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Sur la télévision, suivi de l'emprise du journalisme

Um olhar engajado sobre a televisão

Pierre BOURDIEU. Sur la télévision, suivi de l'emprise du journalisme. Paris, Liber, 1996. 96 páginas.

Luis Felipe Miguel

Sur la télévision, de Pierre Bourdieu, é, por muitos motivos, um livro — melhor seria dizer "livrinho", dadas suas dimensões diminutas — surpreendente. A partir já do tema, uma vez que a respeitabilidade da televisão como objeto de pesquisa acadêmica parece ser inversamente proporcional à sua influência social.

Bourdieu justifica a eleição do assunto sem meias palavras: a televisão, diz ele, "coloca em grande perigo as diferentes esferas da produção cultural", bem como a vida política e a democracia (p. 5). Esta afirmação anuncia, desde o início do livro, seu caráter de intervenção política polêmica. Mais do que apenas estudar as condições sociais da confecção do produto televisivo e de sua apropriação pelos produtores/consumidores, o sociólogo se propõe a tarefa de denunciar a colonização da cultura e da política pelos meios de comunicação de massa e, mesmo, apresentar estratégias de resistência.

Assim (e esta é outra das surpresas que Sur la télévision reserva), o livro transcorre num registro próximo ao da vulgarização científica, num esforço para atingir o maior número de leitores — ou melhor, telespectadores, já que a parte principal da obra consiste na transcrição de duas palestras televisionadas que Bourdieu proferiu no Collège de France. Para um autor que gostava de citar a frase de Bachelard, "o simples nunca é mais do que o simplificado",1 1 "Espaço social e poder simbólico", in Bachelard, Coisas ditas, São Paulo, Brasiliense, 1990, p. 168. tratou-se, de fato, de um esforço e tanto.

As concessões ao leitor/espectador comum não se limitam ao vocabulário ou à maior simplicidade das explanações. Bourdieu também faz um amplo uso de exemplos, citando nomes de jornalistas, apresentadores e programas da televisão francesa que ilustrariam os desvios de conduta aos quais se refere. Isto conferiu ao livro um caráter mais "picante" — e também colaborou para a reação apaixonada que ele provocou ao ser editado na França. Apenas à guisa de comparação, cabe lembrar que, já nas primeiras linhas de seu Homo academicus, instigante análise do campo universitário francês, o autor advertia ter "conscientemente excluído todas as informações 'anedóticas', mesmo as mais conhecidas dos 'meios bem informados', 2 2 Homo academicus, Paris, Minuit, 1984, p. 11. justamente para evitar que a atenção despertada pelos casos singulares obnubilasse a visão do conjunto.

Bourdieu vê a televisão — e, na verdade, a imprensa como um todo — como um potente instrumento de "manutenção da ordem simbólica" (p. 14). Ao priorizar os faits divers, os produtores de notícias descartam as informações relevantes para o exercício da cidadania democrática. Ao dar curso ao habitus especificamente jornalístico de buscar o espetacular, eles impõem ao conjunto da sociedade critérios de seleção que advêm de sua posição particular neste mundo social. É notável como a forma simplificada da argumentação de Sur la télévision faz aflorar o estruturalismo subjacente à teoria de Bourdieu — e que, em seus textos mais elaborados, ele faz tanta questão de matizar, nem sempre com pleno êxito. Apesar de uma ou outra ressalva, que pretende resguardar a possibilidade de uma contra-estratégia, a imagem do campo da imprensa que predomina é singularmente plana, onde os agentes sociais "são marionetes de uma necessidade que é preciso descrever, de uma estrutura que é preciso deduzir e trazer à luz do dia" (p. 42).

A televisão é, assim, um instrumento de criação da realidade que, no entanto (e aí está o fundamento da violência simbólica), esconde esta função sob a máscara de mera observadora desta realidade. Com isso, a imprensa e, em particular, a televisão assumem de imediato uma posição protagonística nas lutas políticas, ainda mais quando se sabe, de acordo com a definição de Bourdieu, que um dos traços centrais da política — senão o traço central — é a disputa pela imposição de representações do mundo social (p. 22).

Igualmente grave, do ponto de vista de Bourdieu, é a influência desmesurada que a TV vem exercendo no campo cultural e científico (p. 40). "Campo" é um dos conceitos básicos da obra de Bourdieu; designa uma configuração de relações objetivas entre posições de agentes ou de instituições. Esta configuração constitui o campo, ao mesmo tempo em que é constituída por ele. Conceito de caráter descritivo ou heurístico, o "campo" adquire também um valor normativo: é a formação de um campo artístico autônomo, por exemplo, que permite que a arte — até certo ponto — regule a si mesma. Muito concretamente, faz com que as modalidades de consagração dependam das relações estabelecidas no próprio campo e não sejam impostas de fora, pelo dinheiro ou pelo Estado. O mesmo vale para o campo acadêmico.

