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A teoria política é possível?

A TEORIA POLÍTICA É POSSÍVEL?

Gildo Marçal Brandão

É sintomático que o interesse pela teoria ressurja no momento em que a batalha pela institucionalização acadêmica das ciências sociais parece ter sido definitivamente vitoriosa, e que intervenções reveladoras de um certo desconforto com alguns resultados dessa empreitada venham à luz quando as pressões das agências financiadoras de pesquisa e as disputas metodológicas internas às próprias disciplinas parecem forçar um novo passo no sentido da padronização unidimensional da atividade científica e do reequacionamento disciplinar da formação do cientista social. É encorajador que ele ocorra quando a profundidade da crise intelectual e a velocidade das transformações econômicas, sociais, tecnológicas e políticas contemporâneas estão explodindo os quadros apodrecidos de nosso pensamento, tanto em sua versão apocalíptica como na integrada.

Na experiência brasileira, institucionalização acadêmica e profissional das ciências sociais e investimentos no sentido de construção da teoria caminharam em sentidos opostos. Como lembrou Gabriel Cohn, as tentativas mais ambiciosas de produzir teoria simultaneamente estimuladora da pesquisa empírica, atualizada perante os desenvolvimentos da Filosofia e da reflexão metodológica internacional e solidamente amarrada à defesa da relevância dos projetos intelectuais para a vida pública esgotam-se no início dos anos 60 com a polêmica entre Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes sobre a natureza e o papel da teoria social. Depois disso, ao longo do processo de institucionalização da ciência acadêmica, durante o período militar, a teoria vira um instrumento para ser acionado pontualmente, ao tempo em que há uma politização exacerbada da ciência social.

É nítida, neste ponto, a defasagem entre as ambições com as quais partimos, marcadas pela vontade de responder ao desafio marx-weberiano de produzir um conhecimento capaz de se enfrentar com os demônios do nosso tempo, e alguns resultados aos quais chegamos — quando se tenta impor a hegemonia de um partido intelectual que reduz o conhecimento científico à adoção e ao refinamento de procedimentos técnicos, ao mesmo tempo em que, externa corporis, professa uma fé desmedida na engenharia institucional que, entretanto, não dispensa a mediação dos políticos profissionais para ter alguma inserção na vida pública.

Ao contrário da sociologia das instituições que se erige em sociologia do conhecimento, não é possível explicar essa defasagem apenas por condições internas à atividade científica ou supor que resulta, basicamente, seja de escolhas racionais da elite dos cientistas envolvidos, seja das estratégias micropolíticas das coteries. Ela também está ligada a efeitos perversos de nossa história política recente e a mudanças na própria estrutura e modos de ser da sociedade, o que por outro lado assegura a sua não-gratuidade. Evidentemente, não passa pela cabeça de ninguém abrir mão do que se conquistou durante esses 20, 30 anos, mas é preciso não minimizar a percepção de que alguma coisa perdemos nesse processo. Por isso mesmo, os resultados que comemoramos hoje, "diferentes em tudo da esperança", relativizam o discurso autocongratulatório no momento de seu triunfo.

Em se tratando da Ciência Política, esse desconforto tem CIC e RG e manifesta-se como retorno ao debate sobre a questão da teoria, até aqui recalcada tanto pela apontada politização exacerbada da ciência social, como também pela menos reconhecida absorção acrítica dos resultados da "revolução behaviorista", que juntas contribuíram para obliterar a reflexão metodológica sobre os pressupostos conceituais da atividade investigativa que se estava fazendo e para fomentar o analfabetismo generalizado quanto aos problemas formais da exposição.

Quem, nas ciências humanas, fala em teoria está condenado a enfrentar sempre e repetidamente as questões da relação entre a ciência e a Filosofia, de um lado, e da relação entre a teoria e a pesquisa empírica e historiográfica, de outro, posto que ambas constituem o campo nevrálgico da discussão. Elas não são, como se sabe, questões radicalmente separadas. De fato, a questão de método constitui a interseção entre as duas, sobretudo se a entendermos mais no sentido kantiano de crítica ao conhecimento do que como algo limitado à utilização e ao aprendizado de técnicas e procedimentos de pesquisa, de resto, parte importante da discussão. No caso da Ciência Política, essa vasta temática se vê sobrecarregada pela inescapável relação da disciplina com a sua própria tradição — com o fato de que ela tem que se haver com a história do pensamento político e com autores que, apesar de não terem nascido no século XIX nem depois da Segunda Guerra Mundial, acumularam uma quantidade enorme de reflexões sobre a natureza humana e respeitáveis análises sobre idéias, instituições e processos reais.

