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As mil faces de um herói canalha e outros ensaios

De folhetins, canalhas e entretenimentos...

Marlyse MEYER. As mil faces de um herói canalha e outros ensaios. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 1998. 347 páginas.

Monica Velloso

Não é apenas da "alta literatura" que se constrói a cultura. Muito ao contrário, conforme vem comprovar, mais uma vez, a brilhante reflexão de Marlyse Meyer. A autora, já conhecida e reconhecida pela sua vasta produção nos caminhos do imaginário brasileiro, comparece agora com a análise sobre o folhetim. São cinco ensaios de ponta.

Enveredando novamente pelos meandros da cultura brasileira, Marlyse vai ao encalço do que foi deixado para trás, do material considerado "pouco digno" não só pelo crivo historiográfico tradicional, mas também pelo próprio olhar daqueles que viveram a época. E é aí que reside um dos veios inpiradores da rica e não menos ousada produção da autora.

Foi movida por esse espírito inovador que Marlyse criou, com alguns alunos da pós-graduação da USP, o "Instituto de Altos e Baixos Estudos do Imaginário", um grupo informal de trabalho. Também organizou mesas e simpósios nas reuniões anuais da SBPC, em que atores de circo-teatro, mestres de congo e de folia eram convidados a debater com o público acadêmico.

No contexto cultural brasileiro, tirar o hábito do "smoking" acadêmico é ainda um gesto de ousadia, embora se reconheça a necessidade — cada vez mais premente — de fazê-lo. Mas essa é uma história de longa data.

No seu impulso de atualizar-se perante o concerto internacional das nações, o nosso projeto de modernização acabou descartando expressões culturais extremamente importantes. Acertar o "relógio império" da literatura nacional, ao contrário do que propunha Oswald de Andrade, muitas vezes acabou acarretando o seu próprio desacerto.

"Baixo", "mau gosto", "inferior", "grosseiro", "barbárie" foram alguns dos inúmeros epítetos usados em relação às expressões da cultura popular e aos seus rearranjos. Freqüentemente identificadas como sintomas do "atraso", essas práticas culturais acabaram sendo relegadas a um passado que se desejava deixar no limbo da História.

Afinal de contas, o que distingue educação de entretenimento, erudito de popular, as atividades do pensamento das atividades da vida cotidiana? Essas questões, particularmente no nosso país, foram colocadas de modo a legitimar determinadas práticas em detrimento de outras. O resultado dessa operação acabou reforçando o fosso entre as cabeças ditas pensantes e o conjunto da dinâmica social.

É inegável o poder comunicativo que tiveram, por exemplo, o teatro de revista, o circo e as revistas humorísticas ilustradas. Comentando os últimos acontecimentos da nacionalidade, as revistas funcionaram como verdadeiros formadores da opinião pública no final do século XIX e primeiras décadas do XX. Mas porque recorriam à linguagem humorística, elas foram consideradas mero passatempo, diversão inconseqüente. Certamente passava despercebido um dos seus lemas, que glosava: "muito riso, muito sizo".

Também o teatro de revistas — e isso já na década de 1940 — passaria pelo mesmo processo desqualificador. Mais do que isso: ele é considerado algo desprezível, sendo comparado às "vísceras da sociedade", em contraposição ao "teatro sério", que seria o seu "cérebro" e cabeça pensante. Trata-se de uma leitura de Bakhtin às avessas.

No seu livro As mil faces de um herói canalha, Marlyse Meyer retoma com presteza toda essa discussão que atravessa a nossa vida cultural. Mostra a possibilidade (bem-sucedida) de juntar a sua bagagem profundamente erudita ao popular. Este não é apenas referencial de estudo, mas certamente potencializador de comunicabilidade. Com uma linguagem fluente, agradável e poética, a autora vai cortando fundo questões complexas como a intercomunicação cultural e a dinâmica que preside a leitura dessas tradições ("baixas", especialmente).

