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Direito subjetivo - base escolástica dos direitos humanos

Subjective right - Scholastic human rights

Droit subjectif - Base Scolastique des droit de l'homme

Resumos

O artigo tem por objetivo apresentar o campo discursivo em que se originou o conceito de direito subjetivo, crucial na formação do ideário dos direitos humanos. Sua primeira parte apresenta uma descrição do conceito de justiça próprio à Escolástica, examinando-se a seguir a emergência da noção de direito subjetivo na última fase - a fase nominalista - desta escola de pensamento. Por fim, considera-se a apropriação, pela Segunda Escolástica, desta noção no interior de uma concepção holista de justiça. A argumentação está centrada, portanto, na relação entre justiça e direito à liberdade individual.

Direitos humanos; Direito subjetivo; Segunda Escolástica; Nominalismo; Cultura política


The article presents the discourse that gave rise to the concept of subjective right, fundamental to the birth of the ideal of human rights. The first part is a description of the concept of justice existent in the scholastic field and then looks at the emergence of the notion of subjective right in the last phase - the nominalistic phase - of this school of thought. Finally, the article considers the appropriation by the Second Scholastic of this notion within a holistic conception of justice. The argument is centred, therefore, on the relationship between justice and the right to individual freedom.

Human rights; Subjective right; Second Scholastic; Nominalism; Political culture


L'objectif de cet article est de présenter la pensée discursive au sein de laquelle le concept de droit subjectif - fondamental dans la formation de la conception des droits de l'homme - est né. Dans une première partie, l'article aborde le concept de justice propre à la Scolastique. Il examine ensuite l'émergence de la notion de droit subjectif dans la dernière période - la période nominaliste - de cette école de pensée. Finalement, l'article considère l'appropriation de cette notion par la Seconde Scolastique à l'intérieur d'une conception globale de la justice. L'argumentation est donc centré sur la relation entre la justice et le droit à la liberté individuelle.

Droits de l'homme; Droit subjectif; Deuxième Scolastique; Nominalisme; Culture politique


DIREITO SUBJETIVO — BASE ESCOLÁSTICA DOS DIREITOS HUMANOS* * Este artigo é uma versão modificada de trabalho apresentado no seminário Justiça, Direitos e Desigualdades — Perspectivas Normativas, produto parcial da pesquisa Concepções de direitos na formulação de políticas públicas, que realizo no âmbito do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre as Desigualdades (NIED)/PRONEX/MCT. Agradeço a Catherine Larrère, José Maurício Domingues, Luiz Eduardo Soares, Octávio de Souza e Peter Fry a leitura atenta e os comentários críticos.

Isabel de Assis Ribeiro de Oliveira

Apresentação

Este artigo apresenta uma leitura do campo discursivo onde se originou a formulação do conceito de direito subjetivo, visando identificar mais cuidadosamente o contexto que propicia a formulação da idéia de que cada um de nós é portador de direitos inalienáveis. Amplamente disseminada em nossa cultura política, esta idéia está expressa de forma mais completa na linguagem dos Direitos Humanos, onde ocupa lugar central (cf. Villey, 1983; Haakonsen, 1996; Tuck, 1979; Hart, 1955; Lafer, 1995).

Os motivos que me levaram a desenvolver este ensaio são de duas ordens. Ao localizar o momento de constituição do conceito, penso poder contribuir para a desnaturalização da idéia de que existam direitos inalienáveis, apontando desta forma para seu caráter propriamente ideológico. Em segundo lugar, ao mostrar que o conceito de direito subjetivo se desenvolveu no âmbito de uma representação holística de justiça, acredito estar abrindo mais uma perspectiva analítica para o entendimento das declarações contemporâneas dos direitos humanos, onde encontramos um conflito entre a proteção dos direitos individuais e a garantia dos "direitos sociais", também chamados de "direitos de segunda geração".

Tal conflito inexistia no momento em que se formula o conceito de direito subjetivo; retornar a este princípio de justiça holístico que instaura a legitimidade da liberdade de ação individual, com vistas a determinar os termos em que tal relação é estabelecida de forma harmônica, é o objetivo central deste artigo. Se o argumento aqui apresentado for convincente, fica em questão a presunção neoliberal de que a liberdade individual é antitética ao conceito de "justiça social".

A análise que se segue está voltada para a descrição deste modo de pensar a justiça, desenvolvido no âmbito da Segunda Escolástica, escola de pensamento dominante na Península Ibérica nos séculos XVI e XVII. Imediatamente anterior à conceituação plena da idéia de direito subjetivo (que permitirá a enunciação da primeira Declaração dos Direitos Humanos), a Neo-Escolástica tem sido desvalorizada, seja por conter elementos que rompem com a tradição escolástica (posição assumida, entre outros, por Villey), seja por não rejeitar plenamente a tradição (tese muito bem apresentada por Morse). Mas, como suspeito que a enunciação dos "direitos sociais", já em meados do século XIX, opera como um "retorno do recalcado", entendo que uma compreensão mais completa da Segunda Escolástica possa ajudar no desenvolvimento de uma linguagem menos confusa sobre direitos no contexto contemporâneo.

Este artigo está organizado em três partes, seguidas de uma conclusão. Na primeira apresento o conceito de justiça que se desenvolve no âmbito da Escolástica. A seguir, faço uma síntese da filosofia do conhecimento que Occam começa a desenvolver, o nominalismo, pois é aí que tem lugar a elaboração da noção de direito subjetivo. Por fim, examino a relação entre holismo e direito subjetivo, tal como estabelecida pela escola de pensamento identificada como a Segunda Escolástica.

A concepção de justiça no âmbito da Escolástica

Tomo, como é de costume, o pensamento de Tomás de Aquino para expor, de forma sucinta, a teoria de justiça própria à Escolástica, ponto de partida para a análise subseqüente da Segunda Escolástica. No entanto, como o pensamento tomista é tributário da tradição aristotélica, penso ser importante, de início, atentar, ainda que brevemente, para a maneira pela qual a justiça foi tratada por Aristóteles.

A idéia central de Aristóteles a propósito da justiça está exposta nas Éticas ao Nicômaco:

Parte da justiça política é natural e parte é legal. Natural, a que tem a mesma força em todos os lugares, e não existe por que as pessoas dizem isto ou aquilo. A justiça convencional, no entanto, concerne isto que, originalmente, é indiferente, mas que uma vez determinado, passa a fazer a diferença. Por exemplo, que o resgate de um prisioneiro deva ser uma mina, ou que se deva sacrificar um ganso, e não duas ovelhas [...] (Aristóteles, 1987, p. 124; tradução livre)

Para compreender esta distinção é preciso retomar o conceito aristotélico de natureza, este que permite dizer que "a justiça natural tem a mesma força em todos os lugares", não sendo mera "aparência" ou opinião. Concebendo a natureza como algo que tem em si mesmo o seu "princípio de movimento", Aristóteles distingue-a daquilo que é artificial por ser capaz de realizar-se, de atualizar sua potencialidade, conferindo à matéria sua "forma perfeita". A natureza é, portanto, teleológica, buscando o fim que lhe é próprio (não devendo, pois, ser entendida como o que é original ou primitivo). Quando Aristóteles diz que o Estado existe por natureza, ele não está afirmando que o Estado seja um "dado" da natureza, e sim que o Estado expressa uma forma natural de desenvolvimento das associações humanas, o mesmo aplicando-se à sociabilidade natural do homem.

