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Promessas e limites da democracia deliberativa

Promessas e limites da democracia deliberativa

John S. DRYZEK. Deliberative democracy and beyond: liberals, critics, contestations. Oxford, Oxford University Press, 2000. 196 páginas.

Luis Felipe Miguel

Na teoria democrática das últimas décadas, é visível a ampliação da influência das vertentes deliberativas. Com sua ênfase nos aspectos discursivos do processo político — e a visão normativa associada da participação de todos no debate como critério de legitimidade —, os chamados "deliberacionistas" ocupam hoje o lugar central nas discussões sobre o significado da democracia. De diferentes formas, estão vinculados à corrente nomes como James Bohman, Joshua Cohen, Iris Marion Young, Amy Gutmann, John Rawls e Cass Sustein, além do seu principal inspirador, Jürgen Habermas. Fundada na tradição da teoria crítica, a democracia deliberativa tornou-se a principal alternativa à visão liberal-pluralista hegemônica (em vez da defesa da participação direta e da democracia industrial, que estiveram em voga nos meios radicais dos anos 1960 e 1970). Mais importante ainda, ela é levada em consideração pelos próprios expoentes da percepção hegemônica, que se vêem obrigados a refutá-la ou, como ocorre cada vez mais freqüentemente, a incorporá-la em suas próprias construções teóricas.

Em Deliberative democracy and beyond, John Dryzek, professor da Universidade de Melbourne, ele próprio um "deliberacionista" de primeira hora, expõe os impasses atuais da corrente. Segundo o autor, a teoria democrático-deliberativa está perdendo seu impulso crítico, sendo incorporada como um aspecto a mais dentro do constitucionalismo liberal. Com isso, o projeto original de radicalização das instituições democráticas, aproximando-as do ideal de autonomia como produção coletiva das normas sociais, perde terreno para uma acomodação com o status quo dos países avançados, em que se acrescem apenas novos requisitos formais de legitimidade. A crítica de Dryzek é convincente e a revisão que faz da literatura sobre o tema, muito útil. Mas seu livro é também uma demonstração eloqüente de que não há solução para o impasse dentro dos marcos da teoria deliberativa. Sua proposta de resgate dos aspectos críticos e emancipatórios do deliberacionismo acaba esbarrando em limites similares àqueles que condena em outros autores.

Numa formulação um tanto ingênua, mas que captura alguns dos aspectos essenciais da corrente, a democracia deliberativa exige que as decisões políticas sejam tomadas por aqueles que estarão submetidos a elas, através do "raciocínio público livre entre iguais" (Cohen, 1998, p. 186). Participação de todos, argumentação racional, publicidade, ausência de coerção e igualdade são os valores que devem balizar as tomadas de decisão em regimes democráticos. A ausência de qualquer um deles compromete a legitimidade dos resultados. Embora, à primeira vista, os ideais da democracia deliberativa dêem pouco motivo para polêmica, fica a questão de sua relevância para as sociedades reais, com toda a desigualdade e dominação que nelas têm lugar.

Boa parte dos deliberacionistas atuais, segundo Dryzek, parece acreditar que a batalha pela implantação (ou aprimoramento) dos mecanismos de democracia deliberativa gira em torno de mudanças constitucionais e legais. Aí reside a capitulação perante a perspectiva liberal. No entanto, os agentes de distorção da prática democrática "incluem discursos e ideologias dominantes, muitas vezes entrelaçados com forças econômicas estruturais. No mundo de hoje, a mais determinante de tais forças emana da economia política transnacional, impondo severos constrangimentos sobre o que é possível em termos tanto do conteúdo da política pública quanto do grau de democracia que pode ser tolerado na produção estatal de políticas." (p. 21).

O deslocamento em direção ao liberalismo seria perceptível na obra do próprio Habermas. Quando elabora sua teoria da ação comunicativa, o filósofo alemão trabalha em tal grau de abstração que, a rigor, não é possível falar numa teoria da democracia. No momento em que ele finalmente volta sua atenção para as instituições políticas, no livro Direito e democracia, de 1992, verifica-se uma "reconciliação", nas palavras de Dryzek, com "fatos [pretensamente] imutáveis do mundo moderno", vinculados à estrutura político-econômica. Na medida em que admite que o foco da mudança possível se restringe ao ordenamento legal, torna-se difícil distinguir Habermas dos teóricos deliberacionistas liberais (p. 24).

