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Democracia, civismo e cinismo. Um estudo empírico sobre normas e racionalidade

Democracy, civic virtue and cynicism: an empirical study on norms and rationality

Démocratie, civisme et cynisme: une étude empirique sur les normes et la rationalité

Resumos

O artigo trata do problema da democracia e sua institucionalização e consolidação. Partindo do confronto entre uma perspectiva sociológica convencional, atenta para o papel das normas, e uma perspectiva baseada na "escolha racional", atenta para o cálculo racional de interesses, os autores levantam a questão do papel dos fatores de natureza cognitiva com respeito a ambos os aspectos. Com o recurso a dados de survey executado no Brasil há alguns anos, mostram a mediação complexa exercida por aqueles fatores, tomados em termos de "sofisticação política", entre a adesão a normas cívicas e o apego egoísta ou cínico ao interesse próprio. Por fim, o artigo explora as implicações dos padrões detectados para o tema geral da democracia.

Democracia; Civismo; Cinismo; Normas; Racionalidade


The article deals with the problem of democracy and its institutionalization and consolidation. Starting from the confrontation between a conventionally sociological perspective, which stresses the role of norms, and a rational-choice perspective, which emphasizes the calculus referred to interests, the authors raise the issue of the role of cognitive factors with regard to both aspects. With recourse to survey data produced in Brazil some years ago, a rather complex mediating role is shown to be played by cognitive factors, described as "political sofistication", between the civic adherence to norms and the selfish or cynical promotion of self-interest. Some implications of the observed patterns for the general theme of democracy are then explored.

Democracy; Civic virtue; Cynicism; Norms; Rationality


L'article aborde le problème de la démocratie, de son institutionnalisation et de sa consolidation. Partant de la confrontation entre une perspective sociologique conventionnelle, que s'attache au rôle des normes, et une perspective fondée sur le choix rationnel, que s'attache au calcul rationnel d'intérêts, les auteurs soulèvent le rôle des facteurs de nature cognitive par rapport à ces deux aspects. Grâce à des données issues de sondages réalisés au Brésil il y a quelques années, les auteurs démontrent la médiation complexe exercée par ces facteurs, considérés en termes de sophistication politique, entre l'adhésion à des normes civiques et l'attachement égoïste ou cynique à des intérêts personnels. Finalement, l'article explore les implications des seuils détectés sur le thème général, qui est la démocratie.

Démocratie; Civisme; Cynisme; Normes; Rationalité


DEMOCRACIA, CIVISMO E CINISMO.

Um estudo empírico sobre normas e racionalidade

Fábio Wanderley Reis e

Mônica Mata Machado de Castro

O objetivo principal deste texto consiste na apresentação de um conjunto de dados resultantes de projeto executado no Brasil alguns anos atrás. Trata-se de dados manipulados de maneira singela, mas que se mostram relevantes para discussões de grande alcance teórico-metodológico no campo da Ciência Política da atualidade. Começaremos com breve mapeamento do espaço de problemas, em diálogo com algumas posições mais extremadas e características relativamente às questões envolvidas.

I

O enfrentamento de perspectivas epistemológicas no campo das ciências sociais reflete-se nas discussões sobre a democracia e as condições de consolidação democrática. No plano geral, o principal enfrentamento é provavelmente o que hoje opõe a abordagem da "escolha racional", propensa a destacar os interesses e o cálculo supostamente racional orientado por eles, e uma abordagem "convencional" de tipo sociológico ou sociopsicológico, inclinada a salientar a importância dos valores e normas no comportamento das pessoas.

No plano dos estudos sobre a democracia e sua consolidação, a abordagem "convencional" se traduz sobretudo no recurso à noção de "cultura política", concebendo-se o problema da implantação da democracia como sendo, em ampla medida, o da criação e difusão de uma cultura política que lhe seja afim — em particular a "cultura cívica" de que falavam Almond e Verba (1963).1 1 Laitin (1995) é uma útil resenha de vários volumes recentes que se ligam de alguma forma à tradição de estudos de cultura política iniciada por Almond e Verba, dos quais o de maior impacto é certamente Putnam (1993). No Brasil, estudos recentes têm retomado a idéia da cultura política. Merece destaque o livro de José Álvaro Moisés (1995), onde se analisa extenso conjunto de dados de surveys. Pode-se citar também Lamounier e Souza (1991). Por sua vez, além dos estudos econômicos clássicos do funcionamento do sistema democrático, um exemplo notável da aplicação do instrumental da escolha racional aos problemas da transição à democracia e da estabilidade democrática se tem com os trabalhos de Adam Przeworski.2 2 Dois exemplos são Przeworski (1991 e 1995).

Por contraste com as ênfases unilaterais a serem encontradas nesse confronto de abordagens, uma psicologia capaz de explicar de modo adequado as complicações da ação será necessariamente complexa. Um esquema explicativo satisfatório referiria as ações a atitudes (ou disposições mais ou menos permanentes a agir desta ou daquela forma), as quais, além do componente de aspirações, desejos ou interesses (em acepção ampla desta última palavra, relativa ao aspecto motivacional, como tal, da ação) que está, naturalmente, sempre presente, se veriam sempre também condicionadas tanto por um componente prescritivo (as normas e os valores morais de qualquer natureza) quanto por um componente cognitivo (as percepções, crenças e expectativas).

O papel dos fatores de natureza cognitiva coloca um problema de especial importância. A referência à racionalidade que se tem com a perspectiva da escolha racional pareceria remeter necessariamente a tais fatores. Mas, apesar das contribuições de certa literatura adjacente a ela,3 3 Veja-se, por exemplo, Elster (1986). Cabe mencionar também a busca dos limites da racionalidade feita em trabalhos como Elster (1979 e 1989). em sua forma mais ortodoxa essa perspectiva tem sido, na verdade, avessa ao exame detido dos intrincados problemas relativos aos fatores cognitivos. Na psicologia simples que caracteriza a perspectiva da escolha racional, supõe-se que a referência aos "interesses" — tomados como objeto "frio" de cálculo e tipicamente como sendo de natureza "material", presumidamente em contraste com o que se teria no caso de normas e valores — seria suficiente para assegurar "assepsia" e racionalidade.4 4 Tentativa recente (e não de todo bem-sucedida, dadas as confusões em que se envolve) de distinguir o modelo explicativo da escolha racional de um outro modelo tratado como "cognitivo" se tem em Boudon (1998). Veja-se também Reis (1997), republicado em Reis (2000a). Há, porém, algumas dificuldades.

Em primeiro lugar, a idéia de interesse envolve importantes ambigüidades. Se é possível contrapor os interesses às "paixões", como faz Hirschman (1979),e salientar sua frieza calculista em contraste com o calor destas, a noção de interesse costuma ser usada também para indicar engajamento e parcialidade "quentes", em contraste com a idéia da ação "desinteressada". Além disso, uma concepção adequadamente sofisticada de racionalidade não permitiria jamais assimilá-la ao cálculo míope; ao contrário, a idéia de racionalidade, bem concebida, na verdade requer a capacidade de reflexividade, com a conseqüência de que o agente se mostrará tanto mais racional quanto mais seja capaz de incluir na deliberação sobre a eficiência de suas ações as considerações relativas aos valores e normas e ao próprio ideal de vida que lhe importa realizar. Apesar de que tipicamente a abordagem da escolha racional suponha preferências "dadas" ou interesses definidos pelos estímulos que emergem do contexto mais ou menos imediato da ação, e portanto de maneira fatalmente míope, na ação reflexiva e propriamente racional a miopia e a busca de objetivos ou interesses "dados" e a resposta a estímulos emergentes ou circunstanciais se verão substituídas pela capacidade de perseguir autonomamente objetivos remotos que se acham necessariamente condicionados pelo sentido da identidade pessoal. Ora, a identidade é não apenas plasmada socialmente em ampla medida, com conseqüências paradoxais para a escolha racional como abordagem supostamente peculiar;5 5 Pois, não obstante a importância atribuída à categoria da racionalidade, dar conseqüência a essa importância e atentar plenamente para as complicações envolvidas fatalmente levariam a perspectiva da escolha racional a diluir-se numa sociologia "convencional" para apreender de maneira adequada aquilo que molda socialmente o próprio ator racional como tal — e a preservação da especificidade da abordagem exigiria a adesão a uma concepção antes tosca e míope de racionalidade. O movimento correspondente à economia "pós-walrasiana", recoberto pela designação confusa de "novo institucionalismo" e incluindo a " information economics", de Joseph Stiglitz (1994), a " transaction cost economics", de Oliver Williamson (1985), e o " contested exchange", de Samuel Bowles e Herbert Gintis (1993), pode ser visto como consistindo, no fundo, na tentativa de responder a esse paradoxo, com o questionamento dos supostos da economia neoclássica no próprio coração da disciplina que inspira a abordagem da escolha racional e com a diluição da fronteira entre a economia e as demais ciências sociais. mais que isso, na medida em que se constitui em fundamento imprescindível da adesão a um ideal de vida estabelecido de maneira autônoma, a identidade tem conexões importantes com a própria idéia de moralidade, ligando-se com a possibilidade de superação tanto do conformismo no compartilhamento de desejos ou aspirações quanto de formas convencionais de moralidade. Tais indagações nos levariam a nada menos que uma sociopsicologia do desenvolvimento intelectual e moral. Surge aqui, assim, a propósito da questão das conexões entre o cognitivo e o racional, também o problema das conexões entre o cognitivo e o moral, o que reorientaria a discussão para o campo normativo a que se refere a abordagem "sociológica" da cultura política.

De qualquer modo, a literatura "convencional" das ciências sociais se tem ocupado, há muito tempo, da dimensão cognitiva do comportamento em áreas afins à questão geral da democracia, tais como o problema da participação política e eleitoral. Um antecedente clássico a merecer destaque tem-se na concepção marxista da "consciência de classe", com respeito à qual se supõe que certos traços de natureza intelectual-ideológica, condicionados por fatores "estruturais", irão por sua vez condicionar a possibilidade da ocorrência de atitudes e comportamentos de um tipo ou de outro (passividade ou ação revolucionária de classe etc.). Já na sociologia eleitoral de orientação empírica, os trabalhos pioneiros de Philip Converse e colaboradores sobre ideological constraint salientavam há tempos o papel exercido pela capacidade de estruturação ideológica e pela sofisticação intelectual geral no condicionamento do comportamento dos eleitores. Há alguns anos, uma rigorosa revisão e consolidação das verificações de diversos trabalhos referidos à conexão entre conhecimento e opinião no campo dos estudos eleitorais norte-americanos foi empreendida por W. Russell Neuman em The paradox of mass politics. A noção de "sofisticação política" assume aí lugar central, e continua a merecer atenção especial em estudos recentes.6 6 Vejam-se Converse (1964) e Neuman (1986). Um exemplo mais recente de estudo dedicado aos efeitos eleitorais da sofisticação política se tem com MacDonald, Rabinowitz e Listhaug (1995).