Compreendida nestes termos a natureza política da vida social, a justiça estará expressa em um certo tipo de ordenação da pólis em que os indivíduos podem manifestar plenamente sua igualdade de cidadãos. Mas, por contemplar também sua diversidade, esta comunidade deverá ser politicamente ordenada, algo que não se faz pela imposição de uma regra geral, como bem acentua Strauss (1986, pp. 147-149). Tal ordenamento obedecerá, isto sim, às estratégias consideradas mais apropriadas a assegurar a realização de determinados fins, tomados como invariáveis. É neste sentido que a justiça contempla tanto este ordenamento da pólis, quanto a administração da partilha de bens, esta última variando de cidade para cidade.1 1 No mesmo veio interpretativo, Yack (1990) especifica que os cidadãos consideram que seus atos são justos ou injustos tendo em vista os acordos que estabeleceram entre si ou os méritos intrínsecos à ação. Nesta última modalidade de julgamento há algo que é natural, mas que não se deve prestar ao mal-entendido de achar, com Aristóteles, que a natureza nos daria um padrão inerentemente correto para julgar. De acordo com a leitura feita por Yack, Aristóteles está dizendo outra coisa. Ele está simplesmente sustentando que "a necessidade que os cidadãos sentem de julgar e desenvolver uma argumentação neste julgamento a respeito do valor intrinsecamente justo de suas ações é algo que se desenvolve naturalmente dentro das comunidades políticas". O que a natureza nos daria seria a capacidade de formar comunidades políticas onde dependemos uns dos outros quanto aos julgamentos acerca dos méritos intrínsecos de nossas ações. Yack nos adverte, assim, do equívoco de assimilar esta idéia fundamental de Aristóteles a suas referências ao caráter natural da escravidão ou do paternalismo, entre outras.

Essa conceituação de justiça, plenamente compatível com a teoria política desenvolvida por Tomás de Aquino, será por este modificada com a postulação de uma "lei divina" a conferir substrato à natureza, bem como com uma outra nomeação dos fins últimos da política. Mas o que importa ressaltar aqui é uma outra transformação sobre o legado aristotélico. Aquino irá associar a lei à razão, entendida esta última como uma faculdade que ordena a ação e a reflexão humanas com vistas à realização de um fim. A lei, portanto, passa a ser uma ordenação da razão com vistas a alcançar o bem comum, estabelecida e promulgada por aquele a quem compete dirigir a comunidade. Sendo Deus o príncipe da comunidade universal, a primeira lei, "lei eterna", é uma prescrição da razão divina, que regula tudo que existe, sujeitando o mundo à Providência Divina. Todos os seres participam, de certo modo, dessa lei, impressa por Deus em toda a criação, e esta lei inclina tudo que existe a executar os atos que lhes são próprios, atingindo assim seus próprios fins. Enquanto criatura racional, o homem é capaz de prever as conseqüências de seus atos e dos movimentos dos outros, participando desta lei de um modo mais perfeito, e é a esta participação que Aquino dá o nome de "lei natural" (Bigongiari, 1953, pp. 3-7).

É a partir desta concepção de justiça, aqui brevemente exposta, que a Segunda Escolástica vai produzir uma outra visão da relação desejável dos indivíduos em sociedade. Nesta operação, a reflexão que se desenvolve acerca do direito subjetivo parece ser o fator crucial de renovação do pensamento sobre a justiça. É disto que trata a seção seguinte.

O surgimento do conceito de direito subjetivo

A literatura especializada reconhece duas grandes fontes de reflexão sobre a justiça que estão de alguma forma conectadas com a formulação do conceito de direito subjetivo, a saber: a tradição jurídica romana e o nominalismo. Mas a primeira não goza do mesmo consenso que a segunda, cabendo, portanto, apresentar inicialmente uma síntese desta primeira interpretação.

a) Strauss (1986) sustenta que Cícero, ao associar a tradição socrática à tradição estóica, admitirá que haja em cada um de nós como que uma centelha divina. A lei natural que rege as relações humanas emana, portanto, da razão reta da qual todos são dotados. Mas, como somos livres, como temos vontade, podemos nos harmonizar ou não com o fim que nos é dado. Villey (1983, pp. 33 e ss.) considera, entretanto, inapropriado derivar desta idéia de Cícero a existência da noção de um direito. Argumenta que a formulação da idéia de direito, na Roma Clássica, é tributária da tradição grega, equivalendo o termo jus, derivado de justitia, ao termo grego dikaionsuné, que abarca ao mesmo tempo as noções de direito e de justiça. O primeiro ponto que Villey enfatiza é o de que a idéia de direito é solidária da idéia de justiça, e que não compreende qualquer noção de "igualdade em liberdade e dignidade", central no conceito de direito subjetivo. A justiça trata da partilha de "coisas exteriores": funções públicas, honra, bens materiais, obrigações. O "direito de cada um" será o produto da divisão, e não será o mesmo para todos. Não que inexista uma idéia de "isonomia", mas o ison não deve ser traduzido por igualdade, e sim por eqüidade. A aequitas expressa melhor esta idéia de proporção justa, que se obtém na distribuição de certas quantidades de coisas em função da qualidade das pessoas.

Para Villey, portanto, o direito romano nada tem a ver com o direito natural, que tem sua origem na Segunda Escolástica, na moral cristã estóica, no nominalismo, no liberalismo de Hobbes e Locke e no racionalismo de Liebniz. Não é que a expressão "direito natural" não fosse usada: o "jus naturale" consta dos Institutos de Gaius (século II) mas refere-se não a um conjunto coerente de regras, tirado da razão subjetiva do homem, designando, isto sim, um conjunto de relações jurídicas entre todos os seres vivos (inclusive animais).

Tuck (1979) discorda desta interpretação, sustentando que, se a palavra jus (e aqui ele concorda com Villey) não significava para os romanos o mesmo que significará para a Escolástica, esta diferença é insuficiente para rejeitar a tese de que o conceito de direito subjetivo se origina neste contexto. Ao contrário, Tuck argumenta que é algo muito próximo a este conceito de que se fala quando, no âmbito do direito romano, regulam-se as relações que os indivíduos estabelecem entre si. Tal regulação seria impossível se não houvesse a idéia de que os indivíduos possuem um direito (Tuck, 1979, pp. 8 e ss.).

Meu interesse por esta polêmica incide, entretanto, menos sobre os termos em que é posta por um e outro intérprete dos direitos humanos, do que na resolução proposta por Brett (1997, pp. 25 e ss.). Tanto Villey quanto Tuck concordam com a leitura de Strauss segundo a qual a tradição romana (estóica) conferia destaque à liberdade individual, a ser exercida na esfera não jurídica da vida social. Sua regulação opera-se, portanto, em um âmbito externo ao domínio do jus (do direito). Brett desenvolve precisamente este ponto em seu Liberty, right and nature. Em particular, ele chama a nossa atenção para o fato de que a sociedade civil era percebida como constituída de tal forma que cada dominum era soberano em seu próprio território, assignado segunda a máxima "a cada um o seu" (Brett, 1997, pp. 25 e ss.).