Longe de mim a pretensão de cobrir todos esses temas. O que vou fazer aqui é circunscrito: concentrando-me num aspecto do primeiro ponto — posto que fomos convidados a saber se podemos olhar com desprezo a Filosofia Política —, apresentarei um argumento teórico sobre o que parece constituir o princípio fundante da compartimentalização disciplinar e do conseqüente estranhamento entre ciência social e Filosofia, e, na tentativa de relativizá-lo, proporei a constituição ou a consolidação — se possível em aliança com os filósofos que fazem Filosofia Política — da Teoria Política como uma área de pesquisa interdisciplinar, autônoma intelectualmente e capaz de contribuir para a internacionalização ativa e não passiva da ciência social que se faz no Brasil.

Meu argumento parte da tese de que, se a teoria não é apenas uma hipótese de trabalho que se mostra útil para o funcionamento do sistema dominante, mas sim, como quer Horkheimer, um momento inseparável do esforço histórico de criar um mundo que satisfaça às necessidades e forças humanas, então o projeto de construir a Teoria Política não é possível sem relativizar um princípio básico que tem norteado boa parte de nossa atividade acadêmica.

De fato, as ciências sociais contemporâneas têm caminhado noutra direção. Elas têm trabalhado com o pressuposto de que o real é não só analítica, mas ontologicamente divisível e passível de ser decomposto em seus elementos, cada pedaço ou parte tendo em si mesmo, em seu desenvolvimento dito auto-suficiente, o segredo de sua existência. A Ciência Política em especial, ainda quando admite tacitamente a pertinência de outras variáveis, tem se desenvolvido postulando que a dinâmica do conflito político e institucional guarda relações essencialmente externas e formais com processos que se dão "fora" dela, não sendo relevante nem possível a reconstituição da totalidade e a reciprocidade das determinações em jogo. Em conseqüência, tem operado em dois registros distintos, mas complementares: tem recusado as análises das estruturas (privilegiando a ação coletiva e as conjunturas) e abandonado o campo da longa duração aos historiadores; e tem deixado de lado a pretensão de formular teorias globais em benefício de teorias regionais e de alcance relativo, preocupadas em abarcar uma diversidade de casos empíricos sob um princípio geral (o que penetrou inclusive num terreno tradicionalmente refratário a essa orientação, como o marxismo, a julgar pelo que diz um de seus remanescentes, Jon Elster, para quem esta corrente precisa é do desenvolvimento do que Robert K. Merton chamava de "teorias de alcance médio").

A julgar pelos seus resultados e sem cair no obscurantismo, não há como negar o extraordinário avanço propiciado por tal perspectiva, que favoreceu a apreensão de uma série de fenômenos e ajudou a refinar nosso entendimento de certos processos setoriais. E, seguramente, a crítica ao paradigma, outrora dominante, segundo o qual processos e variáveis políticas não passam de subprodutos de tendências macrossociais e macroeconômicas representou, pelo menos do ponto de vista acadêmico, uma verdadeira carta de alforria da moderna análise política, tanto mais que, sob o impacto da crise das grandes teorias, uma ciência "societária" como a Sociologia e outra "estatista" como a Economia desenvolveram uma notável ojeriza aos problemas duros do poder, do Estado e da dominação.

Se é verdade, entretanto, que a política e a ciência que lhe corresponde são, não uma parte destacável do real, mas o estudo do complexo de atividades práticas e teóricas pelas quais os dirigentes não só justificam e mantêm o seu domínio, como logram obter o consentimento ativo dos governados — ou, em termos weberianos, o estudo do complexo de ações, idéias e instituições por meio das quais indivíduos e grupos demonstram sua vocação à dominação —, então não basta empilhar uma "análise política" ao lado de uma "análise econômica" e de outra "sociológica" para explicar o fato, especialmente se temos de nos defrontar com grandes mutações sociais, como as transformações morfológicas contemporâneas. Nem basta, por outro lado, refugiar-se em prescrições "éticas" em tudo aquilo que não se consegue fundamentar em termos realistas.