No Brasil, pouco destaque tem sido dado a variáveis cognitivas nos estudos voltados quer para o processo eleitoral, quer para o comportamento político em geral e sua articulação com o tema da democracia.7 7 Cabe mencionar dois exemplos em perspectivas analíticas diferentes. O primeiro é o livro de Marcus Figueiredo (1991). Não obstante o lugar central ocupado pela idéia do eleitor racional nas discussões nele feitas, não há qualquer atenção especial para o fator cognitivo como tal e sua possível relevância para a racionalidade. O outro é o livro de J. A. Moisés (1995) mencionado anteriormente. A perspectiva aqui é antes sociológica e culturalista, mas tampouco há maior ênfase nos aspectos cognitivos, apesar do reconhecimento da importância da escolaridade (conectada com "sofisticação" em nota de rodapé em que se remete ao volume de Neuman acima citado) e da informação, da qual se apontam brevemente efeitos análogos aos que são tratados em termos de "centralidade" em nossos trabalhos anteriores que se mencionam em seguida. Não obstante, certo conjunto de verificações e análises brasileiras indicam sua importância, que pode ser mesmo maior em países como o Brasil do que em outros, dadas as conseqüências das disparidades sociais para o acesso diferencial à educação. Há alguns anos, Mônica Mata Machado de Castro (1994) dedicou-se extensamente ao estudo do comportamento eleitoral brasileiro com atenção especial para o fator cognitivo, valendo-se especificamente, com destaque, da idéia de "sofisticação política" nos termos exatos em que será retomada abaixo. Em outros de nossos trabalhos anteriores, além disso, procura-se apreender a lógica geral em operação no processo político-eleitoral por referência ao papel de articulação e intermediação exercido por fatores de natureza intelectual relativamente às variáveis salientadas por dois modelos encontrados na literatura para dar conta do problema da participação política: o modelo da "centralidade" e o da "consciência de classe".8 8 Os dois modelos foram classicamente confrontados em Pizzorno (1966). No primeiro se realçam sobretudo a posição socioeconômica dos indivíduos e sua inserção em ambientes urbanos ou rurais, enquanto no segundo se destacam atitudes que redundam na maior ou menor propensão a agir em defesa dos interesses e que decorreriam das diferentes posições socioeconômicas. A articulação proposta entre os dois modelos, a qual se ajusta aos padrões evidenciados pelos dados relevantes, baseia-se na idéia de que são os próprios fatores estruturais da "centralidade" que condicionam o fato de virem ou não a operar as atitudes ou disposições destacadas pelo modelo da "consciência de classe" — mas esse condicionamento passa através do acesso mais ou menos favorável que os fatores estruturais permitem a recursos de natureza intelectual e do conseqüente grau de sofisticação e acuidade revelado pelos indivíduos na avaliação da situação geral com que se defrontam e na definição de seus interesses relativamente a ela.9 9 Vejam-se, por exemplo, Reis (1983) e Reis e Castro (1992), republicados em Reis (2000a). Subsiste, naturalmente, a questão de como essa definição de interesses se relaciona com as normas que eventualmente se mostrem relevantes para os indivíduos.

O projeto a que correspondem os dados a serem examinados teve como preocupação saliente a de procurar suprir as lacunas existentes quanto à dimensão cognitiva no plano do trabalho empírico. A maneira específica em que essa preocupação se traduziu concretamente nas operações levadas a cabo será descrita adiante.

II

Parte crucial dos problemas analíticos que aqui nos importam com respeito à democracia e sua consolidação gira em torno da idéia crucial de institucionalização. Na literatura convencional sobre o tema, a resposta à questão da consolidação democrática é procurada em termos de institucionalização, entendida de maneira que remete a normas e à sua vigência efetiva. Nessa perspectiva, consolidar a democracia significa implantar normas democráticas que sejam efetivamente interiorizadas pelos agentes políticos (criando-se assim a "cultura política" apropriada), e o processo correspondente pode ser descrito como o processo de institucionalização democrática.

A abordagem alternativa, inspirada na "escolha racional", tem um exemplo destacado em Przeworski (1995). A indagação planteada é a de se a resposta à questão de como a democracia dura (ou de como obter a consolidação democrática) pode ser dada meramente em termos de um equilíbrio a resultar automaticamente da livre busca do interesse próprio por parte dos agentes. Naturalmente, também a noção de institucionalização implica "equilíbrio" em certo sentido; mas Przeworski está em princípio interessado num sentido técnico e "realista" da expressão. Nesse sentido, a idéia de equilíbrio é contrastada tanto com a condição que resulta da operação de normas quanto com a intencionalidade envolvida nas barganhas explícitas, destacando-se nela o papel de mecanismos típicos do mercado e caracterizados pelo ajustamento mútuo de natureza espontânea, automática e "auto-impositiva" (self-enforcing) em que "cada um faz o que é melhor para si dado o que os outros fazem". Podem tais mecanismos, por si mesmos, engendrar a democracia estável?

A análise de Przeworski o inclina a dar resposta positiva à pergunta: com apoio em Randall Calvert, "instituição" se transforma em mero nome que se aplica "a certas partes de certos tipos de equilíbrio", no sentido auto-impositivo da expressão (Przeworski, 1995, p. 12). Mas a análise não lhe permite escapar de importantes dificuldades. Em primeiro lugar, Przeworski acaba resvalando para um sentido diferente — e normativo — de equilíbrio, que é introduzido ao lado do sentido indicado e se mostra com clareza na admissão de que "certos equilíbrios podem ser sustentados por compromissos normativos mesmo quando não se sustentem pelo interesse próprio" (idem, p. 20). Em segundo lugar, Przeworski não tem como deixar de explorar ele mesmo a idéia de institucionalização em termos que envolvem a correspondência entre normas e equilíbrio auto-impositivo e que remetem à questão da efetividade das normas: assim, o problema da democracia seria o de "fazer constituição que seja auto-impositiva" (idem, p. 17), isto é, cujas normas correspondam à situação que se obtém espontaneamente na dinâmica dos mecanismos auto-impositivos.

É clara a disjuntiva que se abre, apesar de que o próprio autor não indique percebê-la com clareza no texto em exame. Em primeiro lugar, Przeworski pode manter-se fiel à definição de equilíbrio em que este se produz estritamente no jogo de naked self-interests. Neste caso, ele permanecerá no terreno de sua indagação inicial e sua perspectiva manterá a peculiaridade perante a literatura convencional; mas a correspondência que eventualmente ocorra entre normas e equilíbrio surgirá então como fortuita, sem indicar autêntica efetividade das normas, pois o equilíbrio e a capacidade que a democracia revele de durar não se deverão a elas. Alternativamente, Przeworski pode incorporar de maneira conseqüente o sentido de "equilíbrio" em que se inclui o papel das normas, caso em que estaremos em terreno afim à perspectiva convencional sobre institucionalização e em que o problema de como implantar normas efetivas se colocará de maneira plena. Ora, o que as hesitações de Przeworski revelam, naturalmente, é a necessidade de reconhecer que o equilíbrio auto-impositivo por si só não basta, pois podem ocorrer equilíbrios "bons" ou "ruins", que correspondam ou não a situações normativamente desejáveis. Em suas conclusões, o próprio Przeworski (1995, p. 20) ressalta explicitamente que "uma democracia cujas práticas reais [isto é, resultantes dos mecanismos que produzem "equilíbrios"] divergem da lei pode ser inteiramente detestável" — o que significa que, independentemente da capacidade de durar que tal democracia apresente, o problema da apropriada institucionalização (entendida em termos do ajustamento da realidade a um desiderato normativo) continua a colocar-se. Na verdade, bem ponderadas as coisas, o desafio por excelência da institucionalização democrática consiste justamente na necessidade de romper um equilíbrio indesejável ou negativo e substituí-lo por um "bom" equilíbrio (institucional e democrático). Isso transparece com especial clareza nas análises de Huntington (1968), onde a condição correspondente às sociedades "cívicas" ou institucionalizadas é contraposta à condição "pretoriana", que se distinguiria justamente por representar um círculo vicioso — um equilíbrio perverso e estável que se auto-reforça e do qual não cabe esperar que venha a dar lugar naturalmente e por si mesmo à dinâmica de "círculo virtuoso" do processo de institucionalização democrática.

III

Um passo adiante na colocação do problema geral que nos importa pode ser dado se examinamos brevemente a idéia de normas e suas relações com a operação de fatores cognitivos. A ênfase de Przeworski no equilíbrio auto-impositivo pode ser vista como assentada na contraposição entre o causal (os automatismos, as determinações "mecânicas" ou "sistêmicas", a causalidade supra-intencional de Jon Elster, dos quais a ocorrência de equilíbrio no jogo dos interesses seria manifestação10 10 Para a idéia de causalidade supra-intencional, tomada como a resultante, no nível agregado, das ações intencionais de numerosos agentes, veja-se Elster (1978). ) e o intencional, que se pode apontar tanto nas barganhas quanto na operação das normas. Mas há duas maneiras de entender as normas, em que o elemento cognitivo ou intelectual faz a diferença decisiva, reproduzindo no plano delas a própria distinção entre o causal e o intencional.

Em primeiro lugar, as normas podem ser vistas como o resultado de deliberação consciente e portanto como envolvendo a capacidade de reflexividade por parte dos agentes. Essa maneira de concebê-las corresponde, naturalmente, ao sentido em que a idéia de normas se acha contida na noção de "autonomia", em que se supõe que as normas seguidas pelo agente são de sua própria escolha e responsabilidade. As discussões do processo de desenvolvimento moral que se encontram em autores como Lawrence Kohlberg e Jürgen Habermas, inspiradas nos trabalhos de Jean Piaget, destacam como ponto mais alto a fase da moralidade "pós-convencional", na qual se dariam precisamente a reflexividade e a autonomia do sujeito, por contraste com a inserção acrítica na moralidade convencional do grupo que se teria na fase intermediária e com os elementos egocêntricos e hedonistas da moralidade "pré-convencional".11 11 Veja-se, por exemplo, Habermas (1979).

Mas as normas podem também ser concebidas de maneira afim justamente à idéia da moralidade convencional, caso em que corresponderiam a regras assimiladas e interiorizadas de maneira irrefletida e sem questionamentos por parte dos agentes. Neste sentido, ao invés de serem objeto ou elemento de um processo de deliberação intencional, as normas surgem antes como fatores a operar causalmente no condicionamento das ações das pessoas, como tem sido apontado pelos adeptos da abordagem da escolha racional, propensos a destacar o papel da intencionalidade e da racionalidade no comportamento, em vez de tal causação normativa. Vistas nessa perspectiva causal, as normas podem também descrever-se, conforme sugestões de Piaget (1973), como fenômeno marcado por um aspecto estocástico, caracterizando-se elas próprias, em ampla medida, como resultante cega a emergir, no plano agregado, do jogo das múltiplas interações entre os agentes sociais.

Ora, essa distinção entre maneiras de conceber as normas, ou talvez entre tipos de normas, tem desdobramentos importantes para a questão da institucionalização. O ponto crucial é que o segundo tipo de normas — as normas irrefletidas, ou interiorizadas de forma rotineira e banal — é que é relevante para se pretender falar de um sentido de "equilíbrio" em que o fator normativo tenha atuação importante. Pois é na medida em que as normas operam de maneira irrefletida e automática que se tem a institucionalização, se entendemos esta última como envolvendo a criação de uma "tradição" ou "cultura", ou de uma disposição sociopsicológica compartilhada estavelmente pelos membros da coletividade, que são levados a agir naturalmente e sem esforço dentro dos moldes prescritos pela tradição. A ocorrência de uma tradição de civismo, ou de uma "cultura cívica", com o apego difundido aos mecanismos e valores democráticos, corresponderia à democracia consolidada — na qual se daria um "equilíbrio" que seria também normativo, com parâmetros normativos eficazes para o jogo auto-impositivo dos interesses. Nessa condição, cada indivíduo, mesmo movido pelo interesse próprio, ao procurar "fazer o que é melhor para si dado o que os outros fazem", nos termos da definição de equilíbrio formulada por Przeworski, teria latentemente em conta a operação surda mas efetiva (ou efetiva, em boa medida, porque surda) das normas no sentido de mitigar os efeitos do interesse no condicionamento das ações de todos. O problema envolvido na consolidação e institucionalização da democracia consistiria justamente, nessa óptica, em implantar com eficácia os parâmetros normativos do jogo auto-impositivo dos interesses — implantação esta que seria bem-sucedida precisamente na medida em que lograsse tornar "automática" a própria operação dos parâmetros normativos. A observação genérica aí contida pode talvez expressar-se em termos das intuições fundamentais de Émile Durkheim, vendo-se nos mecanismos durkheimianos que atuam nas cristalizações (institucionais...) em que o jogo do mercado se "equilibra" e ganha "objetividade" e exterioridade em relação aos indivíduos isolados nada mais que um caso específico da operação de tais mecanismos no plano geral da sociedade e das instituições como tal. Assim, em contraste com a perspectiva de Randall Calvert adotada por Przeworski, em que as instituições surgem como um caso de equilíbrio auto-impositivo, seria talvez possível propor que os equilíbrios próprios do mercado representariam antes um caso do que se pode designar como instituições sociais em perspectiva durkheimiana.

