Resumos
O texto analisa a relação entre religião e globalização. O autor parte da noção de religião "universal" procurando compreender como seu significado se transforma ao longo da história. Com o processo de globalização, rompendo o elo entre Estado-nação e modernidade, a religião é redefinida enquando fenômeno social. Sua abrangência, devido à sua "universalidade" e acoplada aos novos meios tecnológicos, ultrapassa as fronteiras nacionais, permitindo que sua atuação se desenvolva em escala planetária. Nesse contexto, as religiões universais devem competir não apenas com outros credos religiosos, mas também com outras propostas mundializadas de orientação da conduta, por exemplo o universo do consumo. A relação entre religião e política também se modifica, na medida em que as religiões universais se consideram instituições privilegiadas para as quais uma ética de ação no mundo seria definida. Reinterpretando o passado, as religiões conseguem definir um novo campo de atuação, distinto da relação restritiva que existia anteriormente, com o advento da modernidade e o confinamento das relgiões à esfera privada.
Religião; Mundialização; Globalização; Modernidade; Ética
Le texte analyse la relation entre la religion et la globalisation. L'auteur part de la notion de religion "universelle", et cherche à comprendre comment sa signification se transforme tout au long de l'histoire. Avec le processus de globalisation, qui rompt le lien entre l'État-nation et la modernité, la religion est redéfinie en tant que phénomène social. Son étendue, due à son "universalité" et accouplée aux nouveaux moyens technologiques, dépasse les frontières nationales, permettant que son rôle se développe sur une échelle planétaire. Suivant ce contexte, les religions universelles doivent concourir non seulement avec d'autres croyances religieuses, mais aussi avec d'autres propositions mondialisées d'orientation de la conduite comme, par exemple, l'univers de la consommation. La relation entre la religion et la politique se modifie également, dans la mesure où les religions universelles se considèrent des institutions privilégiées pour lesquelles une étique d'action dans le monde serait définie. Les religions, en réinterprétant le passé, arrivent à établir un nouveau champs d'action, distinct de la relation restrictive qui existait antérieurement. Ceci est dû à l'avènement de la modernité et au confinement des religions dans la sphère privée.
Religion; Mondialisation; Globalisation; Modernité; Étique
The text analyzes the relationship between religion and globalization. The author departs from the "universal" notion of religion, trying to understand how its meaning changes throughout history. With the globalization process, breaking the link between the Nation-State and modernity, religion is redefined as a social phenomenon. Its scope, due to its "universal aspect" and its connection to the new technological means, surpasses national borders, allowing a performance in a planetary scale. In this context, universal religions should compete not only with other religious credos, but also with other worldwide proposals of conduct orientation, such as the universe of consumption. The relationship between religion and politics has also been modified, in the sense that universal religions are considered to be privileged institutions for which ethical actions in the world could be defined. Rethinking the past, the religions can define a new field of action, distinct from the restrictive relationship that existed previously to the advent of modernity and the confinement of religions to the private sphere.
Religion; Globalization; Modernity; Ethics
ANOTAÇÕES SOBRE RELIGIÃO E GLOBALIZAÇÃO* * Uma versão abreviada deste texto foi apresentada no encontro "Os desafios da globalização", em julho de 2000, organizado pela World Association for Christian Communication e pelo Centro de Estudios Avanzados da Universidade de Córdoba, Argentina.
