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Políticas das ciências sociais: armadilhas do heroísmo esquecido de si

POLÍTICAS DAS CIÊNCIAS SOCIAIS:

armadilhas do heroísmo esquecido de si

Luiz Eduardo Soares

Esse texto é dedicado a Wanderley Guilherme

Sísifo-dos santos, irredento

O processo de implantação da pós-graduação no Brasil foi de uma importância extraordinária. Importância insuficientemente reconhecida, mesmo no interior da comunidade acadêmica. Uma das inúmeras contribuições decorrentes da pós-graduação foi a seguinte: duas disciplinas foram reinventadas, nesse processo, e adaptadas à nova ambiência institucional: a Antropologia e a Ciência Política. É claro que muitas obras relevantes escritas antes da era da pós-graduação podem ser retrospectivamente classificadas como antropológicas ou politológicas. É verdade, por outro lado, que alguns autores já se definiam como antropólogos e etnólogos bem antes da fundação da pós-graduação em Antropologia Social. Mas, de fato, antes da pós, sobretudo na Ciência Política, as obras não foram concebidas intencionalmente para confirmar ou corresponder à geografia disciplinar que resultaria da recente implantação generalizada da pós-graduação. A Antropologia e a Ciência Política têm em comum, no caso brasileiro, por contraste com a Sociologia ou a Filosofia, essa peculiaridade: difundiram-se a partir de programas de pós-graduação, projetando-se para os cursos de graduação em ciências sociais.

Profissionais de novo tipo impuseram a expansão do mercado universitário: formados pela pós-graduação, os novos antropólogos e cientistas políticos criaram, na graduação, o mundo acadêmico à sua imagem e semelhança. Ou seja, por uma lógica simples do interesse, os novos mestres produziram a demanda que legitimaria sua incorporação diferenciada ao campo intelectual. Essa dinâmica exigia a valorização das fontes de que provém a legitimidade acadêmica dos novos mestres, que disputavam territórios em transformação. Daí a rápida consagração dos primeiros programas de pós-graduação, independentemente de suas qualidades intrínsecas — qualidades que, para mim, estão acima de qualquer dúvida.

Essa modalidade de afirmação das disciplinas ajuda a explicar o fascínio que exerceram sobre os estudantes durante os primeiros anos, anos heróicos e carismáticos. Ajuda também a compreender as razões contingentes que fizeram com que a Antropologia e a Ciência Política, no Brasil, inventassem para si suas respectivas tradições, consagrando galerias totêmicas muito peculiares. A galeria totêmica antropológica inclui sociólogos e pensadores eminentes como Durkheim, Simmel, Tocqueville, Polanyi, Goffman e Bourdieu. O panteão da Ciência Política, na versão brasileira, que inventa famílias e genealogias, retomando influências internacionais, inclui Maquiavel e, a seguir, quase toda a história da Filosofia moderna, em seu mainstream europeu, desde Hobbes, Locke, Hume, Rousseau e Kant até John Stuart Mill, Marx e Weber, depois salta para os pesquisadores contemporâneos, dado o fascínio da disciplina com os temas da vanguarda metodológica e as questões que, com nosso indisfarçável orgulho modernista, chamamos "de ponta". Mas a ponta e seus astros variam conforme o entendimento do que seja ponta, do que seja tradição e de quais sejam as relações entre a ponta vanguardista e os paradigmas herdados nas releituras das tradições.

