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Espaço e cultura na cidade contemporânea

Espaço e cultura na cidade contemporânea

Antonio A. ARANTES (org.). O espaço da diferença. Campinas, Papirus, 2000. 304 páginas.

Antonio A. ARANTES. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas, Editora da Unicamp/Imprensa Oficial, 2000. 190 páginas.

José Guilherme Cantor Magnani

Nesses dois textos — num dos quais figura como autor e, no outro, como organizador — Antonio Augusto Arantes oferece um amplo espectro de temas cujo ponto focal é a cidade contemporânea em sua escala metropolitana e em suas múltiplas dimensões: poder, cultura, cidadania, espaço público. Ambos os livros foram produzidos no contexto dos projetos "Construindo a democracia: cidadania, nação e a experiência urbana contemporânea", financiado pela Fundação Rockfeller, e "Identidades: reconfigurações de cultura e política", com recursos do programa Pronex/Finep.

O primeiro — O espaço da diferença — é uma coletânea, com doze textos de autores diversos. A metade deles é constituída por traduções de artigos e capítulos de livros já publicados no exterior; outros quatro foram apresentados no simpósio "Espaço e poder nas grandes metrópoles", realizado em Campinas em dezembro de 1996 como parte da agenda dos projetos acima citados, e, completando o volume, temos um artigo baseado em uma dissertação de mestrado e um ensaio inédito.

O leque é amplo e variado. Vai, por exemplo, da reflexão teórica à análise de um original e provocativo experimento: a proposta de um carro-moradia para os sem teto, projetado pelo artista Krzysztof Wodiczko. Inclui interpretações da constituição do espaço público em cidades como Nova York, Londres, São Paulo, Rio de Janeiro e análises de paisagens mais específicas como os casos do Harlem, Wall Street e Avenida Paulista. O horizonte percorrido, como se pode perceber, é vasto e esta amplitude evoca a complexidade da dinâmica cultural das grandes cidades, irredutível às costumeiras categorias e esquemas dicotômicos — centro/periferia, público/privado, tradicional/moderno. A idéia geral da coletânea é justamente mostrar a fluidez dos processos, o movimento dos atores e a ambigüidade das fronteiras e marcos espaciais no contextos das megacidades.

Um dos trabalhos centrais é o da socióloga Sharon Zukin, do Brooklin College e da City University of New York, que comparece com dois textos na coletânea. No primeiro, "Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder", Zukin descreve, a partir de uma distinção entre "paisagem" e "vernacular", dois processos de relações entre cultura e poder observáveis no cenário urbano pós-moderno. No que ela classifica de "antigas cidades modernas", como Nova York, Chicago, Londres ou Paris, um desses processos é denominado "enobrecimento" (gentrification) e se caracteriza pela substituição, nos velhos centros decadentes, dos antigos moradores (e seu estilo vernacular) por novos personagens e atividades culturalmente valorizadas. Já em cidades como Los Angeles, Miami, Houston ("novas cidades modernas") o processo de valorização é resultado de outro padrão, como a construção de vastos complexos de consumo explorando a fantasia e o sonho, no estilo Disneyworld.

No segundo texto, apresentado no já referido seminário de 1996, Sharon Zukin retoma essas categorias, fazendo alusões a paisagens da capital paulistana como o bairro da Vila Madalena e a Praça da Sé. Para a autora, a cidade torna-se cada vez mais mercadoria, seja na forma do centro que se enobrece, seja na forma da paisagem que se mercantiliza. "As paisagens urbanas na aurora do século XXI sugerem, paradoxalmente, que a democratização da sociedade é coordenada com uma transformação mais intensa do espaço urbano em mercadoria", conclui (p. 115).

O tema, em pauta já há algum tempo nos EUA e Europa, faz sentido no caso brasileiro, tendo em vista, por exemplo, a discussão a propósito da restauração do Pelourinho em Salvador, da Praça XV no Rio de Janeiro e, no caso de São Paulo, a campanha da Associação Viva o Centro para revitalização do chamado centro histórico, assim como a polêmica em torno do frustrado projeto de construção do megaedificío Maharishi, cujo desenlace, diga-se de passagem, foi recebido com visível alívio por não poucos arquitetos, planejadores e urbanistas.

O segundo livro, Paisagens paulistanas: transformações do espaço público, é dedicado, segundo palavras do autor, ao tema da "construção social do espaço público". Tomando como recorte empírico a cidade de São Paulo, Arantes quer mostrar que, mesmo no caso das cidades globais e das grandes metrópoles, onde parecem imperar a lógica da comunicação midiatizada e a assim chamada "desterritorialização das práticas sociais", o espaço é ainda uma referência significativa. Desde que, claro, seja lido em outra chave, muito diferente daquela que atribui sentidos unívocos, vê fronteiras rígidas e só distingue grupos sociais impermeáveis, em suas identidades fixas. O texto apresenta também um caráter de experimento, buscando uma nova forma de narrar a partir da junção de texto, imagem e design.