Renato Ortiz
Minha intenção neste texto sintético, e de certa forma incompleto, é considerar alguns aspectos para se compreender a problemática religiosa no mundo contemporâneo. Não me refiro à temática em toda sua extensão, ou a questões particularmente complexas da religiosidade individual na vida moderna, quero apenas explorar uma dimensão do problema tomando a relação religião/globalização como foco de minha atenção. As mudanças recentes nos desafiam a pensar não apenas temas novos, mas também objetos ditos "tradicionais" das Ciências Sociais, pois fenômenos que conhecíamos antes ganham muitas vezes uma feição distinta no contexto atual. Minha reflexão parte de uma premissa - para usar uma metáfora de Milton Santos -: na medida em que o mundo se expandiu e encolheu, ele tornou-se um "lugar". Isso tem implicações sobre os universos religiosos. Recordo que a literatura sociológica tradicionalmente tem distinguido entre religiões universais e religiões particulares. O universal associa-se à idéia de mobilidade enquanto o particular tenderia ao enraizamento. Quando Weber afirma que as crenças mágicas são particulares, ele quer dizer que seu alcance se limita ao círculo de uma localidade. Estou convencido de que o processo de mundialização da cultura transforma radicalmente as noções de internacional, nacional e local. Nesse sentido, as religiões "particulares" têm também seu estatuto alterado pela globalização (penso, por exemplo, na mobilidade dos candomblés e dos vaudous que podem hoje ser encontrados em Paris, Buenos Aires, Nova York, distantes de seu núcleo de origem). Entretanto, neste texto, preferi limitar-me às chamadas religiões universais. Essas notas têm ainda para mim um significado particular, pois retomo um assunto com o qual iniciei minha formação intelectual tendo por vários anos me ocupado do campo da sociologia e da antropologia da religião. Como meus últimos trabalhos têm sido sobre a problemática da globalização,1 1 Ver Mundialización y cultura, Buenos Aires, Alianza Editorial, 1997; Otro territorio: ensyaos sobre el mundo contemporaneo, Santa Fé de Bogotá, Convenio Andrès Bello, 1998; O próximo e o distante: Japão e modernidade-mundo, São Paulo, Brasiliense, 2000. particularmente a mundialização da cultura, aproveito esta oportunidade para revisitar um tema que me é familiar, abordando alguns elementos relacionados não apenas à religião, mas também à nossa contemporaneidade.
1. Geralmente define-se como religião universal as crenças (judaísmo, confucionismo, bramanismo, budismo, cristianismo, islamismo) cuja compreensão do mundo propõe uma ética na qual o indivíduo escolheria, com maior ou menor grau de autoconsciência, o caminho de sua "salvação".2 2 Consultar Max Weber, Economia y sociedad, México, Fondo de Cultura Económica, 1984. Weber contrapõe, de forma ideal típica, essas religiões às crenças "irracionais" mágicas (os antropólogos corretamente contestam o termo irracional quando aplicado à esfera mágico-religiosa), nas quais o elemento de escolha, de individuação, estaria contido pelas exigências das divindades locais e pelas práticas do costume. Um autor como Karl Jaspers considera que as religiões universais tiveram um papel fundamental na história das sociedades humanas, elas constituiriam uma espécie de ruptura com o passado até então vigente.
O que, neste caso, entender por universal? Há primeiro a dimensão ética: o indivíduo, contrastando sua imersão imediata no relato mítico, pertenceria agora a um "universo", libertando-se do peso da tradição local e escolhendo o seu próprio "caminho". Do ponto de vista sociológico, o termo universal encerraria aspectos tais como: a) Uma oposição ao "particularismo", ou seja, aos costumes, valores e poderes nos limites restritos das localidades. Jack Goody observa que o surgimento da escrita é fundamental neste processo, pois, contrariamente à oralidade, que se enraíza no imediatamente dado (há a necessidade constante de se rememorizar os eventos passados para que não caiam no esquecimento), ela seria um fator determinante na descontextualização das normas.