A televisão desarranja esta situação. A presença na mídia se torna um atalho para a consagração — não apenas junto ao público leigo, o que seria menos grave, mas dentro do próprio campo, afetando a distribuição do capital simbólico e, por tabela, questões como a publicação de artigos ou livros e o financiamento público à pesquisa. A TV, portanto, coloniza os campos artístico e científico, impondo critérios que lhes são estranhos e revertendo uma autonomia duramente conquistada em face dos poderes econômico e político. Poderes dos quais, por sua vez, a televisão é em alto grau dependente. A influência televisiva representa, desta maneira, uma revanche à autonomização dos campos intelectuais.

Contra a ameaça que a mídia eletrônica representa, Bourdieu promove uma sorte de nostalgia da forma "pura" de produção de capital simbólico — quando, em boa parte de sua obra anterior, ele se dedicava exatamente a denunciar a espécie de violência simbólica que estava por trás das consagrações intelectuais. Trata-se de um passo atrás em sua reflexão crítica, que as imposições da vulgarização não autorizam nem justificam, culminando na confissão do ideal, algo bizarro, de uma Sociologia internada numa "torre de marfim", falando uma linguagem esotérica que afaste dela todo o público não especializado (p. 71).

Sur la télévision, como não deixaram de assinalar seus críticos, não traz quase nada de novo. Sua análise dos efeitos sociais da mídia é velha de décadas; sua investigação sobre a forma de funcionamento do jornalismo também se limita a reproduzir velhos enunciados da sociologia dos meios de comunicação, em especial as pesquisas sobre agenda-setting e newsmaking. "Dizemos muito menos coisas originais do que acreditamos", afirma Bourdieu no próprio livro (p. 23) — e a frase serviria como uma autocrítica involuntária e antecipada. De fato, o esforço do sociólogo francês é muito mais o de traduzir para as suas próprias categorias o que outros, muitos outros já haviam dito sobre a imprensa.

No entanto — e isto os críticos, em geral, deixaram de assinalar —, o escopo de Sur la télévision é tal que a ausência de originalidade não é uma falha. Como a intervenção pública que procurou ser, o livrinho obteve êxito total, ocupando por várias semanas a lista de best-sellers da França (o que não deixa de ser mais uma de suas surpresas). Ele se insere na evolução recente da obra e da postura de Pierre Bourdieu. O sociólogo se encontra, segundo seus próprios critérios (apresentados em Homo academicus), no cume do campo intelectual francês: professor do Collège de France, diretor de ensino da École des Hautes Études en Sciences Sociales, publicando (e dirigindo coleções) por Le Seuil, editor de duas revistas, cercado por uma vasta e produtiva entourage de discípulos. Desde então, vem se movendo, ao que tudo indica deliberadamente, para uma posição de "intelectual militante".

Bourdieu tem estado na linha de frente de manifestações contra o racismo e em favor dos prejudicados pela "reforma do Estado" francesa. Mais ainda, suas publicações mais recentes têm incluído manifestações políticas claras. Em As regras da arte (Cia. das Letras, 1996; ed. original 1992), análise da gênese do campo literário francês, há um apelo por um "corporativismo do universal", que se traduziria numa maior intervenção dos intelectuais no campo político. Os ensaios de Razões práticas (Papirus, 1996; ed. original 1994) têm como tema recorrente a necessidade de elevação dos padrões da moral política. Uma obra coletiva sob sua direção, La misère du monde (Seuil, 1993), procurou apresentar a voz dos "sofredores" da sociedade moderna — mas daqueles cujo sofrimento, considerado "natural" pelas categorias dominantes, não chama a atenção da mídia. Outro livro, Libre-échange (Seuil, 1994), é um diálogo com o artista plástico Hans Haacke que tematiza a necessidade de resguardar a autonomia do campo artístico contra a colonização pelo poder econômico.

São todas preocupações próximas às de Sur la télévision — e que mostram uma consciência crescente da centralidade dos meios de comunicação em qualquer debate sobre a democracia. Chamar a atenção sobre este ponto, em geral ignorado pelos cientistas políticos, com o peso que o nome de seu autor confere, é o grande mérito do "livrinho" de Bourdieu.

LUIS FELIPE MIGUEL

é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de Brasília.

  • 1
    "Espaço social e poder simbólico",
    in Bachelard,
    Coisas ditas, São Paulo, Brasiliense, 1990, p. 168.
  • 2
    Homo academicus, Paris, Minuit, 1984, p. 11.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Fev 1999
    • Data do Fascículo
      Fev 1998
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