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Diagnóstico e tratamento de paciente não-neutropênico com tiflite: relato de caso

CARTA AO EDITOR

Diagnóstico e tratamento de paciente não–neutropênico com tiflite: relato de caso

Rafael Izar Domingues da Costa; Pedro Marcos Santinho Bueno de Souza; Rodrigo Biscuola Garcia; Flavia Pezzi

Correspondência Correspondência: Rafael Izar Domingues da Costa, e-mail: rafaelizar@gmail.com

INTRODUÇÃO

Tiflite é um termo que originalmente surgiu para denotar inflamação do ceco, sendo aplicado inicialmente para crianças que apresentavam complicações com o uso de quimioterapia, em leucemia aguda. Tem como achado característico inflamação transmural da parede intestinal, lesão de mucosa e translocação bacteriana, com proliferação de germes gram negativos e anaeróbicos7,10,13. Apesar do termo sugerir acometimento restrito ao ceco, na ocasião do diagnóstico, evidencia-se comprometimento do apêndice vermiforme e do íleo terminal em grande parte dos casos.

Atualmente a incidência varia de 0,8 a 26%1,3,10, sendo estimada em 5,3% de pacientes adultos hospitalizados para tratamento de neoplasias malignas sólidas ou hematológicas, e pacientes com aplasia de medula10. A mortalidade é de aproximadamente 50% na média, podendo atingir 100%5,15, pois a maioria dos pacientes é imunossuprimida.

Apesar de inicialmente ocorrer somente em pacientes neutropênicos, há relato na literatura de um paciente sem nenhuma das condições referidas, que apresentou quadro clássico de tiflite, com febre, dor em quadrante abdominal inferior direito e exame de tomografia mostrando espessamento da parede do ceco. Foi submetida a tratamento com quinolona e metronidazol, obtendo boa resposta1.

O diagnóstico diferencial de tiflite baseia-se nas causas de abdome agudo inflamatório, tais como apendicite aguda, colecistite aguda, colite infecciosa, abscesso hepático, diverticulite complicada, pancreatite aguda, volvo intestinal e intussussepção intestinal13.

RELATO DO CASO

Homem de 47 anos foi admitido em pronto socorro por dor abdominal em peso há quatro dias, iniciada em mesogástrio, com piora e irradiação para fossa ilíaca direita há dois dias. Apresentava episódios de náuseas sem vômitos. Fazia uso de bebidas alcoólicas do tipo destilados esporadicamente, e fumava aproximadamente 30 cigarros por dia há 32 anos, e não apresentava operações prévias.

Ao exame físico, observou-se discreto comprometimento do estado geral e sinais de irritação peritoneal em fossa ilíaca direita.

Feita a hipótese de abdome agudo inflamatório foi solicitado leucograma que corroborou com a hipótese, revelando leucocitose absoluta, com total de 17.800 células, com o diferencial demonstrando neutrofilia relativa em 84%.

O paciente foi submetido à laparotomia exploradora, pelo diagnóstico de abdome agudo inflamatório por apendicite aguda. Feita incisão em fossa ilíaca direita (McBurney) encontrou-se bloqueio em fossa ilíaca direita com apêndice vermiforme aderido, hiperemiado e edemaciado em seu ápice, além de coleção purulenta com aproximadamente 20 ml de volume em região retro-cecal.

Realizada apendicectomia, com sutura da base do ceco, limpeza da cavidade abdominal com gazes, e drenagem por contra-incisão com dreno tubular. Por tratar-se de operação infectada, iniciou-se antibioticoterapia com ciprofloxacino e metronidazol.

O paciente evoluiu com melhora clínica no pós-operatório imediato, recebendo dieta leve. Permaneceu internado por dois dias, quando teve seu dreno retirado, por apresentar débito decrescente, e recebeu alta hospitalar no segundo dia de pós-operatório, com orientação de manter a terapia antimicrobiana por mais cinco dias.

