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A conexão eleitoral de uma família política carioca

A conexão eleitoral de uma família política carioca

Karina KUSCHNIR. O cotidiano da política. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000. 162 páginas.

Jairo Nicolau

Ao longo da década de 1990, muitos cientistas políticos dedicaram-se ao estudo do Poder Legislativo no Brasil. Diversos trabalhos empíricos ajudaram a conhecer diferentes dimensões da atividade parlamentar: o padrão da produção legislativa, a disciplina partidária, o trabalho das comissões permanentes e a relação com o Poder Executivo. Esses trabalhos, em geral, privilegiaram uma abordagem endógena (estudo da organização interna do Legislativo). Um tema praticamente negligenciado pela Ciência Política brasileira é o da relação entre os parlamentares e o eleitorado. Afinal, como os senadores, deputados federais e estaduais e vereadores relacionam-se com seus eleitores? Sabemos que, por injunções de nosso sistema eleitoral, os parlamentares precisam cultivar uma relação permanente com sua "base eleitoral", seja ela territorial, profissional, ideológica ou "de identidade". Mas ainda conhecemos muito pouco acerca das diversas formas de relacionamento entre os representantes e os representados no país.

Menosprezada pela Ciência Política, a conexão eleitoral (termo que designa a relação entre os parlamentares e o eleitorado) é tema de interesse crescente por parte da Antropologia. O livro O cotidiano da política, da antropóloga Karina Kuschnir, é, provavelmente, a tentativa mais ambiciosa de descrever a atividade de um parlamentar na arena extralegislativa. O trabalho descreve o cotidiano de uma família de políticos (pai deputado, filha vereadora) de um bairro do subúrbio da cidade do Rio de Janeiro. O pai começou sua atividade parlamentar em 1962 e a filha, sua herdeira política, trinta anos depois, em 1992. Mas o livro privilegia a atuação parlamentar da vereadora e nos apresenta uma descrição detalhada de sua rotina.

O mandato da vereadora se organiza como um típico mandato de serviços, com uma atuação prioritariamente de intermediação entre as demandas populares e o governo. Na concepção da família estudada, fazer política é ter acesso privilegiado aos órgãos públicos e com isso poder atender à comunidade: "[...] a conquista de acessos, ou a entrada para a política, é resultado da colaboração dos membros de uma rede em uma série de trocas. Votos, cargos, indicações, pedidos de promoção, interferência em processos burocráticos e legais, encaminhamento de pedidos são os principais recursos de que os Silveira dispõem para trocar com os membros de sua rede. Em contrapartida, recebem financiamentos, bens materiais e ajuda em forma de trabalho na campanha. Esta é a base que constitui o sistema de dar, receber e retribuir acessos." (p. 105).

Sou daqueles que acredita que livro não é tese. Por isso, penso que livros cuja matriz foi uma tese devem se livrar de algumas marcas que, se fazem sentido para um trabalho apresentado academicamente, são dispensáveis em trabalhos destinados a um público mais amplo: notas extensas, referências bibliográficas em excesso, evidências de erudição para além da conta. O livro de Karina Kuschnir, originalmente uma tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional em 1998, parece ter a preocupação de justamente não aparecer como um livro acadêmico. A começar pelo título seco, sem os subtítulos tão comuns, como por exemplo: a atividade política de uma família do subúrbio do Rio de Janeiro. Não há o inevitável capítulo teórico (quase sempre uma revisão bibliográfica do tema tratado) de abertura. Além de um texto limpo e elegante, as notas são parcimoniosas e até os agradecimentos aparecem apenas ao final do livro. Enfim, nada para espantar o leitor menos especializado.

Mas, apesar da descrição tão rica e reveladora feita pela autora (e talvez por isso), acabei sentindo falta de uma discussão mais aprofundada de como o caso apresentado ajuda a compreender aspectos fundamentais do sistema político e das relações sociais no país. Um tema óbvio é o do clientelismo. O termo tem um sentido pejorativo no meio político e acadêmico e a autora é muito cuidadosa e não condena o tipo de ação política da família estudada. Apenas na antepenúltima página do livro Karina critica as mazelas do clientelismo na política brasileira, lembrando que relativizar não é valorizar positivamente: "o clientelismo é, sem dúvida alguma, uma prática perversa dentro do sistema democrático, sobre o qual se baseiam as instituições políticas brasileiras. Muitas das mazelas do país devem-se à falta de percepção dos direitos e deveres da cidadania por parte da população e, principalmente, dos políticos que ocupam diversas esferas do poder público. Desse ponto de vista, são particularmente nocivos aqueles que, como os Silveira, promovem uma relação de solidariedade vertical com seus eleitores, ignorando práticas de organização e reivindicação de demandas coletivas típicas da cultura cívica." (p. 143).

A conexão eleitoral no Brasil é profundamente marcada pelos mandatos de serviço. Os parlamentares desenvolvem redes de atendimento para os seus eleitores. Alguns montam sistemas de atendimento prioritariamente privados, mas a maioria serve de intermediários entre suas comunidades e o Poder Executivo. Apesar da inexistência de estudos aprofundados sobre o tema, as evidências são de que quanto mais se desce na estrutura federativa e no tamanho do município, mais tende a ser predominante o padrão do parlamentar como intermediador de interesses. Não é por outra razão que a família estudada tem pânico da intermediação política de organizações concorrentes: associações de moradores e partidos políticos. Aliás, pelo relato pode-se observar que partido é uma instituição absolutamente secundarizada na atividade política da família.

O cotidiano da política teve o mérito de abrir a caixa-preta da conexão eleitoral no Brasil. Com sua leitura, aprendemos muito sobre o que faz um parlamentar cujo mandato é dedicado, prioritariamente, a captar demandas de uma comunidade geograficamente definida e a tentar resolvê-las via a ação do Poder Executivo. Existem outras formas de relação entre representados e representantes: a intermediação via o mundo organizado dos parlamentares do PT, a representação ideológica do parlamentar com votação difusa, o mandato a serviço de organizações e lobbies. Outras pesquisas ajudarão não só a descrever essas outras formas de relação entre representantes e representados, como a mensurar a incidência de cada uma no sistema representativo brasileiro.

JAIRO NICOLAU é professor de Ciência Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2001
  • Data do Fascículo
    Jun 2001
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