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Eleições presidenciais: centralidade, contexto e implicações

Élections présidentielles: centralité, contexte et implications

Presidential elections: centrality, context and implications

Resumos

O artigo procura demonstrar que a conjugação de certos fatores demográficos, socioeconômicos e políticos conduziu à nacionalização das eleições presidenciais no Brasil a partir do pleito de 1960. A expansão do mercado eleitoral, como conseqüência da urbanização e do crescimento do eleitorado, e a queda progressiva das barreiras ao voto - de renda, de gênero, etária e de escolaridade - teriam democratizado a participação eleitoral, diversificando a composição social do eleitorado. Desde então, a eleição do presidente deixou de depender apenas das forças políticas rurais e passou a requerer uma infinidade de possíveis combinações de forças rurais e urbanas. O candidato não poderia mais contar com segmentos sociais específicos e numericamente fortes para se garantir, necessitando de bases sociais ampliadas. Com base nos resultados das eleições presidenciais diretas de 1960, 1989, 1994 e 1998, o autor argumenta que a nacionalização do voto, definida pelos indicadores acima, é parte da integração política da sociedade e que esta, associada à complexidade social do eleitorado, exigem que a mensagem política e o apelo do candidato que pretenda maximizar o voto sejam de natureza ampla, de modo a evitar a manifestação, na campanha, de conflitos potenciais.

Eleições presidenciais; Participação eleitoral; Bases sociais; Composição do eleitorado; Integração política


Cet article veut montrer que la convergence de certains facteurs démographiques, socioéconomiques et politiques a abouti, au Brésil à partir du scrutin de 1960, à la nationalisation des élections présidentielles. L'accroissement du marché électoral, fruit de l'urbanisation et de l'augmentation de l'électorat, ainsi que la suppression progressive des barrières de vote -liées au revenu, sexe, tranche d'âge et niveau de scolarité - auraient démocratisé la participation électorale, permettant une plus grande diversification des électeurs. Dès lors, l'élection présidentielle a été moins dépendante des forces politiques rurales, requérant plutôt d'innombrables arrangements entre celles-ci et les forces urbaines. Le candidat ne pouvait plus compter exclusivement sur des segments sociaux particuliers et voyait la nécessité d'élargir ses bases sociales. Sur la base des résultats des élections présidentielles de 1960, 1989, 1994 et 1998, l'auteur montre que la nationalisation du vote, compte tenu de ces données, fait partie de l'intégration politique de la société et que celle-ci, ainsi que la complexité sociale de l'électorat, exigent que le message politique et le discours du candidat visant à récueillir le plus de voix, soient de teneur générale, de façon à éviter qu'éclate tout conflit latent pendant la campagne.

Élections présidentielles; Participation électorale; Bases sociales; Composition de l'électorat; Intégration politique


This paper argues that the conjugation of certain democratic, socioeconomic and political factors has led to the "nationalization" of presidential elections in Brazil since 1960. The expansion of the electoral market resulting from urbanization and the growth in the electorate, together with the progressive removal of the obstacles to voting - due to income, gender, age, and education - has democratized the electoral process by diversifying the social make-up of the electorate. Since then, the president's election has ceased to depend solely upon rural political forces and now involves multiple combinations of rural and urban political forces. Candidates can no longer count on specific and numerous social groups in order to guarantee their election, and need to widen their appeal. Based on the results of the direct presidential elections of 1960, 1989, 1994 and 1998, the author contends that the "nationalization" of the vote as described above is part of the political integration of Brazilian society and that this, together with the social complexity of the electorate, means that the candidate's appeal and political stance need to be more wide-ranging in order to prevent potential conflicts from arising during the election campaign.

Presidential elections; Electoral participation; Social base; Composition of electorate; Political integration


ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS: Centralidade, Contexto e Implicações

Olavo Brasil de Lima Junior

As eleições brasileiras serão tratadas neste artigo de uma forma inicialmente pouco convencional, sobretudo para analistas que, com freqüência, são ávidos de números. Isso porque os números são insuficientes e pouco confiáveis.

O princípio estruturante do texto consiste em demonstrar que a conjugação de certos fatores demográficos, socioeconômicos e políticos, que se materializou em 1960, nacionalizou a eleição, integrando o país e democratizando-o. A urbanização fez com que a eleição do presidente não dependesse apenas das forças políticas rurais, mas de uma infinidade de possíveis combinações de forças rurais e urbanas. O candidato não pode mais contar com segmentos sociais específicos e numericamente fortes para se garantir; ele necessita de bases sociais ampliadas.

Este argumento será construído passo a passo ao longo do artigo. De início, procurarei mostrar que a expansão do mercado eleitoral ocorreu em todas as frentes de base territorial, sobretudo como conseqüência da urbanização e do crescimento do eleitorado, que foi sistematicamente superior àquele da população. Também a queda progressiva das barreiras ao voto — de renda, de gênero, etária e de escolaridade — democratizou a participação eleitoral, diversificando a composição social do eleitorado. Nem todas as franquias beneficiaram igualmente todas as regiões e todos os estados; com frequência, seus impactos sobre a expansão do eleitorado foram diferenciados conforme os contextos.

A nacionalização do voto, definida pelos indicadores acima, é parte da integração política da sociedade que, associada à complexidade social do eleitorado, requer, em uma eleição majoritária do porte do pleito presidencial, que a mensagem política e o apelo do candidato que pretenda maximizar o voto sejam de natureza ampla, de modo a evitar a manifestação, na campanha, de conflitos potenciais que possam fragmentar a adesão ao candidato, a ponto de colocar em risco a formação de uma maioria nacional nos termos acima indicados.

A primeira parte do artigo examina o difícil reconhecimento, pela nação, da Presidência como o posto supremo do país, em virtude de sua relação difícil e conflituosa com uma federação ainda não institucionalizada, que não resultou de um pacto de adesão entre unidades autônomas e que não se constitui como um fator permanente da ordem política.

A segunda parte, de natureza analítica, discute, operacionaliza e demonstra a integração política da nação com base nos resultados das eleições presidenciais diretas de 1960, 1989, 1994 e 1998. Utilizo-me de indicadores demográficos, sociais e políticos para concluir pela nacionalização das eleições presidenciais a partir do pleito de 1960.

Por fim, na terceira parte, cuido de avaliar o quadro institucional vigente nas eleições presidenciais mais recentes e de comparar as bases sociais dos candidatos nos pleitos de 1994 e 1998.

De oligarcas a presidentes

O Livro de posse dos presidentes da República, restaurado para o Centenário da República pela Fundação Casa de Rui Barbosa e publicado em 1991, em edição fac-similar, por esta Fundação e o Senado Federal, inspirou-me, tempos atrás, a repensar a história política do país a partir da análise de um dos poucos aspectos mais permanentes mas pouco instucionalizado da vida semiconstitucionalizada brasileira: a eleição presidencial, e com ela, seu contexto e suas implicações.

O Brasil do período republicano registrou 38 presidentes, eleitos direta ou indiretamente, duas juntas governativas militares e sete constituições, avanços e recuos na democratização do país representados por regimes políticos diferentes. O primeiro período (1989-1930) teve um governo provisório chefiado pelo marechal Deodoro da Fonseca e 12 presidentes. Após a promulgação da Constituição de 1891 pela Assembléia Nacional Constituinte, esta se transformou em Congresso Nacional e elegeu Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, respectivamente, presidente e vice-presidente da República, apesar da nítida preferência dos congressistas por Prudente de Morais, candidato civil. Em novembro de 1891, Deodoro fechou o Congresso e renunciou ao governo, entregando-o a seu sucessor, Floriano Peixoto, que terminou o primeiro mandato da República.

Os três presidentes que se sucederam, todos civis, cumpriram regularmente seus mandatos. Afonso Pena, falecido em 1909, não reassumiu o seu segundo mandato, então permitido, pois faleceu antes da data de posse. Foi substituído por seu vice, Nilo Peçanha, que terminou legalmente o mandato. De 1910 a 1930, tivemos seis presidentes e todos terminaram seus mandatos. O período foi conturbado por movimentos políticos de toda ordem, sendo de especial relevância política aqueles dos anos 20, que tinham como lema "representação e justiça". Foi marcado, ademais, pelo continuado desrespeito à Constituição: intervenções federais nos estados, revoltas civis e militares várias e exígua participação eleitoral. A participação era duplamente falseada: em primeiro lugar, pelo uso de listas eleitorais pouco confiáveis (ex officio) e, em segundo, pela necessidade de os resultados eleitorais serem "reconhecidos" pela Câmara, mediante o mecanismo arbitrário conhecido como "bico de pena".

