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A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no Brasil

Saúde pública e construção do Estado na Primeira República

Gilberto HOCHMAN. A era do saneamento: as bases da política de saúde pública no Brasil. São Paulo, Hucitec/Anpocs, 1998. 261 páginas.

Eduardo Cesar Marques

São poucas os trabalhos que conseguem aliar a análise inovadora de vasto material empírico sobre fenômenos específicos a avanços na compreensão de processos históricos mais amplos. O livro de Gilberto Hochman, originário de uma tese de doutorado defendida no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), vencedora do concurso Ford/Anpocs em 1998, faz isso com competência e elegância, enfocando um período pouco estudado pela literatura sobre as políticas públicas, em especial de saúde.

Trata-se de um estudo sobre as origens das políticas nacionais de saúde pública, durante a Primeira República, com especial ênfase nas décadas de 1910 e 1920, período coberto por escassa literatura, quando se compara com os trabalhos que enfocam as primeiras iniciativas higienistas de regulação dos espaços urbanos, das edificações e das práticas médicas na segunda metade do século XIX, ou com as investigações sobre as políticas nacionais implementadas a partir da década de 1930.

Mediante a explicação da construção histórica dessa política estatal, Hochman consegue iluminar um rico momento de construção institucional. O autor mostra como se constroem consensos com relação à precariedade da situação sanitária da maior parte do país e à necessidade de se coletivizar e tornar compulsória a solução dos problemas sanitários. O trabalho indica como a solução que emerge do conflito político converge com os interesses das elites nacionais e locais, e como o Estado brasileiro primeiro expande e complexifica suas capacidades e poderes para, em seguida, estender territorialmente os domínios de sua ação. A análise permite ainda incluir nessa explicação geral a única exceção, segundo a literatura, na construção da política nacional, o Estado de São Paulo, mostrando como o caso desviante representa, na verdade, um caso particular no processo de desenvolvimento das políticas nacionais de saúde no país.

A análise do autor também inova com relação à literatura sobre a implantação das primeiras políticas de saúde no que se refere ao destaque dado ao campo do econômico. Hochman considera em seu modelo os interesses e volições dos atores presentes naquele momento histórico (inclusive econômicos), mas em nenhum momento cai no reducionismo, tão típico da literatura sobre o assunto, de subordinar o processo de construção estatal aos interesses econômicos das elites, sejam elas cafeeiras, industriais, burguesas, ou mesmo aos interesses sistêmicos da acumulação capitalista e da implantação de uma sociedade industrial e burguesa no país.

O avanço mais importante do estudo, entretanto, diz respeito à compreensão do processo mais geral de construção do Estado brasileiro. O estudo mostra a instituição de uma política nacional de grande capacidade e alcance territorial durante a Primeira República. A visão predominante nas análises políticas sustenta que o segundo período imperial representou um momento de expansão das capacidades estatais, que teria sido suspenso com o advento da República. A partir de 1891, e até a Revolução de 1930, segundo essa perspectiva, as elites regionais teriam se protegido, sob o pacto federativo, do movimento de centralização de poder em curso até aquele momento, estabelecendo governos locais orientados diretamente para seus interesses e resistindo, portanto, à adoção de políticas federais. Seguindo a linha de análise desenvolvida por Elisa Reis com relação às políticas econômicas do período, o autor demonstra de forma bastante sólida que os interesses regionais e locais não são necessariamente incompatíveis com a execução de políticas federais. Ao contrário, desde que sejam construídos incentivos eficientes, essas políticas podem contar com apoio e engajamento dessas elites. Assim, apesar de esse período da história brasileira representar um momento de federalismo radical, não é possível caracterizá-lo como interregno ou retrocesso no processo de centralização do poder político e de construção do aparato estatal brasileiro.

Observemos de maneira mais detalhada como o autor monta seu quebra-cabeças analítico, para depois acompanharmos a sua análise histórica.