Como é bem claro, tudo isso coloca um problema especial para qualquer ação que se oriente deliberadamente para a implantação da democracia — digamos, a ação do legislador ou estadista empenhado em viabilizar e consolidar uma constituição democrática. Pois trata-se, com essa ação, do paradoxo de criar artificial e deliberadamente uma condição (uma tradição) em que artificialismo e deliberação venham a ser dispensáveis, já que se tornará, por definição, espontâneo e natural aquilo que a tradição venha a prescrever. As coisas não fazem senão complicar-se quando nos damos conta de dois outros fatos: primeiro, de que a construção de uma nova tradição se fará contra a resistência de uma tradição anterior, que induz formas de comportamento distintas daquelas que se procura implantar; segundo, de que esses difíceis aspectos psicossociais do problema estarão inevitavelmente ligados com aspectos estruturais e de relações de poder, donde decorre que o empenho de erigir uma nova tradição seja próprio de certos interesses e forças sociais, aos quais se oporão outros, apegados à tradição antiga que se procura superar e à estrutura de poder que com ela se articula.

IV

Os dados discutidos a seguir correspondem a um survey cujo trabalho de campo se executou ao final de 1991 e ao longo de 1992.12 12 O projeto, que se denominou Pacto Social e Democracia no Brasil e teve o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), foi coordenado por Fábio Wanderley Reis e contou, em todas as suas fases, com a participação de Mônica Mata Machado de Castro e de Edgar Pontes de Magalhães, Antônio Augusto Pereira Prates e Malori Pompermayer. O trabalho de campo esteve a cargo do Instituto Vox Populi, sob a supervisão da equipe do projeto. Cumpre registrar nossos agradecimentos pela colaboração mantida com equipe do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), sob a liderança de Guillermo O'Donnell, especialmente no que se refere à preparação de parte do questionário e aos contatos (com a ajuda, em particular, de Vinicius Caldeira Brant e Adalberto Cardoso) para a realização das entresvistas com algumas das amostras de trabalhadores mencionadas em seguida. O tema central era a idéia de um "pacto social", situando as conexões entre questões de índole trabalhista e de índole política como o foco principal de interesse. Na definição das amostras a serem entrevistadas, procurou-se combinar a preocupação de incluir categorias diversificadas de trabalhadores com a de prover uma espécie de lastro populacional geral. A combinação desses critérios com considerações práticas de diversos tipos resultou em que tivéssemos, ao cabo, 2.150 entrevistas distribuídas em seis conjuntos amostrais assim constituídos: (1) 900 entrevistas com amostra da população de Belo Horizonte, estabelecida por quotas baseadas nas variáveis sexo, idade, escolaridade e renda familiar; (2) 5 conjuntos de 250 entrevistas com amostras especiais de trabalhadores de diversos setores ocupacionais dos estados de Minas Gerais e São Paulo (250 com trabalhadores da Mannesmann, empresa siderúrgica de Contagem, Minas Gerais; 250 com trabalhadores da Metal Leve, empresa metalúrgica da capital paulista; 250 com empregados da refinaria da Petrobrás em Paulínia, São Paulo; 250 divididas em partes iguais entre trabalhadores do Grupo ABC, de atividades industriais e agrícolas, e da Granja Planalto, de atividades agrícolas, empresas sediadas ambas em Uberlândia, Minas Gerais; e 250 com empregados e ex-empregados da Mineração Morro Velho, em Nova Lima, Minas Gerais). Um mesmo questionário, contendo 127 perguntas, foi aplicado a todos os diferentes conjuntos. Nas análises a serem feitas adiante, dado o empenho de exploração da articulação de certas dimensões analíticas gerais dos problemas que nos ocupam, não se tomarão separadamente as diferentes subamostras.

Quanto aos conteúdos investigados, dois grandes conjuntos de variáveis atitudinais ou de opinião foram explorados. Em primeiro lugar, as variáveis que chamamos "trabalhistas", envolvendo atitudes que, embora freqüentemente de alcance também político, referem-se sobretudo às relações de trabalho, destacando-se, em especial, o contraste entre uma disposição mais ou menos "cordata" e propensa à negociação com os setores patronais e uma disposição reivindicante e inclinada ao conflito, em combinação com a maior ou menor propensão à solidariedade trabalhista ou ao "egoísmo" estreito. Em segundo lugar, variáveis correspondentes a atitudes ou opiniões propriamente "políticas" (ou de "cultura política"). Exemplos importantes deste segundo conjunto se têm com o apoio à democracia em geral ou a diversos aspectos ou mecanismos institucionais da democracia, bem como o grau de conservadorismo ou inconformismo das opiniões políticas expressas.

Além dessas variáveis atitudinais ou de opinião e, naturalmente, de perguntas destinadas a estabelecer o background social geral e a experiência ocupacional e trabalhista dos entrevistados, nosso questionário reservou espaço importante à dimensão cognitiva, coerentemente com as preocupações antes apontadas. Os indicadores e medidas utilizados a respeito davam ênfase a assuntos políticos e trabalhistas, procurando combinar o interesse por política e o empenho de manter-se politicamente informado (que de certa forma ainda correspondem a atitudes, embora de relevância especial para as diferenças propriamente intelectuais ou cognitivas que os indivíduos venham a revelar quanto à política) com a avaliação direta do grau de informação sobre questões políticas e trabalhistas e da capacidade de lidar de maneira conceitualmente sofisticada com tais questões. A complexa bateria de perguntas relativas a esta dimensão geral constante do questionário foi posteriormente sintetizada num índice, que decidimos chamar de "sofisticação política".13 13 O índice geral de sofisticação política combinava uma dimensão dada por três perguntas sobre o envolvimento com a política (interesse por política, exposição ao noticiário político nos meios de comunicação de massas e o que às vezes se designa em termos de "sentimento de eficácia política", ou seja, a concordância ou não com a idéia de que a política é complicada e não pode ser entendida) com outra dimensão dada por três conjuntos de perguntas em que o que interessava e foi objeto de codificação eram dois aspectos: o grau de informação, em sentido estrito, de que dispunham os entrevistados sobre assuntos políticos e "trabalhistas", por um lado, e, por outro, o que se poderia designar como sua capacidade de "conceitualização", traduzindo-se na capacidade de responder de maneira elaborada e refinada a perguntas abertas sobre assuntos político-econômicos diversos. Os dois conjuntos estritamente informacionais procuravam avaliar a capacidade dos entrevistados de ligar corretamente duas listas de nomes a cada uma das diferentes centrais sindicais (em um caso) e a cada um dos partidos políticos (em outro) existentes no Brasil. O terceiro conjunto, em cuja codificação se levou em conta também o caráter mais adequadamente elaborado ou preciso das respostas, indagava do entrevistado "o que foi o Plano Cruzado", "o que quer dizer `marajá'", "o que significa FGTS", "o que é o parlamentarismo", "o que é que anda acontecendo nos países socialistas da Europa", "o que entende por pacto social" e qual foi o acontecimento ocorrido no Brasil em 1964 e qual o seu significado. Os três conjuntos se mostraram altamente correlacionados entre si e com escolaridade. Informações pormenorizadas sobre os diversos aspectos do trabalho de elaboração do índice de sofisticação política e das dimensões ou subíndices que o compõem encontram-se em Castro (1994, Anexo II). A Tabela 1 permite apreciar a intensa correlação positiva existente entre as posições no índice de sofisticação política e o grau de escolaridade dos entrevistados.

V

O exame dos dados a ser apresentado a seguir, orientado pela questão geral da articulação entre cognição e normas com referência ao tema da democracia, concentra-se em explorar as relações entre opiniões políticas e sofisticação, de um lado, e, de outro, a articulação de ambas com um par de variáveis de significado especial para aquela questão. Estas últimas emergem do contexto das preocupações "trabalhistas" do projeto e dizem respeito ao contraste — relevante do ponto de vista da acomodação envolvida na idéia de um "pacto social" e, em geral, das atitudes que se adotarão perante a política econômico-social do governo — entre disposições altruístas, solidárias ou "cívicas", por uma parte, e, por outra, disposições egoístas ou, no limite, "cínicas", empenhadas na promoção do interesse próprio.

Comecemos o exame dos dados pelas atitudes ou opiniões políticas. Note-se, em primeiro lugar, na Tabela 2, o claro aumento da adesão geral à democracia que ocorre com o aumento da sofisticação. A forte correlação entre as duas dimensões se dá tanto no caso de indicadores referidos à idéia geral de democracia em contraposição a "ditadura" e aos requisitos político-institucionais da primeira (índices de "disposição democrática-1" e de "disposição democrática-2"),14 14 O índice de "disposição democrática-1" incluía perguntas sobre a preferência pela democracia (por contraste com "em alguns casos, uma ditadura ou um regime autoritário" e com a idéia de que "para o povo, na verdade, dá tudo na mesma"), sobre as eleições como "a melhor maneira de se escolher o governo e as autoridades do país", sobre a necessidade da Câmara dos Deputados, "do ponto de vista da utilidade prática", e sobre a necessidade dos partidos políticos, "se queremos ter democracia". O índice de "disposição democrática-2" incluía três perguntas em que se pedia a concordância ou discordância com afirmações formuladas nos seguintes termos: "os problemas do país nunca vão se resolver se a gente não deixar o presidente governar do jeito que ele achar melhor para todos"; "os juízes e os tribunais não deveriam se meter nas decisões que o presidente toma"; e "uma vez eleito, o presidente deve mandar sem o Congresso e os partidos políticos criarem obstáculos". quanto no caso de indicadores que se referem especificamente à garantia dos direitos civis como parte do ideal democrático (índice de posição quanto aos direitos civis).15 15 O índice de posição sobre os direitos civis se refere a uma bateria de perguntas em que se pedia a concordância ou discordância com cada uma das seguintes afirmações: "gente que a polícia prende por praticar crimes deve poder ser mostrada nos noticiários de televisão, pois bandido tem mesmo é que passar vergonha"; "é um absurdo a polícia invadir barracos de favelas, sem ordem da Justiça, para procurar criminosos"; "a eliminação de bandidos pelos esquadrões da morte ou os linchamentos de bandidos pelo povo são coisas que a gente tem de aceitar quando a violência dos criminosos aumenta"; "torturar gente presa, mesmo para combater os criminosos, é inaceitável"; "a polícia faz bem em exigir que pessoas suspeitas mostrem a carteira de trabalho para provar que são gente boa". A Tabela 2 permite, contudo, outra observação de interesse: ela mostra que a acolhida dada às supostas dimensões da idéia geral de democracia que os diversos índices expressam difere marcadamente. Assim, enquanto os itens diretamente políticos que compõem os dois índices de "disposição democrática" resultam em distribuições com níveis totais de concentração nas categorias altamente favoráveis à democracia que alcançam a faixa dos 31 e 42 por cento (com nada menos de 64 e 70 por cento de respostas altamente democráticas no extremo mais alto de sofisticação), a categoria dos altamente favoráveis à defesa dos direitos civis das pessoas não vai além de uma porcentagem total de 18 por cento, e mesmo entre os entrevistados do extremo superior de sofisticação não temos senão 39 por cento intensamente apegados aos direitos civis.16 16 Na verdade, a observação mais pormenorizada dos dados a respeito revela que é preciso ir aos níveis superiores de escolaridade (nível universitário) e sofisticação para se encontrar, por exemplo, a opinião favorável aos esquadrões da morte e ao linchamento de bandidos em minoria perante outras opiniões — e mesmo aí a opinião favorável se situa na faixa dos 30 por cento. 16 Na verdade, a observação mais pormenorizada dos dados a respeito revela que é preciso ir aos níveis superiores de escolaridade (nível universitário) e sofisticação para se encontrar, por exemplo, a opinião favorável aos esquadrões da morte e ao linchamento de bandidos em minoria perante outras opiniões — e mesmo aí a opinião favorável se situa na faixa dos 30 por cento. Isso sugere com força que, em contraste com o que talvez seja a suposição dominante a respeito, os diferentes aspectos envolvidos estão longe de surgir necessariamente, na consciência popular, como dimensões de uma mesma atitude ou disposição básica, o que contém implicações importantes se pretendermos vir a contar com análises apropriadamente refinadas quanto ao tema geral da "cultura política".

