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Ao inimigo nem justiça. Violência política na Argentina, 1943-1983

Tragédia platina

Emilio DELLASOPPA. Ao inimigo nem justiça. Violência política na Argentina, 1943-1983. São Paulo, Departamento de Ciência Política da USP/Hucitec, 1998. 393 páginas.

João Roberto Martins Filho

Há países cuja história parece feita para confirmar um grande paradigma de análise da política. Assim como a França do século XIX ilustrou a idéia de Marx sobre os conflitos políticos como expressão da luta de classes, a Argentina de 1943-1983 encaixa-se como uma luva na visão de Carl Schmitt da vida política como intrinsecamente desordenada e ameaçadora, em que as categorias de "amigo/inimigo" são o princípio organizador.

Com efeito, naquelas quatro décadas, a história política do país platino foi marcada pelo recurso à violência organizada numa escala surpreendente, nos quadros de um conflito entre peronistas e antiperonistas que se revelou o marco inescapável de toda e qualquer ação política. Por isso mesmo o autor afirma, já no prefácio, que sua geração, "como toda a Argentina", foi obrigada a "escolher apenas uma das duas histórias possíveis" (p. 20).1 1 Nesse sentido, é difícil imaginar para o caso argentino um tipo de análise como a realizada por Paul Preston para a polarizada Espanha da guerra civil. A partir do exame de algumas biografias-chave, Preston defende em Las tres Españas del 36 (Madri, Plaz Janés, 1999) a idéia da existência de uma posição centrista, derrotada pela história, entre os dois extremos da esquerda e do franquismo.

São, nesse sentido, paradigmáticos acontecimentos como o bombardeio da sede do governo de Perón por aviões da Marinha, no golpe frustrado de 16 de junho de 1955, seguido pela vingança popular que resultou no ataque e incêndio da Cúria Metropolitana e de mais de uma dúzia de igrejas, inclusive a Catedral de Buenos Aires. As estatísticas mais moderadas falam em 355 mortos e mais de 600 feridos em virtude das bombas que atingiram não apenas a Casa Rosada como inúmeras praças, ruas e avenidas dos arredores.

Outro indício do caráter particular que assumiu o conflito político naquele país é o próprio nome das organizações da esquerda armada que surgiram no final dos anos 60. É interessante notar que se no Brasil esses grupos foram batizados de "Ação", "Vanguarda", "Movimento", "Partido", "Comando" etc., na Argentina a militarização da política aparece diretamente na adoção de assinaturas como "Forças Armadas Revolucionárias", "Forças Armadas Peronistas" e "Exército Revolucionário do Povo", numa espécie de processo especular (os montoneros, por exemplo, mesmo depois da derrota, apresentavam-se no exílio em uniforme militar) que alimentou a violência e potencializou o conflito. Nesse quadro, aponta o autor, a violência da esquerda, nos anos 70, deixou de ser "instrumental" e passou a ser "expressiva" — num outro ponto de possível contraste com a luta armada brasileira de 1969-1972.2 2 Para Dellasoppa, "os elementos mais importantes para explicar a rápida ascensão e a também rápida queda das organizações armadas na política argentina são: a subordinação da política à ação militarista e a falta de flexibilidade na análise da conjuntura." (p. 304). Outras anotações corajosas e pertinentes do autor sobre esse tema estão nas páginas 335 e seguintes.

São estes, então, o lugar e o tempo históricos analisados, com rara ambição temporal e meticulosidade de pesquisa, no trabalho de Emilio Dellasoppa. O livro abre com extenso capítulo em que se estabelecem os "marcos teóricos" da análise. Aí se percebe o claro esforço do autor em definir uma estrita racionalidade de análise, capaz de garantir não apenas seu distanciamento de uma história por ele parcialmente vivida, mas também o princípio organizador de um processo aparentemente caótico. Veremos mais adiante como essa preocupação acaba por se revelar excessiva.

Na busca de resolução da "problemática da relação entre a situação, ou contexto, tal como percebido pelos diferentes atores, e a construção de uma prática social por estes mesmo atores" (p. 55; grifos do autor), a opção mais presente na análise de Dellasoppa é pela sociologia das crises políticas de Michel Dobry (1986), de quem ele empresta os conceitos principais, embora se refira a vários outros autores.3 3 Por exemplo, A. Etzioni (1968), para o conceito de recursos políticos; K. Boulding (1962), para a teoria do conflito; Schelling (1964), para a teoria dos jogos; Tilly (1977 e 1978) e outros, para a mobilização de recursos. Ressalta aí, como idéia fundamental, a de crise política caracterizada por mobilizações multissetoriais em sociedades complexas. O elemento específico do caso argentino seria o estabelecimento de uma crise de legitimidade como conseqüência do padrão de conflito particular ao país, marcado pelo bloqueio do sistema político.