Mas Brett assinala também que Buridan, escrevendo já em plena Escolástica, ao identificar a justiça do dominus, que o dirige para ordenar a vida coletiva tendo em mente o bem de seus subjectum, reconhece uma justiça própria a estes, que os dirige para obedecer tais ordenações. Com este reconhecimento, Buridan desenvolverá o raciocínio que distingue a justiça do direito: "a justiça do senhor antecede o que é direito, enquanto a dos que a ele se sujeitam é posterior ao estabelecimento do que é direito" (Brett, 1997, p. 100). Ou seja, o regime de obrigações é justo quando o senhor é justo; e o senhor é justo quando ordena em vista do bem de todos, o que constitui boa razão para a obediência. Esta tese é relevante para a nossa questão porque aqui o direito não é mais algo que tenha a ver com a assignação de coisas, como interpreta Villey (seguindo Aquino e Aristóteles), passando a ser tomado como algo que se origina na vontade do senhor. Compreende, portanto, uma subjetividade, por contraste com o caráter objetivo da justiça. Mas se há pleno reconhecimento da subjetividade individual, o texto de Buridan a propósito do jus politicum de Aristóteles, longamente citado por Brett, não permite falar em direito. Nesta passagem, Buridan legitima a liberdade individual de adquirir bens, cujo limite é dado por efeitos perniciosos que possam advir para a comunidade. Brett tem clareza, entretanto, de que, apesar de defender este espaço de liberdade, Buridan não efetiva, a partir daí, conexões com a linguagem do direito. Pois direito aqui ainda não tem o sentido de denotar as possibilidades da ação humana livre. Este espaço, para Buridan, é um espaço lícito, isto é, correto mas não regulado pela lei, pelas ordenações que constituem o domínio do direito.

b) Ao posicionar-se na "polêmica sobre os universais" e na disputa entre a Ordem Franciscana e o Papado, Guilherme de Occam (1285-1349) acabará por propiciar uma conceituação bastante clara da idéia corrente de um direito individual, subjetivo, inalienável. Se a disputa sobre universais, que ocupou um espaço central no pensamento escolástico (principalmente no final do século XI e início do XII), não estava referida a uma discussão sobre a justiça, o conceito escolástico de justiça será significativamente afetado pelo desdobramento nominalista desta disputa que, de certa maneira, coloca nela um ponto final.

Em termos sucintos, a polêmica versava sobre a existência ou inexistência, bem como sobre a maneira de conhecer e operar com essa "essência". Esse debate, no âmbito da Escolástica, iniciou-se com a "prova ontológica" da existência de Deus, desenvolvida por Anselmo, ocupado em estabelecer a articulação entre fé e razão. Esta prova levaria à conclusão de que Deus — o maior ser existente — estaria em todos os domínios, pois se não estivesse seria possível às nossas mentes pensar em alma maior que Deus, o que seria uma contradição. O raciocínio de Anselmo, assentado em conceitos, estava permeado pela visão agostiniana (e platônica, neste aspecto) da verdade, no sentido de que Anselmo concebia a existência de uma "verdade" da qual tudo que fosse verdadeiro dependeria. Está aqui posto o "realismo extremo", em sua raiz,2 2 Identificar o "realismo extremo" com o idealismo, como se faz hoje em dia, seria, de qualquer forma, despropositado. É melhor usar o termo "fundamentalismo", porque aqui está indicada a particularidade dessa filosofia que busca fundamento (sólido, eterno se possível for) para nossa representação do mundo. pois, desta perspectiva, o termo que se refere ao conjunto de particulares, como os termos homem, casa, cão, teria seu correspondente real: uma "coisa" (res) universal estaria presente em cada homem, em cada casa ou em cada animal.

Roscelin de Compiègne (circa 1125) foi o primeiro a reagir a este "realismo extremo" então em voga, sendo famosa sua afirmação de que o universal nada mais é do que o flatus vocis (o sopro da voz) empregado para a classificação dos seres individuais. Abelardo (1079-1142) também reagiu ao "realismo extremo", mas sem aceitar o nominalismo de Roscelin, seu mestre. Irá reorganizar a disputa sobre os universais obedecendo ao procedimento posto por Boécio (480-524), que já havia estabelecido a dicotomia "palavra/coisa". Para tratar do assunto, Boécio havia organizado o tema com estas três questões: (a) os gêneros e as espécies existem ou são construtos mentais?; (b) se existem, têm existência corpórea ou incorpórea?; (c) os universais existem separadamente das coisas sensíveis, ou nas coisas sensíveis?

Boécio teria respondido a estas questões considerando que, se para Platão os universais eram reais e incorpóreos, e se para Aristóteles eram conceitos, desde que o universal é comum a vários indivíduos, não pode ele mesmo ser um indivíduo e, portanto, não pode ser uma substância sensível. Mas como o universal existe, não é simplesmente uma palavra, ele corresponde a alguma realidade. Então, Boécio afirma que o universal resulta de um trabalho da mente sobre os sentidos, subsistindo em seres materiais, apesar de ser ele mesmo imaterial. Boécio sutenta, pois, que o universal é uma coisa.

Abelardo retomará estas questões3 3 Abelardo agrega mais uma questão, quanto à permanência ou não do significado de um universal caso seu referente deixasse de existir, que não interessa considerar dado o uso que estou fazendo desta problemática. sustentando que o universal não é uma coisa, uma Forma, como querem os realistas, porque se o fosse, não seria possível distinguir instâncias deste universal, como Pedro e Paulo. Para evitar a alternativa nominalista, desenvolverá sua teoria da abstração.

Tomando o entendimento como uma atividade (sensorial e intelectual), Abelardo dirá que a mente é capaz de distinguir entre matéria e forma, ainda que estas não existam em separado. É disto que trata a abstração, que é um sermone ou sermo, um conceito, similar à coisa entendida. A mente abstrai, toma algumas características da coisa que são idênticas a outras coisas do mesmo grupo, e produz sua expressão (cf. Knowles, 1996, p. 103). Se a proximidade com Aristóteles é notável, o termo universal, quando por ele utilizado, referia-se a algo que pudesse ser predicado de muitos termos e muitas coisas. Abelardo questiona esta definição, sustentando que os universais só podem se referir a termos, posto que "coisas" não podem ser predicados de muitos. Se os gramáticos dividem os nomes em próprios e apelativos, se os dialéticos os distinguem em particulares (individuais) e universais, Abelardo dirá que o universal é aquilo que pode ser predicado de muitos termos devido à sua intenção (cf. Schoedinger, 1996, p. 531). Dado que muitos nomes podem ser aglutinados por uma só palavra, o que o universal descreve é a unidade do significado.