A rigor, talvez não se possa falar, nesse caso, em heterodoxia, na medida em que não há ortodoxia possível na construção de genealogias: toda reconstrução das histórias das disciplinas comporta alguma dose de arbítrio e opções contingentes, que tanto expressam as vicissitudes das formações acadêmicas dos inventores da tradição, quanto traduzem projetos micropolíticos de afirmação institucional ou de demarcação de diferenças eventualmente oportunas para biografias, trajetórias e carreiras individuais. Os efeitos de agregação das decisões individuais quanto aos primeiros programas dos primeiros seminários oferecidos nos anos inaugurais das pós-graduações terminam por compor um cardápio de temas e autores, combinados de modos peculiares, os quais se transformam em modelos nos quais as gerações subseqüentes buscarão sua identidade acadêmica. Em alguns anos, a contingência das opções individuais sobre os primeiros programas dos primeiros cursos, as histórias diferenciadas e aleatórias das formações dos heróis fundadores, tudo isso será esquecido para que se constitua, se autonomize, se consolide e se reifique uma genealogia, uma identidade disciplinar, um altar de ídolos, ícones e tótens, uma versão mitológica sobre a epopéia fundacional. Em pouco tempo, as escolhas eventuais e contingentes, assumidas ao sabor das pesquisas individuais, expressando trajetórias muito particulares, muitas vezes cumpridas em departamentos de Sociologia de universidades estrangeiras, se transformam em referências representativas daquilo que, supostamente, a disciplina é "em sua essência". É ou deveria ser. O futuro repete o passado convertendo a contingência em necessidade. A tradição se confirma tautologicamente por se realizar como uma profecia que se autocumpre. O arbitrário torna-se motivado, a posteriori, como o signo de Saussure. As teses dos candidatos aos títulos de mestre e doutor ampliam o espectro de questões, objetos, autores, metodologias, teorias, referências genealógicas. Mas a necessidade de conferir sentido, valor e poder aos títulos obtidos em um país periférico, em instituições ainda em processo de consolidação, em programas freqüentemente sem tradição, cria uma gravitação artificialmente conservadora, reiterativa da frágil tradição e das condições institucionais que a tornam possível. A necessidade de atribuir legitimidade e nobilidade aos títulos faz com que todos celebrem, com os recursos rituais disponíveis, a legitimidade dos programas inaugurais, antecipando a consagração, que só o tempo propicia, através de expedientes simbólicos e micropolíticos bastante eficientes, como o reconhecimento mútuo e consensual, no interior da elite heróica fundadora, de seu valor heróico, ou como a radicalização das diferenças entre as disciplinas de modo a reforçar suas respectivas identidades.

Um episódio muito interessante e revelador do rápido sucesso dos expedientes dignificantes e diferenciadores, constitutivos das identidades institucionais e disciplinares, ocorreu no Iuperj, há alguns anos. Uma estudante ingressava no doutorado de Sociologia. Como seu mestrado fôra defendido na área de Antropologia, condicionou-se sua aprovação no concurso de seleção à sua inscrição no seminário de Teoria Sociológica, oferecido para o mestrado em Sociologia no Iuperj. Antes de inscrever-se no referido seminário, a estudante e seu orientador submeteram à Área de Sociologia do Iuperj o pedido de revisão da exigência, uma vez que a estudante cursara, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, em seu mestrado, um seminário sob o título Teoria Antropológica cujo programa coincidia quase termo a termo com o programa do seminário oferecido no Iuperj: ambos giravam em torno de Durkheim, Weber e Marx. E mais: a estudante e seu orientador assinalaram, em seu pedido, que os professores responsáveis pelo seminário sobre Durkheim, Weber e Marx no Museu Nacional, que a estudante cursara com excelente desempenho, são doutores em Sociologia.

A decisão da Área de Sociologia do Iuperj foi negativa. A solicitação foi recusada. O motivo alegado foi o seguinte: mesmo sendo basicamente idêntica a bibliografia, mesmo sendo doutores em Sociologia os professores, o seminário oferecido no Museu leria os mesmos autores e exegetas com um olhar antropológico, ao passo que, no Iuperj, eles seriam lidos por uma perspectiva sociológica. É claro que ali estava em jogo muito mais do que interpretações finas sobre a natureza de distintas leituras — até porque as leituras variam tanto ou às vezes mais no interior de uma única instituição do que entre instituições diferentes. Estava em jogo a confirmação política solidária da especificidade do Museu Nacional e, portanto, de sua legitimidade como expressão de uma tradição, que se concentra e sintetiza em uma identidade profissional determinada. A recíproca é verdadeira: o Iuperj celebrava, em sua decisão, a particularidade da tradição de que se pretende portador. Somos diferentes, portamos lentes distintas na apreciação de nossos antepassados, por isso somos iguais, compartilhamos plena cidadania intelectual no mundo que, em comum, cultivamos. Somos parceiros de um jogo de confirmação mútua. Nossas diferenças constituem identidades e circunscrições de poderes complementares. Poderes que eventualmente se tornarão contraditórios, quando estiverem em disputa bens finitos e escassos, submetidos a uma lógica do tipo soma zero. Entretanto, esse raramente é o caso quando se trata do universo acadêmico, ou, mais especificamente, quando a principal dinâmica é animada pela busca da consagração, do reconhecimento ou da legitimidade intelectual.