O segundo período republicano (Segunda República), que se seguiu à Revolução de 30, realizada sob o pretexto de não se reconhecer os resultados oficiais das eleições presidenciais de 1930, foi inaugurado por uma junta governativa que, em 3 de outubro, transmitiu o governo a Getúlio Vargas (Lima Junior et al., 1991, p. 138). Vargas governou de 1930 a 1934 como presidente provisório e de 1934 a 1937 com presidente legítimo, pois fora indiretamente eleito pelo Congresso para um mandato de quatro anos, interrompido quando o presidente deu o golpe de 1937, instaurando o período conhecido como o "Estado Novo", ditadura que durou até 1945.

A Terceira República (1945-1965) contou com dez titulares no cargo de magistrado supremo. O primeiro foi o presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares, que tomou posse logo após a deposição de Vargas, em 29 de outubro de 1945. Nesse período, apenas os presidentes Eurico Gaspar Dutra (1945-1950) e Juscelino Kubitschek de Oliveira (1955-1960), este a duras penas, lograram terminar os seus mandatos. Quando Vargas, que fora novamente eleito em 1950, suicidou-se em 1954, assumiu o seu vice, Café Filho.

O presidente eleito em 1955, Juscelino Kubitschek, foi inicialmente impedido de tomar posse por ter sido sua eleição contestada pelas oposições de direita. As forças reacionárias impediram sua posse e levaram ao poder Carlos Luz, presidente da Câmara, no lugar do vice Café Filho que, suspeito de lealdade a Juscelino e à Constituição, foi obrigado a licenciar-se. Quando Café Filho tentou voltar ao poder foi deposto, e um segundo golpe militar colocou no Palácio do Catete Nereu Ramos, então vice-presidente do Senado, até que o presidente legitimamente eleito, Juscelino Kubitschek, tivesse sua posse garantida por um contragolpe militar. Jânio Quadros, último presidente eleito no período, tomou posse em 1961, mas renunciou em agosto do mesmo ano, alegando falta de condições para governar, por "excesso" de oposição e de outras alegadas dificuldades que lhe estariam sendo impostas.

Em meio a grave crise política, assumiu interinamente o governo o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, uma vez que o vice-presidente, João Goulart, encontrava-se no exterior. Ao retornar ao país, Goulart foi impedido pelos militares e pelas forças de direita de tomar posse. Somente após longas e nebulosas negociações entre políticos e militares ele conseguiu assumir o poder. Tais negociações obrigaram-no a assinar um "termo de compromisso" em que aceitava garantir a Constituição mesmo após o golpe que representou a aprovação, pelo Congresso (253 votos a favor e 55 votos contra), de "emenda constitucional" estabelecendo o regime parlamentarista no Brasil (Emenda nº 4, de 2 de setembro de 1961) (Lima Junior et al., 1991, p. 246).

Embora o Livro de posse seja de uma honestidade ímpar — nada registrava se o fato ocorria de forma irregular, isto é, quando a "posse" não seguia estritamente as regras e os trâmites estabelecidos pela Constituição (ou Carta) em vigor —, encontramos nele registrado o inusitado "termo de compromisso" de João Goulart, além de todos os demais atos pertinentes à instalação do parlamentarismo e ao retorno do presidencialismo (Lima Junior et al., 1991, pp. 221-256). As forças de direita fundamentavam sua oposição aberta a Goulart com a acusação de que ele pretendia reformar radicalmente a Constituição de 1946, a mesma que lhe garantia a posse automaticamente, sem a necessidade das violações legais a que ele e a nação foram submetidos.

Seguiram-se dois gabinetes parlamentaristas. O retorno ao presidencialismo deu-se por decisão plebiscitária em 6 de janeiro de 1963: 9.457.488 votos a favor e 2.073.582 contra. Em 31 de março (ou 1º de abril?) de 1964 os militares depuseram o presidente Goulart e, imediatamente, no dia 2, o Congresso declarou vago o cargo e deu posse a Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados e segundo na linha sucessória. A "posse" de Mazzilli não foi registrada no Livro de posse.

A Quarta República (1964-1985), a ditadura militar, contou inicialmente com dois presidentes militares, eleitos indiretamente, seguidos por uma junta governativa composta por três comandantes militares, e mais três presidentes militares. A eleição indireta de Tancredo Neves e José Sarney, seu vice, marca o término da triste forma de dominação política imposta pelos militares, associados às forças mais conservadoras do país, e a instauração da "Nova República".

Em 1989 o presidente da República voltou a ser eleito pelo povo. Elegeu-se Fernando Collor de Mello, que também não terminou seu mandado, pois foi impedido constitucionalmente de fazê-lo, incriminado pela prática de várias improbidades administrativas. Collor de Mello teve, ademais, seus direitos políticos cassados pelo Congresso. Seu vice, Itamar Franco, concluiu o mandato e foi sucedido por Fernando Henrique Cardoso, eleito em 1994 e reeleito em 1998.

Entre 1889, ano da Proclamação da República, e 1998, ano da eleição do atual presidente, decorreram 109 anos, ou seja, 1.308 meses. Se considerarmos todos aqueles que exerceram a magistratura suprema (individual ou coletivamente, legítima ou ilegitimamente), atingimos um total de 40 "titulares", excluindo-se Afonso Pena e Rodrigues Alves (2º termo) e Tancredo Neves, que faleceram antes mesmo de tomarem posse, o que indica um tempo médio de exercício no cargo de pouco mais de 32 meses. Excluindo-se do cálculo a era Vargas (1930-1945, 178 meses), teremos uma média de cerca de 28 meses para os 40 titulares. É preciso lembrar que o tempo do mandato presidencial no Brasil variou entre quatro e seis anos; em regimes democráticos, este tem sido de quatro anos; excepcionalmente, já foi de cinco e de seis anos.

Nos Estados Unidos da América, onde a reeleição é permitida, houve, até a presente data, 42 presidentes. A maioria esmagadora dos presidentes norte-americanos concorreu e obteve um segundo mandato. Nesse caso, os dados apresentados na Tabela 1 quebram certos tabus sobre a longevidade das constituições e sobre sua relação com a democracia. É freqüente o entendimento de que as democracias possuem constituições estáveis e que essa estabilidade é parte da própria democracia. Os dados, contudo, não sustentam essa interpretação, como mostra Lane (1996, p. 198):

Todas as constituições tendem a ter vida curta, não apenas as democráticas. De qualquer ângulo que se meça a sua longevidade, a conclusão é a mesma: constituições são mortais [...] A maior parte delas dura uma ou duas décadas, ou mesmo menos, à exceção dos casos da América do Norte e da Oceania.

A questão que me parece central é a natureza da mudança constitucional; argumentos pró e contra a estabilidade são de segunda ordem. Se a mudança, considerada a partir de uma teoria democrática externa à constituição, for democratizante, a instabilidade é menos relevante; se a mudança, no entanto, sob a mesma ótica, não for democratizante, é preferível manter a estabilidade atual.

A nossa instabilidade republicana revela-se, assim, na vigência de uma república oligárquica, pela baixíssima institucionalização das regras e dos procedimentos, pelo total desrespeito à oposição, que era praticamente nula e, no mais das vezes, calada ou eliminada, e pela reduzida participação eleitoral. Em resumo, tratar-se-ia do que Dahl (1997) caraterizou como uma oligarquia hegemônica que, no entanto, sofria fortes pressões para admitir, no mínimo, alguma "competição" política, ainda que esta fosse aparente, controlada e seus resultados fossem, com freqüência, adulterados pelo poder central.

A Revolução de 30, sensível, na sua origem, a apelos generalizados de democratização e moralização da vida pública, suspendeu a ordem constitucional e mergulhou o Brasil em uma ditadura civil que teve, talvez, como únicos méritos criar uma administração pública no país (Lima Junior, 1998) e dar início à industrialização. Como regime político, voltou-se ao grau zero da democracia.

O período subseqüente (1945-1964) foi de acentuada incorporação política, sobretudo dos segmentos urbanos, de razoável aperfeiçoamento democrático das instituições, apesar da sua instabilidade, e de difícil reconhecimento, por parte das elites, da legitimidade das instituições e, principalmente, dos resultados das eleições. A nação caminhava com dificuldades, com percalços, com recuos, em direção ao regime poliárquico dahlsiano. Mas a democracia política não se materializou plenamente.

