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Dois estudos de mobilidade social no Brasil

Dois estudos de mobilidade social no Brasil

José PASTORE e Nelson do VALLE SILVA. Mobilidade social no Brasil. São Paulo, Macron Books, 2000. 98 páginas.

Maria Celi SCALON. Mobilidade social no Brasil: padrões e tendências. Rio de Janeiro, Revan, 1999. 190 páginas.

Carlos Antonio Costa Ribeiro

Há pelo menos dois bons motivos para recebermos com entusiasmo o novo livro de José Pastore e Nelson do Valle Silva e o livro de Maria Celi Scalon. Primeiro, os autores descrevem cuidadosamente características e mudanças na estratificação social brasileira. Segundo, os estudos abrem a possibilidade de novos debates sobre abordagens metodológicas e teóricas de extrema importância para o estudo da mobilidade social na sociologia contemporânea. Apesar do mesmo título e de usarem metodologia semelhante, os livros seguem perspectivas teóricas distintas e tratam de temas diferentes. Leitores que fizerem um contraste entre eles, e não se intimidarem por números e estatísticas, aprenderão muito sobre metodologia quantitativa, sobre sociologia e sobre o Brasil.

O livro de Pastore e Valle Silva adota uma perspectiva teórica que pode ser definida como "estudos da mobilidade de status" ou de "hierarquias socioeconômicas". Aproxima-se, portanto, da tradição iniciada pelos sociólogos norte-americanos Peter Blau e Otis Dudley Duncan (1967) com o objetivo de analisar as mudanças na mobilidade social e na estrutura ocupacional brasileira ocorridas entre as décadas de 1970 e 1990. O que caracteriza esta opção teórica mais claramente é a escolha de um "esquema de classes", ou melhor, de "grupos de status" ordenados hierarquicamente, de acordo com características de renda e educação, em seis categorias: (1) baixo-inferior; (2) baixo-superior; (3) médio-inferior; (4) médio-médio; (5) médio-superior e (6) alto. Ao escolher esta classificação hierárquica de status, os autores estão definindo a estrutura social como uma hierarquia. Talvez faça sentido pensar o status social como definido hierarquicamente. Mas será que esta é a única alternativa?

Maria Celi Scalon propõe outra forma de estudar mobilidade social, baseada não mais no estudo de hierarquias de status, mas na "análise de classes" ou "mobilidade de classes", tal como definida pelo sociólogo inglês John H. Goldthorpe (1987). Desta perspectiva, seu livro busca não só descrever as barreiras de classe mais difíceis de serem transpostas, quanto discutir os efeitos da interação entre gênero e classe nos padrões de mobilidade social. Ao invés de "grupos de status" ordenados hierarquicamente entre baixo e alto, a autora elabora um mapa de nove classes sociais, que indicam posições distintas em uma estrutura de classes definida por diferentes condições de mercado e trabalho. Embora, por vezes, correspondam a diferentes níveis de renda e educação, estas classes são concebidas como ocupando posições distintas em uma estrutura relacional, ou seja, uma estrutura de classes baseada antes em oposições do que em hierarquias entre as classes. As classes utilizadas são: I — Profissionais; II — Administradores e gerentes; III — Proprietários empregadores (urbanos); IV — Não-manual de rotina (em geral pessoal de escritório, vendas e comércio); V — Proprietários por conta própria (pequenos proprietários sem empregados); VI — Manual qualificado; VII — Manual não-qualificado; VIII — Empregadores rurais; IX — Empregados (trabalhadores) rurais. O fato de a autora adotar uma perspectiva em que as classes são concebidas como fazendo parte de um "espaço relacional" significa que, para ela, a estrutura social está sendo definida antes por oposições de classe do que por hierarquias de status.* * Um debate relativamente recente na European Sociological Review mostra a contemporaneidade das diferenças entre a perspectiva que propõe o estudo da mobilidade social no contexto de "hierarquias sociais" e a que privilegia "o contexto de classes". Veja, respectivamente, Hauser e Hout (1992) e Erickson e Goldthorpe (1992).