Uma das originalidades do seu trabalho reside na atenção que dispensa a um viés da matriz cultural européia: os folhetins franceses e ingleses, fragmentos de obras de autores populares (como Eugène Sue e Alexandre Dumas) publicadas nos jornais, que começaram a surgir ao longo da década de 1830.

Tomando como desafio inspirador a indagação de Antonio Candido — até que ponto a leitura dos folhetins europeus (seriados nos jornais ou romances traduzidos) não teria influenciado o romance brasileiro? —, a autora traz outras tantas fertéis questões para se repensar a nossa cultura. Uma delas é: por que a recusa, entre alguns dos nossos intelectuais — caso, por exemplo, de Machado de Assis —, em admitir a herança do folhetim?

Na sua análise, Marlyse não privilegia propriamente a recusa, mas o fato de o próprio Machado estar admitindo discutir a questão do folhetim. Não importa se ele configura o folhetinista como um "colibri" que esvoaça sobre todos os assuntos mas sem se deter. Em contraposição a essa superficialidade, ao jornalista é atribuída a observação e reflexão profundas.

Para a autora, essa desqualificação não nega a presença e a influência do gênero folhetim na obra machadiana. Rastreando cuidadosamente a obra do autor e cotejando-a com os romances-folhetins de maior popularidade, Marlyse Meyer chega a essa instigante conclusão: a intimidade do autor com o referido gênero literário. Encontra nos traços dos seus personagens, no estilo de sua escrita e na própria construção da trama a influência "suspeita" do folhetim. O que a faz concluir que não são apenas os personagens machadianos (considerados medíocres por ele) que lêem Saint-Clair das Ilhas — famosa novela inglesa de 1803 — mas também o próprio Machado.

Por que, então, a desqualificacão e a recusa? Por que o folhetim seria considerado gênero "menos digno" na avaliação de alguns intelectuais? O público destinatário desse tipo de literatura era geralmente o feminino, considerado mundano, pouco instruído e de horizonte cultural limitado. Mas, conforme argumenta a autora, era esse, precisamente, o público a que se dirigia Machado em suas crônicas publicadas, por exemplo, no A Estação, jornal de modas.

Daí a indagação: será que Machado de Assis não deixaria o "seu fazer literário sério atravessar-se pelo tom leve, chistoso e descompromissado da crônica que praticou enquanto folhetinista"? (p.182)

O que a análise de Marlyse Meyer mostra exaustivamente é que o folhetim estava longe de se constituir em genêro definido, conforme se supunha. Misturava o jornalístico, o literário, o jocoso e o sério. O que nos leva a crer que a separação provavelmente estaria muito mais na "cabeça" dos nossos intelectuais e/ou na rigidez do sistema que cobrava seriedade (sisudez) e formalismo.

Se o folhetim era matéria de entretenimento, é inegável que tinha também um papel informativo e de atualização. Funcionava como um "verniz cultural" para as camadas populares, conforme nos mostra a autora. Na sua escrita, o folhetim também jogava em mão dupla: era leve, divertido e descontraído, mas também sabia ser "caboclo", usando e abusando do tom impostado da oratória importada.

Mergulhando ainda mais fundo na análise do folhetim, a autora vai mostrá-lo como a corporificação do próprio perfil ambíguo da sociedade brasileira. Neste sentido, argumenta, ele faria tanto a crônica mundana como a antimundana, tendo ora tom conservador, ora liberal. Ao analisar a condição feminina nos romances-folhetins, Marlyse também registra essa ambigüidade de valores que o perpassa.

O folhetim escrito por uma folhetinista como Marie Louise Gagneur, por exemplo, retratava o trabalho das mulheres nas fábricas, discutia o divórcio, o seu direito à paixão e as injustiças da legislação. Freqüentemente, as mulheres apareciam como personalidades fortes, rebeldes, livres e marcantes. Mas a maior parte dos folhetins acabou reforçando a visão conservadora, compartilhada pelos católicos, higienistas e economistas, que configurava a mulher sobretudo como esposa e mãe, avessa por natureza à esfera do trabalho.

