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Patologias da modernidade: um diálogo entre Habermas e Weber

Racionalidade não discursiva?

Jessé SOUZA. Patologias da modernidade: um diálogo entre Habermas e Weber. São Paulo, Annablume, 1997. 156 páginas.

Fábio Wanderley Reis

O vivo interesse deste trabalho de Jessé Souza é função direta da ousadia da tarefa que ele procura realizar: confrontar as idéias de Jürgen Habermas, provavelmente o mais influente pensador social da atualidade, e as de Max Weber, o mais atual dos grandes clássicos da Sociologia, para extrair do confronto um diagnóstico da modernidade que escape a certas parcialidades ou distorções da leitura habermasiana de Weber. Na parcimônia de um pequeno livro, a tarefa é cumprida com rigor e inteligência, para grande proveito do leitor.

As teses principais do livro são bem claras. Temos, com Habermas, a busca dos fundamentos de uma solidariedade pós-tradicional, que, na fase mais madura de seu pensamento, desemboca numa teoria da ação comunicativa, a qual pretende dar chão firme à crítica da ênfase excessiva ou unilateral na razão instrumental e de certa distorção na avaliação do papel da ciência e da tecnologia no mundo moderno. Na leitura de Habermas, essa distorção se encontraria não somente no laivo cientificista do marxismo, mas também em Weber, cujo diagnóstico da emergência do racionalismo ocidental e dos problemas da modernidade estaria baseado numa concepção unilateralmente instrumental de racionalidade, aplicada à análise da economia e da política, do capitalismo e da burocracia.

Na verdade, porém, sustenta Jessé Souza, teríamos igualmente em Weber a concepção de uma racionalização prático-moral, que é referida ao "potencial moral-evolutivo da sociologia religiosa weberiana" e que seria complementada, ainda, pela diferenciação da esfera estético-expressiva e a racionalização que dela decorre. Como resultado, temos, por um lado, o individualismo ético que se dá em correspondência com a "ética da responsabilidade"; por outro lado, a reflexividade que passa a operar no plano estético-expressivo, em que a atividade artística e o erotismo se constituem como formas de fruição caracterizadas por graus intensos de consciência, em contraste com o caráter natural e rude de uma sensibilidade vulgar.

O coroamento é a idéia de que Habermas, e não Weber, é que seria unilateral: teríamos nele uma visão "unilateralmente racionalista", com "assimilação excessiva" da razão prática a uma razão comunicativa de natureza teórica e discursiva. Isso seria especialmente válido por referência à concepção habermasiana da "natureza subjetiva", com a expressividade que é própria dela, em contraste com os tipos de ação que corresponderiam ao mundo objetivo e ao mundo social. Em Weber, ao revés, a "sublimação" que resulta na fruição consciente remete também à obscuridade da natureza humana subjetiva, e a consideração do momento estético-expressivo "em toda a sua riqueza e especificidade" revela que aquela natureza não é passível de total transparência e racionalização. Daí adviria, para Weber (não obstante a possibilidade da produção autônoma de valores que se dá com o individualismo ético e da reflexividade característica do "especialista com espírito" e do "homem do prazer com coração", que não são percebidos por Habermas em sua leitura deficiente de Weber), o reconhecimento do caráter necessariamente aporético e conflituoso da modernidade e da consciência ou personalidade moderna — ou seja, a ambivalência e o componente trágico do diagnóstico weberiano da modernidade.

Jessé Souza elabora detidamente essas idéias em suas ramificações nas obras de Habermas e Weber, além de incursionar mais brevemente por autores como Lukács, Adorno e Horkheimer. O resultado é um texto denso e estimulante, à altura da importância e complexidade dos temas enfrentados.

Um ponto crucial, porém, dá margem a equívocos, e seria de esperar que o autor voltasse sobre ele em oportunidades futuras. Já em Habermas, o empenho de contrapor de maneira demasiado cortante um contexto de comunicação e outro de instrumentalidade deixa a desejar se referido ao desiderato de apreensão adequada da idéia de racionalidade. Essa contraposição não faz justiça, por exemplo, a algo que é destacado com ênfase nos estudos de Jean Piaget, autor de que Habermas pretende valer-se: o fato de que o desenvolvimento intelectual, com o acesso à capacidade madura de raciocínio lógico, é a um só tempo um desenvolvimento instrumental e "operatório", referido à manipulação real ou virtual dos objetos, e um desenvolvimento social e comunicacional — e cada um desses lados é indispensável ao outro, numa dialética em que a "objetividade" (a referência ao mundo objetivo) é a condição da "intersubjetividade" e esta é a garantia única daquela contra as ilusões do egocentrismo e do sociocentrismo.

Nas análises de Jessé Souza, um problema análogo se coloca em plano mais básico. Se Habermas, bem ou mal quanto à articulação dos dois lados, liga a racionalidade com instrumentalidade e comunicação, Jessé Souza, em sua perseguição à riqueza de Weber contra o suposto hiper-racionalismo de Habermas, arrisca confusão séria ao pretender abrir espaço para uma racionalidade não comunicativa ou não discursiva (designada variadamente como "mimética", "intuitiva" etc.) a propósito da esfera estético-expressiva. É difícil pretender que se possa ter conscientização e reflexividade (em suma, racionalização com a correlata capacidade de tematização) relativamente aos objetos dessa esfera sem que a disposição racional assim alcançada se faça acompanhar do caráter comunicativo e discursivo — e Jessé Souza, na verdade, chega a um passo de render-se por completo ao paradoxo e de caracterizar como "racionalidade irracional" aquilo que resulta do processo de racionalização da esfera estético-expressiva.

A alternativa, como é bem claro, é reconhecer que a racionalidade é necessariamente intersubjetiva e comunicativa (além de operatória e instrumental, mesmo quando corresponda ao plano "prático", em contraste com o "técnico"), não importando o objeto sobre o qual se exerça — e mesmo que esse objeto corresponda às forças supostamente "obscuras" ou "irracionais" do instinto. Assim, de duas, uma: ou Weber, afirmando efetivamente a possibilidade de racionalização (necessariamente autônoma, em correspondência com o individualismo ético) nos planos moral e estético-expressivo, deixa de ser "trágico" em seu diagnóstico da modernidade, pois a "prisão de ferro" pode então ser rompida com os recursos mesmos que a criam; ou, se insistirmos em afirmar, com Jessé Souza, o caráter ambivalente e trágico do diagnóstico weberiano, teremos então de conceder que a racionalidade, para Weber, é na verdade incapaz de estender-se às diversas dimensões da vida humana. Um dos méritos "latentes" do presente texto de Jessé Souza é o de tornar claro tal dilema, ao perseguir de maneira renitente os meandros germânicos do pensamento de Weber e de Habermas. O que permite fechar com a lembrança de que a reflexão sobre os temas envolvidos teria talvez a ganhar de leituras menos exclusivamente germânicas.

FÁBIO WANDERLEY REIS

é professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Maio 2000
  • Data do Fascículo
    Fev 1999
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