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Má rotação intestinal em adulto: relato de caso

CARTA AO EDITOR

Má rotação intestinal em adulto: relato de caso

Ubirajara Rutilio M. e F. de Araújo; Imad Izat El Tawil

Correspondência Correspondência: Ubirajara Araújo e-mail: biraraujo@bol.com.br

INTRODUÇÃO

A má rotação intestinal é anomalia congênita causada por rotação incompleta ou não rotação do intestino no eixo da artéria mesentérica superior durante o desenvolvimento embriológico2. Apresenta-se tipicamente nos primeiros meses de vida, mas às vezes pode se apresentar tardiamente causando dificuldade e erro no diagnóstico9. Sabe-se que 64% dos casos tornamse evidentes clinicamente nos primeiros meses de vida e 82% até o primeiro ano9, porém, alguns autores afirmam que até 90% dos casos são diagnosticados ao se completar um ano4. A real incidência desta malformação não é conhecida, com estimativas variando de 1:200 a 1:6000 nascidos vivos4. Em adultos, a incidência é de 0,2%5, sendo que cerca de 15% de todos os pacientes com diagnóstico firmado de má rotação intestinal permanecem assintomáticos por toda vida6. Por estes motivos, o diagnóstico desta doença faz parte do dia-a-dia do cirurgião pediátrico, mas esta hipótese diagnóstica frequentemente fica esquecida nos casos de dor abdominal em adultos1.

RELATO DO CASO

Mulher de 21 anos, telefonista, deu entrada no hospital com quadro de intensa dor abdominal com três dias de evolução e piora progressiva nas últimas 24 horas. Referia ser a dor abdominal do tipo difusa, em cólica, porém mais intensa em região epigástrica e com irradiação para dorso. Ela apresentava piora importante após as refeições, quando era acompanhada de náuseas e vômitos. Negava quaisquer outras queixas associadas.

Não apresentava nenhuma comorbidade, mas referia na história mórbida pregressa episódio semelhante há três anos, porém de caráter fugaz e com melhora espontânea com repouso intestinal e medicação anti-espasmódica.

Ao exame físico apresentava-se em bom estado geral, levemente desidratada, normocorada, afebril e com dados vitais estáveis (PA=110x60 mmHg e FC=80 bpm). O abdômen estava plano, flácido, ruídos hidroaéreos presentes, levemente doloroso à palpação de epigástrio, mas sem sinais de irritação peritoneal.

Foram solicitados exames laboratoriais (hemograma, eletrólitos, avaliação da função hepática e pancreática) que encontravam-se dentro dos limites da normalidade, bem como ultrassonografia abdominal total que evidenciou somente distensão de alças intestinais. Iniciaram-se medicações analgésicas e bloqueador de bomba de prótons e solicitouse endoscopia digestiva alta, a qual demonstrou apenas pequena hérnia hiatal. No segundo dia de internamento o quadro clínico permanecia inalterado, mas com maior intolerância alimentar; então, foi solicitada tomografia de abdômen que concluiu tratarse de má rotação intestinal ao longo do eixo da artéria mesentérica superior, com sinais de sub-oclusão do trato gastrintestinal alto.

Optou-se por conduta cirúrgica através da via laparotômica. No intra-operatório observou-se todo o intestino delgado disposto para o lado direito do abdômen e o cólon para o lado esquerdo. Além disto, o jejuno proximal encontrava-se isquêmico e fazendo volvo de 270º sobre o eixo dos vasos mesentéricos superiores; já o cólon direito estava disposto por trás destes vasos, mas com a sua arcada vascular disposta acima deles. Para a correção da anomalia fez-se uma enterotomia do jejuno proximal, a cerca de 10 cm do ângulo duodenojejunal, e desfez-se o volvo, o que cursou com melhora progressiva da isquemia intestinal, permitindo que se fizesse uma enteroanastomose. O cólon direito comprimia os vasos mesentéricos superiores através da arcada vascular da cólica direita, fazendo ingurgitamento vascular. A seguir, realizou-se ligadura do pedículo da artéria cólica média em sua origem e colectomia direita seguida de ileotransversostomia látero-lateral.

A paciente evoluiu bem, tendo alta hospitalar no 5º dia do pós-operatório e manteve-se assintomática até o último seguimento, dois anos após a operação.