Quando tratadas em contraposição ao pensamento mítico, as religiões universais surgem como um bloco homogêneo, mas, olhando-se de mais perto, observam-se diferenças substanciais no destino de cada uma delas. Se a noção de universal pode ser idealmente proposta, como o fiz anteriormente, é necessário, ao voltar-se para o domínio da história, marcar os limites de sua validade. Há primeiro uma restrição de ordem doutrinária. Algumas religiões têm um corpo teórico, ou seja, um conjunto coerente de argumentos teológicos, cuja abrangência é restrita. Este é o caso do bramanismo, que pressupõe a existência de uma sociedade de castas nos moldes encontrados hoje somente na Índia. Sua migração para outros lugares torna-se, assim, comprometida de antemão. Algo semelhante ocorre com o judaísmo. Os conceitos de "aliança" (é Deus quem faz um contrato com o "povo eleito" escolhendo os judeus como objeto de sua preferência e não os outros povos da face da Terra) e de "terra prometida" atuam, por um lado, como elementos dinâmicos de integração do povo judeu, por outro, como freios ao movimento de universalização do judaísmo para fora de suas fronteiras particulares.9 9 Sobre este ponto ver Theodore E. Long, "Old testament universalism", in R. Robertson e W. Garret (orgs.), Religion and global order, Nova York, Paragon House Publishers, 1991. Nesse sentido, comparativamente ao judaísmo, pode-se dizer que o cristianismo, ao distanciar-se da herança judaico-cristã, abre a perspectiva de se ampliar através do mecanismo da conversão (Paulo considera vital para o cristianismo a ruptura com a comunidade judaica).10 10 Consultar Jean Daniélou, L'église des premiers temps, Paris, Éditions du Seuil, 1985. Entretanto, a possível expansão das religiões universais não repousa apenas em aspectos doutrinários, é necessário que elas se adequem às exigências da história. Catolicismo e islamismo, para se universalizarem, necessitam ser impulsionados por guerras santas e pelos interesses concretos de dominação dos impérios e das civilizações. As condições históricas liberam potencialidades e impõem restrições ao movimento dessas crenças.
Destaco ainda um outro tipo de limitação. Gellner observa que o movimento de descontextualização das normas, capaz de remover os grupos sociais de suas localidades, de seus focos particulares, integrando-os em uma totalidade mais ampla, se faz, nas sociedades passadas, de modo fragmentário sendo que, no melhor dos casos, circunscreve-se às cidades e parte dos impérios.
2. A relação entre religião e modernidade foi amplamente discutida pelos sociólogos. Desencantamento do mundo, secularização das instituições e das relações sociais, separação entre a Igreja e o Estado, emergência da ciência e da técnica enquanto saberes secularizados, enfim, perda da centralidade da religião como elemento de organização da sociedade como um todo. Muito desse debate, quando mal formulado, levou a certos impasses, como a discussão sobre o "fim da religião" no século XIX, e hoje, a meu ver, do "retorno" do sagrado. Não há dúvida de que uma leitura evolucionista do progresso levou inúmeros pensadores a imaginar a religião como um anacronismo. Diante do avanço da ciência, da técnica e da secularização, ela teria os seus dias contados. É bem verdade que o século XIX produziu também alguns sincretismos entre a religião e o progresso, procurando mesclar pólos aparentemente tão díspares, penso em Auguste Comte e seu culto da Humanidade, e nos "fazedores de deuses", como dizia Lênin, de Lunacharski e Gorki durante a revolução bolchevique.13 13 Ver A. Lunacharski, Religione e socialismo, Rimini, Ed. Guaraldi, 1973. Mas certamente predominou uma visão mais simplificadora e menos sutil, conferindo à técnica, não uma primazia, mas o poder de eliminar definitivamente as crenças religiosas. No entanto, é suficiente estarmos atentos para compreender que o advento da sociedade industrial não implica o desaparecimento da religião, mas o declínio de sua centralidade enquanto forma e instrumento hegemônicos de organização social. Ou seja, o processo de secularização confina a esfera de sua atuação a limites mais restritos, mas não a apaga enquanto fenômeno social. Nesta perspectiva, o debate sobre o desaparecimento dos universos religiosos é simplesmente inconseqüente. Basta lembrar que Durkheim, quando discutia a supremacia da ciência sobre a religião, dizia que essa última de fato, do ponto de vista explicativo, perdia terreno para o pensamento científico, porém, como a ciência era para ele uma "moral sem ética", isto é, um universo interpretativo incapaz da dar sentido às ações coletivas, o potencial das religiões, como forma de orientação da conduta, de uma ética de ação no mundo, permanecia inteiramente válido.