Mas é preciso ir além dos mecanismos de constituição e reprodução de identidades profissionais e institucionais, acionados pelos jogos especulares de mútua confirmação via estabelecimento de fronteiras e demarcações de diferenças. Para fazer justiça à importância da pós-graduação, é necessário reconhecer seu papel no processo político de transição para a democracia. Cada disciplina trouxe contribuições relevantes. Devemos sobretudo à Sociologia o conhecimento sobre as mudanças no mundo do trabalho e na sociedade civil, nos sindicatos e nos movimentos sociais. Devemos à Antropologia o reconhecimento da permanente contemporaneidade da questão agrária, assim como o encontro com novas identidades, novos comportamentos e novos valores, no meio urbano, no contexto de tradições religiosas reavivadas, sob a pressão de forças sociais que se complexificam. Devemos, finalmente, à Ciência Política a descoberta, surpreendente para os antigos paradigmas reducionistas do marxismo, de que as instituições políticas dispõem de lógicas relativamente autônomas de funcionamento que produzem efeitos razoavelmente regulares e previsíveis, os quais podem ser estudados em suas especificidades.

De todo modo, não tenho, aqui, a pretensão de apresentar um quadro sintético da história recente de cada disciplina abrigada sob o rótulo genérico "ciências sociais". Seria impossível, em tão pouco tempo, apreciar com um mínimo de seriedade e justiça a riqueza das contribuições provenientes de cada área e as formas pelas quais tais contribuições interagiram com o processo de transição política e de consolidação democrática. Meu objetivo é muito mais modesto. Gostaria, simplesmente, de assinalar um paradoxo. A partir da exposição desse paradoxo, gostaria de compartilhar algumas reflexões sobre as relações entre as ciências sociais e a Filosofia para, finalmente, concluir com algumas interrogações.

Eis o paradoxo: o sucesso do momento heróico, inaugural, carismático, de fundação das pós-graduações gerou, como seria natural, a difusão do projeto, a generalização das práticas instituintes e a constituição de um sistema institucional, que continua em expansão. Em outras palavras, o sucesso da fundação trouxe consigo, além de rica produção intelectual, os dilemas típicos da rotinização do carisma. Graças ao sucesso, colocam-se para todos nós, hoje, com força, os desafios da institucionalização de nosso sistema de pós-graduação. Por institucionalização eu me refiro à consolidação de critérios consensuais de juízo sobre a natureza característica e distintiva de cada identidade disciplinar. Com a afirmação razoavelmente consensual dos critérios de juízo consolida-se também um conjunto de práticas e de relações estáveis, correspondentes a uma ordem microssocial determinada. No processo atropelado pelas inevitáveis contingências dos encontros e desencontros entre projetos, atores, interesses, valores, alianças e disputas, precipita-se a necessidade de definir meios e normas de avaliação, que atuem como indutores e corretores de rota, unificando os campos, em escala nacional.

Evidentemente, todos sabemos que os processos de ordenação, regulamentação, determinação de critérios, de normas e práticas comuns, são também, ao mesmo tempo, processos de exclusão, deslocamento, hierarquização, circunscrição de elites e de periferias. De tal modo que dificilmente algum colega suporia que, quando discute epistemologia, teoria ou metodologia, na perspectiva de estipular critérios de avaliação de desempenhos institucionais — avaliações, repito, que funcionam como indutores de efeitos prospectivos —, dificilmente algum colega suporia, repito, que quando discute epistemologia ou metodologia está simplesmente discutindo questões abstratas ou expressando legítimas opiniões pessoais a respeito de sua disciplina. O que está em jogo são posições relativas de poder e prestígio de indivíduos e instituições, obras ou áreas disciplinares. Nesse sentido, o momento de que velozmente nos aproximamos, a rotinização, a normalização, a institucionalização do sistema de pós-graduação no Brasil, implicará, crescentemente, a inversão do foco dos investimentos individuais, disciplinares e institucionais. Enquanto, no momento carismático, heróico e fundacional, o foco central era a resistência contra a ditadura e a construção da democracia, no momento da rotinização, o foco tenderá a ser a demarcação corporativa das profissões, das carreiras e de suas respectivas posições de poder, nos marcos da ampla disputa pela imposição das normas de juízo e de indução. Claro que as querelas corporativas serão cobertas pela dignidade intelectual de disputas teóricas, assim como é certo que tais querelas serão sobredeterminadas pelas divisões intracorporativas ditadas pela competição entre as instituições. De todo modo, mais e mais seremos levados a esquecer a vocação ético-política do momento heróico fundador, em que afirmávamos nossos compromissos com os rumos de nosso país e de nossa cultura, para nos fixarmos na matéria corporativa e nas disputas de regulamentação ou de vigilância epistemológica.

