A responsabilidade cívica dos intelectuais
Élide Rugai BASTOS e Walquíria D. Leão REGO (orgs.). Intelectuais e política a moralidade do compromisso. São Paulo, Olho d'Água, 1999. 216 páginas.
Célia Galvão Quirino
Belo trabalho, o realizado pelas autoras. As duas professoras da Unicamp souberam reunir nesta coletânea textos polêmicos de alguns intelectuais que defenderam claramente a necessidade da existência de um compromisso moral do intelectual com o mundo contemporâneo, com sua sociedade, com a própria humanidade. Já no subtítulo da obra encontra-se expressa "a crença de que é intrínseco à condição intelectual o vínculo entre a atividade de pensar e o empenho moral do analista na elevação da condição humana". A "missão do sábio de Fichte", a "traição de Benda", o impegno morale de Vittorini, o engagement de Sartre são exemplos claros daquilo que é expresso como o "dilema principal da atividade intelectual distância crítica e envolvimento com a sociedade em que se vive".
Endossando algumas das posições assumidas nos textos selecionados, as organizadoras de Intelectuais e política estão sobretudo preocupadas com a "crescente perda de senso crítico dos intelectuais", o que conduziria "grande parte deles a enredar-se nas `ilusões e mitos de seu tempo', nos modismos, no `fetiche do êxito', no descompromisso com o valor das idéias". Ao que parece, o que mais temem é que haja, por parte dos intelectuais, "transigência dos princípios éticos". A proposta das organizadoras envolve ainda a complexa e sempre válida problemática da "aspiração de autonomia do intelectual face aos poderes constituídos".
A escolha do tema e a seleção dos textos realizou-se a partir de pesquisas, seminários e discussões que Élide Rugai Bastos e Walquíria Leão Rego realizaram em Urbino, na Itália, tendo como principal interlocutor Domenico Losurdo. É natural, portanto, que os autores italianos apareçam de forma predominante no livro, o que é bom, dado o pouco contato que temos com a bibliografia italiana mais recente, sobretudo nas ciências humanas. Curiosamente, aliás, todos os autores italianos escolhidos, com exceção apenas de Vittorini, estão vivos e continuam produzindo. Propositadamente, parece-me, as organizadoras da coletânea tiveram o cuidado de não arregimentar somente pensadores cujas posições políticas pudessem ser consideradas, tanto no pensar como no agir, como pertencentes à mesma linha política, ou a linhas semelhantes. Talvez estivessem mais empenhadas em apresentar autores cujo engajamento político não tivesse sido explicitado apenas por meio de manifestações teóricas abstratas, e cujas obras tivessem sido algumas ainda o são uma clara manifestação crítica das crises e das tragédias do momento histórico em que viveram. Apesar de os textos corresponderem, quase sempre, a situações históricas diversas e a diferentes momentos críticos, todos abordam uma problemática moderna e todos enriquecem o debate sobre a atuação e o papel do intelectual no mundo contemporâneo. Sem dúvida, sente-se a falta de muitos outros autores e de outros textos que poderiam ser sugeridos, mas é óbvio que a organização de uma coletânea por si só já impõe limites, haja vista a profusão de obras disponíveis e a exigüidade de espaço.
A apresentação dos autores e dos seus textos configurados nos seus respectivos momentos históricos muito bem feita, aliás permitiu uma definição das autoras no que diz respeito às suas próprias escolhas. Sobretudo em relação aos italianos, não só pela sua contemporaneidade, mas talvez porque a própria Itália tenha sido sempre um palco de lutas políticas envolvendo grupos de poder bem estruturados, onde Igreja, partidos políticos bem definidos e intelectuais encontram-se verdadeiramente engajados nos projetos e crises nacionais e internacionais.