No acompanhamento ambulatorial ele retornou no 7º. dia de pós-operatório, sem queixas significativas ou alterações de estado geral. O exame anatomopatológico do apêndice demonstrou tartar-se de apendicite aguda em fase congestivo-edematosa.

No 20º. dia de pós-operatório, retornou ao serviço de pronto socorro, queixando-se de dor abdominal localizada em fossa ilíaca direita, sem parada de eliminação de gases e fezes e quadro febril (38,5ºC).

Ao exame físico, apresentava queda do estado geral e dor difusa ao exame abdominal, com peritonismo e sinais de irritação peritoneal.

Devido a hipótese de abscesso intracavitário, instituiu-se investigação com realização de exames laboratoriais e de imagem. O leucograma mostrou leucocitose absoluta, com 26.000 células e neutrofilia relativa com desvio à esquerda. As radiografias de abdome revelaram presença de distensão de alças de intestino delgado difusamente. Realizou-se ultrassonografia de abdome que mostrou a presença de líquido livre na cavidade abdominal, não mensurando a quantidade nem o local de origem.

O paciente foi submetido a tomografia computadorizada de abdome, com grande espessamento de parede de ceco e cólon ascendente e linfonodos evidentes em fossa ilíaca direita e líquido livre na cavidade (Figura 1).


Com a suspeita de abscesso pericolônico pós-operatório, realizou-se laparotomia exploradora. No intra-operatório observou-se: a) coleção sero-hemática de aproximadamente 100 ml livre na cavidade abdominal; b) espessamento importante de mesocolon direito; c) pequena coleção purulenta em região retro-cólica direita. Optou-se pela lavagem da cavidade peritoneal, biópsia de mesocólon direito e drenagem de toda a região parieto-cólica. Foram introduzidos de forma empírica metronidazol e ceftriaxona.

O paciente evolui com drenagem ao redor de 100 ml por dia por dreno tubular, porém apresentava-se febril e com aumento da leucocitose. Exames para pesquisa de síndrome de imunodeficiência, hepatites e tuberculose foram solicitados, sendo todos negativos.

No 5º. pós-operatório apresentou drenagem de secreção entérica pelo dreno tubular, realizando-se nova tomografia computadorizada de abdome (Figura 2), que mostrou volumosa formação heterogênea em fossa ilíaca direita, compatível com abscesso de cólon direito.


No 8º. dia do pós-operatório ocorreu piora clínica com ausência de trânsito intestinal, distensão abdominal e presença de sinais de irritação peritoneal, sendo indicada nova laparotomia exploradora. No intra-operatório observou-se perfuração em cólon direito próximo ao ceco e sinais de isquemia de alças ileais, ceco, cólon direito até flexura hepática com pontos de necrose e espessamento das paredes. Realizada ressecção do cólon direito, cólon transverso proximal e 180 centímetros de íleo terminal, com anastomose íleo-transversa.

O paciente evoluiu com melhora discreta e progressiva do seu quadro sistêmico, porém apresentou deiscência da sutura da parede abdominal no sétimo dia com evisceração, sendo submetido à ressutura. Apesar deste fato, não havia sinais de complicações intra-abdominais e o trânsito intestinal estava re-estabelecido.

O paciente recebeu alta no 21º. dia do pós-operatório da ressutura da parede abdominal, totalizando 49 dias hospitalizado. Os resultados antomopatológicos da biópsia de mesocólon direito demonstraram processo inflamatório crônico em surto agudo com sinais de esteatonecrose. O anatomopatológico de enterectomia e hemicolectomia direita revelou áreas purulentas, áreas micro-hemorrágicas, mucosas edemaciadas e congestas, compatíveis com quadro de tiflite ulcerativa aguda.