A incorporação eleitoral de vários segmentos sociais não foi interrompida no período dos governos militares (1964-1985), o qual evoluiu, de uma intervenção militar inicial para afastar um presidente supostamente não confiável, para uma violenta ditadura militar que manteve como fachada a participação política e eleitoral, essencialmente supérfluas e voltadas para a tentativa de legitimação do regime. A institucionalidade política democrática, que evoluíra lentamente nos anos 50 e 60, foi drasticamente destruída.

A segunda tentativa de redemocratização do país teve lugar com a transferência do poder para os civis e com a promulgação da Constituição de 1988, à época vista como moderna e democrática. Iniciou-se o retorno e/ou implantação de instituições básicas da democracia representativa liberal, inclusive com a incorporação eleitoral de todos os segmentos sociais. Avançou-se bastante, se compararmos a reintrodução da democracia com o que ocorreu em 1945.

Situações adversas e independentes de ação coletiva produziram um sinal negativo logo quando da transferência do poder dos militares para os civis. Primeiro, Tancredo Neves, o presidente eleito indiretamente em 1985, faleceu antes mesmo de ser empossado, assumindo seu vice, José Sarney; depois, o primeiro presidente eleito pelo voto direto após o fim da ditadura militar, Fernando Collor de Mello, foi afastado do cargo pelo Congresso Nacional em 1992 e substituído pelo vice Itamar Franco.

A instabilidade associada ao cargo presidencial, por razões as mais variadas, parece ser uma constante da vida pública do país: dos presidentes eleitos em situação democrática, três faleceram antes de tomar posse, um foi duramente impedido de fazê-lo, e só tomou posse através de um contragolpe militar, um suicidou-se no cargo e dois foram impedidos de terminar seus mandatos. Enfatizo a instabilidade do exercício do mandato presidencial — que advém de razões variadas — e não do sistema presidencialista de governo, aspecto do qual não me ocuparei aqui.

A institucionalidade duramente obtida em 1988 vem sendo questionada com enorme freqüência, sobretudo a partir do segundo ano do governo Cardoso, mediante mudanças que implicam tanto emendas constitucionais quanto legislação infraconstitucional. Independente de quaisquer julgamentos de valor no âmbito da ética, da política ou da economia, e de quaisquer outras justificativas, tem prevalecido a instabilidade das instituições em geral, e por vezes até mesmo dos sistemas de governo, de partidos e do sistema eleitoral, em virtude das freqüentes mudanças das regras, o que faz lembrar o casuísmo dos governos militares. A justificativa política das mudanças, em seu plano mais geral, é romper com o velho e ultrapassado "Estado Novo" e substituí-lo pelo "Novo Estado" (Lima Junior, 1998).

Este breve retrospecto, inspirado em grande parte no Livro de posse dos presidentes brasileiros, mostra que já tivemos "inúmeras" Constituições e Cartas outorgadas: 1891, 1934, 1937, 1945, 1967, 1969 e 1988. Duraram, em média, 14,7 anos, excetuando-se os dois primeiros anos de elaboração da primeira Constituição republicana. A média brasileira de 14 anos refere-se aos 11 documentos republicanos, dos quais apenas 3 foram efetivamente constituições democráticas, isto é, elaboradas por órgãos especificamente eleitos para redigir, discutir e aprovar uma nova Carta. A instabilidade brasileira, portanto, implica, na maior parte das vezes, o desrespeito pela Constituição vigente promovido por forças sociais externas aos poderes constituídos.

O sistema político brasileiro tem-se caracterizado por ímpetos democratizantes e recuos oligárquicos e ditatoriais. Em período algum assistiu-se à convivência simultânea dos elementos essenciais da democracia representativa liberal: alta participação da maioria dos segmentos sociais; estabilidade de regras; competição política limpa; estabilidade dos macroatores políticos — os partidos.

A extensão das franquias eleitorais tem sido o único traço permanente de nossa organização política, até mesmo quando desprovidas de significado, porque politicamente irrelevantes. As últimas restrições legais caíram recentemente, com a incorporação, em caráter voluntário, dos analfabetos e dos maiores de 16 anos e menores de 18 anos ao processo eleitoral.

Para se ter uma idéia do significado das eleições na República Velha, basta ter em conta que apenas cerca de 2% da população votava em 1894; em 1922, eram 833.270 os eleitores, o que correspondia a 2,9% da população; em 1930, os 1.890.805 eleitores correspondiam a 5,6% da população. Esses percentuais são irrisórios quando comparados com os dados de eleições mais recentes (Carvalho, 1990, p.17).

A nacionalização da eleição presidencial

A integração territorial do país sob um único e incontestável governo, tal como ele se configura hoje, demorou algumas centenas de anos; foi finalmente concluída no início do século XX, com a diplomacia de Rio Branco. O mesmo não ocorreu com a integração do ponto de vista da representação política da população, que só se efetivou após o fim do Estado Novo. Nesta seção, lidarei com alguns indicadores que permitem discutir a nacionalização da vida pública brasileira; tratarei de avaliar e medir a integração da sociedade, do ponto vista da participação político-eleitoral, com base nas eleições presidenciais.

O tamanho, o crescimento e a dispersão do eleitorado pelo espaço político brasileiro e a contribuição relativa de cada uma das unidades que compõem esse espaço para o eleitorado total revelam a nacionalização da política. Usarei como indicador de integração política a composição social do eleitorado que elege um presidente, pois, neste caso, estarei avaliando se a heterogeneidade social que carateriza a nação se espelha na eleição presidencial. Quanto menor for a exclusão de segmentos sociais no eleitorado vitorioso, mais integrada será a política e mais democrática será a eleição.

Na medida em que o eleitorado guarda uma estreita relação com a população, e essa relação é tão mais intensa quanto maior for a franquia eleitoral, a distribuição geográfica do eleitorado em eleição presidencial é um bom indicador da incorporação política e territorial do país. A eleição do magistrado supremo será tão mais democrática quanto mais disperso pelo espaço político for o eleitorado que o faz vitorioso.

É essa, precisamente, a tendência revelada nos dados da Tabela 2. A participação da Região Sudeste, que ainda é o maior colégio eleitoral regional, vem caindo sistematicamente, ao passo que a participação das regiões Norte e Centro-Oeste, que até bem pouco tempo eram tidas como áreas de "fronteira", de expansão demográfica e econômica, vem crescendo. Saliente-se que nessas duas regiões cresceu também o número de estados e, conseqüentemente, intensificou-se a participação em outros pleitos, até então inexistentes (governos de estados, assembléias estaduais e senadores). No Nordeste, a participação relativa tem variado pouco de eleição para eleição, mantendo-se em torno do patamar de 25% nas eleições mais recentes. Processo semelhante ao do Nordeste ocorre, igualmente, na Região Sul.

Cabe assinalar que os processos sociais responsáveis pelas alterações apontadas são diferentes no tempo e no espaço políticos; mesmo alguns processos de natureza nacional como, por exemplo, a ampliação das franquias, afetam diferentemente os estados e regiões.

O regime de 1945 representou um considerável avanço, do ponto de vista de seu teor democrático (Lima Junior, 1997), em relação aos períodos anteriores. Pretendo, a seguir, discutir os resultados das eleições presidenciais avaliando a participação eleitoral, seu significado político e a sua distribuição pelo país, com o objetivo de localizar a ocorrência eventual de um ponto de inflexão que defina a nacionalização da vida política. A inexistência de séries históricas de dados sociais sobre os eleitores nos impede de avaliar longitudinalmente a composição social do eleitorado, um dos fatores indicativos da nacionalização da eleição presidencial. Porém, pode-se analisar em que momento a eleição presidencial assume caráter efetivamente nacional verificando-se a distribuição regional dos votos dos eleitos e sua proveniência segundo o tamanho das cidades (Tabela 3). Nessa situação, estarei medindo o peso relativo da clivagem rural-urbana.

Essas questões foram apontadas inicialmente por Souza (1976), aprofundadas por Lavareda (1991) e retomadas recentemente por Lima Junior (1995). Refletindo sobre as eleições presidenciais de 1960, em que saíram vitoriosos Jânio Quadros e João Goulart, candidatos de partidos diferentes e que rompiam a tradicional aliança PSD-PTB, até então sempre vitoriosa, Souza enfatiza que a eleição presidencial já distinguia de forma menos dramática o eleitorado segundo os segmentos sociais. Ademais, já não era mais possível eleger-se um presidente apenas com base nos estados detentores dos maiores colégios eleitorais. Era indispensável a conquista de eleitorados também dos pequenos estados. Finalmente, dificilmente se poderia dizer que a clivagem rural-urbana fosse decisiva, independentemente de haver diferenças, nesses termos, entre os vários candidatos. A conquista de um eleitorado potencialmente mobilizável mais bem distribuído por estados e regiões passou a ser uma das condições necessárias da vitória na eleição presidencial.