Propondo-se a analisar um gênero literário considerado popular, a autora descarta de imediato a explicação tradicional da "alienação" que move análises como as de Lucien Goldmann e Nelson Werneck Sodré. E, mais uma vez, aguça a reflexão: não seria mais condizente indagar a razão da popularidade dos folhetins junto às classes trabalhadoras, ou "o que a sociedade escravocrata brasileira que acolheu Sue com tanta sofreguidão, temerosa da violência vindicativa dos cativos, sentia diante das atrocidades reveladas pelos Mistérios?" (p. 125).

Estas indagações sinalizam outros caminhos para a investigação da história da leitura, nos quais se privilegia a liberdade criadora dos agentes no processo de "apropriação cultural" (Roger Chartier). Além do mais, há que considerar também uma série de outros fatores como, por exemplo, a própria disposição gráfica do texto, capaz de provocar um outro tipo de recepção. Essas idéias são trabalhadas cuidadosamente no ensaio que a autora desenvolve sobre Machado de Assis como leitor de Saint-Clair das Ilhas.

Associar o folhetim à alienação seria inviabilizar a exploração desse filão tão rico. A autora deixa clara a importância do gênero na cultura brasileira, visto como a "viga mestra do jornalismo moderno" e "espaço das primeiras manifestações da ficção" (p. 127). Nas páginas dos folhetins estariam presentes figuras de proa da primeira metade do século XIX: José de Alencar (que reconhece o folhetim na sua formação), Joaquim Manuel de Macedo, Manuel Antonio de Almeida e o próprio Machado. A moreninha, Memórias de um sargento de milícias, O alienista são algumas das obras que apareceram originalmente nos folhetins, publicadas em fragmentos.

Uma outra questão que merece ser pinçada no conjunto da obra é a releitura das tradições. A autora mostra que foram franceses e ingleses os introdutores do folhetim na imprensa brasileira. Mas, como dificilmente uma tradição se reproduz tal qual a matriz, destaca-se aqui o caráter criador do "transplante". Fato que pode ser constatado, por exemplo, na atuação do jornalista Pierre Plancher, francês radicado no Brasil. Baseado num congênere europeu, provavelmente de origem germânica, Plancher vai criar, em 1831, um suplemento dominical de grande sucesso, O Simplício da Roça, tendo como temática principal o sertanejo na cidade, dinamizando e misturando rural e urbano, nacional e cosmopolita. Conforme nos mostra Marlyse, este é um tema incessantemente presentificado na nossa vida cultural por figuras como Mazzaropi, Alvarenga, Ranchinho, Jararaca, Ratinho, Zé Rico. Só para reforçar ainda mais esse filão, lembraria da presença de Zé-Povo nas revistas humorísticas ilustradas. Ele é um personagem que pontua o cotidiano dos leitores, conseguindo expressar e fazer coincidir — com muita propriedade — as suas perplexidades e as do país.

As mil faces de um herói canalha mostra a força viva e atuante dos folhetins na nossa cultura, seja na formação do romance, seja na construção de muitas tradições do imaginário brasileiro.

Só para terminar, retomo o ponto de onde pretendia começar essa resenha: o que significa, afinal de contas, o termo canalha?

Marlyse não vai usá-lo no sentido pejorativo que lhe foi atribuído pela história corrente. Busca compreendê-lo no contexto cotidiano da cultura da belle époque, em que o termo designava povo, bas fond ou aqueles grupos que viviam ¾ de uma maneira ou outra — às margens da sociedade. Trabalhando com os múltiplos sentidos da palavra, a autora torna possível que as "mil faces do canalha" se desdobrem nas mil faces do folhetim.

A partir daí, Marlyse abre novos horizontes para se pensar os valores que presidiram a organização do nosso campo intelectual e, por extensão, da própria cultura brasileira.

MONICA VELLOSO

é pesquisadora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Maio 2000
  • Data do Fascículo
    Fev 1999
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