É importante ter em mente que há diferenças teóricas entre os dois livros, mas não precisamos exagerá-las. Não acho que uma perspectiva exclua a outra. Provavelmente ambas são verdadeiras. Em alguns momentos é válido falar em hierarquias, e em outros em oposições de classe. Na realidade, partidários de cada uma das duas perspectivas mencionam alguma forma de hierarquia ou de oposição de classes quando analisando estatisticamente os dados. Isto é verdade tanto para os estudos de Blau e Duncan (1967) e de Hout (1989), ambos partidários das hierarquias sociais, quanto para os estudos mais recentes de Goldthorpe e Erickson (1993) e de Wright (1997), partidários dos "esquemas relacionais de classes". Embora privilegiando uma ou outra perspectiva, todos estes autores fazem uso, em suas análises empíricas, ora de hierarquias, ora de oposições entre classes.

Apesar das diferenças teóricas, os dois livros baseiam suas análises em metodologia semelhante. Ambos descrevem taxas absolutas e relativas de mobilidade social. As taxas absolutas de mobilidade social são definidas por cálculos percentuais simples usando a tabela de mobilidade — tabelas cruzando ocupação do pai e ocupação do filho, e primeira ocupação e ocupação atual. As taxas relativas de mobilidade são derivadas de modelos estatísticos log-lineares aplicados às tabelas de mobilidade. Uma outra maneira de se entender a diferença entre taxas absolutas e relativas de mobilidade é pensar em termos de desigualdades de posição e de acesso ou oportunidade (ver Marshall et al., 1997). As mudanças ou diferenças nas taxas absolutas são indicadores da desigualdade de posições. Já as taxas relativas indicam o nível de desigualdade de acesso a estas posições.

Usando taxas absolutas de mobilidade, Pastore e Valle Silva mostram que em 1996 as pessoas estavam, em média, ocupando posições de status mais altas e melhores do que as posições que seus pais e as pessoas em geral ocupavam em 1973. Pode se dizer que, de uma maneira geral, as condições de vida, ou padrões de vida das pessoas melhoraram. Mais gente tem acesso a serviços de saúde, educação, moradia etc. de melhor qualidade. Em contraste, as desigualdades de acesso ou oportunidade, definidas pelas taxas relativas de mobilidade social, não mudaram no Brasil, ou mudaram muito pouco. O acesso às melhores posições de status, e portanto às melhores condições de vida, continua sendo tão desigual em 1996 quanto era em 1973.

Usando a mesma distinção entre taxas absolutas e relativas de mobilidade, ou entre desigualdades de posição e de acesso, Scalon nos mostra que homens ocupam posições mais vantajosas do que mulheres na estrutura de classes — por exemplo, são mais freqüentemente proprietários empregadores. Em contraste, homens e mulheres têm chances de acesso semelhantes quando pertencem à mesma classe social, ou seja, as chances de acesso a melhores posições na estrutura de classes são definidas antes pelas classes de origem do que pelo gênero das pessoas.

Para além das diferenças teóricas e das semelhanças metodológicas, o que torna os livros leitura fundamental para qualquer cientista social interessado no Brasil é a riqueza das informações e análises empíricas apresentadas. Mas quais são os objetivos e principais conclusões dos autores?

O objetivo de Pastore e Valle Silva é fazer um exame da dinâmica da mobilidade social dos homens chefes de família no país entre 1973 e 1996, tendo como base de dados as respectivas PNADs.** ** As PNADs — Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar — são coletadas anualmente desde 1967 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os microdados das PNADs podem ser adquiridos, em forma de CD-disc, por qualquer pesquisador interessado. Informações sobre mobilidade social podem ser encontradas nas PNADs de 1973, 1976, 1982, 1988 e 1996. Os autores chegam a uma conclusão semelhante àquela que Pastore havido chegado no seu livro de 1981, baseado em dados de 1973: há muita mobilidade e desigualdade social no Brasil. O fato de a estrutura social brasileira ser muito desigual e ter mudado muito rapidamente, passado de uma sociedade essencialmente agrária para uma sociedade industrial em poucas décadas, implicou uma completa reordenação da estrutura ocupacional do país. Em uma geração, muitos postos de trabalho no setor primário (onde estão as ocupações mais baixas na hierarquia social) foram extintos e novas posições nos setores industrial e de serviços foram criadas. Conseqüentemente, muita gente deixou de seguir a atividade de seus pais para ingressar em carreiras novas e geralmente de maior status, uma vez que as posições na base da hierarquia de status foram extintas. Em suma, houve muita mobilidade social devido a mudanças na estrutura ocupacional, muita "mobilidade estrutural" — o que, aliás, é comum em sociedades em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Contudo, as trajetórias de mobilidade social são caracterizadas pela curta distância. As pessoas subiram na hierarquia socioeconômica mas subiram, em geral, para o degrau imediatamente superior ao que seus pais ocupavam. Houve relativamente pouca gente com origem nos grupos de status mais baixos que conseguiu chegar aos grupos mais altos. Por exemplo, só 2% das pessoas cujos pais estavam no grupo de status baixo-inferior (trabalhadores rurais) chegaram a ocupar posições no grupo de status alto. Se pudesse descrever da forma mais sintética possível as conclusões do livro, eu diria: muita mobilidade, de curta distância, e muita desigualdade são as características da estratificação por status brasileira.