Observe-se a grande dependência de todos os candidatos dos votos das pequenas cidades, dependência que reflete o padrão de urbanização da época. Embora Barros tenha sido o menos votado nas pequenas cidades, sua votação foi compensada pelos dois maiores centros urbanos do país. Essa compensação nos grandes centros deve-se, precisamente, ao apelo generalista realizado pelo candidato (populismo). Foi Quadros, o candidato vitorioso, quem revelou tendência mais equilibrada na distribuição de sua votação, de acordo com o tamanho das cidades. O padrão de votação nessa eleição aponta para a ruptura com a interpretação segundo a qual a contribuição eleitoral relativa do meio urbano e industrial prevaleceria na eleição presidencial, o que obviamente tem implicações para concepções ainda correntes que entendem a crise brasileira do início dos anos 60 como sendo de natureza exclusivamente institucional: um Executivo modernizante, porque enraizado no meio industrializado, que se contraporia a um Congresso conservador, porque detentor de bases sociais rurais (Furtado, 1969). A base nacional do eleitorado de um presidente vitorioso, contrariamente a essa visão, encontra evidências favoráveis nos dados da Tabela 3.

Evidência adicional será produzida ao se verificar a seguinte hipótese: ao longo do tempo, a distribuição da votação dos eleitos tornar-se-ia menos concentrada em certas regiões brasileiras, pois as diferenças socioeconômicas entre as regiões foram diminuindo. Tanto os votos procedentes de cidades de tamanhos diferentes, quanto aqueles provenientes das diversas regiões dependeriam, como dizia Souza,"de um lado, [de] um apelo generalizado, ultrapassando fronteiras geográficas e sociais, a começar pela quase unificação de seu próprio estado; de outro, [d]a conquista maciça, através de acordos com dirigentes locais, de outros estados menores" (Souza, 1976, p. 148).

A eleição de Quadros rompeu com um padrão de alianças entre grandes partidos no plano da eleição presidencial. Semelhante a ela foi a eleição de Collor de Mello, que também passou ao largo dos partidos maiores e de importantes lideranças nacionais. Antes de examinar a distribuição regional do voto, cabe, creio, atentar para o fato de que a eleição presidencial (a partir de 1960?) tornou-se cada vez mais intrincada. Ela passou a reproduzir a crescente complexidade do país, não só em termos dos processos socioeconômicos de mudança, que se refletem no plano do eleitorado, mas, também, no que se refere aos processos políticos, na medida em que a federação passou a ter um peso importante nas composições eleitorais: a heterogeneidade social passou a ser articulada politicamente com demandas social e regionalmente diversificadas.

As articulações visando a uma eleição vitoriosa requeriam um movimento horizontal, aproximando partidos, e vertical, incluindo partidos e líderes de todos os três níveis administrativos. A expansão do sufrágio — dadas as suas conseqüências sociais, os aspectos contextuais socioeconômicos, a nacionalização da disputa e a necessidade de um apelo generalizado — é, hoje, condição necessária de uma candidatura presidencial vitoriosa.

A Tabela 4 mostra que a votação de Quadros, inferior à de Dutra, igual à de Vargas e superior à de Kubitschek, distribuiu-se de forma homogênea pelas regiões brasileiras, diferentemente do que ocorrera em eleições anteriores.

Mais recentemente, observamos um razoável grau de dispersão regional da votação de Fernando Collor de Mello no segundo turno das eleições de 1989 e uma razoável homogeneidade na distribuição espacial da votação de Fernando Henrique Cardoso no primeiro turno do pleito de 1994 (ver Tabela 5). No primeiro caso, o candidato recebeu 70,5% dos votos do Norte e 63,2% dos votos do Centro-Oeste, além de garantir de 48% a 55% dos votos nas demais regiões. Cardoso obteve entre 56% e 60% dos votos em todas as regiões exceto no Sul, onde o índice foi de apenas 41,3% (Nicolau, 1998, pp. 36 e 38). Nenhum dos dois presidentes chegou, no entanto, perto da distribuição praticamente homogênea de Quadros em 1960.

Fernando Henrique Cardoso reelegeu-se em 1998 com 4,4% de votos a mais do que aqueles obtidos em 1994, porém o crescimento do eleitorado no período foi de 10,7%. O percentual por ele obtido do total de votos válidos atingiu 53,06%, contra 54,3% em 1994. Tanto do ponto de vista absoluto quanto relativo, Cardoso recebeu, assim, menos votos em 1998 do que em 1994. Lula obteve 31,71% dos votos válidos em 1998, 4,71% a mais do que o obtido em 1994. Do ponto de vista relativo, Fernando Henrique perdeu votos e Lula ganhou (TSE, Secretaria de Informática, Internet).

Os resultados eleitorais dessas duas eleições mostraram um desempenho diferenciado entre os dois principais candidatos. Fernando Henrique teve sua votação relativa ampliada em apenas duas das regiões, no Centro-Oeste e, sobretudo, no Sul (Santa Catarina e Rio Grande do Sul), e perdeu pouco nas três demais regiões. Lula sofreu uma redução no Centro-Oeste, obteve um crescimento acentuado no Sudeste e, principalmente, no Sul, e avançou pouco nas duas outras regiões.

Considerados os valores máximos e mínimos dos dois candidatos, por região, observa-se que, da primeira para a segunda eleição, a votação do candidato eleito tornou-se mais homogênea entre as regiões, enquanto seu total de votos decresceu, do ponto de vista percentual. Já a votação de Lula passou a ser menos concentrada regionalmente. Tais diferenças atingiram, para o candidato vitorioso, 19,1% (1994) e 11,98% (1998). As diferenças na votação de Lula aumentaram de 5,7% (1994) para 16,7% (1998).

Distribuições desiguais não contrariam o caráter nacional da eleição presidencial; apontam, apenas, para o fato de que, em uma federação de elevada dimensão, com um número grande de estados e com uma população desigualmente distribuída pelo espaço físico, inúmeras são as combinações lógica e empiricamente possíveis, reunindo grandes e pequenos estados, capazes de eleger um presidente. Acrescente-se que, do ponto de vista social, não há isonomia entre a composição social do eleitorado e sua distribuição por estados.

O eleitorado tem crescido sistematicamente, embora a taxas variáveis entre pares de eleições e a valores decrescentes nos anos mais recentes. O mesmo ocorre com o comparecimento eleitoral, no que se refere às médias das eleições legislativas de cada um dos três sistemas partidários que tivemos no período pós-1945 (Lima Junior e Anastasia, 1998).

O eleitorado da eleição de 1989 incluía 82.056.226 brasileiros; cresceu para 94.743.043 em 1994. O percentual de comparecimento caiu de 85,6%, em 1989, para 82% em 1994, e para 78,51% em 1998. Decresceu, também, da primeira para a segunda eleição presidencial, o percentual de votos válidos: de 94,2% para 81,5% (Nicolau, 1998, pp. 24 e 26); na reeleição de Cardoso, o valor atingiu 81,3%. O percentual de abstenções, de votos em branco e de votos nulos atingiu 21,2% do eleitorado em 1989 (2o turno), subiu para 36,6% em 1994 e chegou ao recorde de 40,19% em 1998.

Em que medida os dados relativos às eleições presidenciais recentes podem ser comparados com aqueles das eleições legislativas? No atual sistema partidário, o comparecimento às eleições para a Câmara foi, em média, de 86,2%; para as assembléias estaduais foi de 86,3% (Lima Junior e Anastasia 1998). Os resultados das três eleições presidenciais indicam números de comparecimento inferiores àqueles das médias legislativas do período 1982-1994. Os votos válidos, no entanto, atingem sempre valores mais elevados para a magistratura suprema do que para as casas legislativas.

A abstenção, os votos em branco e os votos nulos tendem a crescer ao longo da vigência de um sistema partidário, conforme discuti extensamente em texto recente (Lima Junior e Anastasia, 1998), com base em dados eleitorais do Poder Legislativo. No que se refere às eleições presidenciais (Tabela 6), embora os índices sejam bastante menores do que aqueles correspondentes ao Legislativo, observa-se que, somados os votos em branco e nulos, esse total tende a crescer em ambos os períodos. Os votos nulos crescem sistematicamente ao longo de toda a série analisada e internamente em cada período. Já os votos em branco não seguem rigorosamente o mesmo padrão: aumentam no período mais recente, mas atingiram percentual bastante baixo na eleição de 1955.