Essa sugestão se reforça quando nos voltamos para a Tabela 3, onde se encontram os dados relativos a um aspecto especial, que merece observação em separado. Trata-se das respostas a um item em que se pedia a concordância ou discordância das pessoas entrevistadas com a seguinte afirmação: "Em vez de partidos políticos, o de que a gente precisa é um grande movimento de unidade nacional dirigido por um homem honesto e decidido". Com suas conotações autoritárias e mesmo fascistizantes, o item conta com a concordância total de 73,7 por cento dos entrevistados, concordância esta que alcança 69 por cento mesmo na categoria "alta" de sofisticação e só não é majoritária na categoria "muito alta" (onde, porém, ainda representa 42,6 por cento das opções). Os desconcertantes matizes envolvidos na consciência popular a respeito dos diversos aspectos associados ao tema geral da democracia se revelam mais nitidamente se essa observação é contrastada, em particular, com o que se pode ver nos dados relativos ao índice de "disposição democrática-2" (Tabela 2). Assim como a pergunta alusiva a "um homem honesto e decidido", as perguntas que compõem o índice foram incluídas em nosso questionário com a intenção de se obter um teste preliminar de certas sugestões de Guillermo O'Donnell (1994) sobre a vigência de disposições que permitiriam falar de uma "democracia delegativa" em países como o Brasil. Ora, os dados relativos ao índice de "disposição democrática-2" são claramente contrários à hipótese geral de O'Donnell: além do que mostram os dados sintéticos da Tabela 2 (onde se vê que 68,9 por cento das respostas se situam nas duas categorias mais altas do índice, o que envolve a recusa da postura "delegativa"), a observação em separado das respostas às diversas perguntas que o compõem revela que as respostas "antidelegativas" (que discordam de que o presidente deva ser deixado em paz pelos demais poderes e pelos partidos para governar como achar melhor) ficam, no total, entre 63 e 68 por cento, sendo muito altas (entre 54 e 60 por cento) mesmo entre os entrevistados de menor sofisticação. Contudo, essa disposição antidelegativa aparentemente difundida não impede o apoio igualmente difundido — que indica antes a propensão delegativa sugerida por O'Donnell — à idéia de uma liderança pessoal forte e capaz de afirmar-se fora da órbita partidária e institucional, bastando que a idéia seja formulada em termos que contêm a alusão a traços ou ocorrências que tendem a ser percebidos de maneira positiva (honestidade, união nacional...).

Não obstante o interesse de tais matizes, destaquemos o essencial quanto ao que aqui nos importa, ou seja, o papel cumprido pela variável sofisticação política em si mesma. Nos dados observados até este ponto, seja qual for o ânimo dominante entre os entrevistados a respeito de um item de opinião ou outro, o incremento de sofisticação produz sempre o aumento de uma disposição que cabe ver como democrática, quer se trate de maior propensão a avaliar de maneira favorável as instituições da democracia, de maior apego à idéia dos direitos civis ou de menor propensão a se deixar seduzir por soluções personalistas e autoritárias.

À luz de nossa discussão anterior, especialmente quanto à articulação entre o fator cognitivo ou intelectual e diferentes maneiras de se conceber a adesão a normas, surge a questão de como interpretar essa observação. Indicará ela necessariamente a adesão reflexiva e lúcida aos princípios democráticos por parte dos intelectualmente mais sofisticados? Há uma hipótese alternativa, que destacaria o caráter convencional da adesão aos valores democráticos, na atualidade, mesmo em países que não contam com tradição democrática mais efetiva, como o Brasil. Nesta perspectiva — em que, naturalmente, o fato de se tornar convencional essa adesão pode ser visto como algo em princípio favorável à difusão e eventualmente à real institucionalização da democracia em diferentes países —, a exposição mais informada e sofisticada ao mundo político poderia representar a inserção mais intensa na atmosfera convencional, redundando na adesão "espontânea" e em alguma medida irrefletida aos valores democráticos convencionais e na disposição à sua pronta verbalização.

Essa perspectiva se corrobora de maneira indireta (ou por contraste) por meio do que se pode observar quanto a alguns itens de natureza algo diferente. Trata-se de itens que aludem à herança aristocrática e elitista da sociedade brasileira e a seu caráter fortemente estratificado e dual. Eles têm ainda em comum o fato de que, apesar de envolverem valores claramente afins aos de uma perspectiva democrática, correspondem a temas que figuram menos explicitamente no ideário democrático que tem circulação convencional entre nós, sendo rara a tematização das relações problemáticas entre nossas tradições elitistas e a operação da democracia.17 17 Especificamente, as perguntas pertinentes do questionário utilizado referiam-se às atitudes ou opiniões dos entrevistados a respeito do voto do analfabeto (contra ou a favor) e de dois temas menos diretamente políticos: o direito a prisão especial para as pessoas de curso superior (em que os entrevistados eram convidados a escolher entre as respostas "é uma boa medida, porque as pessoas de curso superior que se vêem envolvidas em crimes devem ter direito a tratamento especial" e "é uma medida errada, porque os criminosos de qualquer tipo devem ter o mesmo tratamento") e a separação entre elevador social e elevador de serviço nos edifícios de apartamentos (com escolha entre as respostas "a separação entre elevador social e de serviço é apenas uma forma de manter a ordem e o bom funcionamento dos edifícios" e "a obrigação de usar o elevador de serviço é também uma forma de discriminar e humilhar certas categorias de pessoas"). Assim, é revelador observar, como mostra a Tabela 4, que as relações desses itens com sofisticação política tendem a ser o oposto do encontrado nos casos anteriores: quanto mais sofisticadas as pessoas, mais suas opiniões se inclinam na direção que cabe ver como antidemocrática quanto aos itens em questão (concretamente, em termos dos nossos indicadores, mais contrárias ao voto do analfabeto, menos propensas a considerar o elevador de serviço como discriminação e a condenar o tratamento especial aos criminosos de educação superior). Naturalmente, parte da explicação se encontra na alta correlação entre a sofisticação e as variáveis que entram na própria composição de nossa estrutura social fortemente estratificada e desigual, como a Tabela 1 ilustra com o caso da escolaridade, que se acha ela mesma correlacionada, sem dúvida, com outros fatores de posição socioeconômica: nossos sofisticados, sendo mais educados, tendem a ser também gente social e economicamente favorecida. A constatação da inversão do sentido das relações com sofisticação no caso desses itens se mostra mais significativa quando nos damos conta de que a relação positiva com sofisticação ocorre não somente no caso da adesão aos direitos civis e aos aspectos político-institucionais da democracia, mas também no de outros itens que agrupamos em dois índices, "progressismo social" e "radicalismo político" (Tabela 5).18 18 O índice de "progressismo social" baseou-se em três perguntas referidas à concordância ou discordância com as seguintes afirmações: "o melhor trabalho para a mulher é tomar conta da casa"; "os homossexuais devem ser aceitos como qualquer outra pessoa" e "toda mulher que queira deveria ter a possibilidade de fazer aborto". O índice de radicalismo político refere-se à aprovação ou desaprovação de formas de reivindicar ou protestar que iam desde abaixo-assinados até ações de sabotagem nas empresas, passando por manifestações públicas e passeatas, greves e ocupações de prédios e fábricas, bem como à aprovação ou desaprovação (tomada com valores invertidos em relação aos dos itens anteriores) das reações eventualmente suscitadas: o uso da força pela polícia para dissolver manifestações, o uso do Exército contra greves, a demissão de grevistas ou o desconto dos dias de greve no pagamento dos grevistas. Note-se que, se os valores expressos no conteúdo social do primeiro desses índices podem ser vistos como afins ao ideário democrático convencional, enquanto o segundo se relaciona de maneira equívoca com esse ideário, nenhum dos dois faz qualquer alusão direta aos problemas envolvidos em nossa tradição aristocrática e elitista.

Seja como for, a interpretação em termos de convencionalismo se ajusta, como veremos em seguida, às constatações de maior interesse propiciadas pela análise dos dados. Antes de nos voltarmos para elas, contudo, cabe salientar que o convencionalismo apontado não tem por que se limitar aos aspectos diretamente político-institucionais da democracia. Ele certamente prevalece também, de maneira importante para o que virá a seguir, quanto a valores de maior alcance, embora politicamente relevantes, como o altruísmo, a solidariedade ou o civismo, e se opõe à manifestação desinibida de posturas egoístas ou cínicas que se orientem, sem mais, pelo interesse próprio. Vale a pena observar, assim, os dados constantes da Tabela 6, que se referem a uma pergunta de nosso questionário na qual se procurou traduzir em termos de atitudes com respeito a greves a tensão entre objetivos comuns que exigiriam solidariedade e o cálculo relativo ao interesse próprio que se acha no cerne da análise clássica de Mancur Olson (1968) sobre o "dilema da ação coletiva".19 19 A pergunta indagava sobre a concordância ou discordância do entrevistado diante do seguinte enunciado: "Alguns acham que, em matéria de greve, a coisa mais inteligente a fazer é não participar, pois se a greve for vitoriosa o trabalhador ganha de qualquer jeito, e se não for vitoriosa ele não coloca em risco o seu emprego". Observe-se que a rejeição ao egoísmo calculista expresso na pergunta não apenas é amplamente majoritária em todos os níveis de sofisticação, como também apresenta clara correlação positiva com esta última, com a discordância excedendo os 90 por cento na categoria dos mais altamente sofisticados.