O livro é composto de quatro ensaios inéditos e um já publicado, além de fotos, desenhos, e até um roteiro dramatúrgico. Arantes chama seu texto de "polifônico", pelo fato de articular trabalhos e técnicas de naturezas diversas. Cabe notar, contudo, que o termo aqui não está sendo empregado da maneira como aparece no discurso dos antropólogos pós-modernos, em sua crítica ao que denominam de modo de representação "realista", centrado na autoridade e na voz do pesquisador. "Polifônico", para estes últimos, será o texto que incorpora outras vozes, as dos pesquisados e sujeitos dos processos sociais em estudo, considerados também autores do texto etnográfico.* * Vcr, a propósito, James Clifford, A experiência etnográfica: Antropoligia e Literatura no século XX, Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 1998 Não é esse, evidentemente, o caso do livro de Arantes — nem ele se propunha a isso —, pois, com exceção dos desenhos das crianças, não há nele outras perspectivas e discursos a não ser os do autor e dos seus colaboradores, todos no lado de cá.

Centrado na cidade de São Paulo, Paisagens paulistanas, como seria de se esperar, participa da orientação mais geral já assinalada com relação à coletânea organizada pelo autor, aplicada, porém, a um contexto mais particularizado. Arantes recupera inclusive uma perspectiva diacrônica, começando com a São Paulo da passagem dos anos 40-50 — das comemorações do IV Centenário — e passando em seguida, até como efeito contrastivo, para o relato dos saques e quebra-quebras de abril de 1983: oficiais ou populares, as celebrações e manifestações "consagram ritualmente configurações particulares do espaço urbano [...] e, ao serem incorporadas à experiência e à memória, fornecem um referencial cênico e cartográfico às práticas sociais" (pp. 90-91).

O "cronotropo" do capítulo IV é o espaço central da São Paulo de hoje, por onde o autor realiza uma caminhada, norteado pela hipótese de que "a experiência urbana contemporânea propicia a formação de uma complexa arquitetura de territórios, lugares e não-lugares, que resulta na formação de configurações espaço-temporais mais efêmeras e híbridas do que os territórios sociais de identidade tematizados pela antropologia clássica." (p. 106). As trocas, conflitos e tensões que vai encontrando espacializam-se numa sucessão e também superposição de territórios, lugares e não-lugares. Daí o título do capítulo, "A guerra dos lugares".

Tomando os dois livros em seu conjunto, é possível perceber, para além da diversidade de recortes, perspectivas e categorias de análise, alguns pontos em comum. O primeiro deles é a perspectiva de que essa diversidade já reflete a própria complexidade dos processos, das práticas sociais e da dinâmica da cidade contemporânea, principalmente em sua escala metropolitana, evocando a fluidez da paisagem, a efemeridade das relações e a trasitividade das fronteiras espaço-temporais por onde transitam seus atores.

O segundo é a urgência de um novo approach teórico-metodológico que dê conta dessa nova situação. George Marcus já havia mostrado, no quadro do que denomina uma "etnografia modernista",** ** George Marcus, "Identidades passadas, presentes e emergentes: requisitos para etnografias sobrea modernidade no final do século XX ao nível mundial", Revista de Antropologia, vol. 34, 1991 a necessidade de superar a perspectiva de um enfoque mais tradicional que vincula a formação de identidade a uma determinada localidade; na verdade, diz ele, trata-se de identidades múltiplas e que não podem estar referidas a uma localidade tida como sólida, homogênea, unívoca. Assim, propõe Marcus, é necessário problematizar o espaço, o tempo e até mesmo a perspectiva de análise para que se possa enfrentar os desafios que uma nova conjuntura mundial coloca para o olhar antropológico.

Arantes, em seus trabalhos, busca retomar essa proposta aplicando-a ao contexto mais específico do fenômeno urbano contemporâneo. O recurso a termos como hibridização, porosidades, territorialidades flexíveis, não-lugares, configurações espaço-temporais, paisagens disjuntivas é um indicador que aponta nessa direção, assim como as tentativas de experimentar novos gêneros de registro e narração. A contribuição do olhar etnográfico em diálogo com outros olhares, técnicas de observação e enfoques teóricos, buscando fugir às dicotomias de uma perspectiva reificadora, é uma preocupação constante na reflexão de Arantes e está presente nas duas obras aqui resenhadas.

É preciso, porém, estar atento ao perigo que uma profusão terminológica e a multiplicidade de categorias podem acarretar: quando ainda presas no plano da metáfora, é possível que terminem apenas duplicando, como efeito de caleidoscópio, a heterogeneidade de seu objeto. Um desafio para todos os que têm a cidade contemporânea como tema de estudo é, pois, o de construir modelos analíticos mais econômicos que evitem o risco de se reproduzir, no plano de um discurso interpretativo, a fragmentação pela qual as grandes metrópoles são muitas vezes representadas na mídia, nas artes plásticas, na fotografia e em intervenções artísticas no espaço público.

JOSÉ GUILHERME CANTOR MAGNANI é professor e pesquisador do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP).

  • *
    Vcr, a propósito, James Clifford,
    A experiência etnográfica: Antropoligia e Literatura no século XX, Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 1998
  • **
    George Marcus, "Identidades passadas, presentes e emergentes: requisitos para etnografias sobrea modernidade no final do século XX ao nível mundial",
    Revista de Antropologia, vol. 34, 1991
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Abr 2001
    • Data do Fascículo
      Fev 2001
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