Trata então de indicar a razão pela qual conferimos um nome universal a certas coisas. Abelardo dirá que o que leva a isto é o fato de que tais coisas têm "algo" em comum, um status,4 4 Leff (1968, p. 110) esclarece: o status lida apenas com as características gerais presentes nas impressões sensoriais e abstraídas de um certo número de indivíduos. Esta impressão, uma vez em nossa mente, não representa mais qualquer indivíduo particular e pode sobreviver às mudanças no objeto. antes que essência, que não é, entretanto, uma coisa. Aqui, o "flatus vocis" está sendo qualificado: os universais são palavras, uma representação da mente, que é menos indistinta que a coisa representada, pois que omite o que não for comum ao gênero ou à espécie.

Occam concorda que a mente humana efetivamente formula termos universais, mas a estes termos não correspondem seres, não tendo, pois, existência efetiva. Para ele, a coisa individual é a única realmente existente; portanto, só ela pode ser conhecida (Leff, 1968, p. 281), o que coloca em questão até mesmo a validade das inferências empíricas. Vejamos isto mais detidamente.

Occam privilegia o conhecimento intuitivo que, envolvendo uma consciência imediata de um objeto, permite-nos atestar a existência de uma coisa. O conhecimento abstrato, por contraste, visa à compreensão, ao entendimento do que foi constatado, lidando com proposições. Aqui, estamos no campo da especulação, que não pode levar a uma certeza como no primeiro tipo de conhecimento. Assim, não é possível conhecer, propriamente dizendo, os universais porque os universais não são uma coisa, mas um conceito. O conceito não tem existência objetiva, sendo uma "qualidade da mente", apesar de guardar uma relação de semelhança com a coisa que é por ele representada.

Muito resumidamente, a argumentação de Occam pode ser posta nos seguintes termos. Admitindo, como teriam afirmado Aristóteles e Averroes, que toda substância é singular, Occam irá sustentar que antes mesmo da adoção de palavras, o intelecto contém noções de coisas que refletem os objetos que conhece. Estas noções são os signos das coisas, como a idéia de homem, ou cão; "o signo pelo qual compreendo o homem é o signo natural para homens, tal como a fumaça significa fogo, os lamentos, dor, ou o riso, o apreciar, gostar. Este signo significa homem, na proposição mental, da mesma forma que a palavra pode significar a coisa, na proposição falada" (cf. sentenças 1, 2 e 7, apud Leff, 1968, p. 183). "Uma coisa individual, uma rosa, um cão, evoca na mente humana um sinal (`signum naturale') que é o mesmo em todos os homens, como um riso ou um grito." (Leff, 1968, p. 295).

Entendidos como as palavras que designam os atributos comuns a indivíduos, os universais são termos exclusivamente mentais, são conceitos sem nenhuma realidade extra-mental (diferentemente das palavras que designam este ou aquele indivíduo, e que tem, portanto, como que um substrato empírico). Existem universais referidos aos signos naturais e universais por convenção. Em quaisquer dos casos, o universal nada mais é do que uma intenção da alma: nada, nenhuma substância fora da alma é, neste sentido, um universal. Mas quando tomamos um universal por convenção, seu nome é simplesmente um signo cujo significado é relativo às diversas realidades que designa, conforme o ponto de vista daquele que o usa.

De acordo com Libera (1998, p. 429), é possível para Occam passar do conhecimento intuitivo para o conhecimento conceitual porque o conhecimento intuitivo de uma coisa singular produz, simultaneamente, seu conhecimento em sua singularidade e seu conhecimento como membro de uma espécie. Assim, "[a] intuição do singular é simultaneamente empírica e eidética (ao ver este homem vejo um homem)". Passa-se, desta forma, do singular para a série, representada pelo conceito. Já para Knowles, ao definir e justificar o que considerava ser o conhecimento, Occam teria abandonado não apenas qualquer forma de realismo, como qualquer forma de abstração intelectual. A mente do homem, sintetiza Knowles (1996, p. 293; grifo meu), "não abstrai essência ou natureza da coisa conhecida porque não é possível demonstrar a existência nem do processo mental de abstração, nem de qualquer natureza a ser abstraída. Tudo que é conhecido é individual e singular, e o processo de conhecimento é puramente intuicional."

Seja como for, se os "universais" só existem na mente do homem (o que, de qualquer forma, é bem mais do que o "sopro da voz"), eles serão tomados por Occam como os termos ou elementos essenciais da linguagem. Pensar, para Occam, é ordenar estes signos. Assim, o universal deixa de ser um termo que expressa aquilo que existe por si para ser um objeto do pensamento, um artefato mental. A palavra que usamos (rosa, cão) é o sinal que conectamos à nossa intuição, e que a chama de volta. Com Occam, perde portanto significado a idéia do ser como algo universal e abstrato, bem como toda a ciência do ser, a metafísica.

Esse seu modo de pensar tem pelo menos duas conseqüências importantes (cf. Leff, 1968, pp. 284 e ss.). A primeira delas é colocar em questão inferências causais, exceto quando empiricamente "corroboradas". A "essência" torna-se inseparável da existência, uma vez que a matéria não mais é vista como potencialidade e sim como ato de existir. A segunda conseqüência é que, sendo o mundo composto de objetos discretos, não há como sustentar a representação aristotélica do universo. Segundo Libera (1998, p. 428), as únicas relações admissíveis para Occam são as que se dão entre os objetos naturais, como as de proximidade ou afastamento espaço-temporal, causalidade, semelhança etc. Assim, não seria mais possível dizer se o universo é ou não finito, é ou não governado por um Deus, eterno ou não, e mesmo se haveria um só ou muitos mundos. Essas incertezas, entretanto, não implicavam ceticismo, pois onde a razão parava começava a potência divina, esta sim, absoluta. Knowles chama a atenção para o fato de que Occam insistia em uma visão da ciência e da lógica como válidas em sua própria esfera, que não é a esfera das coisas que realmente existem, mas dos termos pelos quais elas se fazem representar em nossas mentes.

Para melhor compreender essa segunda conseqüência, cabe retomar o argumento de Occam. Diz ele (caps. 15 e 16 da Summa logicae, apud Schoedinger, 1996, pp. 604-607): há quem diga que o universal está fora da alma do indivíduo, ainda que dela se distinga apenas formalmente. Assim, em Sócrates a natureza humana estaria "contraída" em uma diferença individual, que não se distingue realmente mas formalmente da natureza. Mas, argumenta, quem afirma a existência desta exterioridade está sustentando que a diferença individual é própria e que o universal é comum. Ora, uma mesma coisa não pode, simultaneamente, ser comum e própria; portanto, o universal não é a mesma coisa que a diferença individual. Conclui então que a diferença individual é não apenas própria (e não comum), como é a própria natureza, posto que esta não é formalmente distinta da diferença individual. Em uma substância particular não há nada substancial, exceto a forma e a matéria particular, ou sua junção.

É nessa demonstração que Occam deixará claro que o termo "natureza humana" não deve ser tomado como um atributo dos homens, seres singulares. O individualismo que aqui está exposto é um individualismo radical: a ciência gravita em torno do indivíduo, pois só ele é dotado de existência real, sendo, portanto, nosso único objeto de conhecimento. Occam introduz uma maneira de raciocinar que elimina qualquer possibilidade de postulação da existência de sistemas de relações ou teias interativas próprias à concepção holística da justiça. É este o ponto que me leva a dar tanto destaque ao nominalismo em sua contribuição para a conceituação do direito subjetivo.