O estudo parte do modelo analítico de Abraham De Swaan para o surgimento das políticas sociais e do Estado de Bem-Estar. Para esse autor, os processos históricos de urbanização e industrialização, que levaram à construção de uma sociedade urbana e industrial, provocaram um contínuo crescimento da interdependência humana, tanto em seus aspectos sociais quanto espaciais. Como resultado, as condições de carência e destituição de cada grupo social cada vez mais atingiram outros, tornando praticamente impossível para as elites econômicas, políticas e sociais se esquivarem totalmente dos efeitos da precariedade das condições de vida da população pobre e destituída. As políticas estatais seriam, então, o resultado histórico não previsto de um processo de adoção de medidas sucessivas para fazer frente à precariedade e à destituição social. Em um primeiro momento, esses problemas teriam sido tratados com soluções individuais e voluntárias. Com o aumento de sua escala e complexidade, desenvolveram-se formas coletivas, mas ainda voluntárias, de combate à destituição e à carência social. Essas formas, relacionadas principalmente à caridade institucional voluntária, encontraram limites de escala, coordenação e ação coletiva, especialmente com a continuação do crescimento dos problemas sociais a serem enfrentados, assim como dos elos de interdependência. Esse processo teria levado à estatização das ações contra a carência, tornadas então coletivas, compulsórias e centralmente coordenadas.

Hochman utiliza a idéia de De Swaan do crescimento da interdependência social (e da tomada de consciência a seu respeito) como motivadora da implantação das políticas de saúde, acrescentando que a saúde seria, conforme a idéia de Wanderley Guilherme dos Santos, um mal público. Esse seria um mal coletivo de consumo indivisível e que, uma vez instituído, ninguém poderia se abster de consumir. O reconhecimento dos elos de interdependência da saúde, com a descoberta e difusão da idéia da transmissividade das doenças, teria criado uma situação inversa ao dilema da ação coletiva expresso no conceito de bens públicos, conforme conceituados por Mancur Olson. Se, naquela situação social, o mais racional sob o ponto de vista dos interesses individuais seria não cooperar, já que os benefícios atingiriam a todos, no caso do mal público haveria um forte incentivo para a cooperação de todos.

Apesar de concordar com esse modelo, e de utilizá-lo como base de seu modelo analítico, Hochman está plenamente consciente de que a idéia da descoberta da interdependência não leva necessariamente à estatização das iniciativas de enfrentamento das situações de carência e destituição social. A estatização é produto de uma análise dos custos e benefícios dessa e das demais alternativas presentes para os atores em cada situação histórica específica. A provisão estatal de bens e serviços é a alternativa adotada quando os benefícios da sua produção superam os seus custos, assim como ultrapassam os custos da não adoção das políticas. No caso estudado, esses últimos correspondem aos custos de convivência com a interdependência social e espacial das doenças sem solução alguma, ou com uma solução não coercitiva, ou mesmo individual, que enfrente sérios problemas de escala, coordenação e ação coletiva.

A próxima peça importante do modelo analítico de Hochman vem da obra de Michael Mann. Demonstrada a superioridade da estatização perante as demais alternativas, e portanto a sua escolha, restava a Hochman explicar o desenho e o conteúdo das políticas adotadas. Para a explicação específica das políticas Hochman lança mão dos conceitos de poder despótico e poder infra-estrutural de Mann. Para esse autor, o Estado seria a única instituição social composta de um conjunto complexo e heterogêneo de instituições e organizações cujo poder emanaria de um centro e cobriria um território delimitado, sobre o qual o Estado teria o monopólio do exercício legítimo da violência física. O que o distinguiria da sociedade não seriam as suas formas de poder, mas a centralidade territorial do seu poder. Esse poderia ser separado analiticamente em poder despótico — a capacidade de suas elites de implementar ações sem negociação com a sociedade civil — e poder infra-estrutural — a capacidade de suas instituições de penetrar seu território para implementar suas ações.

Esse elemento é importante para a análise da política de saúde de Hochman porque a descrição da tomada de consciência coletiva sobre a interdependência sanitária, assim como a demonstração de que a alternativa da estatização era a mais vantajosa, são suficientes para se compreender a existência de uma política de enfrentamento dos problemas sanitários mas não dão conta da explicação do conteúdo da política adotada. O conteúdo das políticas foi, em grande parte, produto do conflito entre os atores e do desenrolar do processo que levou à adoção da primeira política nacional de saúde. Entre esses atores, Hochman, seguindo a maior parte da literatura política do período, destaca fortemente as elites regionais representadas no legislativo federal e nos governos estaduais. Para o autor, foi o desenrolar dos conflitos ao longo do processo de implantação da política nacional que definiu o seu desenho e estrutura de incentivos, elementos-chave para o sucesso da iniciativa. O conflito passou centralmente pelo pacto federativo e pela adesão das elites regionais, visto que o formato resultante de política vinculou a entrada do governo federal nos estados a pedidos de ajuda por parte dos governantes estaduais. Como veremos a seguir, esse desenho de adesão voluntária explica também o caso de São Paulo, único estado a não solicitar auxílio federal.