VI

Tomemos agora os dados relativos ao par de variáveis de significado especial anteriormente mencionado. Trata-se de duas perguntas ligadas entre si do questionário utilizado: na primeira se procurava avaliar o caráter mais ou menos "cívico" e altruísta (ou, ao contrário, egoísta e talvez cínico) da atitude ou disposição geral que os entrevistados se mostravam propensos a manifestar diante dos problemas do país; já a segunda, que se aplicava somente aos que respondiam de maneira "cívica" à pergunta anterior, envolvia a introdução de uma cláusula "realista" e restritiva na definição da situação hipoteticamente defrontada pelos entrevistados ao escolherem uma linha de conduta, procurando apreender o possível impacto dessa alteração (e, portanto, da mudança nos termos em que supostamente se daria a apreensão cognitiva da situação) sobre a atitude em questão.20 20 Era a seguinte a formulação exata das duas perguntas:

As constatações permitidas pela observação das respostas são grandemente reveladoras. Tomemos a Tabela 7, que mostra, em diferentes categorias em que se combinam graus de escolaridade e de sofisticação, tanto as porcentagens de preferência ("cívica") por "pequenos ganhos" em resposta à primeira pergunta quanto as proporções do deslocamento para a preferência ("cínica") por "maiores ganhos" em resposta à segunda pergunta. Para começar, observa-se o claro predomínio da disposição altruísta ou cívica nas respostas à primeira das duas perguntas. Embora haja celas em que a redução do número de casos prejudica o cálculo de porcentagens (especialmente nas combinações de escolaridade baixa com sofisticação muito alta e de escolaridade alta com sofisticação baixa, dada a correlação existente entre as duas variáveis), é clara a tendência geral dos entrevistados a optar majoritariamente, e freqüentemente em grandes maiorias, pela alternativa em que se declara a disposição de aceitar pequenos ganhos para "ajudar o esforço do governo". Além disso, os números mostram, de maneira aparentemente consistente com o que se observou acima a respeito da adesão à democracia, perceptível tendência geral ao aumento de "civismo" com o aumento de sofisticação: nos diferentes níveis de escolaridade, embora ocorram ocasionais perturbações, à medida que se sobe nos níveis de sofisticação tende-se a ter maiores freqüências da opção altruísta por pequenos ganhos. O efeito geral da interação entre sofisticação e escolaridade é também bastante claro: como se observa ao longo da diagonal principal da tabela (números em itálico e sublinhados), com o aumento simultâneo de escolaridade e sofisticação passamos de um nível geral de respostas "cívicas" de cerca de 49 por cento para outro de 73 por cento, apesar da perturbação da tendência geral ao crescimento contínuo que se observa na passagem da categoria de escolaridade "ginasial" e sofisticação "média" para a de escolaridade "colegial" e sofisticação "alta".

Quando examinamos, contudo, na mesma Tabela 7, as porcentagens relativas ao deslocamento de "civismo" para "cinismo" nas respostas à segunda pergunta, observamos algo surpreendente. Pareceria provavelmente razoável esperar, à luz dos dados comentados no parágrafo anterior, que os setores sofisticados e educados das populações estudadas, em geral mais propensos ao civismo, se mostrassem também menos propensos ao deslocamento em questão, reiterando a preferência altruísta por pequenos ganhos. O que os dados revelam, porém, é justamente o oposto: maiores sofisticação e escolaridade tendem antes a produzir, de modo geral, diante da redefinição da situação introduzida pela segunda pergunta, maior inclinação à reavaliação da posição altruísta inicial e à adesão à posição egoísta ou cínica. Isso se pode ver de maneira sintética, como nos números anteriores, pela observação da diagonal principal da tabela (atente-se agora para os números em negrito): passa-se de uma porcentagem de mudança de posição de 20,4 por cento na cela correspondente às categorias inferiores de escolaridade e sofisticação para outro de 43,5 por cento no caso dos extremos superiores dessas variáveis. Por certo, também aqui temos aspectos específicos dos dados que representam perturbações da tendência geral observada; mas, nas observações relativas a uma pergunta como à outra, o que se possa apontar de perturbação quanto à manifestação dos padrões destacados perde importância diante do fato de que, sendo tais padrões bastante claros nos números, o segundo deles redunda nitidamente, do ponto de vista dos conteúdos substantivos envolvidos, na inversão do primeiro, o que garantiria o interesse mesmo de observações que indicassem tendências mais tênues no plano dos números. Portanto, se a sofisticação parece favorecer, em condições normais, o predomínio de atitudes e comportamentos orientados por normas de solidariedade e civismo, ela levará, na ocorrência de circunstâncias que evidenciem o caráter inócuo ou ineficaz dessa orientação (ou em que agir solidariamente surja como equivalendo a "bancar o otário"), a que se esteja mais pronto a substituir o civismo pela disposição à defesa desembaraçada ou cínica do interesse próprio.

Essa configuração de certa complexidade parece ajustar-se à interpretação acima sugerida quanto à conexão entre sofisticação e convencionalismo. O crescimento das manifestações de sentido cívico ou solidário que teríamos nas respostas à primeira das duas perguntas em correspondência com o aumento da sofisticação política expressaria o fato de que esta última seria um fator de exposição mais adequada aos traços convencionais da cultura democrática e cívica. A redefinição restritiva da situação contida na segunda pergunta tenderia a induzir uma postura mais reflexiva por parte dos entrevistados, para a qual os fatores de ordem intelectual expressos no índice de sofisticação política seriam instrumentais — donde a mudança de sentido das correlações encontradas.21 21 Vale notar que exatamente os mesmos padrões assinalados na Tabela 7 podem ser encontrados também com respeito às relações entre algumas das variáveis "trabalhistas" de interesse central na pesquisa desenvolvida, referidas à idéia do "pacto social". Não tínhamos, neste caso, a mesma estrutura da dupla de perguntas articuladas em que a segunda redefine a situação. Mas os itens do questionário relacionados com o pacto social, em seguida a um enunciado inicial em que se explicava que, com ele, "haveria negociações entre o governo, os patrões e os sindicatos de trabalhadores para combater a alta do custo de vida e fixar regras para os preços e os salários", incluíam perguntas passíveis de terem suas relações exploradas de maneira análoga à da Tabela 7: em primeiro lugar, uma pergunta em que se pedia que o entrevistado se manifestasse sobre a possibilidade, em abstrato, de "um pacto desse tipo dar bons resultados para todo mundo (o país, os patrões, os trabalhadores)"; em segundo lugar, duas perguntas em que se pedia a avaliação pelo entrevistado da confiabilidade do governo, por um lado, e dos empresários, por outro, em seu comportamento relativamente ao pacto (concordância ou discordância quanto a que "a seriedade do governo nesse assunto do pacto social merece confiança" e "a gente pode acreditar que os empresários cumpririam um acordo de conter preços"). Tomando os que se manifestam favoravelmente à idéia geral do pacto social e examinando, entre eles, as proporções dos que mostram não confiar no comportamento quer do governo, quer dos empresários, as observações das relações com escolaridade e sofisticação são as mesmas encontradas na Tabela 7: enquanto a disposição em princípio favorável ao pacto cresce claramente com o aumento nos valores dessas duas variáveis, quando nos voltamos para o nível mais "concreto" da confiabilidade do governo e dos empresários são as respostas negativas que crescem, de maneira igualmente clara, com o aumento de escolaridade e sofisticação. Na linha de interpretação sugerida, o convite para opinar em abstrato a respeito da desejabilidade do pacto social tenderia a representar uma oportunidade para a expressão de valores convencionais, enquanto a avaliação da confiabilidade de agentes como o governo e os empresários dependeria em maior medida das informações efetivas de que se dispõe e se mostraria assim propícia ao crescimento da disposição crítica com maior sofisticação.

Naturalmente, essa linha de interpretação situa um problema intrigante no acoplamento que realiza entre reflexividade supostamente mais intensa e intensificação também do egoísmo ou cinismo. Assim, do ponto de vista de uma teoria do desenvolvimento moral, como avaliar o fato de os dados apontarem uma espécie de "regressão" ao egocentrismo em condições em que os entrevistados são convidados a refletir melhor e a ponderar circunstâncias que se mostram adversas se apreciadas do ângulo da moralidade convencional? Uma moralidade "pós-convencional" e autônoma será sempre ou necessariamente solidária ou altruísta?22 22 Talvez o esclarecimento do problema geral exija que se concebam diferentes graus (e quem sabe diferentes formas) de reflexividade, de maneira que se poderia pretender ver como compatível com a perspectiva relativa ao desenvolvimento moral ligada aos nomes de Piaget, Kohlberg e Habermas que mencionamos acima. Seria então possível reconhecer que: (1) se começamos de níveis cognitivos efetivamente pobres ou precários, avanços cognitivos podem resultar em convencionalismo, com as pessoas transitando do egocentrismo irrefletido para a adoção convencional da perspectiva do grupo; seria num ponto adiantado do processo aí suposto, com graus crescentes de reflexividade, que teríamos as pessoas alcançando formas de moralidade autônoma, capazes de se oporem à moralidade convencional do grupo; (2) o tipo "realista" de reflexividade que os dados indicam (intensificação da propensão ao cálculo egocêntrico com sofisticação crescente) poderia ser visto quer (a) como eventual refluxo ou regressão no movimento rumo a níveis cada vez mais altos de reflexividade que supostamente deveria ocorrer no processo de desenvolvimento moral, quer (b) como uma forma eventualmente diferente de reflexividade. Para os autores interessados no tema da moralidade, a questão envolvida na escolha entre as alternativas a e b seria provavelmente a de até que ponto caberia falar legitimamente de reflexividade numa situação (alternativa b) que deveria ser vista como problemática ou deficiente do ponto de vista moral por estar associada com o cálculo egocêntrico. Naturalmente, negar que se trate aí de reflexividade equivaleria a assimilar cognição e moralidade de maneira que nos parece insustentável e que se opõe ao que se diz logo em seguida no texto. Mas há também a possibilidade de ver as constatações indicadas em termos que salientam a contraposição entre egoísmo ou altruísmo (e portanto moralidade), de um lado, e, de outro, mera racionalidade: assim como Olson sustenta, na obra citada, que a ocorrência do dilema da ação coletiva não depende de que os indivíduos sejam egoístas, mas somente de que sejam racionais (vale dizer, atentos a considerações de eficácia em suas ações), assim também nossos dados apenas mostrariam indivíduos que, quaisquer que sejam seus padrões morais, reorientam suas ações para a busca de novos objetivos, estabelecidos em termos de interesse próprio, em circunstâncias em que a conduta moralmente orientada é, por definição, provavelmente ineficaz. Os sofisticados se distinguiriam apenas por terem melhores condições de avaliar a eficácia ou racionalidade da ação.

Seja como for, há ainda um aspecto especial a destacar das constatações permitidas pelos dados. Apesar de representar, em sua feição mais geral, um claro desdobramento das observações anteriores, esse aspecto realça certo componente paradoxal da verificação básica aqui feita. Tomemos a Tabela 8, em que as respostas às perguntas articuladas sobre "civismo" e deslocamento para "cinismo" se distribuem simultaneamente por sofisticação e por diversos índices de opinião sobre assuntos políticos e sociais já mencionados acima (os dois índices de "disposição democrática", o de posição a respeito dos direitos civis, o de "progressismo social" e o de "radicalismo político"), além do item específico sobre a unidade nacional em torno de um líder "honesto e decidido". Algumas observações podem ser assinaladas.

