais de controle à ação coletiva contestatória em Porto Alegre (2013-2014). Tese de Doutorado em Sociologia. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.), os riscos do uso da incapacitação estratégica como forma de inviabilização do direito de protesto são evidentes. Nesse sentido, as formas de regulamentação dos protocolos policiais para progressivo da força em eventos de protestos são um tema fundamental para a análise da efetivação de um regime democrático.

Os limites das tecnologias

Apesar das transformações táticas do caso estudado apontarem o processo de ampliação do uso das tecnologias e das táticas de vigilância policial como parte de um modelo de incapacitação estratégica, é necessário, analiticamente, evitar a reafirmação do imaginário de que as tecnologias seriam, por si só, eficazes (Cardoso, 2015CARDOSO, Bruno. 2015. Todos os olhos: videovigilâncias, vouyerismos e (re)produção imagética. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.). Embora, nas palavras do ex-diretor do CICCRS, Antônio Scussel, o objetivo do centro fosse “ter o controle total do espaço público” (Fiamminghi, 2017FIAMMINGHI, Giovanni. 2017. Control, Participation, Regimes of Visibility and Reality. In: LESSING, Emanuela Bonini; VANIN, Fabio; ACHUTTI, Daniel (ed.). Reducing Boundaries: Understanding Exclusion through Security Defensive Systems in Wealthy Urban Areas. Milan: Mimesis International, 2017. pp. 253-274., p. 257, tradução nossa), os dados do campo apontam para diversas limitações nos aparatos tecnológicos e na operacionalização de táticas de vigilância. Tais limitações são relacionadas a diferentes dimensões, entre elas: resultados operacionais não condizentes com as expectativas, especialmente quanto aos sistemas de videomonitoramento; insuficiência de treinamento dos agentes humanos; limitações de recursos, principalmente para manutenção das tecnologias.

Quanto à inconsistência entre resultados e expectativas, o policial Marcos entende que a efetividade das câmeras de videomonitoramento é reduzida se comparada à expectativa que se tinha quando da sua implementação, o que corrobora com estudos internacionais sobre o tema (Byrne e Marx, 2011BYRNE, James; MARX, Gary. 2011. Technological Innovations in Crime Prevention and Policing. A Review of the Research on Implementation and Impact. Cahiers Politiestudies, v. 3, n. 20, pp. 17-40.). A fala de Marcos indica que a expectativa era de que os aparatos tecnológicos substituíssem os agentes humanos; porém, o policial aponta que a amplificação da visibilidade sobre as dinâmicas do espaço urbano é ineficaz caso não haja uma quantidade suficiente de agentes humanos para atuar em resposta às informações que são coletadas:

A grande mudança das câmeras foi que se esperava muito delas, mas depois se percebeu que a nossa capacidade de reação era muito pequena e ainda é pequena. A câmera estava te oferecendo o visual de alguma coisa acontecendo, mas você não pode, não tem às vezes disponibilidade de gente para ir lá assistir […]. Por exemplo, isso está ocorrendo no momento, você está assistindo. E às vezes todas as viaturas estão ocupadas ali. Bom, então a câmera sozinha ela não resolve. (Marcos, 2019)

Ainda, Marcos afirma que os aparatos tecnológicos são limitados pelo fato do alcance das câmeras não ser tão grande quanto o esperado, assim como pela insuficiência no número de câmeras espalhadas pela cidade. Quantos às limitações de treinamento dos agentes policiais para se adaptarem ao uso das TIC de modo geral, os policiais entrevistados enfatizam que, com a aquisição de novos aparatos tecnológicos, os treinamentos tendem a se restringir aos agentes que vão trabalhar diretamente com a operação desses sistemas, não havendo uma capacitação mais ampla de agentes às novas tecnologias. Ainda, um dos entrevistados afirma que alguns softwares adquiridos não são utilizados em todas as suas potencialidades por falta de agentes treinados para usar tais tecnologias.

Além disso, as limitações de recursos citadas são principalmente relativas à dificuldade orçamentária para atualização e manutenção das tecnologias adquiridas. Como já demonstrado, a Copa do Mundo foi uma oportunidade de investimentos em segurança pública no país. Porém, passado o evento, a manutenção desses aparatos tem um custo que recorrentemente não é disponível aos órgãos de segurança pública, tornando as tecnologias adquiridas obsoletas e/ou inutilizáveis:

Às vezes falta o recurso, e a empresa tinha um contrato de 5 anos. Terminou o contrato. Você pode ficar com aquele software que está lá, mas realmente aí tem a versão nova, desfazer os bugs aqui, que qualquer outra empresa de software tem. E às vezes você não tem recurso para comprar e vai ficar com aquela versão que vai falhando e daqui a pouco a empresa não fornece mais suporte para ela. Como qualquer outro software. E às vezes esbarra nessa questão de recurso mesmo. “Bom, não tem mais”. Uma é essa questão de renovar. (Marcos, 2019)

Essas limitações, de modo geral, confirmam resultados de outros estudos nacionais sobre centros integrados de comando e controle (Cardoso, 2015CARDOSO, Bruno. 2015. Todos os olhos: videovigilâncias, vouyerismos e (re)produção imagética. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.; Soares e Batitucci, 2017SOARES, Philipp Augusto Krammer; BATITUCCI, Eduardo Cerqueira. 2017. O Centro Integrado de Comando e Controle: ferramenta de coordenação, integração e planejamento na defesa social. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 11, n. 2, pp. 216-232.). Assim, apesar das expectativas que sistemas de videomonitoramento como o do CICC geram, não necessariamente eles configuram o panóptico foucaultiano, ou seja, um centro de comando que, assimetricamente, vigia objetos sem se tornar objeto da vigilância (Foucault, 2002FOUCAULT, Michel. 2002. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes.). Ainda assim, ao longo desta pesquisa evidenciou-se um processo no qual as novas tecnologias assumiram um papel central.