Obviamente, o livro não pode ser resumido de forma tão drástica. Analisemos, pois, especificamente, os diversos temas tratados, que podem ser assim classificados: (1) padrões de início de carreira e a relação entre educação e mobilidade social; (2) mobilidade intergeracional; (3) mobilidade intrageracional; (4) cor e mobilidade social.

(1) Os padrões de início de carreira e educação são analisados seguindo a perspectiva dos "estudos de realização de status ou socioeconômica". Usando modelos de regressão linear, os autores chegam à conclusão de que o grupo de status do pai, o nível de educação do pai e a moradia em área rural são os principais determinantes da idade do início de carreira. Por exemplo, em média, filhos de médicos (grupo de status alto) entram no mercado de trabalho com 21 anos, ao passo que filhos de trabalhadores rurais (grupo de status baixo-inferior) que sejam analfabetos começam a trabalhar, em média, com 9,7 anos de idade. Status e educação do pai também são apontados como os principais determinantes dos anos de estudo que os homens brasileiros conseguem completar. Finalmente, conclui-se que quanto mais alto o status do pai e seu nível de educação, mais alto o status da primeira ocupação do filho.

(2) Para estudar os padrões de mobilidade intergeracional entre 1973 e 1996, os autores analisam as taxas absolutas e relativas de mobilidade. Embora baseadas em cálculos percentuais simples, as taxas absolutas de mobilidade, quando interpretadas com cautela, podem revelar características interessantes da mobilidade social. Os índices de mobilidade absoluta utilizados são os seguintes: (a) fluxos de saída ou percentuais das linhas da tabela de mobilidade (ou seja, o destino social das pessoas medido pelo status adquirido); (b) fluxos de entrada ou percentuais das colunas da tabela de mobilidade (ou seja, a origem das pessoas medida pelo status de origem ou do pai); e (c) mobilidades geral, estrutural e de circulação (definidas de acordo com cálculos percentuais usando os dados da tabela de mobilidade). Em contraste, as taxas relativas de mobilidade são definidas pelas chances relativas de acordo com os modelos estatísticos log-lineares. As chances relativas (ou odds ratio) são derivadas do grau de associação entre origem e destino ocupational.

O balanço dos autores usando taxas absolutas de mobilidade mostra que houve melhorias nos padrões de mobilidade absoluta entre 1973 e 1996. Em outras palavras, a industrialização e a expansão da economia brasileira criaram mais postos de trabalho nas ocupações dos grupos de status mais elevados e diminuíram o número de postos de trabalho nas ocupações de status baixo (principalmente na agricultura). Conseqüentemente, houve mobilidade para cima, porque havia mais vagas em cima na geração dos filhos do que em suas origens, tal como definidas pelo status dos pais — houve, portanto, muita "mobilidade estrutural".*** *** O conceito de "mobilidade estrutural" foi veementemente criticado por Sobel (1983 e 1998). Em minha própria pesquisa estou desenvolvendo estas críticas para analisar os dados brasileiros. Além disso, mais gente mudou de classe — e mais freqüentemente para cima — em 1996 do que em 1973.

Em contraste, as taxas de mobilidade relativa encontradas nos modelos log-lineares indicam "grande estabilidade temporal" (p. 71). O caso brasileiro confirma a hipótese de que, em sociedades industriais, as taxas de mobilidade relativa tendem a ser estáveis ao longo do tempo — hipótese proposta por Featherman, Jones e Hauser (1975) e reformulada por Erickson e Goldthorpe (1993). Dizer que as taxas de mobilidade relativa ficaram estáveis significa dizer, por exemplo, que entre 1973 e 1996 as chances de um filho cujo pai era do grupo de status alto permanecer no mesmo grupo do pai continuaram muito maiores do que as chances de um filho cujo pai era do grupo de status baixo-inferior alcançar o grupo de status mais alto. Em outras palavras, as chances do filho de um profissional liberal seguir os passos do pai são muito maiores do que as chances de um filho de trabalhador rural se tornar um profissional liberal. Este tipo de chances relativas não mudou nada entre 1973 e 1996.**** **** Embora as chances relativas, e portanto as desigualdades de acesso, tendam a ser constantes ao longo do tempo, há países onde este tipo de desigualdade vem diminuindo. Por exemplo, na França durante os últimos 40 anos houve uma diminuição de cerca de 20% na desigualdade de acesso ou oportunidade medida de acordo com modelos log-lineares (Erickson e Goldthorpe, 1993). Apesar de chegarem a esta conclusão, os autores sugerem que algumas melhoras podem ter ocorrido, embora não apresentem análises estatísticas que poderiam testar a possibilidade de mudança sugerida. Quanto a este aspecto, estudos metodologicamente mais sofisticados são necessários.