A visibilidade e a centralidade do Poder Executivo no país são aspectos essenciais de nossa vida política e que independem de regime político; creio que uma análise empírica cuidadosa mostrará que o Poder Executivo, seja qual for o sistema de governo, tende a prevalecer, no sentido acima, sobre o Poder Legislativo. Na nossa história, em regimes ditatoriais ele não tem concorrentes; em situações democráticas ou quase democráticas, a lei e a prática também privilegiam o Poder Executivo que, talvez por isso mesmo, sempre obtenha maior cobertura da mídia. Recentemente, com a Constituição de 1988, o Poder Legislativo teve suas prerrogativas bastante ampliadas mas o mesmo ocorreu com o Executivo que, em situações democráticas, nunca dispôs dos poderes que a recente Constituição lhe atribuiu.

O que a eleição de Quadros, hoje tão distante, poderia ter em comum com a de Collor e as de Cardoso, em 1994 e em 1998? Um primeiro aspecto consiste, precisamente, no argumento que já esbocei: a eleição presidencial, a partir de Quadros, passou a ser nacional, com base nas várias dimensões que apontei. Não se trata mais de um acerto político entre meia dúzia de oligarquias estaduais; não se trata mais de o detentor do poder escolher e fazer o seu sucessor; pelo contrário, a coalizão tem de ser bem mais ampla, incluindo grandes e pequenos estados. O apelo político tem de romper com particularidades locais e assumir um caráter mais geral, mais universal. Além disso, a costura política tem de ser no sentido vertical, dada a existência da federação, incluindo elites estaduais e locais.

Essa rede política deveria ser a mais ampla possível, com o objetivo de maximizar a votação; seu limite de crescimento coincidiria com o ponto a partir do qual o acréscimo de atores implicasse rendimentos eleitorais decrescentes; do ponto de vista da montagem do governo, ela deve ser a menor possível, na perspectiva dos atores participantes, para que os "bens" a serem divididos sejam, individualmente, os maiores possíveis. Não creio que se possa, a priori, estabelecer critérios que permitam a conciliação dessas duas lógicas. Uma solução possível consistiria na geração e introdução na política de "novos recursos" que, ampliando o bolo, evitassem que os resultados da divisão sejam, necessariamente reduzidos em conseqüência do acréscimo de atores.

A proposição acima, que possui caráter normativo (eleitoralmente e do ponto vista da sustentação parlamentar de futuro governo), possui conseqüências que, de um ângulo analítico mais democrático, não me parecem desejáveis. Há aspectos gerais relativos às condições conjunturais das eleições que apontam para o enfraquecimento das raízes sociais dos partidos, para a redução das diferenças entre eles e para a necessidade inexorável de se montar um esquema de alianças partidárias, formais ou informais, criando uma rede pouco nítida do ponto de vista ideológico e programático que possa, mediante um apelo generalizado, maximizar o voto. Todos esses aspectos apontam para a "banalização" dos partidos, levando ao desaparecimento de suas diferenças essenciais, com base nas quais os eleitores optavam por uma ou outra agremiação. Tais mudanças vêm produzindo um novo tipo de organização, no mínimo no plano da eleição presidencial, que se tem convencionado chamar de partido "catch-all". Ainda que a convivência de tipos de partidos eleitorais diferentes seja politicamente possível em um mesmo sistema partidário, dada a prevalência das eleições majoritárias, sobretudo das presidenciais, essa nova organização terá ganhos majoritários visíveis? Ou servirá apenas para fortalecer o Poder Executivo, inclusive por estreitar a competição partidária dentro do Congresso e deste Poder com o Executivo?

Tal situação pode acarretar a criação de gabinetes ministeriais de amplo espectro político e partidário — caso essa organização não se oponha (ou devore) ao sistema partidário proporcional —, o que pode implicar ganhos democráticos. Foi assim com o governo Quadros que, na República de 45, foi a administração que mais partidos incorporou ao governo, se comparada com as anteriores, e isto em um quadro partidário estável do ponto de vista dos atores participantes (Amorim Neto, 1991). Foi também assim com os governos Collor de Mello e com a primeira administração do governo Cardoso. O mesmo ocorre no segundo governo Cardoso, a julgar pelo Ministério que assumiu logo após a posse do presidente. Collor de Mello, em virtude do fato de sua eleição ter sido capitaneada por um partido pequeno e recém-criado, tratou de criar uma base congressual sólida. Cardoso (1995-1998), eleito pela aliança constituída pelo PSDB e pelo PFL, montou um gabinete que espelhou a correlação de forças partidárias que o elegeu, incluindo representantes de outros três partidos, com o mesmo intuito. Acrescente-se que seu ambicioso programa de reformas, inclusive constitucionais, requereria, com freqüência, maioria qualificada no Congresso. Em 1998, a aliança eleitoral foi ampliada e a composição ministerial contemplou os partidos que vieram a apoiá-la, incluindo o dividido PMDB. É certo que, no segundo governo, o Poder Executivo certamente incluiu no processo político recursos outros, a que já aludi, para assegurar apoio congressual.

Cabe, ainda, um comentário: Quadros elegeu-se por um partido pequeno; Collor ganhou "apoiado" em um partido artificialmente criado para dar-lhe sustentação e derrotou candidatos e líderes políticos nacionais pertencentes a estruturas partidárias consolidadas; Cardoso elegeu-se em 1994 com base em aliança partidária de amplo espectro ideológico, à época pelo menos; o mesmo ocorreu em 1998, ainda que o arco da aliança na reeleição, creio, se tenha reduzido, uma vez que o PSDB não mais se afigura como um partido de esquerda.

Será que essa comparação permite postular a perda da importância relativa dos partidos em eleições majoritárias e a importância crescente do apelo generalizado, amplo e reformista, tal como adiantei na proposição que acima intitulei de normativa, comofator necessário ao sucesso eleitoral? Tudo indica que sim. É precisamente essa a situação que se opõe à primeira: uma tentativa — aliás, abortada — de governar "à margem" do sistema partidário convencional. Indicador semelhante da situação sobre a qual hipotetizo foi a derrota dos grandes partidos congressuais em 1989: embora fortes às vésperas das eleições, eles pouco puderam fazer pelos seus candidatos diante da ascensão de Collor. Não seria esta também a situação de Cardoso, eleito pelo Plano Real?

Na terceira seção tratarei de associar a força institucionalizada dos partidos com os resultados das eleições. Creio que a afirmativa acima se sustenta. Não é mais em torno da tipicidade dos partidos, de suas bases sociais distintas e de suas diferentes propostas de ação que se constrói a vitória no pleito presidencial. Tudo indica que o sistema partidário está mudando, e nada indica, como apontava Lavareda (1991, cap. 4), que a eleição presidencial virá a estruturar o sistema como um todo. Tudo aponta, ao contrário, para a convivência de mais de um sistema partidário, em um país com as dimensões e complexidades do Brasil. Creio que tais sistemas, no regime de 1945 (Lima Junior, 1983) e mesmo agora, diferem do plano federal para o estadual (Lima Junior, 1997). Há novas diferenças hoje, baseadas nas lógicas diferenciadas de competição dos sistemas proporcionais e majoritários.

Embora Lavareda admitisse a prevalência de lógicas e de interesses diversos de pleito para pleito, refiro-me à lógica no sentido mais geral. O interesse maior, geral, burkeano, parece sustentar a campanha majoritária, ao passo que o interesse específico, local, setorial sustentaria a eleição proporcional. Decorreriam daí, suspeito, as eventuais incompatibilidades entre os dois poderes. Sua convivência democrática, dado que ambos gozam de igual legitimidade, só se resolve, na ausência de mudanças institucionais de profunda monta, na política e pela política.

Essa discussão, ademais, esclarece que a origem do conflito entre os poderes não reside nas diferenças entre as bases sociais que os sustentariam, mas no fato de que estamos efetivamente diante de duas formas de representação diferentes, contexto no qual a afirmativa de Burke de que o Executivo representa aqueles que o elegeram e até mesmo aqueles que não o elegeram ganha particular relevância.