Nesse sentido, chega a ser constrangedor observar o esforço que se faz para tentar esquecer que a fonte mais comum e duradoura dos conflitos e dos processos políticos continua a ser aquilo que Madison chamou de "distribuição variada e desigual da propriedade", e que a exploração dessas formas institucionais de "dependência do político diante do econômico tem sido o objeto, não o programa", de qualquer teoria crítica digna de seu nome. Por isso mesmo, se estamos condenados a tomar os processos políticos como variáveis independentes, não há como não denunciar a provisoriedade dessa operação, a dificuldade analítica verdadeira consistindo não no isolamento mas na reconstrução dos elos essenciais da cadeia e do modo como interagem ou se pode atuar sobre eles: os linkages por meio dos quais ações, instituições, idéias e processos se determinam reciprocamente. Nessa medida, não só o apelo à história se torna inevitável — ela que a Ciência Política positivista havia descartado, tanto por acreditar que tinham ambas alcançado a sua plenitude, como ao separar intelectualmente o exame dos valores e das instituições da análise dos processos —, como a "autonomia da política" deixa de ser pensada como autarquia para ser tomada como momento superior do conjunto das relações sociais.

O objeto, em outras palavras, determina o método com o qual se vai abordá-lo.

Evidentemente, as diferenças entre as disciplinas científicas continuam de pé, uma vez que não são puramente analíticas: as mudanças nas formas de pensar refletem modificações profundas no próprio ser social, nas formas de sua reificação. Como mostraram Weber e Habermas, uma das características básicas do mundo moderno é precisamente a crescente autonomização das diferentes — mas relacionadas — esferas da vida. Mas, se não é possível eliminar a especialização por um ato de vontade, não é também válido supor que qualquer disciplina, ou qualquer campo interno a uma disciplina, que tenha ganho cidadania acadêmica corresponda necessariamente a mudanças e a individualizações no ser social. Ainda que recusemos o caráter absolutista e a carência de mediações da crítica marxista à compartimentalização disciplinar das ciências sociais, isso continua não sendo verdadeiro, respondendo antes a interesses desmedidos das burocracias profissionais e apenas tangencialmente às necessidades da divisão social do trabalho intelectual. Não se trata, portanto, de ignorar essa divisão, mas de relativizá-la, de transcendê-la, horizonte pluridimensional que, longe de ser utópico, é reatualizado pelo movimento internacional contemporâneo de implosão das fronteiras disciplinares.

Posta a questão dessa maneira, o ponto decisivo a considerar é que a produção de um conhecimento capaz não apenas de classificar os fatos, identificar regularidades e enquadrá-las em sistemas conceituais, mas de apreender as tendências imanentes ao desenvolvimento da sociedade global, e que, além disso, tenha inscrito em sua estrutura analítica o interesse pela organização racional da atividade humana, exige e necessita do diálogo e da aliança estreita entre a ciência social e a Filosofia. A Filosofia, claro está, não pode ser tomada apenas como uma ideologia pré-científica, e sim como uma inescapável forma de reflexão que tanto tem formulado verdades fundamentais a respeito da natureza humana e das relações dos homens entre si e com o mundo, como tem, por vezes, demonstrado maior consciência do que a ciência social convencional de que, no terreno do conhecimento das coisas humanas, o modo de dizer é tão importante quanto o que se diz. Para o meu argumento, entretanto, não é necessário imaginar que por conta disso as ciências sociais precisam ser filosóficas para serem científicas — é suficiente considerar que, sem a aliança entre elas e sem aceitar muitas vezes a sobreposição de um e outro modo de pensar, não há possibilidade de assumir como projeto a construção da teoria. No caso que nos interessa, a Teoria Política é esta zona em que tal cooperação é possível, e apenas nesse âmbito ela pode ser construída.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Fev 1999
  • Data do Fascículo
    Fev 1998
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