Tal padrão de conflito dominou ininterruptamente o período, passando pela era peronista (1946-1955), pela revolução libertadora e o regime que findou em junho de 1966, quando se inaugura aquilo que Guillermo O'Donnell definiu como o "autoritarismo burocrático", pela volta dos peronistas com Cámpora em 1973 e o novo golpe, que inaugura o regime do "processo", até sua derrocada pós-Guerra das Malvinas, em 1983.

Apenas num breve período, depois da posse do general Lanusse, no começo dos anos 70, Dellasoppa localiza uma oportunidade de superação da polarização típica da sociedade argentina daqueles anos, afinal desperdiçada pelos principais "setores" políticos. Nas suas palavras, "era a primeira vez que um governo militar negociava diretamente com Perón uma solução planejada, uma saída política para a crise argentina" (p. 305), abrindo a possibilidade de efetiva mudança no padrão de conflito. Mas a volta de Perón não foi vista assim pelas organizações da esquerda peronista, que a interpretaram como o primeiro capítulo do processo de tomada do poder na "luta pela liberação nacional, contra o imperialismo" (p. 306), o que forneceu o pretexto que faltava aos grupos terroristas da direita peronista, como a Triple A, com os trágicos resultados conhecidos.

Para isso, como bem mostra Dellasoppa, contribuiu o próprio Perón, com seu hábito de incentivar a ação das facções peronistas — inclusive as mais radicais, a fim de garantir a manutenção da "ofensiva estratégica" — ao mesmo tempo em que jogava umas contra as outras. O que o levou a dirigir-se em 1971 aos guerrilheiros citando Mao e o Vietnã, para concluir que "a violência não pode ser vencida senão por uma violência maior" (p. 309). À mesma época Perón recusou-se a desautorizar as ações da guerrilha peronista, conforme lhe solicitava o governo do general Lanusse, como parte das negociações para a realização das eleições presidenciais.4 4 O conflito no interior do peronismo ganhou destaque mundial quando da volta de Perón à Argentina, a 20 de junho de 1973, no massacre de militantes da ala revolucionária juvenil por gangsters sindicalistas em frente ao palanque de onde falaria o líder, episódio filmado pelas câmeras de TV. Sobre o aparato paramilitar em torno do palanque, ver páginas 323 e seguintes. Poucos meses antes, o próprio Cámpora teve um revólver apontado para sua cabeça por um guarda-costas do secretário-geral da CGT, José Rucci, por ocasião de uma eleição para o Conselho Superior Peronista (p. 319). Rucci seria assassinado pela esquerda peronista em outubro de 1973.

É bastante interessante acompanhar, na análise do autor, o movimento especular de duas concepções totalizantes da sociedade que se refletem ora no discurso de Perón, ora no de seus adversários, ora nos grupos de esquerda, ora nos militares que exterminaram com minúcia e crueldade inéditas o entorno e o núcleo da militância armada. Afinal, foi o próprio Perón quem afirmou que "o peronismo é um movimento que se nutre de absolutos" e que "a ação política é uma luta de vontades", culminando com essa pérola do entendimento político: "[...] com a superioridade política que nós temos, deveríamos ser como uma motoniveladora". Enfim, é de Perón a própria frase que dá nome ao livro: "Ao inimigo, nem justiça".

Como ressalta Dellasoppa, a visão do caudilho sobre a política é, no início, claramente influenciada por uma teoria da guerra. Uma resposta particular a esse discurso foi a Doutrina da Segurança Nacional progressivamente adotada pelas Forças Armadas argentinas entre 1955 e 1962, sob o impacto mais geral da Guerra Fria, bem como a influência da doutrina da guerre révolutionnaire francesa na repressão à esquerda armada, entre 1965 e 1975.