Não parece haver uma conexão imediata entre esta reflexão de cunho propriamente filosófico e o tipo de argumentação desenvolvida por Occam para defender a Ordem Franciscana das contestações postas ao elogio da pobreza pelo papado. No entanto, como sustenta Villey (1964), os dois movimentos guardam entre si enorme afinidade. Fundada em 1209, a Ordem Franciscana estava comprometida com a renúncia à propriedade, à riqueza e ao poder (dominium) (cf. Brett, 1997, p. 13). Occam enfrentava então o desafio de se contrapor à bula do Papa João XXII (1320), que sustentava que, sendo todo ato humano justo ou injusto, se os franciscanos não fossem proprietários dos bens que usavam estariam sendo injustos ao se apropriarem deles para seu sustento. Tratava-se, portanto, de estabelecer a propriedade de usar coisas que não lhes pertenciam, aquelas necessárias à sua vida. Para demonstrar a possibilidade do ato que não é justo nem injusto, Occam recorre à noção de virtude (coisas que são boas mas que não são, em si, nem justas nem injustas, como, por exemplo, a castidade) e à noção de que existem atos lícitos que não são, propriamente falando, justos.

A partir daí, Occam desenvolve a idéia de um jus in rebus, o direito às coisas, mais especificamente o simplex usus (cf. Brett, 1997, pp. 16-18). Para formulá-la, irá conferir um sentido original ao jus naturale, afirmando que o direito de posse (ius utenti) é natural e positivo, e que é o direito de posse positivo, um direito jurídico, que os franciscanos não têm. O direito natural de usar, que é comum a todos os homens, por natureza e não por qualquer convenção subseqüente (Brett, 1997, p. 64), é irrenunciável, sendo intrínseco à vida de todos os mortais. No entanto, clarifica Brett, este direito deve ser acionado apenas em situações extremas. É neste sentido que há uma licença para usar coisas que não pertencem aos franciscanos, licença que não é direito.

A tese central de Villey (1964, p. 117) é a de que Occam faz aqui uma revolução na ciência jurídica, transformando o significado do termo direito, que deixa de designar o bem propiciado pela justiça, para designar o poder que temos sobre um determinado bem. E este poder está claramente especificado: não é a licença, a permissão, mas aquilo do qual o homem não pode ser privado sem seu consentimento.

Se classicamente a lei tinha o sentido de evocar "a ordem do mundo", Occam (aqui seguindo Duns Scottus) dirá que a lei é um comando voluntário da autoridade. Faz, portanto, uma outra leitura dos textos sagrados, acrescentando-lhes um impulso personalista e libertário. Essa apreensão individualizada do direito natural, este que está inscrito no coração dos homens, implica um corte radical com a concepção clássica de justiça natural. Enquanto pertinente à consciência humana, o direito deixa de referir-se à noção de justiça como "boa ordem" para ser algo a ser construído artificialmente.

Assim, à diferença de Tomás de Aquino, Occam dirá que existem leis preceptivas (ame a Deus e ao próximo), leis interditivas (não roubarás, não matarás), e leis permissivas (onde não há preceito ou interdição, cabe a liberdade ordenada pela razão). Está aqui o fundamento da idéia de direito subjetivo. A resultante dessa transformação é a afirmação de que a lei positiva deriva do poder delegado do legislador, representante da multiplicação ilimitada de direitos subjetivos (Villey, 1964, p. 124). Posto que Occam não admite a existência de uma ordem supra-individual, não tendo a sociedade uma realidade efetiva, a noção clássica de justiça desaparece.

Posto isto, podemos agora entrar na Segunda Escolástica, propriamente dita, destacando a maneira peculiar como esta escola de pensamento preserva uma perspectiva holista, conciliando o conceito clássico de justiça com a liberdade individual, intrínseca ao conceito de direito subjetivo.

A Segunda Escolástica: o acordo entre lei natural e direito subjetivo

A referência clássica para o exame da Segunda Escolástica segue sendo o trabalho de Gierke (1934). Avaliando os esforços empreendidos por Vitória, Soto, Suarez e Molina, dentre outros, Gierke sugere que os novos escolásticos teriam mantido, com um jeu d'ésprit engenhoso, a premissa individualista numa concepção de universitas. As teorias da lei natural que desenvolvem entre 1500 e 16505 5 O corte em 1650 corresponde ao texto hobbesiano que radicaliza estas teorias, ameaçando, no dizer de Gierke, a própria sobrevivência de uma lei pública genuína. têm como característica central, sustenta Gierke, o fato de romperem com uma representação do Estado como totalidade compreendida por uma totalidade mais englobadora, que o define, para representá-lo como instituição auto-explicável. Ao mesmo tempo em que essas teorias perdem seu teor teocrático, muda também o foco analítico. Não se trata mais de tomar a humanidade como objeto da filosofia política, mas de analisar o Estado como unidade formada pela união de indivíduos, em obediência aos ditames da lei natural (Gierke, 1934, p. 40).

O que está sendo dito aqui é que, para os novos escolásticos, o Estado é uma instituição que se desenvolve naturalmente, dada a tendência associativa própria aos seres humanos, obedecendo sua organização à vontade humana, antes que a um desígnio divino. Se o corte com a visão medieval da sociedade é muito claro, ao conferir à razão e à vontade humanas a capacidade de ordenar a vida política, independentemente da ordenação divina, a Segunda Escolástica manterá, basicamente, o conceito tomista de lei natural.

Os primeiros princípios da lei natural seriam o de fazer o bem, evitar o mal, e não fazer aos outros o que não se quer que a si se faça. Destes princípios seriam derivados outros, de segunda ordem, do tipo não matar, não roubar, e ainda os de terceira ordem, como os que especificam em que circunstâncias a guerra, por exemplo, é justa. Próximo do que seria razoável, costumeiro ou normal, sua existência generalizada provaria seu caráter natural (Hamilton, 1963, p. 12). Mas os principais expoentes desta escola também questionavam a tradição tomista: o bem e o mal eram intrínsecos à natureza das coisas, e enquanto tal necessários, ou definidos pela vontade divina, que poderia ter feito tudo de outro modo? Tratava-se de uma lei divina positiva, chamada de natural apenas porque estava de acordo com a natureza, tal qual ela se apresentava? A razão humana era suficiente para sua apreensão?

Para Vitória (1485-1546), o que surge "da própria coisa" é natural e necessário, como a capacidade de rir e de pensar é natural para o homem (Brett, 1997, p. 126). Soto (1494-1560) dirá que a lei natural é mais facilmente apreendida pelo instinto (e assim, da lei natural ninguém pode alegar desconhecimento), sendo sua racionalização propiciada pela lei humana positiva (Hamilton, 1963, pp. 14-15). A lei natural leva o homem a mover-se para seu fim, que é a sua liberdade: "[...] e isto é a lei natural, estes princípios que, sem raciocínio discursivo, são aparentes per se, por iluminação natural" (Brett, 1997, p. 142). Além desse conhecimento inato do fim a ser buscado por suas ações, o ser humano tem uma inclinação para realizar o seu próprio bem (a virtude) que o conforma com a lei eterna. Assim, "[...] tanto de acordo com seu conhecimento, quanto de [acordo com] sua propensão para o bem — ambos necessários para o movimento livre —, as ações humanas estão sujeitas à lei eterna" (Brett, 1997, p. 143).