O quadro partidário institucional: 1989, 1994 e 1998

O sistema partidário brasileiro da "Nova República" não representou, de início, uma total ruptura com o bipartidarismo do regime militar; ao contrário, as eleições de 1982 reproduziram, por força da legislação vigente, o bipartidarismo. Posteriormente, com o aprofundamento das medidas de cunho liberal, ocorreram cisões nos dois grandes partidos (MDB e Arena, então PMDB e PDS), surgiram os partidos de esquerda e vários micropartidos foram criados. Alguns deles tentaram, inclusive, guardar alguma semelhança com partidos anteriores, tais como o PTB, o PDC, o PC do B, o PC, o PSD. O número de partidos representados na Câmara dos Deputados de 1982 a 1998 assim evoluiu: 5, 19, 19, 18 e 16. Em 1982, os dois maiores partidos controlavam 92,9% das cadeiras; em 1998, detinham o controle de apenas 43,1% das cadeiras (Lima Junior, 1995, p. 95). Esses dados referem-se à Câmara dos Deputados.

O pleito de 1989, primeira eleição presidencial direta desde 1960, veio envolvido de enorme expectativa, seguindo-se à promulgação da Constituição de 1988, marco legal da democratização do país. Entre 1986 e 1988 o sistema partidário passara pela maior fragmentação do período. As eleições, naturalmente, mobilizaram os grandes partidos e lideranças respeitadas nacionalmente. O índice de comparecimento, tal como salientado, foi bastante elevado. Seus resultados, contudo, mostraram a fragorosa derrota das forças políticas consolidadas partidariamente para uma estrela de segunda grandeza, Fernando Collor de Mello, proveniente de um estado pequeno e pobre e apoiado por um partido igualmente pequeno, o Partido da Renovação Nacional (PRN), criado para dar sustentação à sua candidatura (Tabela 7), mas que fora bem recebido pela opinião pública.

Altas expectativas criadas em campanhas presidenciais não são, de resto, fatores inteiramente novos. Kubitschek prometeu desenvolver o país em cinco anos como se fossem 50; Quadros veio para mudar tudo; Collor prometeu passagem imediata para o Primeiro Mundo; Cardoso, de certa forma, associou Kubitschek e Collor. Grandes projetos de mudança associados ao personalismo são traços do presidencialismo (Jones, 1995; Linz e Valenzuela, 1994; Lijphart, 1992), são formas de reforçar a autoridade e legitimidade do presidente em face do Congresso e do povo. Apelos fortes e gerais são ingredientes comuns do sucesso eleitoral, e quanto mais consensuais forem as propostas, menor a resistência dos diferentes setores sociais.

Se o fator mobilização política, o entusiasmo com a democracia nascente, dominou o cenário pré-eleitoral de 1989, foi o desempenho econômico, o Plano Real, gerando a estabilidade monetária, que predominou quando da campanha de 1994. O que os dois fatores têm em comum? Aparentemente, nada, mas talvez tenham o mudancismo e propostas arrojadas como denominador comum, que são, creio, elementos importantes na psicologia popular, sobretudo em se tratando de um país subdesenvolvido, onde quase tudo está ainda por ser feito. Kubitschek e seu Plano de Metas, Jânio e seu udenismo ascético são lembranças e modelos recorrentes.

O PRN era tão-somente um micropartido no Congresso Nacional em 1989; o único partido de peso era o PMDB, de Ulysses Guimarães, do "dr. Constituição" que, junto com outras lideranças nacionais conhecidas — Covas, Maluf e Brizola —, foi derrotado pelo jovem político de Alagoas. Lula passou para o segundo turno e a vitória de Collor se deu por uma diferença de 6% dos votos, cerca de 4 milhões de eleitores (Nicolau, 1998). A seu favor, além da proposta arrojada de mudança e de ruptura com o passado, contava a sua juventude e uma campanha eleitoral tecnicamente bem conduzida, a julgar pelo reconhecimento conferido pelos profissionais da área.

Em 1994, o quadro partidário congressual (Tabela 8) encontrava-se ainda mais fragmentado, não tanto em função do número de partidos, mas por conta da distribuição relativa de cadeiras no Congresso, em virtude do enfraquecimento do PMDB. De novo, partidos mais consolidados e suas máquinas não parecem ter tido um impacto fundamental. Lula e Brizola se reapresentaram; Quércia foi o candidato do PMDB; Fernando Henrique Cardoso e Marco Maciel se candidataram pela aliança PSDB-PFL. De um lado, o PMDB, um partido de porte ainda respeitável, apoiando Quércia e, de outro, partido de igual tamanho, o PFL, apoiando Fernando Henrique Cardoso e fornecendo-lhe o vice. Não houve sequer segundo turno.

A aliança, então vista como de centro-direita, derrotou o candidato das esquerdas, capitaneadas pelo PT. Cardoso obteve 54,3% do total de votos e o segundo colocado, Lula, apenas 27% (Nicolau, 1998). A vitória não pode ser atribuída à aliança PSDB-PFL, embora se deva admitir que ela, institucionalmente, possuía uma base nacional razoável. De toda forma, o empenho de todos os políticos a ela formalmente vinculados não garantiu a eleição. Como se sabe, o fator crítico e determinante foi o lançamento e o sucesso imediato do Plano Real, associado ao ambicioso projeto "Mãos à Obra, Brasil".

O quadro partidário em 1998 revela-se mais concentrado do que em 1994, embora tenha aumentado o número de partidos na Câmara; já no Senado o número diminui de 11 para 5. Se considerarmos a força relativa somada dos dois maiores partidos nessas três legislaturas (PMDB e PFL nas duas primeiras e PFL e PSDB na terceira), atingiremos os seguintes percentuais, na Câmara e no Senado, respectivamente: 55,2% e 58,6% em 1989; 38,1% e 48,2% em 1994; e 40,3% e 55,4% em 1989 (Tabelas 7, 8 e 9).

Os planos de governo de Collor de Mello e, sobretudo, os do primeiro governo Cardoso, pela sua abrangência e ambição, requereriam, para que se efetivassem, amplo apoio da opinião pública — na suposição de que ela tivesse entendido a profundidade das mudanças propostas e delas se lembrasse, e se, além disso, as mudanças tivessem sido, à época, devidamente trocadas em miúdos — e, também, uma ampla base de sustentação no Congresso. Ambos os presidentes trataram de construí-los. Collor não foi muito longe por conta do impedimento que sofreu e que, registre-se, teve amplo apoio da opinião pública, fator fundamental para que o Congresso o processasse. Fernando Henrique Cardoso logrou, de início, construir formalmente uma base de apoio partidário no Congresso, mais ampla ainda do que a de Collor, envolvendo teoricamente cinco partidos. Sua sustentação, no entanto, que o presidente sempre quis que fosse automática, revelou-se altamente oscilante de questão para questão e com uma composição partidária altamente variável, inclusive no que se refere às suas próprias bases partidárias originais. No essencial, o governo obteve a aprovação do Congresso na maior parte das medidas consideradas essenciais, talvez pela primeira vez na história da República.

É claro que, com isto, contrariou interesses estabelecidos e deixou de atender outros interesses. Como, pela primeira vez, tivemos em vigor o princípio da reeleição, poderia haver em 1998 uma excelente oportunidade para testar a plausibilidade do conjunto de suposições que acima mencionei. O ponto, parece-me, requer um pouco mais de elaboração.

O presidente Cardoso, durante todo o seu mandato, cobrou o apoio do Congresso às medidas que a ele enviava, de mudança constitucional ou infraconstitucional, justificando-as em nome do interesse nacional e com base na preferência popular: ele fora eleito para efetuar as reformas que seriam de interesse geral, contra os privilégios, os benefícios indevidos e o clientelismo. Independentemente das reações do Congresso, creio que este renovado apelo generalizado, o mesmo que de fato ocorreu nas eleições, para ser verdadeiro em termos de conteúdo, deveria obedecer a três requisitos: primeiro, a natureza específica das mudanças teria de ter sido posta para a população com clareza; segundo, a população deveria ter compreendido com igual clareza tais propostas, aceitando-as como tal; terceiro, as mudanças propostas pelo governo deveriam equivaler àquilo que foi posto para a opinião pública na campanha e por ela então sancionado. Há ainda outros aspectos que dificultariam ainda mais sua aprovação: a começar pelo fato de que violariam uma das condições essenciais, conforme estamos verificando, para que uma candidatura presidencial tenha pleno sucesso eleitoral: apelos genéricos e neutros do ponto de vista de eventuais conflitos socioeconômicos.

Ora, o Plano Real, já em vigor na campanha, possuía todas essas características, mas isso não se aplicava às demais mudanças propostas pelo governo, que, quando deixaram o plano da retórica e se materializaram, sobretudo sob a forma de propostas de emendas constitucionais, revelaram um alto potencial de conflito, além de implicar custos no curto prazo para parcelas significativas da população. É neste contexto que devem ser entendidas as reações do Congresso Nacional às propostas reformistas do atual governo. Neste sentido, reforça-se o argumento de que o principal eleitor de Fernando Henrique Cardoso foi o Plano Real e não o "Mãos à Obra, Brasil", e menos ainda na versão forte que o governo posteriormente lhe deu.