(3) A mobilidade intrageracional ou de carreira é a mobilidade entre a primeira ocupação e ocupação atual. O estudo deste tipo de mobilidade é importante porque permite descrever as trajetórias que vão da origem (ocupação do pai), passando pela primeira ocupação do filho, e chegando ao destino (ocupação atual do filho). Neste sentido, pode haver tanto trajetórias de ascensão e de descida na escala de status, quanto trajetórias de ascensão depois descida e finalmente ascensão, ou vice-versa. Ao analisar a mobilidade intrageracional usando modelos de regressão, Pastore e Valle Silva mostram que as trajetórias são geralmente de ascensão para os indivíduos que começam suas carreiras em posições de status mais baixas, e de pequena mobilidade descendente para pessoas iniciando a carreira em posições altas. No entanto, os autores afirmam que o padrão geral de mobilidade intergeracional não é afetado pela mobilidade de carreira.

(4) Finalmente, Nelson do Valle Silva contribui com um último capítulo sobre mobilidade social e cor das pessoas. Ele chega à conclusão de que pretos e pardos têm menos chances de mobilidade ascendente do que brancos, e de que esta desvantagem é ainda maior quando se observa os padrões de aquisição educacional — "o núcleo duro da desvantagem que pretos e pardos sofrem se localiza no processo de aquisição educacional" (p. 96). Em suma, pretos e pardos têm menos chances de ascensão porque têm menos chances de adquirir melhores níveis educacionais.

Em contraste ao livro de Pastore e Valle Silva, o livro de Scalon se alinha à perspectiva da "análise de classes" e usa os dados da PNAD de 1988. De acordo com tal perspectiva teórica, os estudos de mobilidade social são centrais para descrever tanto a formação e dissolução de classes sociais (descritas por taxas absolutas de mobilidade), quanto a "fluidez" ou rigidez da estrutura de classes (descrita pelas taxas relativas de mobilidade). Aliás, a autora nos ensina muito sobre teorias de mobilidade social e quem estiver interessado não pode deixar de ler os primeiros capítulos do livro.

Nestes capítulos Scalon faz um balanço crítico da literatura sociológica contemporânea sobre mobilidade social. Mostra que os estudos de mobilidade social desempenham papel fundamental não apenas na descrição de desigualdades em sociedades industriais, mas também na redefinição de questões centrais seja na teoria sociológica marxista, na weberiana, na de estratificação social, ou em geral. Um bom exemplo da inovação teórica ligada aos estudos de mobilidade social é o conceito de "estruturação" da sociologia de Anthony Giddens, formulado, inicialmente, para descrever a formação de classes através da mobilidade social (Giddens, 1973). A combinação desta discussão da teoria da mobilidade social com a análise sofisticada de temas substantivos torna o livro de Maria Celi Scalon leitura obrigatória para qualquer cientista social.

Os objetivos das análises empíricas são: (1) descrever a desigualdade de posições entre homens e mulheres (usando taxas absolutas de mobilidade); (2) discutir três hipóteses clássicas dos estudos de mobilidade ("fechamento social", "zona de contenção" e "contramobilidade"); e (3) elaborar um modelo log-linear "topológico" para analisar o grau de "fluidez" ou rigidez da estrutura social brasileira, bem como verificar se os padrões relativos de mobilidade são distintos para homens e mulheres.