O livro é, em todos esses aspectos, esclarecedor e sua argumentação é bem construída. No que se refere à arquitetura de sua exposição, no entanto, o leitor talvez se ressinta da reafirmação às vezes excessiva do marco teórico, que gradualmente se concentra nos conceitos de Dobry. Com efeito, parece desnecessário encerrar todo trecho da análise com uma repetitiva retomada de cada ponto do esquema conceitual adotado no livro. O vigor e a vivacidade da própria história analisada correm o risco de se engessar em frases como esta: "Podemos perceber neste momento como a lógica de situação determinada pela objetivação do padrão de conflito está presente novamente na construção das lógicas setoriais específicas, organizadas em torno do focal point representado pela segura proscrição do peronismo, da qual só faltava determinar-se a forças específicas." (p. 246).

Os melhores momentos do livro estão no final. Refiro-me ao brilhante trecho em que o autor analisa o delicado tema do "terrorismo" de esquerda, na seção "Arte militar e arte política: a diferença desprezada" (pp. 330 e ss.), e à seção "A construção social da `vida sem valor para vida'", cujo tema é o processo de exclusão moral e desumanização dos opositores de esquerda, que fundou a aceitação da tortura. Nesta parte Dellasoppa se encarrega de distinguir, com rara sensibilidade, a diferença moral entre a ação miltar e a da esquerda, mesmo em meio ao caos da guerra suja: a esquerda não matou nem torturou pessoas depois da prisão, nem foi responsável por desaparecimentos (p. 360, nota 11).

Voltando ao marco teórico, cabe dizer que o conceito dobryniano de "setor", embora empregado coerentemente por Dellasoppa, revela seus limites ao abranger coisas tão diversas como forças sociais, aparelhos de Estado, instituições governamentais, frações de classe, organizações sindicais e partidos políticos. Outro ponto a ressaltar é que o texto está aqui e ali pontilhado de espanholismos no vocabulário5 5 Alguns exemplos: "bando", e não "grupo" (p. 95); "a instâncias do governo", em vez de "por insistência do governo" (p. 139); "gremialistas", ao invés de "sindicalistas" (p. 258); "involucrando pantalhas de execução" (?) (p. 259, nota); "por ter dado tiros de graça", ao invés de "tiros de misericórdia" (p. 314). e na sintaxe, o que pode constituir algum ruído na compreensão, insuficiente, porém, para retirar a forte recomendação da leitura e estudo dessa obra extremamente útil — e em certos pontos surpreendente — para a compreensão da trágica história política e social de nossa vizinha Argentina.

JOÃO ROBERTO MARTINS FILHO

é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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    Nesse sentido, é difícil imaginar para o caso argentino um tipo de análise como a realizada por Paul Preston para a polarizada Espanha da guerra civil. A partir do exame de algumas biografias-chave, Preston defende em
    Las tres Españas del 36 (Madri, Plaz Janés, 1999) a idéia da existência de uma posição centrista, derrotada pela história, entre os dois extremos da esquerda e do franquismo.
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    Para Dellasoppa, "os elementos mais importantes para explicar a rápida ascensão e a também rápida queda das organizações armadas na política argentina são: a subordinação da política à ação militarista e a falta de flexibilidade na análise da conjuntura." (p. 304). Outras anotações corajosas e pertinentes do autor sobre esse tema estão nas páginas 335 e seguintes.
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    Por exemplo, A. Etzioni (1968), para o conceito de recursos políticos; K. Boulding (1962), para a teoria do conflito; Schelling (1964), para a teoria dos jogos; Tilly (1977 e 1978) e outros, para a mobilização de recursos.
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    O conflito no interior do peronismo ganhou destaque mundial quando da volta de Perón à Argentina, a 20 de junho de 1973, no massacre de militantes da ala revolucionária juvenil por
    gangsters sindicalistas em frente ao palanque de onde falaria o líder, episódio filmado pelas câmeras de TV. Sobre o aparato paramilitar em torno do palanque, ver páginas 323 e seguintes. Poucos meses antes, o próprio Cámpora teve um revólver apontado para sua cabeça por um guarda-costas do secretário-geral da CGT, José Rucci, por ocasião de uma eleição para o Conselho Superior Peronista (p. 319). Rucci seria assassinado pela esquerda peronista em outubro de 1973.
  • 5
    Alguns exemplos: "bando", e não "grupo" (p. 95); "a instâncias do governo", em vez de "por insistência do governo" (p. 139); "gremialistas", ao invés de "sindicalistas" (p. 258); "involucrando pantalhas de execução" (?) (p. 259, nota); "por ter dado tiros de graça", ao invés de "tiros de misericórdia" (p. 314).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Maio 2000
    • Data do Fascículo
      Fev 2000
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