A conseqüência desse deslocamento progressivo será a naturalização de nossas práticas e a substituição de nossa vocação política mais ampla pela mediocridade das moralidades corporativas, que se alimentam das obsessões pela demarcação de identidades disciplinares. A naturalização de nossas práticas implica o esquecimento do caráter construído das genealogias das quais extraímos a legitimidade do que fazemos e do que imaginamos ser. A naturalização implica, sobretudo, o esquecimento de que, na origem, as pós-graduações se voltaram para o país na perspectiva de pensá-lo e de contribuir para a realização das metas democráticas. O esquecimento, nesse caso, é prematuro, porque estamos longe de termos alcançado as metas democráticas, quaisquer que sejam os standards pelos quais definamos tais metas.

Os riscos envolvidos, portanto, são muito graves. Podemos capitular de nossas responsabilidades ético-políticas mais amplas, quaisquer que sejam nossas convicções ideológicas, e reduzir nossa prática intelectual à profissionalização das novas gerações, à sua preparação para o mercado ou para a mera reprodução acrítica de nossas instituições. Longe de mim a nostalgia dos tempos heróicos, quando nossas diferenças se neutralizavam ante a magnitude da luta comum contra a ditadura. Longe de mim a crítica romântica ao mercado e à profissionalização das ciências sociais. Meu objetivo não é regressivo e ressentido, voltado para a idealização do passado e a condenação reacionária do presente. Meu objetivo também aqui é mais modesto. Gostaria simplesmente de chamar a atenção para os riscos de perdermos o que existe de mais vivo e inspirador em nossas tradições, caso nos esqueçamos da origem construída de nossas diferenças, que se tornaram convenções e tendem, com o tempo, a se enrijecer e reificar, mascaradas pelos jogos de linguagem da retórica teórico-epistemológica, com a qual o arbitrário alcança dignidade ontológica e se converte em essência. Gostaria, ainda, de chamar a atenção para os riscos de sermos tragados por uma lógica corporativa centrífuga. Se nos deixarmos conduzir pelos falsos dilemas das diferenças disciplinares, diferenças totêmicas e políticas, não essenciais ou epistemologicamente naturais, terminaremos naturalizando nossas práticas profissionais e nos esquecendo de perguntar para que servem? como podem ajudar que processos sociais, culturais e políticos, nacionais e transnacionais? como se articulam a que projetos de emancipação, de mudança ou de reforma? a que liberdades ou utopias se vinculam? O risco da rotinização e da institucionalização da pós-graduação é perder os vínculos com sua história e terminar expressando a dinâmica auto-referida do capitalismo. O paradoxo assim se formularia: o heroísmo de pensar o Brasil para mudá-lo transformar-se-ia, depois de 30 anos, no projeto acanhado de preparar quadros para servir acriticamente às demandas do mercado. A comunidade intelectual terminaria o século, melancolicamente, terceirizando a inteligência.

Outra dimensão importante do mesmo paradoxo é a seguinte: o momento em que buscamos a institucionalização de nosso sistema de pós-graduação coincide com o momento internacional de degelo na relação entre as disciplinas. O modelo de diferenciação disciplinar que nos esforçamos por consagrar e rotinizar está em crise no plano internacional. Nós avançamos na contramão da tendência mundial. O tempo brasileiro da rotina coincide com o tempo internacional de experimentos transdisciplinares, de programas temáticos, de novas alianças, novas interações e novas geografias disciplinares.