(1) Para descrever a desigualdade de posições entre homens e mulheres, a autora lança mão dos mesmos índices de mobilidade absoluta que são usados por Pastore e Valle Silva. Mas, ao invés de descrever mudanças ou continuidades ao longo do tempo, Scalon centra-se na descrição não apenas da diferença entre as posições que homens e mulheres ocupam na estrutura de classes, mas também dos respectivos índices de mobilidade absoluta. De acordo com os dados de 1988, homens e mulheres ocupam posições bastante desiguais na estrutura de classes. Por exemplo, as mulheres tendem a se concentrar na classe "não-manual de rotina" (classe IV: por exemplo, ocupações no comércio e de escritório, ou seja, do setor de serviços) e na classe "trabalhadores manuais não-qualificados" (classe VII). Quase não há mulheres empregadoras urbanas ou rurais (respectivamente, classes III e VIII). Em contraste, a maioria dos empregadores urbanos e rurais (classes III e VIII) e dos trabalhadores manuais qualificados (classe VI) são homens. Além disso, os dados mostram que as mulheres foram mais afetadas pela mobilidade estrutural do que os homens. Provavelmente por causa da expansão do setor de serviços (terciário), que contribuiu muito para aumentar a participação das mulheres no mercado de trabalho desde a década de 70.

Conseqüentemente, houve muita mobilidade ascendente para mulheres. Não obstante, esta mobilidade das mulheres não correspondeu à diminuição na mobilidade social dos homens — a mobilidade por troca ou de "circulação" é, em geral, maior para homens do que para mulheres.

(2) Para melhor descrever os contornos da estrutura de classes brasileira, a autora propõe testar três hipóteses clássicas sobre mobilidade social: fechamento social, zona de contenção e contramobilidade. Tendo em vista que os índices de mobilidade absoluta (apresentados acima) descrevem tendências gerais na tabela de mobilidade, e portanto podem levar a interpretações precipitadas sobre os níveis de mobilidade absoluta, torna-se necessário definir hipóteses mais precisas sobre os padrões de mobilidade absoluta. De acordo com a hipótese do fechamento social, "o fluxo mais alto de mobilidade acontece entre indivíduos que ocupam posições próximas na estrutura social, o que previne a mobilidade de longa distância" (p. 111). Esta tese parece ser válida para o caso brasileiro, sendo que as mulheres têm menos chance de passar para classes inferiores do que os homens. A hipótese da "zona de contenção" sugere que há muita mobilidade na fronteira entre ocupações manuais e não-manuais, o que impede a mobilidade de longa distância. Tanto para homens quanto para mulheres, a tese da zona de contenção parece ser verdadeira, ou seja, há muita imobilidade nas classes de profissionais e trabalhadores rurais porque o grosso da mobilidade se dá entre trabalhadores manuais e não-manuais próximos na estrutura de classes. Além disso, uma vez no mercado de trabalho, as mulheres têm poucas chances de mudar de classe social. Finalmente, a tese da "contramobilidade" sugere que "o incremento na mobilidade ascendente via educação em décadas recentes é `compensado' pelo decréscimo de mobilidade durante a vida produtiva" (p. 122). Em outras palavras, a tese da contramobilidade pressupõe que o aumento da mobilidade para a primeira ocupação é compensado por uma "contramobilidade", com a diminuição da mobilidade de carreira. Esta tese parece ser verdadeira para o caso dos homens, mas não é plausível para as mulheres. Por exemplo, enquanto a mobilidade intrageracional ascendente tende a diminuir para os homens ao longo do tempo, as mulheres experimentam um padrão inverso, com o aumento da mobilidade de carreira.

As análises de Scalon sobre desigualdades de posição — medidas por taxas e índices absolutos de mobilidade — indicam que, em geral, os homens estão em posições melhores do que as mulheres, ou seja, os homens têm ocupações melhores e mudam mais para classes privilegiadas do que as mulheres. Todavia, os dados também indicam que as mulheres vêm gradualmente melhorando sua situação no mercado de trabalho brasileiro.

(3) O terceiro e principal objetivo do livro é desenvolver um modelo log-linear "topológico" para descrever os padrões de associação entre classes de origem e de destino, ou o grau de fluidez social no Brasil. Este modelo propõe, ainda, testar se os padrões de mobilidade de classe são diferenciados para homens e mulheres.