Do debate sobre a modernidade sublinho uma dimensão pouco valorizada nos escritos clássicos (Marx, Weber, Durkheim): a relação entre nação e modernidade. A emergência da sociedade industrial não significa apenas secularização, desenvolvimento da técnica, racionalização das esferas de saber, surgimento de instâncias políticas distintas, redefinição das classes sociais. Isso tudo tem evidentemente um papel crucial na organização de um novo tipo de sociedade. Inúmeras obras tratam do tema revelando as conseqüências desta mudança radical. Entretanto, e este é o aspecto que me interessa, a sociedade industrial implica também um processo de integração econômica, territorial, política, lingüística e cultural, que se faz em torno de um outro tipo de formação social: a nação. Esta última tem a capacidade de aglutinar os indivíduos no seio de uma consciência coletiva que os envolve e os transcende. A nação é um tipo de organização social que integra grupos e classes sociais diferenciados dentro de uma mesma totalidade. Não apenas os integra, mas os representa simbolicamente no seio desta totalidade. Ela é forma social e representação coletiva, ou, como diria Marcel Mauss, "unidade moral, intelectual e mental".
Posso agora retomar o debate sobre fim do monopólio religioso sob um outro ângulo. Filósofos, cientistas políticos e historiadores nos mostram que o Estado moderno se constitui a partir de um conjunto de premissas: soberania, democracia, cidadania, igualdade de direitos. É claro que historicamente ele teve antes de conquistar alguns elementos fundamentais para o seu funcionamento - centralização do poder, monopólio da violência dentro de uma área geográfica determinada, enfim, dispor de uma série de mecanismos que permitissem a garantia de sua integridade (o que se fez em boa parte por meio das guerras). Contudo, os princípios de sua legitimidade, concebidos como válidos no seio de sua autonomia, exprimem-se agora com uma exigência específica: devem ser "universais", isto é, válidos para "todos". O Estado moderno é impessoal, contrasta com os concepções anteriores que valorizavam o seu fundamento divino, e baseia-se numa ordem legal que delimita uma estrutura comum de autoridade partilhada pelos membros de uma mesma comunidade. Nesse sentido, soberania e popular caminham juntos, pois a legitimidade da arte de governar se sustenta pelo consenso entre os indivíduos autônomos. Não importa tanto, para a finalidade dessa discussão evidentemente, se esses valores tenham sido, efetivamente ou não, partilhados pela maioria da população vivendo no interior desses Estados (existem razões objetivas - classes sociais, oligarquias, racismo, guerras - que se contrapõem à realização desses valores). A rigor, a conquista da cidadania é lenta, gradual e incompleta. Torna-se mais ampla entre o fim do século XIX e meados do século XX, com o fim da escravidão, o direito da classe trabalhadora de se organizar sem coerções, o sufrágio feminino, o direito das comunidades negras nos Estados Unidos de se exprimir livremente na vida política, mas mesmo assim não se estende a todos os países do planeta. Importa, porém, reter que o pensamento Iluminista e as revoluções políticas subseqüentes (entre elas a francesa e a norte-americana) concebem como "universal" um conjunto de princípios: democracia, igualdade, liberdade, cidadania. Entretanto, esta universalidade só pode existir enquanto particularidade, isto é, conjunto de valores encarnados no Estado-nação. Cada nação seria, assim, um "universal" em miniatura (princípio utilizado inclusive nas lutas anticolonialistas, pois cada país reivindica a universalidade de sua autonomia diante da opressão e do jugo colonial). Nesse sentido, o conflito entre Estado moderno e religião desdobra-se na contradição entre nação e religião. Lembro que os valores pressupostos pelo legado Iluminista não eram parte do pensamento religioso anterior. Certamente pode-se "ler" hoje o Evangelho como uma mensagem revolucionária, como pretendem os representantes da Teologia da Libertação, ou procurar um elo filosófico entre o Alcorão e os preceitos da modernidade, como o fazem vários intérpretes islâmicos. Mas, não nos esqueçamos, trata-se de leituras retroativas, feitas a posteriori, já que definitivamente não foi assim que o catolicismo e o islamismo se implantaram historicamente. Pode-se então dizer que o movimento de integração da nação desloca a capacidade universalizante da religião, retirando-lhe a primazia que desfrutava anteriormente. Nesse movimento de tensão e disputas é preciso sublinhar o surgimento de um horizonte novo, constitutivo da modernidade política. Isso significa que a universalidade das religiões é preterida, pois, doravante, um outro "universal" torna-se prevalecente, realizando-se no plano de cada nação. Tudo se passa como se o Estado, moderno e nacional, segregasse as ambições universalistas da religião.