Por fim, o autor se apóia no neoinstitucionalismo histórico recente de Theda Skocpol e Helen Immergut para estabelecer dois pontos importantes. Em primeiro lugar, a idéia de que todo o processo político é moldado pelas instituições, inclusive as preferências e o cálculo dos atores. Esse ponto é fundamental pois, para Hochman, é no interior do ambiente criado pela Constituição de 1891 que se desenrolaram os processos históricos, sendo os custos dos diversos atores influenciados de forma fundamental pelo arcabouço institucional ali presente. Em um segundo momento, e não menos importante, Hochman utiliza a idéia do impacto das políticas públicas sobre a esfera da política. Essa idéia, já presente na literatura pluralista norte-americana, foi retomada com grande ênfase pelo neoinstitucionalismo, dando grande destaque ao fato de que "as políticas geram política". Esse ponto é importante no estudo, pois os avanços na implantação da política estatal vão criando paulatinamente novos atores com recursos de poder significativos que, na visão do autor, foram fundamentais para a implantação da política no longo prazo.

A operação desse modelo passa pela análise histórica do processo de implantação da primeira política nacional de saúde pública. O autor a inicia pela demonstração de que a crescente consciência do caráter de contágio das doenças que se pega levou à formação de um consenso com relação à interdependência sanitária e à necessidade de tornar coletivos e compulsórios os arranjos de combate à destituição. Esse consenso foi construído ao longo das duas primeiras décadas do século, e teve como um dos seus principais atores o movimento sanitarista da década de 1910. Esse movimento, denominado de Liga Pró-Saneamento do Brasil, visava alertar as elites políticas e intelectuais para a situação sanitária do país, pressionando pela adoção de uma iniciativa pública de saneamento do interior. Hochman narra de forma detalhada as discussões em torno do tema, mostrando como esse processo levou não apenas à consciência sobre a interdependência sanitária, como à construção de um sentimento de comunidade nacional

Esse deslocamento no campo das percepções sobre os problemas sanitários, entretanto, não levou à construção da política de saúde. O autor está plenamente consciente de que essa dimensão por si só não explica a adoção da política. Assim, o estudo avança para analisar o desenrolar das discussões que cercam a decisão da responsabilidade do combate aos efeitos negativos da interdependência sanitária. Durante as décadas de 1900 e 1910, as capacidades estatais expandiram-se de forma contínua, aumentando o poder coercitivo nas mãos do governo federal. Para o autor, o período foi marcado pelo aumento dos instrumentos de política nas mãos do Estado, como a criação de uma Justiça Sanitária, a aprovação da vacinação obrigatória contra a varíola e o estabelecimento de notificação compulsória para diversas doenças. Esse período foi estudado intensamente pela literatura, sendo caracterizado como restrito às políticas no Distrito Federal e nos portos em todo o país. Hochman integra essas iniciativas no seu modelo mais amplo, afirmando que esse momento representa o crescimento do poder despótico do Estado limitado em seu escopo territorial pelo forte federalismo estabelecido pelo arcabouço institucional de 1891. Esse crescimento representaria um primeiro ciclo na construção de uma política nacional de saúde pública.

Segue-se então um segundo ciclo, iniciado com as discussões em torno de mudanças no arcabouço institucional implantado pela primeira Constituição republicana. Essas discussões ocorrem nos círculos médicos e no interior do Congresso Nacional, tendo como um dos seus eixos principais a questão federativa e a configuração de poder resultante do embate entre as elites locais. O processo teve o reforço da epidemia de gripe espanhola de 1918, que mostrou de forma cabal a interdependência social e espacial das doenças transmissíveis. Durante o período, inúmeras propostas de criação de órgãos e políticas foram enviadas ao Congresso Nacional, apresentadas por deputados pertencentes à classe médica ou pelo próprio governo federal. Do outro lado da disputa, representantes de estados centrais no pacto oligárquico tentavam barrar as iniciativas federais e manter a autonomia das políticas nas mãos dos estados. O desenho resultante para as políticas é entendido pelo autor como um produto não previsto e não intencionado da interação entre os diversos agentes presentes, implicando a implantação de uma linha de política intermediária. Esta foi inaugurada com o estabelecimento dos serviços de saneamento e profilaxia rural, em 1918, e consolidou-se com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) em 1920, subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Assim, embora a Constituição de 1891 só tenha sido alterada pela emenda constitucional de 1926, os seus conteúdos concretos estavam sendo reescritos durante todo o período da Primeira República.

