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Processo de governo no município e no estado: uma análise a partir de São Paulo

Assembléias legislativas e câmaras de vereadores:

o papel das instituições subnacionais no entendimento da democracia brasileira

Regis de Castro ANDRADE (org.). Processo de governo no município e no estado: uma análise a partir de São Paulo. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1998. 148 páginas.

Celina Souza

Esta coletânea organizada por Regis de Castro Andrade constitui uma importante e pioneira contribuição para os estudos e debates sobre a democracia no Brasil. Embora seu título possa induzir o leitor a acreditar que se trata tão-somente da análise do processo de governo nas esferas subnacionais, o que, por si só, já seria uma grande contribuição, o livro vai muito mais além. Tendo como objeto o processo decisório nas casas legislativas do Estado e do Município de São Paulo, os ensaios nele reunidos contribuem, em primeiro lugar, para preencher uma lacuna da literatura nacional e estrangeira sobre a democracia no Brasil, centrada, em geral, nas instituições nacionais e pouco preocupada com o modo como as instituições representativas subnacionais estão respondendo aos postulados democráticos. Um dos objetivos do livro é, pois, entender melhor o que está acontecendo no mundo político, também real, dos estados e municípios após a redemocratização do país; ou seja, é compreender como suas instituições representativas estão respondendo a esse processo e qual o seu papel no sentido de aumentar ou constranger os postulados democráticos. A premissa subjacente é a de que as instituições assumem papéis e conteúdos diversos conforme estejam integradas à esfera nacional ou às esferas subnacionais, especialmente em países como o Brasil, marcado por profunda heterogeneidade política, social e econômica.

A segunda contribuição valiosa do livro para os estudos sobre a democracia no Brasil é a apresentação de um modelo de análise dos processos decisórios — utilizado com maior ou menor intensidade pelos vários autores —, abrindo uma janela para o estudo do Poder Legislativo de outros estados e municípios. Tal modelo poderia ser adotado também para o estudo de outras unidades da Federação, o que permitiria a realização de estudos comparativos sobre o funcionamento das instituições subnacionais brasileiras. É claro que este é um caminho difícil de perseguir, diante das enormes limitações dos nossos pesquisadores para custear suas pesquisas. Mas é preciso que a necessidade e a urgência de estudos comparativos nessa área sejam por nós perseguidas e cobradas.* * Estudantes norte-americanos já estão fazendo pesquisas no Brasil que comparam o funcionamento de várias assembléias legislativas e câmaras de vereadores. Outro norte-americano, Barry Ames (1999), "cobrou" dos pesquisadores brasileiros maior ênfase no entendimento dos processos políticos que ocorrem nos espaços estaduais e locais. Com isto não quero dizer, obviamente, que se deva buscar nas pesquisas comparativas o "Brasil-médio urbano ou regional", mas sim que devemos ser capazes de entender o funcionamento das nossas instituições subnacionais para além de rótulos simplistas como "moderno" versus "arcaico".

O livro busca enfrentar duas questões clássicas do pensamento político: quem governa e como se governa. A proposta é enfatizar o entendimento da segunda questão, embora ainda saibamos muito pouco sobre quem governa, desconhecimento que impede, por exemplo, uma melhor compreensão dos recentes escândalos envolvendo vereadores paulistanos.

A coletânea está dividida em duas partes. Na primeira o organizador apresenta uma síntese do modelo adotado para analisar o processo decisório do ponto de vista da estratégia dos participantes. Depois de explicar alguns padrões formais e substantivos do processo decisório, Regis de Castro Andrade compara os padrões de decisão adotados nas casas legislativas do Estado e do Município de São Paulo dos pontos de vista da forma, generalidade e instrumentos de negociação utilizados pelos decisores. Talvez aí coubessem maiores explicações sobre a teoria que emoldura o modelo de análise utilizado, a teoria da escolha racional, em especial uma listagem da bibliografia básica sobre a mesma, o que poderia, inclusive, ampliar o universo de leitores do livro. Deve-se destacar que a análise sobre as opções estratégicas dos parlamentares no processo de decisão é estruturada a partir de dois elementos da situação decisória: a estratégia do governo em relação ao Legislativo e a estratégia de dois agentes externos — a opinião pública e os lobbies. Tal opção metodológica sem dúvida aumenta a força explicativa do modelo de análise do processo decisório, em geral focado em apenas um desses elementos.

A segunda parte da coletânea é constituída de quatro artigos. O de Cláudio Gonçalves Couto discute o conceito de governo como função do sistema político e estabelece alguns padrões básicos da interação entre o Executivo e o Legislativo com base na experiência da gestão de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo. O autor discute com rigor e convincentemente por que o conceito de governo não deve ser tomado como sinônimo de Poder Executivo e por que deve ser tratado como algo distinto das estruturas políticas institucionais.

O artigo de Eliana M. Pralon e Gabriela N. Ferreira analisa as razões de natureza estrutural e conjuntural da proeminência da Câmara de Vereadores no processo decisório do Município de São Paulo. As autoras acompanham as administrações de Luiza Erundina e Paulo Maluf buscando identificar suas especificidades e os reflexos das estratégias por eles escolhidas nas negociações com o Legislativo municipal. A maior ou menor importância do Legislativo no processo decisório, argumentam, seria determinada pela opção estratégica de cada dirigente local.