Suarez (1548-1617) concordará com Soto, argumentando que, se não fosse assim, os não-cristãos estariam excluídos da participação na ordem eterna, já que, por definição, desconhecem as "escrituras". De sua contribuição ao debate, cabe ressaltar a distinção que estabelece entre a lei natural e a causalidade, que lhe permite especificar a qualidade moral do ser humano. Sustenta Suarez que a lei natural se expressa no julgamento, na avaliação das alternativas a que o indivíduo procede com vistas a orientar sua vontade (Haakonsen, 1996, p. 19). É nesse sentido que deve ser compreendida sua afirmação de que "a lei implica uma relação moral com o que deva ser feito e só a inteligência é capaz deste governo" (Suarez, De legibus, apud Hamilton, 1963, p. 21). Por sua vez, Molina (1536-1617) dirá que, se a lei natural comanda ou proíbe por si mesma as paixões humanas, o caráter intrincado daquilo que se quer conhecer e, finalmente, a preguiça, a incultura, em suma, defeitos do sujeito do conhecimento são as fontes possíveis de erro em sua apreensão (Hamilton, 1963, pp. 18-19).

Ao desenvolverem este tipo de raciocínio, esses novos escolásticos estão também respondendo à Reforma, insistindo que, no homem, preserva-se uma "graça interior" que o habilita a alcançar a justiça exercendo sua liberdade ao mesmo tempo em que obedece à lei divina. Ao fazê-lo, acabam por reelaborar a concepção tomista de justiça, atribuindo um significado bem mais decisivo à razão, em sua concepção de lei natural. Mas o universo social segue sendo visto como inscrito num contexto natural de obrigações mútuas; mesmo afirmando que todos os homens são livres, iguais e independentes (Skinner, 1996, p. 433), a Segunda Escolástica não os toma como seres naturalmente solitários. A conceituação dos homens como zoon politikon continua sendo a conceituação dominante, seguindo Aquino e Aristóteles. Conforme Vitória, "é de fato essencial ao homem jamais viver sozinho" (Skinner, 1996, p. 434). A comunidade política, portanto, é apreendida organicamente, não havendo lugar para a idéia de subordinação dos indivíduos ao Estado, e sim de todos à lei natural.

Gierke esclarece essa maneira de conceber a sociedade política. Até Hobbes, nos diz ele, admitia-se que o povo, base da soberania, possuía personalidade. A idéia era a de que, para que o povo pudesse transferir para o governante o poder, tinha de ser possuidor de direito, portanto, um "sujeito de direito".6 6 De resto, era este poder popular, que não era o poder de cada indivíduo, que permitia legitimar a resistência à tirania. Essa personalidade jurídica era concebida como uma personalidade coletiva ou, mais precisamente, corporativa. Mas, se os novos escolásticos pensavam o povo como personalidade corporativa (em consonância com a visão da sociedade como universitas), também pensavam a comunidade como associação de indivíduos que mantêm entre si relações recíprocas de deveres e obrigações. A Segunda Escolástica concebia a sociedade, portanto, como união de homens livres, mas união que não podia deixar de ocorrer, dada a sociabilidade natural. Daí que o träger dos direitos ora é o povo, ora o conjunto dos indivíduos. Se estas representações eram contraditórias, delas era possível extrair a idéia de um sujeito grupal, distinto da soma de seus membros.7 7 Creio que essa idéia poderia ser recuperada para identificar o "sujeito" dos direitos sociais, questão problematizada por Ewald (1985), cuja resolução pareceu-me precária (Oliveira, 1997). Por esta razão, o enfoque da Segunda Escolástica incidirá menos sobre a liberdade e mais sobre o bem-estar das pessoas.

Vejamos agora como a idéia do direito subjetivo se desenvolve dentro desta perspectiva. Associando ao direito a noção de obrigação (pois o direito natural indica a necessidade que os indivíduos têm de viver em sociedade), Vitória teria usado o termo "direito subjetivo" para referir-se ao direito de pertencer a uma comunidade política, sendo a civitas imprescindível para remediar as deficiências humanas.8 8 Aqui fica claro um dos principais legados do humanismo renascentista para a Segunda Escolástica, nesta ênfase concedida à capacidade de a legislação remediar os "males" da vida em sociedade. Os renascentistas, apoiando-se no De inventione, de Cícero, ao distinguirem "vida civilizada" da barbárie, caracterizavam como a principal diferença entre o ius gentile e o ius civile o fato de que, no âmbito do primeiro, o governo da sociedade dependia do julgamento arbitrário de "reis primitivos", enquanto que no segundo dependia de leis. A passagem de uma para a outra far-se-ia com base na eloqüência, a capacidade de bem raciocinar (Tuck, 1979, pp. 33 e 37).

Mas Vitória conferiu ao termo um segundo significado ao conectar o direito subjetivo ao domínio. O domínio pode ser apreendido como uma certa eminência ou superioridade e, neste caso, não é o mesmo que o direito, dado que, por exemplo, a mulher tem direito, mas não domínio, sobre o marido. Mas domínio e direito podem ser entendidos como termos equivalentes, quando a ênfase recai no poder da vontade: é direito o que o dominus decide. O que está sendo destacado aqui é a liberdade própria à pessoa independente, capaz de exercer seu poder sobre coisas e pessoas. Vitória teria reservado, portanto, um espaço, por assim dizer, dentro da civitas, da cidade, para o exercício deste direito. Mais do que isto, ao definir a conservação da vida humana como um direito, que provém da lei natural, Vitória sustentará que o poder do governante é poder consentido pelo povo. Está aqui uma representação radicalmente democrática de governo, com base individualista, mas desenvolvida no contexto de um concepção holística da vida política. Esta representação, entretanto, não se faz sem tensão.

Na medida em que essa liberdade é percebida como um direito, cria-se uma tensão entre os dois tipos de "direitos": viver em uma comunidade política, cumprir seus ordenamentos, e viver livremente. No âmbito da (primeira) Escolástica não havia conflito, pois se a noção de liberdade ocupava um lugar de centralidade, por ser uma noção imprescindível à idéia de ação meritória, de salvação, o espaço da liberdade era entendido como um espaço distinto daquele próprio à sociedade organizada. A tensão instaura-se quando a liberdade de agir passa a ser ordenada pela esfera jurídica, que deverá conciliar direitos individuais e corporativos.