Às vésperas do encerramento da campanha eleitoral de 1998, o presidente candidato, em face das enormes pressões decorrentes da crise financeira internacional, anunciou que, se reeleito, tomaria drásticas medidas e tudo faria em defesa da moeda nacional, não descartando sequer a adoção ou ampliação de impostos. Foi reeleito no primeiro turno e com ampla margem de votos.

Creio que o problema central do exercício da Presidência no país não reside tanto na instituição presidencialista associada a federalismo e ao sistema eleitoral proporcional (Lijphart, 1992; Jones, 1995; Mainwaring e Scully, 1995; Mainwaring e Shugart, 1997). Reside na natureza personalista do exercício da Presidência, que já se manifesta no contexto eleitoral como condição necessária para a vitória e que consiste, ademais, na formulação de propostas de governo que são, a priori, inexeqüíveis, ultrapassando a capacidade instalada de processamento existente no sistema político.

O impulso reformista de Goulart foi comparável ao de Cardoso; a diferença fundamental é que as propostas de Cardoso são menos radicais ideologicamente (à esquerda, naturalmente) e mais afinadas com o que parece ser a interpretação hegemônica das grandes transformações em curso no mundo contemporâneo. Entende-se, assim, por que as resistências às mudanças propostas por Goulart o levaram ao exílio, ao passo que Cardoso recebe inúmeros honoris causa.

Para terminar esta seção, seria interessante refletir sobre o instituto da reeleição e sobre a interpretação que se deu às últimas eleições municipais no Brasil. Neste caso, se bem me recordo, atribuiu-se ao desempenho administrativo o sucesso de prefeitos que fizeram seus sucessores. Será que na eleição presidencial de 1998 o mesmo princípio teria valido? Isto é, a eleição teria sido do tipo plebiscitário, de julgamento da administração de Fernando Henrique Cardoso?

A intenção do voto e as bases sociais em eleições presidenciais (1994 e 1998)

A questão posta equivale, essencialmente, a verificar em que medida a política monetária de sustentação do Plano Real, cujos efeitos mais visíveis para a população foram a queda vertiginosa e o controle da inflação em percentuais baixíssimos, teria sobrevida o suficiente para garantir um segundo mandato a Fernando Henrique Cardoso, independentemente de quaisquer outros fatores, internos ou externos, de natureza adversa. A proposição é muito forte, pois elimina fatores de ordem conjuntural, supõe a manutenção de imagem positiva e inalterada do candidato à reeleição e ignora o contexto eleitoral da disputa, isto é, a força relativa dos demais candidatos.

É plausível admitir a centralidade do papel do Real na manutenção da inflação baixa que, assim, pode ser vista, na ausência de desgaste da imagem presidencial, como condição necessária da reeleição. O governo, sabe-se hoje, foi extremamente cauteloso, evitando qualquer medida, pronunciamento ou decisão econômica que pudesse arranhar a imagem do presidente. As idéias de continuidade e de uma boa administração, futuramente centradas no plano "Brasil em Ação", foram cuidadosamente elaboradas. Mesmo assim, creio que isto não bastaria, não seria condição suficiente para que Cardoso se reelegesse. É preciso, na ausência de pesquisa específica, valer-se de indicadores outros, e de natureza mais indireta, que permitam introduzir dados próprios do contexto eleitoral para discutir a questão. Creio que os indicadores que se seguem, de intenção do voto, produzidos por institutos de pesquisa, permitirão ajudar a esclarecer o problema, pelo menos do ponto de vista da correlação de forças, e de sua evolução ao longo da campanha eleitoral, entre os dois candidatos mais populares e, finalmente, mais votados (Tabelas 10 e 11).

Segundo o IBOPE (Jornal do Brasil, 4/9/1998), a intenção do voto presidencial, em datas bem próximas àquelas que reproduzi nas tabelas, dava a Cardoso os seguintes percentuais: 33%, 40% e 44%, sendo este último valor correspondente ao final de agosto. Os dados dos três institutos, em datas próximas, cabe insistir, são bastante consistentes. Além disso, todos eles apontam a mesma tendência: o crescimento da candidatura de Cardoso e a queda da de Lula; ademais, cresce também a distância relativa entre eles, segundo o DataFolha, enquanto IstoÉ aponta uma ligeira redução entre a segunda e a terceira medições (apenas de 13% para 11%), no caso de Lula.

Luiz Inácio Lula da Silva, que em maio de 1994 tinha 45% das intenções de voto, em maio de 1998 reunia apenas 30% das preferências. A candidatura de Lula surgiu fraca em 1998, tal como a de Cardoso. Este, no entanto, na campanha de 1994, veio a contar com fatos francamente favoráveis. Como sabemos, a grande virada em favor de Cardoso ocorreu com o anúncio e entrada em vigor do Plano Real. Assinale-se que o controle da inflação, que as forças de oposição perceberam de início apenas como "jogada eleitoreira", foi e é política de fácil compreensão popular, até porque é de natureza unidimensional (o tamanho da inflação). A política antiinflacionária apresentou resultados imediatos e teve efeitos quase universais e inequívocos (Lima e Lima Junior, 1997).

O Gráfico 1 ilustra de maneira clara o afastamento dos dois candidatos ao longo da campanha de 1998. O argumento, portanto, desdobra-se em duas condições fundamentais que teriam garantido a vitória de Cardoso: o desempenho administrativo, cujo carro-chefe foi o sucesso do Real, e a fraqueza relativa do seu principal oponente. Há outros aspectos positivos que se somaram à candidatura de Cardoso e outros, negativos, que reduziram a força da candidatura de oposição, para os quais, no entanto, não disponho de evidência forte: o papel da mídia, o elitismo e o temor de se ter um ex-operário na Presidência, o pavor de que haveria uma enorme fuga do capital estrangeiro e mesmo do nacional (grande ironia... a história nos prega peças encantadoras...), dentre outros.


A Folha de S. Paulo (27/12/1998, p. 4), analisando a evolução do prestígio do presidente durante o seu primeiro mandado, mostra que sua nota média não oscilou muito (de 5,4 a 6,5), embora, às vésperas da eleição (24 e 25 de setembro), uma pesquisa de opinião pública tenha indicado uma queda na avaliação do presidente Cardoso. Renato Janine Ribeiro (1998), às vésperas da eleição, condensou muito bem os fatores que, difíceis de serem avaliados e terem seu peso relativo medido, concorrem positivamente para favorecer um candidato:

Temos a pessoa do candidato e do presidente. A pessoa do presidente causa um impacto tão grande na opinião pública que fica difícil estabelecer um espaço em que ele é apenas um candidato. É difícil colocá-lo no mesmo plano dos demais candidatos. É desigual demais no sentido simbólico. É o chefe de Estado, é o representante do país. Temos respeito por quem está no poder. (Isto É, 30/9/1998, p. 9)

Os indicadores dispostos nas Tabelas 12 e 13 reforçam a interpretação que venho oferecendo sobre o caráter nacional da eleição presidencial, em que pesem os fatores de natureza político-conjuntural que agreguei à explicação, creio, de natureza mais estrutural e social.

O fator "região" revela que quando Lula e Cardoso capitalizam a intenção do voto (em 29/5 e 3/10), eles o fazem em todas as regiões e as diferenças percentuais são elevadas, exceto no Sul. Quando, no entanto, os candidatos se encontram em empate técnico, embora a penetração de cada um seja variável, as diferenças entre eles, por região, são muito menores. As médias das diferenças são de 23% e 23,2% para os momentos em que um deles é francamente favorável, mas essa média cai para 6,2% quando do empate técnico.

A mesma tendência se observa quando se analisa o fator "idade": se há um candidato majoritário, ele o é em todas as faixas etárias e as diferenças entre os candidatos são acentuadas. Se não há candidato majoritário, e sim um empate técnico, as diferenças se reduzem bastante. No primeiro caso, as médias são de 19,8% e de 20,8%; no segundo, elas caem para 8,4%.

Apesar de o candidato majoritário ganhar em todas as faixas, há um certo favoritismo que beneficia a candidatura de Cardoso nas faixas mais elevadas e a de Lula nas faixas inferiores, mesmo quando ocorre o empate técnico.