Isso levaria Habermas, por exemplo, a estabelecer um modelo pelo qual a opinião pública gera influência, que se transforma em "poder comunicativo" através de eleições; e este, por sua vez, torna-se "poder administrativo" por meio da legislação. Dryzek observa que é, no mínimo, duvidoso se uma percepção tão estilizada do processo político será capaz de captar pelo menos uma parte de sua dinâmica real (pp. 25-26). O jogo de forças é despido de todas as suas condicionantes estruturais e o que sobra é uma versão mais sofisticada dos manuais escolares de civismo. Em suma, a aceitação acrítica da fixação de uma esfera política isolada das restantes esferas sociais é a própria capitulação diante do constitucionalismo liberal. Mas vale observar que, ao contrário do que sugere Dryzek, essa não é uma virada recente na obra de Habermas, mas um traço que já está presente em sua tese pioneira sobre a constituição da esfera pública (Habermas, 1984 [1962]).

Contra tal acomodação, Dryzek acredita que o deliberacionismo deve enfrentar os problemas colocados à democracia pelo ordenamento capitalista — o que ele mesmo fez, em obra anterior, apontando como solução possível o reforço dos mecanismos corporativos de representação de interesses (Dryzek, 1996). No entanto, em Delibera tive democracy and beyond o tema nunca é explorado. O autor assinala a importância do ponto aqui e ali, e por vezes faz referência à necessidade da garantia de padrões mínimos de conforto para a incorporação de todos os cidadãos no processo deliberativo, numa solução à la Estado de bem-estar social. Mas os constrangimentos que a propriedade privada dos meios de produção (mais do que simplesmente a desigualdade econômica) impõe à livre deliberação política, no âmbito tanto do Estado quanto da vida cotidiana, ficam estranhamente ausentes do livro.

O elemento central da argumentação, então, é exposto de forma apenas abstrata: o foco principal da discussão não deve ser a democracia como tal, mas os processos de democratização. Dryzek assinala que a expressão não indica a expansão global da democracia liberal, e sim seu aprofundamento, o que incorpora três dimensões. Primeiro, a inclusão efetiva de mais pessoas ao debate público; depois, a ampliação das questões e áreas da vida sujeitas ao controle democrático; por fim, o aprimoramento da autencidade de tal controle, que deve ser mais do que meramente formal ou simbólico (p. 29). Mais uma vez, pouco há a objetar quanto a essa declaração de intenções. Mas, no nível de generalidade em que ela permanece, é difícil ver onde reside a diferença em relação às teorias prescritivas que o autor condena como sendo uma mera "esperança para um mundo melhor", com reduzido interesse efetivo (p. 59).

Igualmente insatisfatório é o tratamento dado ao problema da organização da discussão política. Em suas primeiras versões, a teoria deliberativa concedia ao "argumento racional" o monopólio do debate: só ele teria lugar na boa discussão. No entanto, como a habilidade no uso do argumento racional é desigualmente distribuída na sociedade, a regra representaria um privilégio para determinados grupos. Isso levou alguns autores a pleitearem a aceitação de outras formas de discurso, como o testemunho, a narrativa, a retórica ou a saudação (por exemplo, Young, 2000, pp. 52-80), que favoreceriam a expressão dos grupos dominados.* * No entanto, a aceitação de outras formas de discurso não resolveria a desigualdade entre os grupos sociais, já que o argumento racional possui uma legitimidade simbólica maior e também, é possível especular, uma eficácia maior no debate. Para uma discussão em outro contexto, mas pertinente, ver Bourdieu (1996 [1982]). Por outro lado, a idéia de que a boa deliberação exige atenção exclusiva ao bem geral favorece aqueles interesses particulares que, graças às ideologias dominantes, usualmente se passam por coletivos. Contra isso, teóricos deliberacionistas têm pedido permissão para introduzir interesses parciais no debate.