De acordo com Brett, a obra de Soto, principal discípulo de Vitória,9 9 À diferença de seu mestre, Soto escreve muito, tendo lançado 27 edições de seu livro sobre a justiça antes de findar o século XVI. pode ser compreendida como voltada para a resolução dessa tensão. Soto teria reconciliado os dois sentidos conferidos por Vitória ao direito, como parte de um projeto mais amplo de harmonizar as demandas de uma sociedade política orgânica com a liberdade individual (Brett, 1997, p. 8). Usando criticamente a metáfora do corpo, do qual o soberano seria a cabeça, Soto insiste que, à diferença de um membro do corpo humano, que de fato não existe por si, fora do corpo, as pessoas existem fora da comunidade e que, portanto, são passíveis de serem prejudicadas pela ação do soberano. Além disso, o soberano não tem direitos sobre a propriedade das pessoas, à diferença da mente que, supostamente, é dona de seu corpo. Se, como membro da sociedade, o indivíduo deve atuar de acordo com o direito público, como indivíduo ele tem de exercer seu próprio controle: deve ser "sui iuris, ter domínio sobre si e sua liberdade" (cf. Brett, 1997, p. 159). E isto vai até o ponto em que a comunidade política não pode obrigar um indivíduo a "cortar sua perna para se salvar": só o indivíduo é responsável pela maneira como preserva sua própria vida. Mas Soto insiste também que o homem não tem garras e chifres que o defenda e que precisa da sociabilidade. A passagem onde Soto indica como a comunidade política se constitui deixa claro que a reunião de todos sob um mesmo governo responde a uma sociabilidade natural, a uma impossibilidade de sobreviver isoladamente; não há aqui a fria (calculista) lógica do pacto.

Mas é com Molina e Suarez, jesuítas que rivalizavam com Vitória e Soto, que o conceito de direito subjetivo ganha momento. Molina tinha uma concepção de vontade que lhe levava a definir o direito como uma faculdade de se portar livremente, o que será reafirmado por Suarez: "a liberdade é um assunto do direito natural [...] posto que a natureza confere ao homem o verdadeiro domínio de sua liberdade" (cf. Tuck, 1979, p. 56). A justiça não se refere apenas ao que é certo, mas indica também "uma certa capacidade moral que todos possuem"; diz respeito, portanto, a um direito, no sentido de "ter-se um direito em relação a determinada coisa" (cf. Suarez, Tratado das leis e de Deus legislador, apud Skinner, 1996, p. 452). O direito subjetivo passa a ocupar, nesta construção discursiva, o lugar daquilo que deve ser garantido para que os fins, determinados pela lei natural, sejam realizados. E esse direito implica o poder ou domínio sobre nós mesmos (a liberdade), sobre os bens do mundo (a propriedade) e sobre outros, instituídos por quasi-contratos. Assim, Molina e Suarez, mesmo tomando o povo como corporação, tenderão para sua representação como societas. O povo vai-se dissolvendo em um sistema de direitos e obrigações individuais recíprocas à medida que a vontade comum se vai decompondo em um acordo de vontades individuais (Gierke,1934, pp. 45 e 245).

O final dessa controvérsia é bem conhecido. Grotius irá ajustar o texto aristotélico à sua perspectiva individualista e radical do direito natural, abandonando posteriormente a teoria de justiça de Aristóteles ao relacionar a justiça diretamente ao direito (ainda que mantenha um comunitarismo, na forma da "caridade interpretativa"). Selden completa a perspectiva individualista e hedonista da obrigação moral, permitindo a obra central de Hobbes. Ao eliminar a possibilidade de um duplo contrato, Hobbes elimina a figura da "personalidade corporativa". E "ao fazer do indivíduo um sujeito onipotente, força-o a que se destrua completamente, entronizando o poder absoluto do Estado" (Gierke,1934, p. 61).

Conclusão

Identificado o contexto intelectual que propicia a formulação do conceito de direito subjetivo, creio ter exposto a base que permite a enunciação dos direitos inalienáveis do ser humano, alicerçada, à diferença de nosso saber contemporâneo, em um leitura holística da justiça.

Este ensaio não pretendeu ser, exclusivamente, um relato do movimento de idéias, ainda que tenha sido praticamente dedicado a isto. Se procurei seguir tão cuidadosamente quanto possível a reflexão sobre justiça que desembocou na formulação de um direito subjetivo, é porque entendi que o esforço de reflexão ali empreendido ainda hoje pode ser válido para uma melhor compreensão dos dilemas com os quais nos defrontamos ao desenvolver nossas próprias concepções de justiça.

Investigando a linguagem em que se expressa o debate contemporâneo acerca dos direitos humanos, dois temas (interligados) revelaram-se recorrentes na literatura especializada. O primeiro deles centra-se na questão do caráter universal destes direitos. Se a maneira como este debate se organiza deriva da problemática do "relativismo cultural", posta pela Antropologia, o que está subjacente à discussão em curso é a conceituação da natureza humana. Para que seja possível declinar os direitos do indivíduo, é preciso admitir o valor intrínseco de cada ser humano, independentemente de sua construção pela cultura específica à qual pertence. A "dignidade da pessoa humana"10 10 De acordo com Brett, é na reflexão de Denis le Chartreux (início do século XV) acerca da justiça que se encontra a primeira menção à "dignidade humana". Denis define a justiça como a virtude da vontade de dar a cada um o que lhe é devido. Mas isto que é devido é também uma dignitas. Pois o que cada um merece é aquilo que é digno de receber (cf. Brett, 1997, p. 106). Aqui, a noção de direito já está muito próxima da do direito subjetivo, no sentido de que a dignidade já é quase um atributo do sujeito. Mas ainda não está estabelecida, na medida em que de forma alguma a idéia de um poder individual está presente. é inquestionável, sustentam os universalistas, porque cada indivíduo da espécie humana tem um valor moral inviolável. A perspectiva culturalista contra-argumentará que o conceito de indivíduo moral não é um conceito universal, e que esta presunção universalista revela apenas o vigor das crenças iluministas. O argumento aqui apresentado pode ser tomado como mais uma evidência do caráter histórico e particular dos direitos humanos.

No entanto, gostaria de situá-lo fora, por assim dizer, dos marcos dessa polêmica. Uma observação atenta da "cultura" dos direitos humanos permite notar que seu ideário ainda encontra-se em plena articulação. Cabe, pois, refletir sobre ele não como uma doutrina, mas como um espaço possível de constituição de consenso para legitimação da autoridade governamental. Neste sentido, importa menos o caráter universal ou particular da conceituação da "natureza humana", e mais o princípio de universalização aí contido. Em outras palavras, o que interessa compreender são as condições que permitem generalizar o campo de validade das proposições aí enunciadas. Se examinarmos os textos que declinam, especificando, os direitos individuais e sociais, considerados todos direitos humanos inalienáveis, encontraremos, em uma mesma "declaração", a defesa radical da liberdade de apropriação dos bens coletivos e o direito de todos usufruírem destes bens, algo só possível se tais bens forem infinitos. Enfatiza-se a igualdade entre todos e o direito à diferenciação, propostas que, se implementadas, não propiciam a justiça mas a anomia. Ao retomar um momento da filosofia política em que a liberdade individual estava garantida numa representação holística da sociedade, estou também mostrando a possibilidade de articular tais direitos em outras bases, que evitem este tipo de dificuldade.