Por um lado, a opção "cívica" inicial por "pequenos ganhos" mostra relações desencontradas com os diferentes índices. Na verdade, as diferenças percentuais são em geral reduzidas. De toda forma, mesmo se tomamos os índices que parecem apresentar maior afinidade entre si, como os dois de "disposição democrática", embora o efeito de sofisticação seja perceptível na tendência geral à intensificação da opção cívica em cada categoria (baixa, alta etc.) dos índices à medida que a sofisticação se intensifica, a opção cívica tende a crescer com o aumento de "disposição democrática-1", enquanto tende a decrescer com o aumento de "disposição democrática-2". Analogamente, o efeito do aumento dos valores dos índices sobre a opção cívica é no sentido de diminuí-la no caso dos direitos civis, enquanto tende levemente a aumentá-la no caso de "progressismo social" e apresenta variações diferenciadas nas diversas categorias de sofisticação nos casos de "radicalismo político" e do item sobre unidade nacional. Como quer que seja, talvez o que este aspecto dos dados mostre de mais revelador seja o fato de que as atitudes expressas em dois dos três índices mais claramente relacionados com o ideário democrático convencional (o de "disposição democrática-2" e o de adesão aos direitos civis) redundam, em alguma medida, ao se intensificarem, em reduzir até mesmo a propensão inicial ao "civismo" que se revela na primeira de nossas duas perguntas articuladas, apesar do nível geral bastante alto dessa propensão.

Mas algo mais nítido emerge quando consideramos a outra observação que a Tabela 8 permite, isto é, a das porcentagens relativas ao deslocamento de "civismo" para "cinismo" diante da redefinição da situação introduzida pela segunda pergunta. Também aqui as diferenças percentuais são às vezes reduzidas. O que os dados mostram, porém, é um perceptível padrão em que as proporções de reopção "cínica" são tanto maiores quanto maiores são as inclinações democráticas dos entrevistados, quanto mais firmemente aderem à idéia dos direitos civis, quanto mais socialmente progressistas se mostram (mais tolerantes com os homossexuais e com a idéia do aborto, mais favoráveis à emancipação das mulheres) — e até quanto maior o seu radicalismo político, que, apesar de relações equívocas que talvez apresente com certa concepção do ideal democrático, tendemos normalmente a associar com envolvimento político e dedicação a causas públicas. Assim, seriam justamente os mais "cívicos", em sentido amplo da expressão, que se revelam mais prontos a rever a opção cívica em favor da defesa egoísta do interesse próprio quando se altera em termos realistas a definição da situação.

Naturalmente, parte importante dessa constatação se deve à correlação que antes encontramos entre sofisticação e os itens de opinião considerados. Se, como observamos antes, os mais sofisticados são tanto os mais democráticos e cívicos quanto os mais propensos ao deslocamento realista para o "cinismo" em determinadas circunstâncias, é natural que, nas mesmas circunstâncias, os mais democráticos e cívicos revelem a mesma propensão. Contudo, a Tabela 8, na qual se acham controlados os níveis de sofisticação, desvenda, ainda que residualmente, um aparente efeito autônomo das variáveis de opinião, além de mostrar os diferentes impactos que maior ou menor sofisticação pode ter no sentido de intensificar ou atenuar esse efeito em diferentes casos. Ora, esse efeito é nitidamente paradoxal, pois redunda em sugerir que quanto mais se adere a uma norma, menos efetiva ela é em situações em que é posta à prova. Acreditamos que a interpretação possível se formularia também em termos de sofisticação, apontando nas observações de agora a operação da mesma lógica assinalada anteriormente. Dado que na Tabela 8 já se controla a sofisticação política tal como se expressa na medida por nós utilizada, a interpretação envolveria reconhecer as limitações dessa medida (como de qualquer outra que se elaborasse, talvez), vendo ainda como provável expressão de fatores ligados a sofisticação intelectual geral (e portanto como induzindo a atitude mais propensa ao cálculo em certas circunstâncias restritivas) o simples fato de as pessoas chegarem a assimilar os valores democráticos e cívicos, mesmo se se revelar deficiente o seu nível de informação sobre questões políticas, por exemplo, ou outros aspectos considerados em nosso índice. À luz do observado no conjunto dos dados sobre os efeitos gerais de sofisticação, a interpretação parece impor-se especialmente quando se atenta para os casos em que, na Tabela 8, o impacto mais forte da adesão a valores de cunho democrático e cívico sobre o deslocamento realista rumo ao "cinismo" se dá em nossa categoria de baixa sofisticação, como ocorre nos dados relativos a "disposição democrática-2", direitos civis, "progressismo social" e "unidade nacional".

VII

Em conclusão, o significado dos padrões de maior nitidez e consistência que os dados revelam parece bastante claro. O que vemos são mecanismos de natureza cognitiva (expressos na definição de que se dispõe da situação em que hipoteticamente se vai agir e nos diversos níveis de sofisticação intelectual com respeito a assuntos políticos) cuja atuação se dá ora no sentido de reforçar e ora no de suspender a operação de normas altruístas, solidárias ou cívicas às quais as pessoas declaram aderir efetivamente. São também claras as implicações dessas constatações do ponto de vista das disputas teórico-epistemológicas que têm agitado as ciências sociais e nas quais tendem a se enfrentar os partidários de uma perspectiva dita "econômica", que chama a atenção para a racionalidade e o cálculo, e outra dita "sociológica", ciosa do papel dos valores, da cultura e das normas. Em vez da contraposição cortante entre os dois aspectos, os dados indicam que um elemento crucial para o cálculo — o elemento cognitivo, a informação em sentido amplo — se articula de maneira complexa com as normas. As recomendações que daí decorrem apontam para a impropriedade da posição inclinada a ver uma tensão insuperável nas relações entre o racional e o valorativo ou normativo, ou entre a "economia" da ação, que diz respeito a seus aspectos de instrumentalidade e eficácia, e a "energética" da ação, na qual se trata de seus aspectos motivacionais e da variedade de fatores (valores, normas, impulsos, afetos) relevantes para a motivação.23 23 Vejam-se, a respeito, Reis (2000b e 1997), este último republicado em Reis (2000a). Tais recomendações se tornam talvez banais a um olhar um pouco mais atento e refinado, mas é notável que o fato de que esse refinamento esteja à mão não impeça que prosperem interminavelmente os equívocos envolvidos no enfrentamento corrente de orientações ou abordagens.

Quanto aos problemas mais específicos de análise política referidos à democracia e à sua institucionalização ou consolidação, parece certamente defensável a perspectiva que associa a "equilibração" democrática — em que o realismo ao estilo de Przeworski pretende ver o processo decisivo de estabelecimento da democracia — não apenas com um elemento normativo, mas especificamente com a implantação de normas que operem de maneira irrefletida e espontânea, tornando-se convencionais e resultando numa "cultura política" apropriadamente cívica e democrática. Não obstante, nossa análise mostra a relevância que os aspectos de natureza cognitiva ou intelectual podem adquirir no processo, pois os dados indicam o papel peculiar de situações em que cognições (percepções, expectativas) tornam irrelevantes e inoperantes mesmo as normas a que convencionalmente se adere.

A pergunta crucial a emergir é a de se tais situações ocorrerão de maneira mais ou menos freqüente ou rara. Os mecanismos revelados por nossos dados apontam para a possibilidade de uma espécie de surdo solapamento "hobbesiano" que talvez se desse até em democracias estabelecidas, onde as normas convencionais e arraigadas correspondam supostamente às da "cultura cívica". A dinâmica em que se produziria esse efeito seria análoga à observada na aceleração de processos inflacionários, em que mesmo o suposto apego de todos ao "bem público" correspondente a preços estáveis (apego equivalente, em nosso caso, à adesão às normas convencionais de civismo) se mostra irrelevante para as decisões de cada qual quanto a elevar ou não seus próprios preços (em nosso caso, eventualmente agir contra as normas, de maneira egoísta) diante da percepção das circunstâncias dadas pelo comportamento dos demais. De outro lado, para o caso dos países em que prevalece a condição pretoriana, com o jogo "fisiológico" de vale-tudo que lhe é próprio, a lógica revelada pelos dados na operação daqueles mecanismos sugere também uma maneira nova de considerar tal condição, em que tão longamente nós brasileiros nos temos debatido nas oscilações de nossa história republicana e que tem impedido o enraizamento efetivo e cabal das instituições democráticas. Nessa perspectiva nova, a superação do pretorianismo não dependeria apenas (e talvez sequer principalmente) de que normas cívicas sejam difundidas e assimiladas, mas antes de um difícil jogo de coordenação em que as cognições e expectativas venham a convergir de modo consistente em direção propícia.24 24 Em comentário a versão anterior deste texto, Antônio Octávio Cintra levanta um problema que merece menção: a idéia de que os mecanismos revelados por nossos dados representariam fatores de crise seria contrariada por observações como o apoio aparentemente generalizado que o dramático confisco da poupança realizado pelo presidente Collor em nome do combate à inflação teria recebido. Sem entrar na questão empírica de em que grau esse apoio terá efetivamente acontecido, não me parece que se tenha nele, ou em ocorrências análogas, algo que se contraponha à sugestão feita. Ele se ajustaria perfeitamente às condições consideradas na primeira das duas perguntas a que se referem os dados da Tabela 7 (um governo que faz o que é necessário e pede sacrifícios de todos) e que são objeto de reações de sentido cívico, como vimos; não há, na situação do começo do governo Collor, nada que devesse levar à percepção geral de que a medida estivesse fadada a não dar resultado, em sintonia com a cláusula restritiva introduzida na segunda pergunta. Além disso, as conseqüências agregadas possivelmente perversas da interação entre agentes múltiplos (às quais se refere explicitamente aquela cláusula) são até a grande razão para que se conte com a ação coordenadora e saneadora do Estado — e cabe mesmo, naturalmente, pretender ver no papel cumprido pelas lideranças políticas e governamentais o fator decisivo da eventual coordenação propícia de percepções e expectativas que a superação do próprio pretorianismo exigiria. O que se pode acrescentar é que a percepção difundida das ações dessas lideranças como redundando em fracasso (ou talvez como insuficientemente orientadas, elas próprias, por considerações cívicas) provavelmente ajudará a compor o quadro em que a sensação de "bancar o otário" levará ao enfraquecimento que os dados sugerem das disposições cívicas da população, assim cumulando os efeitos negativos dos mecanismos envolvidos.

Um aspecto especial dos dados permite algumas reflexões finais. Trata-se do fato de que as reavaliações "cínicas" destacadas em nossa análise são minoritárias: mesmo nos casos de sofisticação alta, em que ocorrem com mais freqüência, os deslocamentos para a opção egoísta não alcançam nunca, em nossos dados, o nível dos 50 por cento, ocorrendo em proporções bem mais baixas nos demais casos. Uma primeira ponderação a respeito é de natureza teórico-metodológica, tendo a ver com as conseqüências que eventualmente se poderia pretender extrair daí para a questão do caráter mais raro ou freqüente da operação dos mecanismos observados. O ponto a salientar é que, naturalmente, o fato de serem minorias a se deslocar para o "cinismo" não impede que as articulações evidenciadas entre as variáveis discutidas, ou os mecanismos correspondentes, atuem em diferentes sociedades e circunstâncias; além disso, os dados sugerem que circunstâncias de um tipo específico (crises) provavelmente resultarão em que haja, no âmbito de determinada sociedade, a operação mais difundida dos mecanismos cognitivos na forma neles observada.