A adesão dos estados à política do DNSP foi extremamente rápida. Para Hochman, isso se deveu ao cálculo dos estados e das elites locais sobre os custos e benefícios da interdependência sanitária e da aceitação das políticas federais. O autor demonstra que, ao contrário do que considera a maior parte da literatura, não existe necessariamente um jogo de soma zero entre os interesses oligárquicos locais e a construção de políticas centralizadas. Os cálculos associados à aceitação pelas elites locais das políticas de saúde envolviam não apenas os custos relativos à perda de poder pela adoção da política centralizada, mas também os benefícios advindos dessa política e os custos representados pela não adoção da política nacional. Esses últimos incluíam os custos (econômicos e políticos) de não se adotar política alguma e, principalmente, os custos crescentes de fazer frente à inação dos estados vizinhos (os incapazes, os ineptos e os caronas), que, via interdependência espacial, acabariam por recair sobre cada estado em particular caso não houvesse uma cooperação coletiva para a construção de um arranjo nacional.

Havia três possibilidades para as unidades da Federação: agir solitariamente e internalizar os custos da correção dos danos causados pelas demais unidades; agir individualmente mas de forma coordenada com as demais unidades; e transferir a solução dos problemas da interdependência para o nível superior de governo. O custo da primeira alternativa é representado pelos custos internos ao desenvolvimento da política e pelos custos de internalizar as soluções dos problemas das outras unidades. Na terceira alternativa, os custos para as unidades estão basicamente associados à perda da sua autonomia. Na segunda, teoricamente não existem nem os custos externos de fazer frente à interdependência com as demais unidades, nem os da perda de autonomia. Entretanto, com o crescimento da escala dos problemas a resolver e com o aumento dos dificuldades de coordenação e ação coletiva, a segunda alternativa acaba acumulando os custos das duas outras: sem autonomia completa e tendo de fazer frente à inépcia ou ao oportunismo de unidades que não podem, ou não querem, enfrentar seus problemas. Para Hochman, o desenvolvimento histórico tende a levar a soluções mais complexas, mas a transição de uma ação para outra depende da estrutura de incentivos e oportunidades presente em cada caso.

Na situação histórica estudada, a transição da primeira situação para a segunda e a terceira deu-se com os serviços federais de saneamento e profilaxia rural, consolidados pela criação do DNSP em 1920. O quadro completou-se com a criação de incentivos para a transferência de responsabilidades para o governo federal, já que a adesão à política se fazia de forma voluntária, com os estados solicitando a ajuda federal para a área da saúde.

Assim, a associação das características do problema a ser resolvido (a evidente interdependência das doenças que se pega) com os interesses específicos das elites locais que operavam no ambiente institucional montado em 1891, e com o desenho específico da política pública que emergiu dos conflitos pela sua implantação, explica o engajamento coletivo das elites políticas e econômicas estaduais (e seus representantes no Legislativo federal) na adoção de uma política nacional.

Para Hochman, é também essa conjugação de fatores que explica o caso aparentemente desviante — São Paulo. O estado já havia iniciado o seu processo de construção institucional de forma paralela e independente à construção das políticas nacionais. No final do primeiro período republicano, São Paulo conseguiu manter a sua autonomia mediante a articulação de suas políticas no sistema mais amplo das políticas nacionais em implantação. Para o autor, o cálculo dos custos e benefícios das várias alternativas disponíveis para os paulistas incluía: opor-se à construção de uma política nacional e internalizar os custos da interdependência com as demais unidades; articular-se à política federal mantendo a autonomia das suas ações; ou extinguir suas políticas e entregar a responsabilidade ao governo federal. Em um primeiro momento, São Paulo internalizou os custos da solução da interdependência com os demais estados, mas o crescimento desses levou as elites paulistas a migrarem para a segunda solução. Foi esse cálculo que levou as elites paulistas a cooperarem com a construção de um aparato nacional de política que respeitasse a sua autonomia, ao invés de utilizarem a sua importância no jogo político federativo para vetá-lo.

EDUARDO CESAR MARQUES

é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), como pós-doutor da FAPESP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Maio 2000
  • Data do Fascículo
    Fev 1999
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