Se o que foi exposto acerca da Segunda Escolástica permite vislumbrar uma ordem política na qual a compreensão da sociedade a ser por ela regida abriga um espaço considerável de liberdade individual, o que fica em questão não é tanto a maneira como estão articulados os direitos individuais e sociais, mas a representação da sociedade como emanando exclusivamente da vontade soberana dos indivíduos. Neste sentido, talvez possamos tomar a passagem dos direitos de primeira para segunda geração como um retorno a uma noção forte de sociedade, contemporânea do saber sociológico, que marca o século em que estes direitos buscam se universalizar, pelo menos como referência obrigatória em toda justificação do poder do Estado.

NOTAS

BIBLIOGRAFIA

RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS

DIREITO SUBJETIVO — BASE ESCOLÁSTICA DOS DIREITOS HUMANOS

Palavras-chave Direitos humanos; Direito subjetivo; Segunda Escolástica; Nominalismo; Cultura política.

O artigo tem por objetivo apresentar o campo discursivo em que se originou o conceito de direito subjetivo, crucial na formação do ideário dos direitos humanos. Sua primeira parte apresenta uma descrição do conceito de justiça próprio à Escolástica, examinando-se a seguir a emergência da noção de direito subjetivo na última fase — a fase nominalista — desta escola de pensamento. Por fim, considera-se a apropriação, pela Segunda Escolástica, desta noção no interior de uma concepção holista de justiça. A argumentação está centrada, portanto, na relação entre justiça e direito à liberdade individual.

SUBJECTIVE RIGHT — SCHOLASTIC HUMAN RIGHTS

Key words Human rights; Subjective right; Second Scholastic; Nominalism; Political culture.

The article presents the discourse that gave rise to the concept of subjective right, fundamental to the birth of the ideal of human rights. The first part is a description of the concept of justice existent in the scholastic field and then looks at the emergence of the notion of subjective right in the last phase — the nominalistic phase — of this school of thought. Finally, the article considers the appropriation by the Second Scholastic of this notion within a holistic conception of justice. The argument is centred, therefore, on the relationship between justice and the right to individual freedom.

DROIT SUBJECTIF — BASE SCOLASTIQUE DES DROIT DE L'HOMME

Mots-clé Droits de l'homme; Droit subjectif; Deuxième Scolastique; Nominalisme; Culture politique.

L'objectif de cet article est de présenter la pensée discursive au sein de laquelle le concept de droit subjectif — fondamental dans la formation de la conception des droits de l'homme — est né. Dans une première partie, l'article aborde le concept de justice propre à la Scolastique. Il examine ensuite l'émergence de la notion de droit subjectif dans la dernière période — la période nominaliste — de cette école de pensée. Finalement, l'article considère l'appropriation de cette notion par la Seconde Scolastique à l'intérieur d'une conception globale de la justice. L'argumentation est donc centré sur la relation entre la justice et le droit à la liberté individuelle.

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  • 1
    No mesmo veio interpretativo, Yack (1990) especifica que os cidadãos consideram que seus atos são justos ou injustos tendo em vista os
    acordos que
    estabeleceram entre si ou os
    méritos intrínsecos à ação. Nesta última modalidade de julgamento há algo que é
    natural, mas que não se deve prestar ao mal-entendido de achar, com Aristóteles, que a natureza nos daria um padrão inerentemente correto para julgar. De acordo com a leitura feita por Yack, Aristóteles está dizendo outra coisa. Ele está simplesmente sustentando que "a necessidade que os cidadãos sentem de julgar e desenvolver uma argumentação neste julgamento a respeito do valor intrinsecamente justo de suas ações é algo que se desenvolve naturalmente dentro das comunidades políticas".
    O que a natureza nos daria seria a capacidade de formar comunidades políticas onde dependemos uns dos outros quanto aos julgamentos acerca dos méritos intrínsecos de nossas ações. Yack nos adverte, assim, do equívoco de assimilar esta idéia fundamental de Aristóteles a suas referências ao
    caráter natural da escravidão ou do paternalismo, entre outras.
  • 2
    Identificar o "realismo extremo" com o idealismo, como se faz hoje em dia, seria, de qualquer forma, despropositado. É melhor usar o termo "fundamentalismo", porque aqui está indicada a particularidade dessa filosofia que busca fundamento (sólido, eterno se possível for) para nossa representação do mundo.
  • 3
    Abelardo agrega mais uma questão, quanto à permanência ou não do significado de um universal caso seu referente deixasse de existir, que não interessa considerar dado o uso que estou fazendo desta problemática.
  • 4
    Leff (1968, p. 110) esclarece: o
    status lida apenas com as características gerais presentes nas impressões sensoriais e abstraídas de um certo número de indivíduos. Esta impressão, uma vez em nossa mente, não representa mais qualquer indivíduo particular e pode sobreviver às mudanças no objeto.
  • 5
    O corte em 1650 corresponde ao texto hobbesiano que radicaliza estas teorias, ameaçando, no dizer de Gierke, a própria sobrevivência de uma lei pública genuína.
  • 6
    De resto, era este poder popular, que não era o poder de
    cada indivíduo, que permitia legitimar a resistência à tirania.
  • 7
    Creio que essa idéia poderia ser recuperada para identificar o "sujeito" dos direitos sociais, questão problematizada por Ewald (1985), cuja resolução pareceu-me precária (Oliveira, 1997).
  • 8
    Aqui fica claro um dos principais legados do humanismo renascentista para a Segunda Escolástica, nesta ênfase concedida à capacidade de a legislação remediar os "males" da vida em sociedade. Os renascentistas, apoiando-se no
    De inventione, de Cícero, ao distinguirem "vida civilizada" da barbárie, caracterizavam como a principal diferença entre o
    ius gentile e o
    ius civile o fato de que, no âmbito do primeiro, o governo da sociedade dependia do julgamento arbitrário de "reis primitivos", enquanto que no segundo dependia de leis. A passagem de uma para a outra far-se-ia com base na eloqüência, a capacidade de bem raciocinar (Tuck, 1979, pp. 33 e 37).
  • 9
    À diferença de seu mestre, Soto escreve muito, tendo lançado 27 edições de seu livro sobre a justiça antes de findar o século XVI.
  • 10
    De acordo com Brett, é na reflexão de Denis le Chartreux (início do século XV) acerca da justiça que se encontra a primeira menção à "dignidade humana". Denis define a justiça como a virtude da vontade de dar a cada um o que lhe é devido. Mas isto que é devido é também uma
    dignitas. Pois o que cada um merece é aquilo que é digno de receber (cf. Brett, 1997, p. 106). Aqui, a noção de direito já está muito próxima da do
    direito subjetivo, no sentido de que a dignidade já é quase um atributo do sujeito. Mas ainda não está estabelecida, na medida em que de forma alguma a idéia de um
    poder individual está presente.
  • *
    Este artigo é uma versão modificada de trabalho apresentado no seminário Justiça, Direitos e Desigualdades — Perspectivas Normativas, produto parcial da pesquisa Concepções de direitos na formulação de políticas públicas, que realizo no âmbito do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre as Desigualdades (NIED)/PRONEX/MCT. Agradeço a Catherine Larrère, José Maurício Domingues, Luiz Eduardo Soares, Octávio de Souza e Peter Fry a leitura atenta e os comentários críticos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Maio 2000
    • Data do Fascículo
      Out 1999
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