Considerações finais

Este artigo objetivou analisar, a partir do caso empírico do policiamento a protestos durante a Copa do Mundo de Futebol Masculino em Porto Alegre no ano de 2014, como a incorporação das TIC compõe e/ou transforma as táticas policiais de vigilância à ação coletiva. Com base em entrevistas com agentes policiais e em um banco de notícias sobre eventos de protestos, identifiquei que o contexto da Copa ocasionou uma oportunidade para o investimento em tecnologias digitais de segurança, principalmente por meio da inauguração de Centros Integrados de Comando e Controle (Maciel e Machado, 2021MACIEL, Débora; MACHADO, Marta de Assis. 2021. Flows of Protest Control in São Paulo (2013-2014). Novos Estudos, v. 40, n.2, pp. 227-241.; Machado, Maciel e Souza, 2021MACHADO, Marta de Assis; MACIEL, Débora; SOUZA, Rafael de. 2021. Intertwining Public Security Policy and Protest Control in Brazil: Sports Mega-events and International Diffusion of Repression. Latin American Law Review, n. 7, pp. 81-100.). Nesse contexto, foram mobilizadas pelas forças policiais as seguintes táticas de vigilância digital para controle de protestos: imageamento aéreo, monitoramento nas ruas e monitoramento das redes. A partir da análise das interações ocorridas nos protestos, argumento que as TIC produzem implicações sobre as formas de policiamento de protestos principalmente em duas dimensões: a temporalidade e a visibilidade.

No âmbito da temporalidade, as táticas de vigilância digital, em especial o monitoramento das redes, tendem a reforçar a lógica policial de produção de um conhecimento antecipatório sobre os protestos e os manifestantes com vistas a diminuir a imprevisibilidade dos acontecimentos na rua (Binder, 2016BINDER, Clemens. 2016. Happenings Foreseen: Social Media and the Predictive Policing of Riots. S+F, v. 34, n. 4, pp. 242-274.; Perry et al., 2013PERRY, Walter; McINNIS, Brian; PRICE, Carter; SMITH, Susan; HOLLYWOOD, John. S. 2013. Predictive Policing: The Role of Crime Forecasting in Law Enforcement Operations. Washington, DC: RAND Corporation.). A busca pela efetivação de um policiamento preditivo não impede, por outro lado, que as TIC operem também durante e após o protesto (por exemplo, com o uso de imagens para detenções de manifestantes após o protesto).

Na dimensão da visibilidade, as TIC são mobilizadas para ampliação da visibilidade sobre o protesto e os manifestantes (Grinberg, 2019GRINBERG, Daniel. 2019. Tracking movements: Black activism, aerial surveillance, and transparency optics. Media, Culture & Society, v. 41, n. 3, pp. 294-316.; Meglaço e Monaghan, 2018; Trottier, 2012TROTTIER, Daniel. 2012. Policing Social Media: Policing Social Media. Canadian Review of Sociology, v. 49, n. 4, pp. 411-425.), principalmente por meio do videomonitoramento em tempo real das ruas, sob a justificativa de que assim se produziria um policiamento mais seletivo sobre manifestantes que cometessem delitos. Por outro lado, as táticas de vigilância policial tendem a operar de forma pouco visível ao público, enquanto o espaço das redes é disputado pelas próprias instituições de segurança para a produção de discursos “oficiais” que legitimem a ação policial.

Por fim, é salientado que as dimensões acima mencionadas são combinadas com a amplificação do controle espacial e com táticas mais tradicionais e reativas (bombas de gás lacrimogêneo, detenções etc.), compondo um modelo de policiamento que tende à incapacitação estratégica dos protestos (Gillham e Noakes, 2007GILLHAM, Patrick; NOAKES, John. 2007. More Than a March in a Circle: Transgressive Protests and the Limits of Negotiated Management. Mobilization, v. 12, n. 4, pp. 341-357.; Gillham, Edwards e Noakes, 2013GILLHAM, Patrick F.; EDWARDS, Bob; NOAKES, John A. 2013. Strategic incapacitation and the policing of occupy Wall Street protests in New York City, 2011. Policing and Society, v. 23, n. 11, pp. 81-102.). Ainda, ressalta-se que as TIC apresentam limitações operacionais quanto a três fatores: resultados operacionais não condizentes com as expectativas; insuficiência de treinamento dos agentes humanos; limitações de recursos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2022
  • Aceito
    27 Jun 2023
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