Dos escolhidos, talvez o mais polêmico seja o texto de Sartre, sua apresentação ao primeiro número da revista Les Temps Modernes, em que faz uma grande provocação a todos os intelectuais de seu tempo afirmando: "Todos os escritores de origem burguesa conheceram a tentação da irresponsabilidade". Combate os teóricos da "arte pela arte", aqueles que dizem "que a ciência não tem preocupação com o que é útil", a visão que defende a "imparcialidade estéril do cientista", convencido que está de que não se pode "tirar o corpo fora da jogada". Embora a revista de Sartre e a de Vittorini, Il Politecnico, tenham sido lançadas no mesmo momento, outubro de 1945, Vittorini defende outro tipo de engajamento do intelectual. O seu grito de alerta inicial é quase patético: "Não queremos mais uma cultura que console no sofrimento, mas uma cultura que proteja do sofrimento, que o combata e o elimine [ ] Uma cultura que impeça os sofrimentos e os esconjure, que ajude a eliminar a exploração e a escravidão e a vencer a necessidade: esta é a cultura na qual é necessário que se transforme toda a velha cultura." Talvez a importância maior dessa revista tenha sido a preocupação dos editores em "superar a barreira entre o saber humanista e o saber científico". A questão cultural apontada por Vittorini é bíblica. O intelectual não pode querer se ocupar apenas da alma, "deixando 'Cesar' ocupar-se como melhor lhe aprouver do pão e do trabalho". Ao proporem a necessidade de um novo engajamento, ambos, Sartre e Vittorini, estavam procurando contribuir para a reconstrução de um mundo melhor depois do terror do nazi-fascismo. Visavam não apenas os seus países, mas toda a humanidade.
É verdade que, alguns anos mais tarde, Norberto Bobbio negaria a afirmação feita acima sobre a engajamento político dos italianos, chamando a atenção para esses "anos de estagnação e involução política depois da guerra". Como se "intelectuais `alienados', ou `desenraizados' da sociedade em que vivem" fossem "uma característica da sociedade italiana". Em outras palavras, desclassifica esses intelectuais que, ao permanecerem fora dos grandes partidos, "exercem sobre a política ordinária uma influência invisível a olho nu", uma vez que "a política em um Estado democrático se faz com os partidos", da mesma forma que "a opinião pública é formada pelos partidos". A proposta política liberal-socialista do intelectual e homem político Bobbio aparece claramente definida, já nesse momento, como a terceira via.
Em 1997, Salvatore Veca, procurando os caminhos que levam "da lealdade política à lealdade civil", atualiza a discussão respondendo às seguintes questões: "O que mudou desde então? [ ] Em que sentido as circunstâncias nas quais a questão se põe hoje são diferentes daquelas nas quais, há cerca de 50 anos, Norberto Bobbio, autor de Política e cultura, a formulava de modo paradigmático. [...] A segunda questão diz respeito ao sentido no qual hoje se pode falar legitimamente de desejabilidade ou de obrigatoriedade do empenho do filósofo, entendido como empenho `político'. [...] A terceira questão é se o empenho político de quem faz filosofia, posto que tenha um sentido plausível, pode ou deve distinguir-se da participação no que se costuma chamar 'política ativa'."
São questões de nossa época, de nosso momento histórico, que se encontram em todos os textos desta coletânea. Ao lê-los, não se pode deixar de pensar no Brasil de hoje. Já a apresentação das organizadoras nos deixa com uma indagação angustiante: o que nossa intelligentsia está pensando, propondo, fazendo ou tentando realizar pela sociedade como um todo? Sabemos, como afirma Fichte, da impossibilidade de o "intelectual abarcar a totalidade do conhecimento humano". Por isso mesmo, a resolução dos problemas nacionais, dadas as condições atuais, faz pensar que, num sistema democrático de governo, talvez não se devesse descartar a proposta mannheimiana de democracia planificada (como outras também apresentadas logo após a Segunda Guerra Mundial), embora, igualmente como a de Ortega y Gasset, pareça um tanto elitista. Seria a nossa intelligentsia, nos termos definidos por Mannheim, capaz de, se organizada, realizar a "síntese de perspectivas" e sugerir novos e necessários caminhos para fazer a coisa certa?
CÉLIA GALVÃO QUIRINO
é professora do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
26 Maio 2000 -
Data do Fascículo
Fev 2000