3. Em que medida o processo de globalização modifica ou não a posição da religião no mundo contemporâneo? Para isso é necessário ter claro pelo menos alguns aspectos do que se denomina por globalização: a) trata-se de um processo social que atravessa os lugares de maneira diferenciada e desigual; b) sua lógica não se explica através do Estado-nação, daí falarmos em "sociedade global", world system, "modernidade-mundo"; e c) a noção de espaço e de tempo é redefinida neste contexto. Não quero me alongar sobre as múltiplas dimensões que poderiam caracterizar melhor o problema, minha intenção é apenas assinalar a existência do processo e dele tirar algumas conseqüências em relação ao tema aqui discutido.
Dois pontos devem ser preliminarmente esclarecidos. Primeiro, da mesma maneira que não faz sentido falar em "uma" cultura global, tenho debatido este aspecto em diversos trabalhos, seria um contra-senso imaginarmos a existência de "uma" religião global. Na diversidade interna ao processo de globalização, as religiões guardam suas especificidades e idiossincrasias (dizer que vivemos num mesmo mundo não significa que ele seja idêntico para todos). Segundo, o papel não estruturante da religião em relação às matrizes da modernidade-mundo e do capitalismo global também não se modifica. Racionalização das esferas de conhecimento, predomínio da técnica no processo produtivo, gestão empresarial, separação entre Igreja e Estado, desencantamento do mundo, são conquistas da modernidade (isto é, elementos válidos para o tipo de organização social que conhecemos, distinto das sociedades tradicionais, enquanto este "sistema" for vigente). Nesse sentido, não há "retorno do sagrado". A modernidade-mundo não se organiza segundo princípios religiosos (o que não significa que não existam países, por exemplo, no mundo árabe, onde o predomínio da religião, enquanto "consciência coletiva", não tenha um peso capital). Apesar do florescimento de novas crenças religiosas, da intensificação de uma religiosidade individualizada, da vitalidade de religiões que pareciam extintas, uma constatação se impõe: o lugar que o universo religioso ocupava nas sociedades tradicionais foi definitivamente remodelado pela modernidade. Entretanto, não se pode deixar de entender que a ação das religiões num mundo globalizado adquire uma outra configuração.
Tradicionalmente, a contraposição entre religião e Estado tem sido analisada sob uma perspectiva que acentua a posição secundária dos universos religiosos. De fato, o Estado-nação desloca a religião enquanto fonte privilegiada de integração social e cultural fundando sua existência num outro tipo de lógica. Isso se coloca claramente em relação à política. Na medida em que ele é o foro central de orientação coletiva das ações, caberia à religião um papel menor. Este é o núcleo da disputa entre legitimação religiosa e secularização. Até mesmo quando o Estado e a religião atuam conjuntamente, a relação entre eles permanece separada e distinta. A noção de "concordata", analisada por Gramsci, revela bem este aspecto.16 16 As observações de Gramsci sobre a religião são particularmente sugestivas e encontram-se espalhadas em sua obra Quaderni del carcere, Torino, Ed. Einaudi, 1975 (4 vols.). Ver ainda Renato Ortiz, "Gramsci/Weber: contribuições para uma teoria da religião" e "Gramsci, problemas de religião", in A consciência fragmentada, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980. Quando Mussolini e o Vaticano chegam a um acordo para uma atuação comum, o que se tem é a aliança de um Estado incapaz de impor sua hegemonia para o conjunto do povo italiano, e a Igreja católica que, em troca de certas vantagens, confere à ordem estabelecida um fator adicional de legitimação. O princípio da "concordata" exprime certamente a complementaridade de interesses, mas sem deixar de demarcar a exterioridade entre poder religioso e poder secular, garantindo a este último melhores condições para ditar suas regras. O destino da nação é, portanto, aglutinado no espaço de sua laicidade. Com a globalização surgem, no entanto, algumas questões novas. Fazer política, no sentido moderno do termo, significa atuar basicamente dentro dos marcos do Estado-nação. Governo, partidos, sindicatos, movimentos sociais, o tem como referência principal. A própria