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Lesões iatrogênicas das vias biliares: como prevenir?

EDITORIAL

Lesões iatrogênicas das vias biliares: como prevenir?

Eduardo Crema

Professor Titular em Cirurgia do Aparelho Digestivo da Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM, Uberaba,MG, Brasil

As lesões iatrogênicas, ocorridas durante uma colecistectomia, manifestam-se como verdadeiro desafio cirúrgico. Essas lesões podem representar complicação grave no tratamento de doenças frequentes, como a colelitíase que acomete, aproximadamente, 10% da população brasileira. A bibliografia continua a registrar índices que variam de 0,1% a 0,6% em relação às lesões de vias biliares nos procedimentos laparoscópicos, mesmo em centros de referência2,6,11.

A mudança de paradigma, proporcionada pela laparoscopia, é uma das grandes explicações para o aumento da frequência de lesões iatrogênicas das vias biliares. Conhecimentos incompletos da tecnologia e do instrumental, além de habilidades cirúrgicas em treinamento, determinaram o aumento do número de lesões na via biliar principal, associado à maior gravidade e a reparo inadequado das mesmas. Tais conhecimentos incompletos propiciaram, em vez da cura da colelitíase pela colecistectomia, ao aparecimento de uma doença crônica com significativa morbidade e mortalidade: a lesão iatrogênica das vias biliares.

De maneira sumária, poderíamos dizer que o prognóstico de um portador de lesão acidental da via biliar depende, fundamentalmente, de dois fatores. O primeiro diz respeito ao grau de comprometimento hepático e da via biliar remanescente no momento da reconstrução. O segundo, por sua vez, tem relação com a técnica de reconstrução do trânsito biliar. Se no primeiro caso o cirurgião não pode interferir, o mesmo não acontece com o segundo. Este depende inteiramente dele. Deve-se ressaltar que o reconhecimento da lesão, durante o ato cirúrgico, é muito importante, pois permite o reparo em condições melhores do que quando realizado no pós-operatório, em vigência de coleperitôneo, infecção ou fístula.

Lesões maiores podem contribuir com considerável impacto, na qualidade de vida, no estado funcional do fígado e na sobrevida de jovens pacientes. As reconstruções cirúrgicas atuais têm por objetivo restabelecer o trânsito biliar através de anastomose biliodigestiva mucosa a mucosa, livre de tensão.

Quando a perda de substância, na via biliar, é pequena, pode-se fazer a reconstrução término-terminal, desde que a sutura possa ser feita sem tensão. Como em grande parte das vezes as bordas da via biliar estão afastadas e/ou a porção distal não pode ser identificada, a reconstrução da via biliar é feita, mais comumente, por meio de derivação colédoco-duodenal ou colédoco-jejunal, através da drenagem para um segmento jejunal de aproximadamente 40 a 60 cm, em alça exclusa (reconstrução em Y de Roux)10.

As lesões da via biliar, habitualmente, ocorrem próximas ao hilo hepático, dificultando a reconstrução colédoco-duodenal. Além disso, ela está relacionada à maior incidência de câncer de via biliar a longo prazo, devido ao refluxo crônico de suco duodeno-pancreático para a via biliar7,9.

Em levantamento feito por Massarweh, et al.8, com 1412 cirurgiões do American College of Surgeons, surgiram dados nos quais cirurgiões mais jovens, mais experientes e que exercem suas atividades em hospitais universitários apresentavam, estatisticamente, menor número de lesões iatrogênicas da via biliar.

O reconhecimento e a avaliação da gravidade nas lesões dos ductos e comprometimento das estruturas vasculares, que podem ocorrer em até 32% dos pacientes, habitualmente é feito no pós-operatório1.

Para uma avaliação mais ampla e criteriosa, a angiocolangiografia magnética tem sido muito útil quando analisa a extensão das lesões e o comprometimento vascular5.