Dryzek toma uma posição cautelosa em relação a esses problemas. Interesses parciais são admitidos, mas apenas se forem capazes de se vincular ao bem geral (p. 73). Outras formas de discurso são aceitas, mas o argumento racional deve estruturar todo o contexto do debate (p. 168). O problema do consenso, em especial, alcança uma solução bizarra. O autor admite que a orientação para o consenso, própria do deliberacionismo inicial, leva a exigências inalcançáveis em sociedades complexas como as contemporâneas. Porém, não está disposto a aceitar sua substituição pelo compromisso barganhado, como fazem outros (por exemplo, Elster, 1998, p. 6). Assim, chega à conclusão de que, como resultado da deliberação democrática, todos devem concordar com a decisão adotada, mas cada um por um motivo diferente (p. 170).

Diante de outros dilemas, que expõe no final do livro — discursos como o racismo devem ser excluídos a priori? a adesão a valores de civilidade deve ser exigida com condição para o ingresso no debate? e se a barganha entre interesses egoístas se sobrepuser à reflexão sobre o interesse geral? —, a resposta é sempre a mesma: "mecanismos endógenos" à deliberação promovem o melhor resultado. Entregues à sua própria lógica, eles derrotam o racismo, geram a civilidade, forçam a reflexão sobre o bem comum. No mundo de faz-de-conta da teoria, ao qual Dryzek sempre volta, embora não se canse de criticá-lo, já está tudo resolvido. Mas quando fechamos o livro e olhamos em torno, percebemos que pouco avançamos na compreensão dos constrangimentos reais à prática democrática.

A precariedade das conclusões de Dryzek está ligada a um equívoco de origem, que marca toda sua abordagem. A confluência entre o deliberacionismo e o constitucionalismo liberal não é um acidente de percurso, mas um efeito de similaridades profundas entre as duas vertentes. Conforme observou certa vez Atilio Boron (1995, p. 72), no pensamento liberal impera a visão de "um 'céu político' completamente independentizado da base material". Na teoria democrático-deliberativa, tal céu é discursivo. Sem uma ruptura com o idealismo que subjaz a essa concepção, qualquer crítica à "democracia realmente existente" fica comprometida. Nesse sentido, apesar de todas as suas limitações, a corrente "participacionista" dos anos 1970, com a ênfase que dava aos constrangimentos materiais à participação política, abriu uma via bem mais promissora. Sem a recuperação desse legado teórico, dificilmente o deliberacionismo terá como sair da encruzilhada em que se encontra e renovar seu compromisso crítico.

Referências bibliográficas

BORON, Atilio. (1995), "A sociedade civil depois do dilúvio neoliberal", in Emir Sader e Pablo Gentili (orgs.), Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático, São Paulo, Paz e Terra.

BOURDIEU, Pierre. (1996 [1982]), A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo, Edusp.

COHEN, Joshua. (1998), "Democracy and liberty", in Jon Elster (ed.), Deliberative democracy, Cambridge, Cambridge University Press.

DRYZEK, John S. (1996), Democracy in capitalist times: ideals, limits and struggles. Oxford, Oxford University Press.

ELSTER, Jon. (1998), "Introduction", in Jon Elster (ed.), Deliberative democracy, Cambridge, Cambridge University Press.

HABERMAS, Jürgen. (1984 [1962]), Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

__________. (1997 [1992]), Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2 vols. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

YOUNG, Iris Marion. (2000), Inclusion and democracy. Oxford, Oxford University Press.

LUIS FELIPE MIGUEL é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB).

  • *
    No entanto, a aceitação de outras formas de discurso não resolveria a desigualdade entre os grupos sociais, já que o argumento racional possui uma legitimidade simbólica maior e também, é possível especular, uma eficácia maior no debate. Para uma discussão em outro contexto, mas pertinente, ver Bourdieu (1996 [1982]).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Ago 2001
    • Data do Fascículo
      Jun 2001
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