Mas cabem também algumas ponderações em que aspectos empíricos e doutrinários se acham mais intimamente mesclados. As minorias de que aqui se trata correspondem, por definição, sobretudo à elite mais sofisticada e politicamente envolvida. Ora, se a maior sofisticação que caracteriza a elite torna o civismo mais apto a degenerar em cinismo, então uma "cultura cívica" capaz de ter as conseqüências benéficas que lhe são atribuídas com respeito à democracia não deveria ser muito exigente quanto à sofisticação e ao envolvimento dos cidadãos — ela teria antes na relativa apatia dos cidadãos um correlato necessário. Vemo-nos expostos, assim, aos paradoxos de uma espécie de "gullibility theory of democracy", ou de visão na qual certa passividade e mesmo ingenuidade aparecem como necessárias à estabilidade democrática, por contraste com o ideal republicano do cidadão alerta e participante. Diante dessas deficiências supostamente desejáveis para a democracia, como caberia avaliar, por exemplo, as conseqüências do desenvolvimento material e intelectual, sobretudo se se presume que o processo geral se dê em termos de desenvolvimento capitalista e de expansão das relações típicas do mercado, tendentes por si mesmas a estimular o cálculo orientado pelo interesse próprio? De qualquer modo, eis a síntese de observações sobre o funcionamento da democracia baseadas em dados de surveys canadenses, a qual dá expressão adequada a certa intuição realista que muitos compartilham: a democracia envolveria "minorias `intensas' [sofisticadas e `cognitivamente competentes'] a estabelecer as fronteiras do debate político, enquanto os que lutam por cargos manipulam maiorias apáticas dentro das fronteiras assim estabelecidas"; "o problema da estabilidade democrática consiste na agregação política de minorias sensíveis às questões políticas [issue-sensitive minorities], e não em algum nível geral de apoio para a comunidade política ou o regime".25 25 Laitin (1995, p. 171), resumindo as principais contribuições encontradas em Elkins (1993). Nessa óptica, em que o realismo parece impor-se mesmo no caso de um país de capitalismo avançado e de democracia consolidada, também o jogo de coordenação cognitiva acima sugerido como necessário à superação do nosso próprio pretorianismo estará talvez, para bem ou para mal, restrito a certa parcela reduzida da população.

Como quer que seja, o desafio com que nos defrontamos pode talvez ser sintetizado por referência à complexidade característica do próprio ideal contemporâneo de cidadania. Se esse ideal contém, por uma parte, um elemento igualitário e consensualista que diz respeito ao compartilhamento do status resultante da inserção numa comunidade, elemento este ao qual correspondem as virtudes solidárias e cívicas e os deveres ou responsabilidades do cidadão, ele contém também, irrecusavelmente, certo elemento de afirmação autônoma de cada membro individual da coletividade — e aqui se trata de algo que é latentemente conflitual antes que solidário ou convergente. Na verdade, essa ambivalência é característica da própria política como tal: de um lado, a afirmação instrumental (para a qual o fator cognitivo e o cálculo são cruciais) dos interesses, que serão, no limite, interesses individuais; de outro, a definição de focos de solidariedade e de identidades coletivas em diferentes escalas, de cujo convívio resulta também a definição de interesses coletivos e compartilhados. O grande desafio defrontado no processo político moderno pode ser visto como correspondendo justamente à conciliação das tensões que daí resultam, de modo a atender à demanda contraditória de que a cidadania seja simultaneamente um foco de convivência igualitária e solidária dos agentes sociais e uma arena para a afirmação lúcida e autônoma de objetivos ou interesses de qualquer natureza.26 26 A elaboração desses temas pode ser encontrada em Reis (1974 e 1989), republicados em Reis (2000a).

NOTAS

A. "Digamos que o governo estivesse fazendo tudo o que é preciso para tirar o país da crise em que ele está e fosse necessário discutir a questão dos salários, lucros ou ganhos de cada um. Neste caso, o Sr.: 1. se contentaria com pequenos aumentos de salário (ou outros ganhos pessoais) se isso fosse ajudar o esforço do governo; ou 2. preferiria maiores aumentos de salário (ou outros ganhos), mesmo atrapalhando os planos do governo."

B. "(Se escolheu a alternativa 1 na anterior) Digamos que a maioria preferisse ganhos ou aumentos imediatos e que, em conseqüência, o esforço do governo para tirar o país da crise, mesmo sério e bem-intencionado, tivesse poucas chances de dar certo. Neste caso, o Sr.: 1. continuaria se contentando com pequenos aumentos de salário (ou outros ganhos) para ajudar o esforço do governo; ou 2. preferiria maiores aumentos de salário (ou outros ganhos), mesmo ajudando a atrapalhar os planos do governo."

BIBLIOGRAFIA

RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS

DEMOCRACIA, CIVISMO E CINISMO: UM ESTUDO EMPÍRICO SOBRE NORMAS E RACIONALIDADE

Fábio Wanderley Reis e Mônica Mata Machado de Castro

Palavras-chave

Democracia; Civismo; Cinismo; Normas; Racionalidade.

O artigo trata do problema da democracia e sua institucionalização e consolidação. Partindo do confronto entre uma perspectiva sociológica convencional, atenta para o papel das normas, e uma perspectiva baseada na "escolha racional", atenta para o cálculo racional de interesses, os autores levantam a questão do papel dos fatores de natureza cognitiva com respeito a ambos os aspectos. Com o recurso a dados de survey executado no Brasil há alguns anos, mostram a mediação complexa exercida por aqueles fatores, tomados em termos de "sofisticação política", entre a adesão a normas cívicas e o apego egoísta ou cínico ao interesse próprio. Por fim, o artigo explora as implicações dos padrões detectados para o tema geral da democracia.

DEMOCRACY, CIVIC VIRTUE AND CYNICISM: AN EMPIRICAL STUDY ON NORMS AND RATIONALITY

Fábio Wanderley Reis and Mônica Mata Machado de Castro

Key words

Democracy; Civic virtue; Cynicism; Norms; Rationality.

The article deals with the problem of democracy and its institutionalization and consolidation. Starting from the confrontation between a conventionally sociological perspective, which stresses the role of norms, and a rational-choice perspective, which emphasizes the calculus referred to interests, the authors raise the issue of the role of cognitive factors with regard to both aspects. With recourse to survey data produced in Brazil some years ago, a rather complex mediating role is shown to be played by cognitive factors, described as "political sofistication", between the civic adherence to norms and the selfish or cynical promotion of self-interest. Some implications of the observed patterns for the general theme of democracy are then explored.

DÉMOCRATIE, CIVISME ET CYNISME: UNE ÉTUDE EMPIRIQUE SUR LES NORMES ET LA RATIONALITÉ

Fábio Wanderley Reis et Mônica Mata Machado de Castro

Mots-clés

Démocratie; Civisme; Cynisme; Normes; Rationalité.

L'article aborde le problème de la démocratie, de son institutionnalisation et de sa consolidation. Partant de la confrontation entre une perspective sociologique conventionnelle, que s'attache au rôle des normes, et une perspective fondée sur le choix rationnel, que s'attache au calcul rationnel d'intérêts, les auteurs soulèvent le rôle des facteurs de nature cognitive par rapport à ces deux aspects. Grâce à des données issues de sondages réalisés au Brésil il y a quelques années, les auteurs démontrent la médiation complexe exercée par ces facteurs, considérés en termes de sophistication politique, entre l'adhésion à des normes civiques et l'attachement égoïste ou cynique à des intérêts personnels. Finalement, l'article explore les implications des seuils détectés sur le thème général, qui est la démocratie.