O modelo proposto mostra que a estrutura de classes no Brasil é extremamente rígida. Ou seja, as chances relativas de mobilidade para as classes mais privilegiadas não são, nem de longe, distribuídas igualmente para indivíduos com origem nas diversas classes sociais. Um exemplo assustador é o das chances relativas de filhos de trabalhadores rurais (classe IX) alcançarem a classe de profissionais (classe I) em relação às chances que um filho de profissional tem de seguir os passos de seu pai. Um filho de agricultor tem 1.140 vezes menos chances de se tornar um profissional do que o filho de um profissional. E a filha de um agricultor tem 1.462 vezes menos chances de se tornar uma profissional do que a filha de um profissional. Já as chances de o filho de um trabalhador não-qualificado (classe VII) — digamos, um porteiro — se tornar um profissional — digamos, um médico — é 133 vezes menor do que as chances de um filho de profissional seguir os passos de seu pai. Estes níveis de desigualdade de chances ou de acesso deveriam ser decorados não apenas por todos os estudantes de sociologia, mas também por qualquer pessoa que imagine por uma fração de segundos que o Brasil é o país das oportunidades. É impossível interpretar a cultura brasileira sem conhecer estes números que nossa colega nos mostra com tanta mestria. Não custa lembrar que em países europeus números semelhantes costumam variar entre 10 e 20, o que é considerado escandaloso. Tanto Scalon quanto eu já pudemos observar como pesquisadores de outros países ficam chocados ao tomar conhecimento dos níveis de desigualdade de acesso no Brasil.

Numa sociedade em que as desigualdades de oportunidade são tão marcadas pelas posições de classe, não surpreende observar que a diferença entre chances relativas de mobilidade não é grande entre homens e mulheres. Na verdade, estas chances são definidas muito mais pelas origens de classe do que pelo gênero da pessoa. Mulheres e homens sofrem terrível e semelhante desigualdade de acesso ou oportunidade.

A leitura dos livros de Pastore e Valle Silva e de Scalon requer atenção, não é leitura fácil. Os autores não oferecem conclusões bombásticas e imediatistas, como por exemplo: o Brasil melhorou, não melhorou, é um país aberto, é um país fechado Ao invés disto, convidam os leitores não apenas a seguir todos os estágios da análise, como também oferecem chances para que verifiquem a validade das análises passo a passo. Os que aceitarem este convite não se arrependerão. Aprenderão muito sobre metodologia quantitativa, sobre estratificação social, sobre o Brasil, e sobre sociologia.

Referências bibliográficas

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ERICKSON, Robert e GOLDTHORPE, John H. (1992), "The CASMIN project and the American dream". European Sociological Review, 8: 283-306.

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GIDDENS, Anthony. (1973), The class structure of the advanced societies. Nova York, Harper and Row.

GOLDTHORPE, John (com Catriona Llewellyn e Clive Payne). (1987), Social mobility and class structure in modern Britain. Oxford, Clarendon Press.

GOLDTHORPE, John e ERICKSON, Robert. (1993), The constant flux: a study of class mobility in industrial societies. Oxford, Oxford University Press.

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MARSHALL, Gordon, SWIFT, Adam e ROBERTS, Stephen. (1997), Against the odds: social class and social justice in industrial societies. Oxford, Oxford University Press.

PASTORE, José. (1981), Inequality and social mobility in Brazil. Madison, University of Wisconsin Press.

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WRIGHT, Erick O. (1997), Class counts: comparative studies in class analysis. Cambridge, Cambridge University Press.

CARLOS ANTONIO COSTA RIBEIRO

é professor de Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutorando em Sociologia pela Columbia University.

  • *
    Um debate relativamente recente na
    European Sociological Review mostra a contemporaneidade das diferenças entre a perspectiva que propõe o estudo da mobilidade social no contexto de "hierarquias sociais" e a que privilegia "o contexto de classes". Veja, respectivamente, Hauser e Hout (1992) e Erickson e Goldthorpe (1992).
  • **
    As PNADs — Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar — são coletadas anualmente desde 1967 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os microdados das PNADs podem ser adquiridos, em forma de CD-disc, por qualquer pesquisador interessado. Informações sobre mobilidade social podem ser encontradas nas PNADs de 1973, 1976, 1982, 1988 e 1996.
  • ***
    O conceito de "mobilidade estrutural" foi veementemente criticado por Sobel (1983 e 1998). Em minha própria pesquisa estou desenvolvendo estas críticas para analisar os dados brasileiros.
  • ****

    Embora as chances relativas, e portanto as desigualdades de acesso, tendam a ser constantes ao longo do tempo, há países onde este tipo de desigualdade vem diminuindo. Por exemplo, na França durante os últimos 40 anos houve uma diminuição de cerca de 20% na desigualdade de acesso ou oportunidade medida de acordo com modelos log-lineares (Erickson e Goldthorpe, 1993).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Abr 2001
    • Data do Fascículo
      Out 2000
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