Finalmente, também o indicador "renda" vem corroborar a interpretação geral. Quando um dos candidatos é majoritário, as diferenças são de 16,6% e de 20,2%, que caem para 6% quando do empate técnico. A renda, tal como a idade, permite diferenciar a preferência pelos dois candidatos; apesar do majoritário ganhar em todas as faixas, quanto maior a renda, maior a probabilidade de voto para Cardoso. A análise desses indicadores, associada ao argumento que venho desenvolvendo, permite-me afirmar que a eleição presidencial se transformou, efetivamente, em um evento de natureza nacional, considerando-se os aspectos anteriormente discutidos e, agora, o fator heterogeneidade social do eleitorado como condição necessária para a vitória presidencial.

O conjunto de evidências apresentadas — com base em indicadores políticos e demográficos, político-conjunturais e socioestruturais, como acabo de mencionar — levou à nacionalização da eleição, que, dada a sua posição em um sistema presidencialista de executivo forte, é fator importante no processo de integração política, que não se resume à nacionalização, tal como aqui tratada. A eleição pode, no entanto, no médio prazo, ter efeitos positivos na reestruturação do sistema partidário.

Nacionalização e centralidade da eleição presidencial

A eleição de Cardoso em 1994, no primeiro turno, foi essencial para o crescimento do PSDB no plano do Poder Executivo. O partido, que no primeiro turno elegera apenas um governador, o do Estado de São Paulo, no segundo levou ao poder mais cinco governadores. No período, o PSDB só foi superado pelo PMDB, que elegeu um total de nove governadores nos dois turnos. Em 1998, junto com Cardoso elegeram-se três governadores pelo PSDB (Ceará, Espírito Santo e Mato Grosso); no segundo turno o partido fez mais quatro (Pará, Goiás, São Paulo e Sergipe). A força política, nesse nível, do partido e da liderança presidencial, não se alterou de 1994 para 1998.

O argumento central deste artigo consistiu em acentuar o caráter único adquirido pelas eleições presidenciais no Brasil a partir de Jânio Quadros, que condensei na expressão nacionalização do pleito. Essa nacionalização é recente. Os principais aspectos envolvidos no processo são de natureza variada: geográfica, socioeconômica e política. Associadas, as diversas dimensões revelam um aspecto com freqüência negligenciado na análise da política brasileira: a progressiva integração política do país.

Do ponto de vista geográfico, uma candidatura bem-sucedida requer votação majoritária em uma combinação de estados que envolva os grandes e os pequenos eleitorados, combinação esta que pode variar e muito, como mostrou Santos (1987, cap. V), analisando o período 1945-1964 do ponto de vista da representação política. Estados populosos e economicamente fortes não mais comandam as eleições. A clivagem urbano-rural não sustenta uma candidatura presidencial vitoriosa. Essa abrangência territorial é decorrência do crescimento e da desconcentração do eleitorado brasileiro nos últimos 30 ou 40 anos, os quais, por sua vez, resultaram da combinação de mudanças ocorridas na sociedade e na política brasileira, tais como o crescimento vegetativo da população, as migrações internas e a queda dos empecilhos legais à participação política.

Do ponto de vista socioeconômico, a dimensão central tem a ver com a heterogeneidade social das bases de apoio a uma candidatura presidencial vitoriosa. A complexidade da estrutura social brasileira é de tal ordem que já não é mais possível que coalizões específicas e com fortes afinidades socioeconômicas definam os rumos de uma campanha e, conseqüentemente, sustentem uma candidatura vitoriosa. O eleito tem como base uma sustentação social bastante inclusiva, razoavelmente amorfa, popular ou de massa, se preferirem, independentemente da existência de diferenças sociais entre os candidatos.

Do ponto de vista político, vários são os indicadores que integram essa visão de eleição presidencial universalizada. Em primeiro lugar, a dimensão do eleitorado e a variedade de preferências que ele expressa requerem uma ação política (coletiva) que, metaforicamente, chamei de vertical e horizontal; no primeiro caso, tratando de enfatizar que a aliança de sustentação de uma candidatura viável deve avançar em direção aos níveis inferiores da federação, envolvendo partidos e lideranças nos estados e municípios; no segundo caso, implica — na ausência de partidos efetivamente grandes, o que pode ser aspecto puramente circunstancial — a costura de uma aliança partidária cujo tamanho e limites podem gerar conseqüências complicadas, como salientei, para o posterior exercício do governo. Ainda no âmbito político, ressalto, o tom da campanha presidencial deve se pautar por um apelo generalizado que maximize o consenso e que, de preferência, sugira uma ação governamental de crescimento, de expansão, de ganhos generalizados e de perdas mínimas.

BIBLIOGRAFIA

RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS

ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS: CENTRALIDADE, CONTEXTO E IMPLICAÇÕES

Palavras-chave Eleições presidenciais; Participação eleitoral; Bases sociais; Composição do eleitorado; Integração política.

O artigo procura demonstrar que a conjugação de certos fatores demográficos, socioeconômicos e políticos conduziu à nacionalização das eleições presidenciais no Brasil a partir do pleito de 1960. A expansão do mercado eleitoral, como conseqüência da urbanização e do crescimento do eleitorado, e a queda progressiva das barreiras ao voto — de renda, de gênero, etária e de escolaridade — teriam democratizado a participação eleitoral, diversificando a composição social do eleitorado. Desde então, a eleição do presidente deixou de depender apenas das forças políticas rurais e passou a requerer uma infinidade de possíveis combinações de forças rurais e urbanas. O candidato não poderia mais contar com segmentos sociais específicos e numericamente fortes para se garantir, necessitando de bases sociais ampliadas. Com base nos resultados das eleições presidenciais diretas de 1960, 1989, 1994 e 1998, o autor argumenta que a nacionalização do voto, definida pelos indicadores acima, é parte da integração política da sociedade e que esta, associada à complexidade social do eleitorado, exigem que a mensagem política e o apelo do candidato que pretenda maximizar o voto sejam de natureza ampla, de modo a evitar a manifestação, na campanha, de conflitos potenciais.

PRESIDENTIAL ELECTIONS: CENTRALITY, CONTEXT AND IMPLICATIONS

Key words Presidential elections; Electoral participation; Social base; Composition of electorate; Political integration.

This paper argues that the conjugation of certain democratic, socioeconomic and political factors has led to the "nationalization" of presidential elections in Brazil since 1960. The expansion of the electoral market resulting from urbanization and the growth in the electorate, together with the progressive removal of the obstacles to voting — due to income, gender, age, and education — has democratized the electoral process by diversifying the social make-up of the electorate. Since then, the president's election has ceased to depend solely upon rural political forces and now involves multiple combinations of rural and urban political forces. Candidates can no longer count on specific and numerous social groups in order to guarantee their election, and need to widen their appeal. Based on the results of the direct presidential elections of 1960, 1989, 1994 and 1998, the author contends that the "nationalization" of the vote as described above is part of the political integration of Brazilian society and that this, together with the social complexity of the electorate, means that the candidate's appeal and political stance need to be more wide-ranging in order to prevent potential conflicts from arising during the election campaign.

ÉLECTIONS PRÉSIDENTIELLES: CENTRALITÉ, CONTEXTE ET IMPLICATIONS

Mots-clé Élections présidentielles; Participation électorale; Bases sociales; Composition de l'électorat; Intégration politique.

Cet article veut montrer que la convergence de certains facteurs démographiques, socioéconomiques et politiques a abouti, au Brésil à partir du scrutin de 1960, à la nationalisation des élections présidentielles. L'accroissement du marché électoral, fruit de l'urbanisation et de l'augmentation de l'électorat, ainsi que la suppression progressive des barrières de vote —liées au revenu, sexe, tranche d'âge et niveau de scolarité — auraient démocratisé la participation électorale, permettant une plus grande diversification des électeurs. Dès lors, l'élection présidentielle a été moins dépendante des forces politiques rurales, requérant plutôt d'innombrables arrangements entre celles-ci et les forces urbaines. Le candidat ne pouvait plus compter exclusivement sur des segments sociaux particuliers et voyait la nécessité d'élargir ses bases sociales. Sur la base des résultats des élections présidentielles de 1960, 1989, 1994 et 1998, l'auteur montre que la nationalisation du vote, compte tenu de ces données, fait partie de l'intégration politique de la société et que celle-ci, ainsi que la complexité sociale de l'électorat, exigent que le message politique et le discours du candidat visant à récueillir le plus de voix, soient de teneur générale, de façon à éviter qu'éclate tout conflit latent pendant la campagne.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Maio 2000
  • Data do Fascículo
    Jun 1999
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