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Cirurgia auxiliada por robô: avanço tecnológico à serviço do paciente ou pressão da indústria?

EDITORIAL

Cirurgia auxiliada por robô: avanço tecnológico à serviço do paciente ou pressão da indústria?

Carlos Eduardo Jacob; Joaquim Gama-Rodrigues; Cláudio José Caldas Bresciani; Angelita Habr-gama

Hospital Alemão Oswaldo Cruz, São Paulo, SP, Brasil

Os avanços tecnológicos observados nas últimas décadas trouxeram evidentes benefícios aos pacientes com afecções do aparelho digestivo. O desenvolvimento do exame endoscópico alto e baixo a partir da década de 50 permitiu o diagnóstico precoce de lesões neoplásicas, melhorando o resultado do tratamento cirúrgico e criando oportunidade para o nascimento das ressecções endoscópicas com caráter curativo.

O desenvolvimento dos aparelhos de manometria anorretal e esofágica ajudaram a definir doenças e balizar o tratamento clínico e cirúrgico das doenças funcionais do aparelho digestivo à partir da década de 60.

Os grampeadores cirúrgicos criados nas primeiras décadas do século 20 na Hungria e aperfeiçoados na década de 50 na antiga União Soviética, foram popularizados pelos cirurgiões americanos no intuito de padronizar várias técnicas operatórias. Permitiram os grampeadores o aperfeiçoamento das suturas mecânicas e a realização de anastomoses colorretais baixas e esofagojejunais que passaram a ser realizadas com segurança por muitos cirurgiões com treinamento adequado.

A década de 80 assistiu ao nascimento e desenvolvimento de uma das maiores revoluções na cirurgia no último século: as operações minimamente invasivas, também conhecidas como operações laparoscópicas. Esta metodologia que está associada a menores índices de dor e infecção de parede, tempo de internação reduzido, retorno precoce ao trabalho e forte apelo estético foi rapidamente aceita pelo meio médico e pelos pacientes. Atualmente a cirurgia laparoscópica é utilizada com sucesso no tratamento da maioria das afecções do aparelho digestivo, desde que respeitadas as noções de bom senso e de ética.

Todos estes progressos estão sedimentados no conhecimento médico. Entretanto ao se relembrar de como foi a postura de expressiva parcela da comunidade acadêmica diante destas novas técnicas, surpreendentes lembranças nos afligem.

Quantos de nós ouvimos de eminentes professores ou mesmo às vezes fomos porta-vozes de frases como:

• "A ressecção endoscópica mesmo que restrita a certos subtipos morfológicos e histopatológicos de um câncer gástrico precoce é um crime"

• "A anastomose colorretal manual é muito mais segura que o duplo grampeamento"

• "A colecistectomia laparoscópica está associada a maiores complicacões. A laparotomia ainda é a via de acesso preferencial"

• "Operar câncer por laparoscopia é loucura por várias razões, entre elas o fato de que o índice de implantes nos portais é proibitivo".

Estas observações expressas por muitos como verdades à época, não resistiram à luz da experiência clínica e hoje estão ultrapassadas. A ressecção endoscópica de neoplasias precoces do aparelho digestivo, desde que obedecidas as regras internacionalmente aceitas mantendo-se restrita aos objetivos e critérios de indicação e às recomendações de contraindicação, está , associada a índices de sobrevivência e curabilidade semelhantes aos obtidos com procedimentos mais alargados e com qualidade de vida expressivamente superiores.

A difusão do grampeadores cirúrgicos permitiu sedimentar que a anastomose mecânica é tão boa ou melhor que a anastomose manual, desde que realizada por cirurgião com treinamento apropriado e com indicação correta.

O acesso laparoscópico é o preferencial não só no tratamento da colelitíase como também em todas as afecções benignas do aparelho digestivo, principalmente na doença do refluxo gastroesofágico e na doença diverticular dos cólons.

Por fim o tratamento do câncer do aparelho digestivo pela laparoscopia tem deixado de ser encarado como heresia. Os resultados de trabalhos prospectivos randomizados nos EUA e Espanha demonstram a possibilidade e segurança desta metodologia no tratamento do câncer colorretal. Além disso, observações preliminares querem sugerir que a laparoscopia esteja relacionada com melhores índices de sobrevivência devido à melhor resposta imunológica pós-operatória.

Recentemente a experiência com câncer de esôfago e estômago no Japão e Coréia parecem apontar no mesmo sentido quanto ao benefício desta metodologia.

No momento atual, a proposta de cirurgia laparoscópica auxiliada por robô nos colocou diante de dilemas parecidos com os que cercaram o advento da cirurgia laparoscópica.

A confiabilidade, acurácia, segurança e reprodutividade que o emprego de robôs desenvolveu na presente década em outras áreas como, por exemplo, na indústria automobilística, permitem vislumbrar que a cirurgia auxiliada por robô veio para ficar.

A robótica traz benefícios à prática da cirurgia do aparelho digestivo. Talvez o mais evidente tenha sido a melhoria quanto às limitações com as quais as operações laparoscópicas se deparam. O emprego da robótica em cirurgia determinou incremento da destreza, retorno à visão tridimensional, magnificação e miniaturização dos movimentos, possibilidade de operações à distância, supressão do tremor do cirurgião e ganhos na ergonomia.

Recentemente foram publicadas as primeiras metanálises sobre cirurgia robótica, demonstrando que a utilização desta metodologia está associada a resultados pelo menos semelhantes aos obtidos com o acesso laparoscópico, com promissoras expectativas quanto à melhoria técnica das operações oncológicas.

Entretanto algumas questões se levantam e não podem de forma alguma serem esquecidas. O altocusto é a mais saliente dentre todas. Como justificar a compra e a utilização desta tecnologia em um país com enormes dificuldades econômicas como o nosso? Como garantir o acesso universal da população às novas opções de tratamento? A experiência pregressa nos mostra que o preço da tecnologia está ligado à escala de produção dos equipamentos. Muito provavelmente este custo cairá com o passar dos anos. Outras indagações são os aspectos legais e éticos do procedimento e o treinamento necessário para a prática da cirurgia robótica, tão expressivos quanto o são para a própria intervenção laparoscópica.

Todos estes aspectos devem ser debatidos pelas sociedades médicas e universidades, visando desenvolver recomendações obtidas em consensos que possam orientar os colegas cirurgiões brasileiros. O Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva participa de fóruns como os da Associação Paulista de Medicina, onde este tema é debatido exaustivamente. O acúmulo de literatura especializada torna evidente que esta tecnologia traz benefícios que não podem ser descartados simplesmente pelo maior custo envolvido. Torna-se necessária a participação da comunidade acadêmica e das sociedades médicas neste debate visando legitimar esta metodologia emergente na prática clínica na dependência dos resultados que se vierem a observar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 2011
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