O lugar da Filosofia é particularmente importante nesse contexto que é o nosso, tão repleto de riscos e potencialidades, em que a distância crítica e autocrítica se torna decisiva. Isso porque devemos à Filosofia o estímulo permanente à auto-reflexão e à metateorização, entendidos não como aplicações de cardápios conceituais ou metodológicos, mas, ao contrário, como exercícios abertos, por definição inacabados, que exigem criatividade adaptativa e acuidade crítica. Não há antídoto mais poderoso contra a metodolatria e os fantasmas do positivismo, sempre redivivos nos momentos de instalação de rotinas institucionais. O essencialismo e a metodolatria são a face dogmática das práticas micropolíticas corporativas, reificadoras de tradições inconscientes de sua dimensão contingente, que acionam identidades disciplinares como fetiches da autoconsagração. A Filosofia é o campo em que essências inventadas se desnaturalizam e revelam seu caráter político. Por isso, é ou pode ser o antídoto para o veneno da doença infantil de nossa institucionalização, nomeadamente: a reificação de diferenças disciplinares; o congelamento da compartimentalização burocrática dos saberes; o esquecimento da origem política de nossa prática coletiva.

Nesse sentido, posso dizer que sim, sem dúvida, devemos aprender a rir da Filosofia, desde que estejamos preparados, com humildade, para rir de nós próprios.

Apresentei uma agenda vasta de temas, cuja elaboração rigorosa exigiria um longo desenvolvimento, incompatível com o tempo disponível. Mesmo sendo impossível aprofundar suficientemente todos os tópicos mencionados, gostaria de concluir sugerindo que nos interroguemos sobre três questões:

(1) Ao invés de naturalizar, reificar e reproduzir nossas identidades disciplinares, apoiadas em genealogias que congelamos, buscando consolidá-las institucionalmente, celebrando suas especificidades e diferenças e criando obstáculos corporativos para a interpenetração e as migrações interdepartamentais e interinstitucionais, não seria mais enriquecedor sintonizarmo-nos com as tendências transnacionais que apontam justamente na direção de experimentos transdisciplinares, interinstitucionais, orientados para programas temáticos, flexíveis, reversíveis, mutuamente permeáveis, ainda que isso trouxesse dores de cabeça para os burocratas e criasse problemas para a formação de comissões de avaliação?

(2) A geografia convencional que inventa e consolida diferenças entre identidades disciplinares não se teria convertido, entre nós, em um poderoso obstáculo ao enfrentamento intelectual de alguns desafios cruciais, dramáticos, estratégicos, da sociedade brasileira, desafios que se ocultam sob o véu do silêncio e da quase invisibilidade, como é o caso da misoginia, do racismo, da homofobia e das estigmatizações que não necessariamente coincidem com as exclusões e os conflitos de classe? Não haveria alguma afinidade eletiva entre a separação disciplinar convencional e a negligência, predominante em boa parte de nossa comunidade acadêmica, aos temas do gênero e da cor ou da etnia? Claro que é possível focalizar esses temas com os instrumentos exclusivos de cada uma das disciplinas sociais — e isso tem sido feito com muita competência por vários colegas —, mas será realmente viável enfrentar a complexidade psicocultural e sociopolítica da misoginia e do racismo, por exemplo, tão enraizados, inclusive em nossa comunidade, com os instrumentos exclusivos de cada uma das disciplinas? Eu estou inclinado a pensar que não, considerando os debates internacionais em curso. E isso me conduz a uma última indagação, que gostaria de compartilhar com os colegas presentes:

(3) O formato institucional convencional, que nós estamos imitando e que, nos países centrais do capitalismo, está em crise e sofre mudanças drásticas, não guardaria relações estreitas com o modelo da sociedade industrial que está sendo transformado, profundamente, em todo o mundo? Será que nós não poderíamos, como tantas vezes no passado, tirar proveito do atraso e nos anteciparmos, ousando experiências institucionais mais criativas e flexíveis, mais sintonizadas com o sentido originalmente experimental de nossas tradições disciplinares? Se essa oportunidade histórica está aberta para nós, será que não estamos às vésperas, não da consolidação institucional da pós-graduação, mas de um renascimento de seu momento heróico e fundador?

Conclusão prática: onde radicar que rotinas?

Há duas interpretações possíveis de meus argumentos, preocupações e interrogações, das quais se extraem implicações inteiramente distintas senão opostas: uma que se poderia denominar maximalista e outra que se denominaria minimalista. A leitura maximalista trai minhas intenções e enseja conclusões destrutivas, negativas, ingênuas, anárquicas e irrealistas. A interpretação minimalista corresponde ao sentido que eu próprio atribuo a minhas reflexões e sucita conclusões que considero relevantes, positivas e viáveis.