DISCUSSÃO

Segundo alguns autores a grande maioria dos casos de má rotação intestinal em adultos é assintomática4,5,9; dentre aqueles que desenvolverão algum sintoma, a evolução pode ocorrer de forma aguda ou crônica. A aguda, cursa com quadro de vômitos e dor abdominal sem distensão (por se tratar de obstrução alta) que pode evoluir para isquemia e necrose intestinal com peritonite1. Isto pode ser causado por obstrução intestinal por volvo ou hérnia interna, com ou sem isquemia intestinal2,5). Em geral, com boa anamnese descobre-se história prévia de sintomas intermitentes, mas leves1. No presente caso, a evolução ocorreu de forma aguda, tendo sido causada por volvo do jejuno com consequente obstrução intestinal. Já nos casos de evolução crônica, os sintomas são inespecíficos, como dor abdominal tipo cólica de caráter intermitente e vômitos recorrentes1,6. A causa dessa anomalia é a incorreta fixação do intestino delgado, causando estreitamento no pedículo dos vasos mesentéricos superiores, o que predispõe o intestino ao volvo5,6. Além disto, formam-se feixes de peritônio para tentar fixar compensatoriamente o ceco (que está localizado no quadrante superior direito) na parede abdominal; estes feixes cruzam o duodeno mal posicionado e podem causar obstrução ou criar espaços para formação de hérnias internas5,6. Estes sintomas vagos tornam o diagnóstico obscuro, retardando-o, e não raro o paciente é atendido por vários médicos, que atribuem as causas das queixas a problemas da motilidade intestinal ou a desordens de origem psiquiátrica antes de esclarecer o correto e definitivo diagnóstico2,3,4,5,6.

Quanto ao relatado, o diagnóstico foi elucidado através de tomografia contrastada de abdômen. Este exame vem sendo cada vez mais solicitado e demonstra alterações de parâmetros anatômicos característicos, tais como: relação inversa entre os vasos mesentéricos superiores (veia está situada à esquerda da artéria)1,4,10, ausência ou hipoplasia do processo uncinado do pâncreas4,10 e alterações na disposição das alças intestinais4. Porém, o diagnóstico poderia ter sido feito através de estudo radiográfico contrastado do trato gastrintestinal alto, o qual segundo muitos autores, é o exame padrão-ouro para o diagnóstico de má rotação intestinal1,4, tendo acurácia superior a 80%2,6 e em alguns estudos atingindo 100%5. O achado mais importante a ser observado é a junção duodenojejunal, a qual não cruza a linha média e fica localizada à direita da coluna vertebral1,4,6. Além destes, há outros exames para o diagnóstico tais como: ultrassonografia de abdômen (também avaliando a relação inversa entre os vasos mesentéricos)3,6,9,10, angiografia3,6 e a videolaparoscopia7. Nos casos agudos, no entanto, o diagnóstico na maioria das vezes continua a ser feito através da laparotomia3.

Finalmente, no que diz respeito ao tratamento, não existe padronização para adultos, sendo que vai depender dos achados intra-operatórios e do tipo de malformação associada4. Porém, em geral deve-se fazer uma série de manobras chamadas de procedimento de Ladd, que consiste na liberação das aderências existentes, mobilização do duodeno e do cólon direito, liberação e alargamento do pedículo dos vasos mesentéricos superiores e realização de apendicectomia profilática1,2,4,5,8. Não há consenso quanto à prevenção de complicações peri e pós-operatórias através da cecopexia4. Atualmente, tem-se sugerido a realização do procedimento de Ladd por videolaparoscopia, por ter bons resultados e pouca morbidade4,7,8. Segundo alguns estudos, a videolaparoscopia, quando comparada ao procedimento convencional, tem significativamente menor tempo de internamento pósoperatório e menor necessidade de analgesia pósoperatória5. Com relação aos casos assintomáticos, não há consenso quanto à conduta a ser tomada4; há autores que afirmam que não se deve operar o paciente1, mas há outros, em contrapartida, que alegam que o tratamento cirúrgico deve ser instituído para prevenir complicações causadas por volvo ou hérnia interna5,6.

CONCLUSÃO

A má rotação intestinal em adultos é doença de difícil diagnóstico primário devido a não constar entre as hipóteses diagnósticas iniciais do cirurgião geral. A sua lembrança é fundamental nos quadros arrastados de dor abdominal sem explicação plausível, pois evita complicações e a rotulação do paciente como tendo uma dor de origem psicossomática.

Recebido para publicação: 10/08/2009

Aceito para publicação: 25/01/2011

Fonte de financiamento: não há

Conflito de interesses: não há

Trabalho realizado no Ônix Centro Hospitalar, Curitiba, PR, Brasil.

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  • Correspondência:
    Ubirajara Araújo
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011
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