Tian Yu, et al.12, com o intuito de prevenir lesões das vias biliares, relata a realização de colecistectomia subtotal em 48 pacientes portadores de colecistite aguda com grande processo inflamatório na região cística-coledociana.

As lesões ocorrem, mais frequentemente, durante procedimentos cirúrgicos laparoscópicos nos primeiros 100 casos da experiência4, quando associados a quadros agudos e com uso de equipamentos inapropriados. O emprego de colangiografia pré-operatória de rotina, na prevenção das lesões iatrogênicas da via biliar, é controversa. A realização da colangiografia de rotina possibilita a identificação das lesões4, mas, comprovadamente, não tem sido útil na prevenção das lesões. Portanto, a colangiografia tem se mostrado útil na detecção e orientação do reparo mais adequado.

Fatores relacionados à técnica cirúrgica estão diretamente ligados a lesões das vias biliares. Dentre os três, encontra-se na maioria dos casos, sangramento da cística ou na região do triângulo das vias biliares; tração excessiva e para cima da vesícula; e presença de variações anatômicas que não foram reconhecidas.

Algumas referências anatômicas do hilo hepático têm sido citadas como parâmetros importantes para a orientação durante a dissecção. O sulco de Rouvierés, deve ser identificado e não se deve praticar a dissecção abaixo da base do segmento IV e do ligamento hepatoduodenal3.

Consideramos que a prevenção das lesões da via biliar começa antes do procedimento, e que alguns passos devem ser seguidos rotineiramente: 1) a equipe deve possuir conhecimento dos equipamentos, utilizando instrumentos apropriados (câmera, monitor, insuflador e ótica de 30º); 2) deve haver um bom posicionamento do paciente conforme a experiência da equipe; 3) o anestesiologista deve ter experiência com os procedimentos laparoscópicos; 4) o cirurgião e os auxiliares devem ter tido treinamento em simuladores e animais, e tido supervisão de cirurgiões mais experientes nos primeiros casos em seres humanos; 5) bom conhecimento da anatomia das vias biliares e de suas variações; 6) durante o procedimento, a tração e apresentação sejam realizadas de maneira delicada; 7) procurar apresentar, de maneira adequada, as estruturas biliares, com tração do fundo da vesícula para cima e lateralmente (direção do ombro direito do paciente) com o infundíbulo tracionado para baixo e lateralmente, proporcionando horizontalização das estruturas da vesícula (cístico e cística) e expondo, de maneira clara, o triângulo das vias biliares; 8) a dissecção circular do cístico, próximo ao infundíbulo, começa pela abertura do peritônio e das aderências posteriores do triângulo das vias biliares, empregando bisturis apropriados e com baixa frequência; utilização criteriosa do cautério ou clips durante o sangramento inadvertido, sendo importante optar pela compressão com gaze e pela limpeza da região antes de qualquer medida de secção ou ligadura definitiva; 9) deve existir a identificação prévia do cístico até a implantação no ducto hepático e da artéria cística antes da clipagem e secção das estruturas sendo fundamental a identificação da transição infundíbulo-cística, começando da direita para a esquerda e, se houver dúvida, antes da secção, deve-se realizar um estudo radiológico adequado; 10) a dissecção cístico-fundo da vesícula deve manter o eixo do plano vesicular (em especial do infundíbulo) durante todo o procedimento e, obrigatoriamente, o campo cirúrgico deve estar bem iluminado sem sangue ou bile e com a visualização do hilo hepático.

  • 1. AbdelWahab M, el-Ebiedy G, Sultan A, el-Ghawalby N, Fathy O, Gad el-Hak N et al. Postcholecystectomy bile duct injuries: experience with 49 cases managed by different therapeutic modalities. Hepatogastroenterology 1996; 43: 1141-1147.
  • 2. Coelho JC, Bonilha R, Pitaki SA, Cordeiro RM, Salvalaggio PR, Bonin EA, Hahn CG, Soares RV, Milcheski DA. Prevalence of gallstones in a Brazilian population. Int Surg. 1999; 84(1):25-8.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2010
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