A leitura maximalista, que insisto em recusar, sintetizaria minhas posições da seguinte forma: (1) a trajetória da pós-graduação em ciências sociais no Brasil é negativa, na medida em que se orienta para a institucionalização, a qual, por sua vez, é nefasta porque consolida a divisão entre as disciplinas, que seria, essencialmente, um mal; (2) a legitimidade das instituições resulta de procedimentos ritualísticos, vazios de conteúdo intelectual; (3) na afirmação de identidades acadêmicas e profissionais não há nada além de jogos de poder, disputas, interesses e exclusões; (4) tendo sido regido por decisões relativamente contingentes, o momento heróico fundacional terminou infundindo, no campo que criava, a semente da arbitrariedade, a qual contaminaria com elementos de irracionalidade toda a estrutura disciplinar; (5) qualquer rotina impede a experimentação e a criatividade; (6) formar profissionais para o mercado equivale a trair a vocação ético-política presente no momento fundador; (7) a profissionalização das ciências sociais é incompatível com a preservação de seu sentido crítico.

Todos os pontos acima estão errados e traem o sentido de minhas reflexões: (1) a trajetória da pós-graduação tem sido extremamente positiva, enriquecendo sobremaneira o campo das ciências sociais entre nós; a institucionalização é um momento necessário para a organização do campo e sua reprodução em escala ampliada; o fato desse processo implicar a consolidação das diferenças disciplinares não significa que implique, inevitavelmente, o fechamento solipsista dessas disciplinas e sua recusa a diálogos, coalizões, novas alianças e até fusões. Tudo dependerá de como se realize o processo de institucionalização. Por outro lado, a divisão das disciplinas trouxe benefícios nos planos institucionais, profissionais e mesmo intelectuais. O risco é seu congelamento, sua absolutização, a reificação das fronteiras e o fetichismo das identidades; (2) a legitimidade dos programas dependeu e depende de procedimentos ritualísticos, como ocorre em todas as esferas da vida social, mas isso de modo algum significa que faltem a essas instituições virtudes intelectuais e eficiência profissional; (3) na afirmação de identidades acadêmicas também são mobilizadas dimensões intelectuais, mas isso é um truísmo, sendo ocioso reiterá-lo; (4) toda gênese inclui variáveis erráticas, imprevisíveis e contingentes. Nem por isso, o campo gestado é irracional ou desprovido de uma lógica própria, capaz de orientar sua reprodução de modo não arbitrário. O ponto importante a reter, aqui, é a forma variável e (micro)politicamente orientada pela qual a lógica das diferenciações disciplinares exorciza — ou reconhece e elabora — a dimensão contingente e arbitrária que lhe é constitutiva, para jogar de modo mais ou menos aberto o jogo totêmico que lhe dá sentido; (5) nem toda rotina impede a experimentação e o desenvolvimento criativo. Ao contrário, sem rotina não pode haver acúmulo, aprendizado, erros, experimentações e criação. O problema a discutir é: que rotinas estimular? em que condições? para que fins?; (6) formar profissionais para o mercado é necessário, positivo e de modo algum colide com vocações ético-políticas democráticas. A questão em pauta diz respeito à definição do tipo de profissionais que queremos formar, de que tipo ou tipos o país necessita, e à decisão sobre como promover a formação que atenda ao mercado, preservando nossa tradição e a enriquecendo com as experiências acumuladas desde a fundação das pós-graduações; (7) é perfeitamente possível conciliar profissionalização com espírito crítico, o qual deve ser entendido, a meu juízo, como condição sine qua non de qualquer reflexão que não seja cega para sua própria inscrição sócio-histórica. Não faz sentido opor formação profissional a formação crítica. Ambas se necessitam, mutuamente, e se completam. Afinal, poucos desejarão formar ignorantes que fazem conta e fazem de conta que pensam, até porque, mesmo que eles ganhassem algum dinheiro, não teriam recursos intelectuais para formar seus sucessores, nem capacidade de compreender um mundo em transformação, de modo a se anteciparem e se adaptarem com êxito.

