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Confecção de válvulas biológicas (seromiotomias) para controle de diarréia intratável após colectomia total por inércia colônica

CARTA AO EDITOR

Confecção de válvulas biológicas (seromiotomias) para controle de diarréia intratável após colectomia total por inércia colônica

Beatriz Deoti; André Rossetti Portela; Alexandre Martins da Costa El-Aouar

Instituto Mário Penna, Unidade Hospital Luxemburgo, Belo Horizonte, MG, Brasil

Correspondência Correspondência: Beatriz Deoti bardesiro@terra.com.br

INTRODUÇÃO

A inércia colônica é causa de constipação crônica grave, provocando trânsito intestinal lento em toda extensão do intestino grosso. Este distúrbio ainda é mal compreendido, não tem fisiopatologia definida e existe deficiência de acesso à propedêutica9.

O tratamento operatório ocorre no insucesso do tratamento conservador quando há trânsito colônico alterado e estudo fisiológico da pelve normal. A colectomia abdominal total com anastomose ileorretal é o procedimento de escolha para estes pacientes. O tratamento cirúrgico é conduta de exceção devido às complicações e a morbimortalidade da retirada do intestino grosso. A literatura mostra poucos resultados da operação a longo prazo7,13.

O escopo deste relato é apresentar uma técnica cirúrgica que pode ser aplicada em pacientes submetidos à colectomia total com diarreia intratável.

RELATO DO CASO

Mulher de 56 anos apresentou-se para atendimento médico com diarréia intratável e dermatite perianal grave. Foi submetida à colectomia total por constipação há 20 anos porque ficava até 12 dias sem evacuar. Evoluiu com quadro de diarréia incontrolável, com urgência evacuatória, dermatite perineal grave, sem resposta efetiva ao uso constante de loperamida e de medidas clínicas de dieta. Apresentava até 40 evacuações ao dia. Tornou-se alcoolista, com distúrbio psiquiátrico em uso crônico de medicamentos ansiolíticos e antidepressivos e foi afastada do emprego. Foi reorientada quanto à tentativa de novas doses de loperamida, da dieta e da importância do tratamento psicológico e psiquiátrico para alcoolismo. Foram solicitados enema opaco duplo contraste e manometria anorretal. O enema apresentou reto normal, refluxo para o íleo e anastomose ileorretal pérvia. Na manometria verificaram-se pressões esfincterianas internas e externas normais e reflexo anal inibitório presente, sem sinal sugestivo de contratura do músculo puborretal. A sensibilidade estava preservada.

A proposta inicial foi acompanhá-la durante o tratamento psiquiátrico para o alcoolismo. Depois de discutido caso com psiquiatra e com apoio da família a paciente decidiu operar um ano e meio após o primeiro atendimento. A proposta cirúrgica foi confeccionar três seromiotomias ileais equidistantes, 10 cm uma da outra, craniais à anastomose ileorretal, através da secção da seromuscular até a camada mucosa, circunferencialmente (360º), sem lesão do mesentério, seguida de sutura com pontos simples, extramucosos (Figura 1)1 2,8,11.


Ela evoluiu bem no pós-operatório imediato sem intercorrências. Compareceu em todos os retornos relatando no máximo seis evacuações por dia e com resolução da dermatite e em tratamento psiquiátrico. Foi submetida à enema opaco para estudo morfológico da ileorretoanastomose mais seromiotomias (Figura 2).


DISCUSSÃO

A constipação afeta uma a cada 50 pessoas nos EUA, com incidência três vezes maior nas mulheres. Pacientes submetidos a tratamento operatório para inércia colônica constituem parcela mínima. Coube a Lane, em 1908, descrever 39 casos de pacientes, tratados cirurgicamente de formas diversas15. A anastomose ileorretal na colectomia total e as colectomias segmentares com anatomoses cecorretais e ileossigmoideanas são opções empregadas. Estudos mostram que a colectomia subtotal com anastomose cecorretal é procedimento viável e seguro nos casos de inércia colônica isolada, podendo persistir dor abdominal leve, porém, sem retorno da constipação. A frequência evacuatória observada com esta técnica foi de 4.8±7.5 por dia4,6,7,13,15.

Existem várias formas de melhor avaliar a função colônica e do assoalho pélvico no diagnóstico final da inércia colônica. As pressões do complexo esfincteriano do ânus no repouso e na contração são avaliadas na manometria anorretal que deve ser indicada nesses pacientes12. O defecograma é necessário para avaliar a musculatura do assoalho pélvico, o reto e o canal anal em relação à evacuação, ou seja, as anormalidades funcionais e morfológicas da região anorretal. A eletromiografia é indicada para diagnosticar a síndrome da contração paradoxal do músculo puborretal. O tempo de trânsito colônico é considerado o exame de escolha para a caracterização da constipação intestinal funcional, e é de fácil realização. Na avaliação de pacientes com inércia colônica, a associação de exames é recomendada para melhor embasar o processo fisiopatológico que leva à inércia colônica10. Segundo esta paciente a eletromiografia não foi realizada no pré-operatório porque não conseguiu o exame. O paciente obrigatoriamente deve ser informado que a operação trata apenas a constipação.

O aumento do número de evacuações após a operação pode ser responsável pela piora da qualidade de vida. A literatura relata ocorrência dela entre 0% e 46%. Esta grande variação reforça as discussões relacionadas aos benefícios desse tipo de operação, mesmo sendo ela realizada há quase um século9,13.

A definição de sucesso cirúrgico no tratamento da inércia colônica é vaga. Alguns autores consideram sucesso quando ocorrem não mais de três evacuações por dia e não menos de uma a cada três dias3,14.

A qualidade de vida com a ileostomia definitiva para tratamento de diarreia mostrou ter efeito negativo. Buscando resolvê-la de forma mais fisiológica, foi proposto para esta paciente a confecção das seromiotomias, seguindo os princípios emanados por Lázaro da Silva (1991) na confecção da colostomia perineal15. Tal sutura resulta em discreto anel fibrótico sem estenose da luz intestinal, mas responsável pelo mecanismo frenador do conteúdo entérico1,2,5,6,11,14. O acompanhamento de 34 meses mostrou-a psicologicamente bem melhor, mantendo tratamento para o alcoolismo sem recaída, sem diarreia, evacuando de quatro a no máximo seis vezes por dia, sem dermatite, com melhora das fissuras anais crônicas, reinserida no contexto social e conseguindo levar vida mais próxima do normal.

Recebido para publicação: 19/09/2012

Aceito para publicação: 05/03

Fonte de financiamento: não há

Conflito de interesses: não há/2013

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  • Correspondência:

    Beatriz Deoti
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Fev 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013
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