DISCUSSÃO

Tiflite é doença descrita exclusivamente em pacientes neutropênicos, submetidos à quimioterapia para neoplasias hematológicas ou tumores sólidos, imunossuprimidos de causas variadas ou transplantados. Raros são os artigos que apresentam pacientes não neutropênicos1, tendo em vista a fisiopatologia para instalação desta condição, que envolve a estase fecal na região do ceco, proporcionando proliferação bacteriana exacerbada, não inibida pela imunossupressão instituída. A proliferação bacteriana leva ao comprometimento da irrigação do órgão, progredindo até isquemia e necrose transmural, favorecendo maior translocação bacteriana.

Os artigos atuais estimam incidência global variável, entre 0,8 a 26%. Esta variação é explicada pela discrepância na seleção dos pacientes envolvidos nos estudos, que abrangem pacientes submetidos à quimioterapia, imunossuprimidos por HIV e transplantados.

De acordo com os números obtidos da revisão de literatura, pode-se concluir que trata-se de caso clínico raro pois o paciente não possuía nenhum dos fatores de risco relacionados com a doença, sendo submetido à pesquisa completa das demais doenças que cursam com imunossupressão e devido ao fato de apresentar leucocitose em todo o curso, ao contrário da neutropenia nos imunossuprimidos.

No caso relatado persistiu a dúvida entre apendicite aguda que em sua evolução cursa com tiflite ou diagnóstico equivocado de apendicite em vez de tiflite. A segunda hipótese parece mais palpável, tendo em vista que não há na literatura relatos de apendicite que evoluíram para tiflite.

O paciente não teve sua espessura colônica avaliada por ultrassonografia pela não suspeição diagnóstica inicial de tiflite, medida associada diretamente à mortalidade. Aumento inferior a 10 ml da parede do cólon está associado à mortalidade de apenas 4,2%, enquanto 60% de mortalidade está associada à espessura maior do que 10 ml.

A evolução do quadro sugeriu diagnóstico de tiflite tratado inicialmente com antimicrobianos por período curto e inadequado, o que favoreceu a piora do quadro clínico e a necessidade da segunda intervenção. Embora esta tenha sido indicada pela hipótese de complicação de apendicectomia, já havia sinais tomográficos de tiflite.

Optou-se por realizar a biópsia do mesocólon para diagnóstico e ampliação da antibioticoterapia. Esta conduta após revisão de literatura mostrou-se acertada3,7,10,12, pois em casos de suspeita de tiflite, a ressecção do cólon deve ser protelada, tratando-se o paciente com antibioticoterapia sistêmica, correção de distúrbios hidroeletrolíticos e antifúngicos em alguns casos, reservando-se para casos de complicações3.

Confirmado o diagnóstico de tiflite, após o segundo procedimento cirúrgico, foi instituído tratamento clínico conservador de acordo com a literatura3,7,12. Contudo o paciente evoluiu com uma segunda complicação da tiflite que é a perfuração, sendo necessária nova operação e neste momento a ressecção do cólon.

Há apenas um relato de caso de tiflite em paciente não neutropênico. Paciente de 62 anos de idade que apresentou quadro de febre, leucocitose e dor abdominal em quadrante inferior direito, uma semana após ciclo quimioterápico para leucemia mielóide, com hipótese inicial de apendicite aguda foi descrito. A tomografia computadorizada de abdome mostrou espessamento de ceco e íleo terminal, compatíveis com tiflite. Esta paciente foi tratada com antibióticos de amplo espectro e repouso intestinal, com resolução dos sintomas em poucos dias12.

Apesar de todas as complicações e o longo tempo de internação o paciente apresentou resolução do quadro e recuperação favorável. Isto deve-se ao fato dele ser previamente hígido sem alterações de imunidade8.

Fonte de financiamento: não há

Conflito de interesses: não há

Recebido para publicação: 26/01/2010

Aceito para publicação: 25/01/2011

Trabalho realizado no Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo – SP, Brasil

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  • Correspondência:

    Rafael Izar Domingues da Costa,
    e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jul 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011
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