Os dois artigos seguintes voltam-se para a esfera estadual de atuação. O de Fernando Abrucio examina o papel do Executivo vis-à-vis o Legislativo em 14 estados brasileiros, assim como a estratégia dos governadores de diferentes partidos para garantir a submissão dos seus respectivos Legislativos. Este trabalho dá continuidade à tese que vem sendo defendida por Abrucio de que a esfera estadual no Brasil funciona através de um sistema ultrapresidencialista, caracterizado pelo poder exacerbado dos governadores em detrimento das Assembléias Legislativas, o que torna o sistema político estadual carente de mecanismos de checks and balances. O autor propõe três razões para a existência desse ultrapresidencialismo estadual brasileiro: (a) as características do sistema partidário; (b) fatores intrínsecos à política estadual, motivadores do poder centralizado na figura do governador na sua circunscrição política e (c) a constituição, após a redemocratização, de um "federalismo estadualista".

Gostaria de discutir a última explicação. Embora eu concorde plenamente que governadores e prefeitos dos territórios economicamente mais fortes tenham aumentado seu poder após a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988, é possível argumentar que esse fortalecimento torna o Brasil mais "federal", e não mais "estadual". Ademais, em lugar de se analisar os diferentes formatos que o federalismo brasileiro assumiu ao longo de sua história como uma dicotomia entre maior ou menor centralização de poder em uma de suas esferas, talvez a nossa trajetória possa ser melhor explicada como um continnum. A Constituição de 1988 teria, assim, fortalecido um dos braços desse continuum que se encontrava enfraquecido no regime anterior e que foi objeto de ataque de todos os regimes autoritários brasileiros. Apesar da força dos governadores (e prefeitos de várias capitais), o Executivo federal tem conseguido adotar várias medidas que contrariam, em tese, os interesses dos estados, tais como o Fundo de Estabilização Fiscal, a Lei Kandir etc. Assim, o governo federal não tem sido um ator passivo e no continuum por onde transita o federalismo brasileiro não haveria espaço para mocinhos e vilões. Haveria, sim, um jogo cujas regras visam manter o instável equilíbrio federativo em um país marcado por grandes desigualdades entre grupos sociais, regiões e elites políticas e econômicas.

O artigo de Valeriano M.F. Costa e Carlos Thadeu C. de Oliveira analisa alguns fatores políticos conjunturais e organizacionais que condicionam a relação entre Executivos e Legislativos estaduais a partir da experiência vivenciada durante a administração de Luiz Antonio Fleury no governo de São Paulo. Os autores expressam sua perplexidade com o fato de São Paulo, ao final do século XX, ter um sistema político com padrões de interação institucional muito semelhantes aos dos estados mais pobres da Federação. Dentre os vários e questionáveis fatores listados pelos autores como responsáveis por esta situação está o de que o estado "concentra os mais fortes sindicatos e associações empresariais". No entanto, de acordo com Mancur Olson (1965), um dos principais expoentes da teoria da escolha racional, teoria que é a base do modelo de análise adotado pelos autores e pelo organizador, este seria um dos maiores incentivos ao rent-seeking. Paradoxalmente, a análise de Valeriano Costa e Carlos Thadeu de Oliveira confirma mais a tese de Abrucio do ultrapresidencialismo estadual do que a preocupação inicial dos autores com as conseqüências, para o sistema político paulista, de tantas características do "atraso".

O livro, sem dúvida, merece ser lido e deve ser tomado como um marco para futuras pesquisas sobre as instituições estaduais e locais, não só em São Paulo como em outros estados e municípios brasileiros. Espero que o grupo de pesquisa coordenado por Regis de Castro Andrade no Cedec possa avançar nessa agenda de pesquisa, incorporando outros territórios e novos temas sobre as relações entre Executivo e Legislativo nas esferas subnacionais, inclusive a ainda pouca desvendada questão sobre quem governa nossos estados e municípios.

Referências bibliográficas

AMES, Barry. (1999), "Approaches to the study of institutions in Latin American politics". Latin American Research Review, 34 (1): 221-236.

ARRETCHE, Marta Tereza da Silva e RODRIGUEZ, Vicente. (1998), Descentralização das políticas sociais no Estado de São Paulo. São Paulo/Brasília, Fundap/FAPESP/IPEA.

OLSON, Mancur. (1965), The logic of collective action. Cambridge, Cambridge University Press

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CELINA SOUZA

é professora do Departamento de Finanças e Políticas Públicas e do Núcleo de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal da Bahia.

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    Estudantes norte-americanos já estão fazendo pesquisas no Brasil que comparam o funcionamento de várias assembléias legislativas e câmaras de vereadores. Outro norte-americano, Barry Ames (1999), "cobrou" dos pesquisadores brasileiros maior ênfase no entendimento dos processos políticos que ocorrem nos espaços estaduais e locais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Maio 2000
    • Data do Fascículo
      Fev 2000
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