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  • 1
    Laitin (1995) é uma útil resenha de vários volumes recentes que se ligam de alguma forma à tradição de estudos de cultura política iniciada por Almond e Verba, dos quais o de maior impacto é certamente Putnam (1993). No Brasil, estudos recentes têm retomado a idéia da cultura política. Merece destaque o livro de José Álvaro Moisés (1995), onde se analisa extenso conjunto de dados de
    surveys. Pode-se citar também Lamounier e Souza (1991).
  • 2
    Dois exemplos são Przeworski (1991 e 1995).
  • 3
    Veja-se, por exemplo, Elster (1986). Cabe mencionar também a busca dos limites da racionalidade feita em trabalhos como Elster (1979 e 1989).
  • 4
    Tentativa recente (e não de todo bem-sucedida, dadas as confusões em que se envolve) de distinguir o modelo explicativo da escolha racional de um outro modelo tratado como "cognitivo" se tem em Boudon (1998). Veja-se também Reis (1997), republicado em Reis (2000a).
  • 5
    Pois, não obstante a importância atribuída à categoria da racionalidade, dar conseqüência a essa importância e atentar plenamente para as complicações envolvidas fatalmente levariam a perspectiva da escolha racional a diluir-se numa sociologia "convencional" para apreender de maneira adequada aquilo que molda socialmente o próprio ator racional como tal — e a preservação da especificidade da abordagem exigiria a adesão a uma concepção antes tosca e míope de racionalidade. O movimento correspondente à economia "pós-walrasiana", recoberto pela designação confusa de "novo institucionalismo" e incluindo a "
    information economics", de Joseph Stiglitz (1994), a "
    transaction cost
    economics", de Oliver Williamson (1985), e o "
    contested exchange", de Samuel Bowles e Herbert Gintis (1993), pode ser visto como consistindo, no fundo, na tentativa de responder a esse paradoxo, com o questionamento dos supostos da economia neoclássica no próprio coração da disciplina que inspira a abordagem da escolha racional e com a diluição da fronteira entre a economia e as demais ciências sociais.
  • 6
    Vejam-se Converse (1964) e Neuman (1986). Um exemplo mais recente de estudo dedicado aos efeitos eleitorais da sofisticação política se tem com MacDonald, Rabinowitz e Listhaug (1995).
  • 7
    Cabe mencionar dois exemplos em perspectivas analíticas diferentes. O primeiro é o livro de Marcus Figueiredo (1991). Não obstante o lugar central ocupado pela idéia do eleitor racional nas discussões nele feitas, não há qualquer atenção especial para o fator cognitivo como tal e sua possível relevância para a racionalidade. O outro é o livro de J. A. Moisés (1995) mencionado anteriormente. A perspectiva aqui é antes sociológica e culturalista, mas tampouco há maior ênfase nos aspectos cognitivos, apesar do reconhecimento da importância da escolaridade (conectada com "sofisticação" em nota de rodapé em que se remete ao volume de Neuman acima citado) e da informação, da qual se apontam brevemente efeitos análogos aos que são tratados em termos de "centralidade" em nossos trabalhos anteriores que se mencionam em seguida.
  • 8
    Os dois modelos foram classicamente confrontados em Pizzorno (1966).
  • 9
    Vejam-se, por exemplo, Reis (1983) e Reis e Castro (1992), republicados em Reis (2000a).
  • 10
    Para a idéia de causalidade supra-intencional, tomada como a resultante, no nível agregado, das ações intencionais de numerosos agentes, veja-se Elster (1978).
  • 11
    Veja-se, por exemplo, Habermas (1979).
  • 12
    O projeto, que se denominou Pacto Social e Democracia no Brasil e teve o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), foi coordenado por Fábio Wanderley Reis e contou, em todas as suas fases, com a participação de Mônica Mata Machado de Castro e de Edgar Pontes de Magalhães, Antônio Augusto Pereira Prates e Malori Pompermayer. O trabalho de campo esteve a cargo do Instituto Vox Populi, sob a supervisão da equipe do projeto. Cumpre registrar nossos agradecimentos pela colaboração mantida com equipe do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), sob a liderança de Guillermo O'Donnell, especialmente no que se refere à preparação de parte do questionário e aos contatos (com a ajuda, em particular, de Vinicius Caldeira Brant e Adalberto Cardoso) para a realização das entresvistas com algumas das amostras de trabalhadores mencionadas em seguida.
  • 13
    O índice geral de sofisticação política combinava uma dimensão dada por três perguntas sobre o envolvimento com a política (interesse por política, exposição ao noticiário político nos meios de comunicação de massas e o que às vezes se designa em termos de "sentimento de eficácia política", ou seja, a concordância ou não com a idéia de que a política é complicada e não pode ser entendida) com outra dimensão dada por três conjuntos de perguntas em que o que interessava e foi objeto de codificação eram dois aspectos: o grau de informação, em sentido estrito, de que dispunham os entrevistados sobre assuntos políticos e "trabalhistas", por um lado, e, por outro, o que se poderia designar como sua capacidade de "conceitualização", traduzindo-se na capacidade de responder de maneira elaborada e refinada a perguntas abertas sobre assuntos político-econômicos diversos. Os dois conjuntos estritamente informacionais procuravam avaliar a capacidade dos entrevistados de ligar corretamente duas listas de nomes a cada uma das diferentes centrais sindicais (em um caso) e a cada um dos partidos políticos (em outro) existentes no Brasil. O terceiro conjunto, em cuja codificação se levou em conta também o caráter mais adequadamente elaborado ou preciso das respostas, indagava do entrevistado "o que foi o Plano Cruzado", "o que quer dizer `marajá'", "o que significa FGTS", "o que é o parlamentarismo", "o que é que anda acontecendo nos países socialistas da Europa", "o que entende por pacto social" e qual foi o acontecimento ocorrido no Brasil em 1964 e qual o seu significado. Os três conjuntos se mostraram altamente correlacionados entre si e com escolaridade. Informações pormenorizadas sobre os diversos aspectos do trabalho de elaboração do índice de sofisticação política e das dimensões ou subíndices que o compõem encontram-se em Castro (1994, Anexo II).
  • 14
    O índice de "disposição democrática-1" incluía perguntas sobre a preferência pela democracia (por contraste com "em alguns casos, uma ditadura ou um regime autoritário" e com a idéia de que "para o povo, na verdade, dá tudo na mesma"), sobre as eleições como "a melhor maneira de se escolher o governo e as autoridades do país", sobre a necessidade da Câmara dos Deputados, "do ponto de vista da utilidade prática", e sobre a necessidade dos partidos políticos, "se queremos ter democracia". O índice de "disposição democrática-2" incluía três perguntas em que se pedia a concordância ou discordância com afirmações formuladas nos seguintes termos: "os problemas do país nunca vão se resolver se a gente não deixar o presidente governar do jeito que ele achar melhor para todos"; "os juízes e os tribunais não deveriam se meter nas decisões que o presidente toma"; e "uma vez eleito, o presidente deve mandar sem o Congresso e os partidos políticos criarem obstáculos".
  • 15
    O índice de posição sobre os direitos civis se refere a uma bateria de perguntas em que se pedia a concordância ou discordância com cada uma das seguintes afirmações: "gente que a polícia prende por praticar crimes deve poder ser mostrada nos noticiários de televisão, pois bandido tem mesmo é que passar vergonha"; "é um absurdo a polícia invadir barracos de favelas, sem ordem da Justiça, para procurar criminosos"; "a eliminação de bandidos pelos esquadrões da morte ou os linchamentos de bandidos pelo povo são coisas que a gente tem de aceitar quando a violência dos criminosos aumenta"; "torturar gente presa, mesmo para combater os criminosos, é inaceitável"; "a polícia faz bem em exigir que pessoas suspeitas mostrem a carteira de trabalho para provar que são gente boa".
  • 16
    Na verdade, a observação mais pormenorizada dos dados a respeito revela que é preciso ir aos níveis superiores de escolaridade (nível universitário) e sofisticação para se encontrar, por exemplo, a opinião
    favorável aos esquadrões da morte e ao linchamento de bandidos em minoria perante outras opiniões — e mesmo aí a opinião favorável se situa na faixa dos 30 por cento.
  • 17
    Especificamente, as perguntas pertinentes do questionário utilizado referiam-se às atitudes ou opiniões dos entrevistados a respeito do voto do analfabeto (contra ou a favor) e de dois temas menos diretamente políticos: o direito a prisão especial para as pessoas de curso superior (em que os entrevistados eram convidados a escolher entre as respostas "é uma boa medida, porque as pessoas de curso superior que se vêem envolvidas em crimes devem ter direito a tratamento especial" e "é uma medida errada, porque os criminosos de qualquer tipo devem ter o mesmo tratamento") e a separação entre elevador social e elevador de serviço nos edifícios de apartamentos (com escolha entre as respostas "a separação entre elevador social e de serviço é apenas uma forma de manter a ordem e o bom funcionamento dos edifícios" e "a obrigação de usar o elevador de serviço é também uma forma de discriminar e humilhar certas categorias de pessoas").
  • 18
    O índice de "progressismo social" baseou-se em três perguntas referidas à concordância ou discordância com as seguintes afirmações: "o melhor trabalho para a mulher é tomar conta da casa"; "os homossexuais devem ser aceitos como qualquer outra pessoa" e "toda mulher que queira deveria ter a possibilidade de fazer aborto". O índice de radicalismo político refere-se à aprovação ou desaprovação de formas de reivindicar ou protestar que iam desde abaixo-assinados até ações de sabotagem nas empresas, passando por manifestações públicas e passeatas, greves e ocupações de prédios e fábricas, bem como à aprovação ou desaprovação (tomada com valores invertidos em relação aos dos itens anteriores) das reações eventualmente suscitadas: o uso da força pela polícia para dissolver manifestações, o uso do Exército contra greves, a demissão de grevistas ou o desconto dos dias de greve no pagamento dos grevistas.
  • 19
    A pergunta indagava sobre a concordância ou discordância do entrevistado diante do seguinte enunciado: "Alguns acham que, em matéria de greve, a coisa mais inteligente a fazer é não participar, pois se a greve for vitoriosa o trabalhador ganha de qualquer jeito, e se não for vitoriosa ele não coloca em risco o seu emprego".
  • 20
    Era a seguinte a formulação exata das duas perguntas:
  • 21
    Vale notar que exatamente os mesmos padrões assinalados na
    Tabela 7 podem ser encontrados também com respeito às relações entre algumas das variáveis "trabalhistas" de interesse central na pesquisa desenvolvida, referidas à idéia do "pacto social". Não tínhamos, neste caso, a mesma estrutura da dupla de perguntas articuladas em que a segunda redefine a situação. Mas os itens do questionário relacionados com o pacto social, em seguida a um enunciado inicial em que se explicava que, com ele, "haveria negociações entre o governo, os patrões e os sindicatos de trabalhadores para combater a alta do custo de vida e fixar regras para os preços e os salários", incluíam perguntas passíveis de terem suas relações exploradas de maneira análoga à da
    Tabela 7: em primeiro lugar, uma pergunta em que se pedia que o entrevistado se manifestasse sobre a possibilidade, em abstrato, de "um pacto desse tipo dar bons resultados para todo mundo (o país, os patrões, os trabalhadores)"; em segundo lugar, duas perguntas em que se pedia a avaliação pelo entrevistado da confiabilidade do governo, por um lado, e dos empresários, por outro, em seu comportamento relativamente ao pacto (concordância ou discordância quanto a que "a seriedade do governo nesse assunto do pacto social merece confiança" e "a gente pode acreditar que os empresários cumpririam um acordo de conter preços"). Tomando os que se manifestam favoravelmente à idéia geral do pacto social e examinando, entre eles, as proporções dos que mostram
    não confiar no comportamento quer do governo, quer dos empresários, as observações das relações com escolaridade e sofisticação são as mesmas encontradas na
    Tabela 7: enquanto a disposição em princípio favorável ao pacto cresce claramente com o aumento nos valores dessas duas variáveis, quando nos voltamos para o nível mais "concreto" da confiabilidade do governo e dos empresários são as respostas
    negativas que crescem, de maneira igualmente clara, com o aumento de escolaridade e sofisticação. Na linha de interpretação sugerida, o convite para opinar em abstrato a respeito da desejabilidade do pacto social tenderia a representar uma oportunidade para a expressão de valores convencionais, enquanto a avaliação da confiabilidade de agentes como o governo e os empresários dependeria em maior medida das informações efetivas de que se dispõe e se mostraria assim propícia ao crescimento da disposição crítica com maior sofisticação.
  • 22
    Talvez o esclarecimento do problema geral exija que se concebam diferentes graus (e quem sabe diferentes formas) de reflexividade, de maneira que se poderia pretender ver como compatível com a perspectiva relativa ao desenvolvimento moral ligada aos nomes de Piaget, Kohlberg e Habermas que mencionamos acima. Seria então possível reconhecer que: (1) se começamos de níveis cognitivos efetivamente pobres ou precários, avanços cognitivos podem resultar em convencionalismo, com as pessoas transitando do egocentrismo irrefletido para a adoção convencional da perspectiva do grupo; seria num ponto adiantado do processo aí suposto, com graus crescentes de reflexividade, que teríamos as pessoas alcançando formas de moralidade autônoma, capazes de se oporem à moralidade convencional do grupo; (2) o tipo "realista" de reflexividade que os dados indicam (intensificação da propensão ao cálculo egocêntrico com sofisticação crescente) poderia ser visto quer (a) como eventual refluxo ou regressão no movimento rumo a níveis cada vez mais altos de reflexividade que supostamente deveria ocorrer no processo de desenvolvimento moral, quer (b) como uma forma eventualmente diferente de reflexividade. Para os autores interessados no tema da moralidade, a questão envolvida na escolha entre as alternativas
    a e
    b seria provavelmente a de até que ponto caberia falar legitimamente de reflexividade numa situação (alternativa
    b) que deveria ser vista como problemática ou deficiente do ponto de vista moral por estar associada com o cálculo egocêntrico. Naturalmente, negar que se trate aí de reflexividade equivaleria a assimilar cognição e moralidade de maneira que nos parece insustentável e que se opõe ao que se diz logo em seguida no texto.
  • 23
    Vejam-se, a respeito, Reis (2000b e 1997), este último republicado em Reis (2000a).
  • 24
    Em comentário a versão anterior deste texto, Antônio Octávio Cintra levanta um problema que merece menção: a idéia de que os mecanismos revelados por nossos dados representariam fatores de crise seria contrariada por observações como o apoio aparentemente generalizado que o dramático confisco da poupança realizado pelo presidente Collor em nome do combate à inflação teria recebido. Sem entrar na questão empírica de em que grau esse apoio terá efetivamente acontecido, não me parece que se tenha nele, ou em ocorrências análogas, algo que se contraponha à sugestão feita. Ele se ajustaria perfeitamente às condições consideradas na primeira das duas perguntas a que se referem os dados da
    Tabela 7 (um governo que faz o que é necessário e pede sacrifícios de todos) e que são objeto de reações de sentido cívico, como vimos; não há, na situação do começo do governo Collor, nada que devesse levar à percepção geral de que a medida estivesse fadada a não dar resultado, em sintonia com a cláusula restritiva introduzida na segunda pergunta. Além disso, as conseqüências agregadas possivelmente perversas da interação entre agentes múltiplos (às quais se refere explicitamente aquela cláusula) são até a grande razão para que se conte com a ação coordenadora e saneadora do Estado — e cabe mesmo, naturalmente, pretender ver no papel cumprido pelas lideranças políticas e governamentais o fator decisivo da eventual coordenação propícia de percepções e expectativas que a superação do próprio pretorianismo exigiria. O que se pode acrescentar é que a percepção difundida das ações dessas lideranças como redundando em fracasso (ou talvez como insuficientemente orientadas, elas próprias, por considerações cívicas) provavelmente ajudará a compor o quadro em que a sensação de "bancar o otário" levará ao enfraquecimento que os dados sugerem das disposições cívicas da população, assim cumulando os efeitos negativos dos mecanismos envolvidos.
  • 25
    Laitin (1995, p. 171), resumindo as principais contribuições encontradas em Elkins (1993).
  • 26
    A elaboração desses temas pode ser encontrada em Reis (1974 e 1989), republicados em Reis (2000a).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Abr 2001
    • Data do Fascículo
      Fev 2001
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