Desse conjunto de equívocos, simplificações e perspectivas unilaterais resultariam propostas absurdas, como a recusa das rotinas e da própria institucionalização, das diferenças disciplinares, da profissionalização e do mercado. A conclusão acabaria sendo, em última instância, a negação da qualidade dos programas atuantes no país e a sugestão suicida de sua desorganização radical.

Indiretamente, estar-se-ia igualmente criticando as associações de antropólogos, sociólogos e politólogos. A leitura maximalista produziria, portanto, um cardápio ridículo de equívocos e propostas irresponsáveis, irrealistas e destrutivas.

Agora vejamos a que nos leva a interpretação minimalista — que julgo correta — de meus argumentos, reflexões e interrogações: (1) a institucionalização da pós-graduação em ciências sociais deve ser promovida de modo a manter abertas as portas para novas profecias heróicas, irredentas mas também — e paradoxalmente — instituintes e fundacionais; (2) a consolidação das disciplinas, de suas fronteiras e identidades profissionais deve ser acompanhada de investimentos transversais, de diálogo, combinações e mesmo fusões, assim como deve ser discutida criticamente, reconhecendo-se que o pluralismo é inevitável em um quadro resistente à normalização ou à eleição unívoca e hegemônica de um único paradigma teórico-metodológico; (3) a atenção ao mercado é indispensável, mas não deve inibir os empreendimentos sem retorno, não lucrativos ou de aplicação ignorada ou imprevisível, dos quais temos derivado boa parte do que sabemos sobre nós mesmos e sobre nossos limites. Não há ciência social digna desse nome sem reflexão a respeito de seu próprio sentido, seu lugar, sua função, sua gênese, seus compromissos culturais, históricos, sociais, e suas potencialidades. E essa reflexão — desnaturalizante e historicizante, por excelência — só é possível com e como o entrecruzamento discursivo, em que tradições disciplinares diversas — e tradições filosóficas — se defrontam e se desafiam.

Um exemplo de rotina interessante para radicar um projeto que contemple as posições aqui defendidas seria o seguinte: um programa temático de pós-graduação, no qual convivessem intelectuais de formações disciplinares diversas, vinculados profissionalmente a distintas instituições. Um programa interinstitucional e transdisciplinar, que experimentasse novos formatos e, sobretudo, estimulasse a cooperação crítica. Programa que não formaria sociólogos, antropólogos ou cientistas políticos, nem "violentólogos", se o tema do programa fosse violência, ou "partidólogos", se o tema fosse partidos e eleições, ou sistema legislativo-formas de governo. Programa que formasse cientistas sociais, entendidos como profissionais habilitados a pensar temas sociais relevantes, recorrendo aos instrumentos disponíveis. De tais programas participariam especialistas em matemática, álgebra, ciência da computação, politólogos e economistas, por exemplo, ou psicólogos, psicanalistas, críticos literários, antropólogos, filósofos, historiadores e sociólogos. A CAPES teria grande dificuldade em avaliar tais programas. Haveria muitas reações conservadoras, que se negariam a considerar aceitável e legítima a existência de um cientista social que não fosse o resultado de formação disciplinar exclusiva. Mas será que uma formação sólida nas tradições comuns às humanidades, associada a uma formação ágil, sensível a experimentos e conhecimentos de ponta, gerados no corpo a corpo com temas específicos, não seriam, por um lado, suficientes e, por outro, estimulantes para o campo das ciências sociais em seu conjunto?

Gostaria que a institucionalização do sistema de pós-graduação, em curso, não fosse um impedimento a experimentos institucionais como o que descrevi, mas, ao contrário, que viesse a ser a oportunidade para novos erros, novas tentativas, novos aprendizados e, eventualmente, novos êxitos. Não se trata de voluntarismo romântico. Experimentos não são aventuras irracionais. São riscos a que nos devotamos quando optamos pela vocação que é a nossa. Minha aposta é que os pioneiros pagarão um preço muito alto diante das forças da inércia e dos interesses ameaçados. Mas contribuirão para uma importante renovação no conjunto de nossa área, equivalente à promovida pelos profetas carismáticos, nossos heróis e mestres, há 30 anos.

Analisar criticamente a dinâmica recente de nosso campo não significa opor-se a ela, mas imaginar modos de torná-la mais útil à democratização de nossa sociedade, mais atraente às novas gerações e mais sintonizada com as transformações do mundo contemporâneo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Fev 1999
  • Data do Fascículo
    Fev 1998
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