política internacional se faz considerando-o como centro, ponto de partida. O dilema atual é que a debilitação do Estado-nação lhe retira poder. Sua capacidade de ação ante uma conjuntura na qual as decisões de ordem transnacional são cada vez mais importantes torna-se limitada. Há aqui uma mudança substancial. Com a Revolução Industrial, o Estado-nação é pensado como o lugar ideal para a realização do universal da modernidade. Em um mundo globalizado, a relação nação/modernidade cinde-se, pois a modernidade-mundo transborda as fronteiras existentes. O que antes era visto como lugar privilegiado de universalidade torna-se pequeno, circunscrito. Ora, as religiões que estamos considerando, por sua própria natureza, transcendem os povos e os Estados-nação. Esta característica, com o advento do Estado moderno, considerada restritiva na situação presente, torna-se uma vantagem. Devido à sua vocação transnacional, a religião, pelo menos em tese, pode atuar de forma mais abrangente sem o constrangimento das forças locais. Digo "local" porque o termo é revelador. Diante do processo de globalização o estatuto da nação passa por uma mudança radical, ele caminha do "universal" para o "particular". As discussões atuais sobre política e cultura confirmam esse aspecto. O debate sobre democracia num mundo globalizado, independentemente de sua orientação (direitos humanos, ecologia, violência, FMI etc.), implica a constatação de que a soberania nacional é insuficiente para equacionar os temas da ação política.17 17 Consultar David Held, Democracy and global order: from the modern state to cosmopolitan governance, Cambridge, Polity Press, 1997. Se antes a nação era o espaço privilegiado de realização dos valores universalistas, ela torna-se agora um problema. Suas fronteiras são vistas como restrições anti-cosmopolitas. Do ponto de vista cultural, um sutil deslocamento se produz, ela deixa também de ser considerada algo "para todos" para se tornar uma "diferença". Isto é, constitui-se num "local" específico contrapondo-se a algo que a transcende, o mundial, o global. A noção de "diferença" sobrepõe-se assim à de "universal". Pode-se ainda acrescentar uma outra dimensão ao debate. Procurei demarcar anteriormente como o "universal" da modernidade se distinguia do "universal" religioso. No entanto, é possível argumentar que atualmente, para algumas dessas religiões, valores, como cidadania e democracia, foram incorporados ao discurso e à prática religiosa. Por exemplo, a Igreja católica, seu aggiornamento, desde o concílio Vaticano II, fez com que ela deixasse de compreender a modernidade como uma ameaça, para considerá-la uma ordem legítima. Assim, a defesa dos direitos humanos torna-se uma premissa, base de uma ação política no contexto de uma "sociedade civil mundial".18 18 Consultar entre outros José Casanova, "Global catholicism and the politics of civil society", Sociological Inquiry, 66 (3), 1996. Não estou sugerindo que a religião seja a forma ideal, nem a mais adequada, de se "fazer política" ou de se agir mundialmente. Quero, no entanto, marcar que seu caráter universalista lhe dá outras possibilidades de ação; possibilidades em grande parte denegadas ao Estado-nação. Se entendermos poder como potência, capacidade de realizar certos objetivos em determinadas situações concretas, no mundo contemporâneo, as instituições religiosas e as empresas transnacionais, por se definirem como "além das fronteiras", dispõem de pontencialidades que lhes são favoráveis para agir em escala globalizada (isso certamente irá variar com as situações em que estão inseridas essas instituições).
4. Lembro que a definição de religião, dada por Durkheim, difere em muito da proposta por Weber. Enquanto este último a considera uma espécie de "empresa de salvação das almas", Durkheim valoriza justamente o elemento de solidariedade: ela vincula os indivíduos no interior de uma "igreja". Toda religião é, portanto, um lugar de memória e de identidade. Ao congregar as pessoas, ela lhes fornece um terreno e um referente comum no qual a identidade do grupo pode se exprimir. As crenças religiosas, enquanto "consciências coletivas", aglutinam o que se encontrava antes disperso. Não é fortuito que o conceito de "memória coletiva" tenha sido cunhado por Halbwachs, um destacado integrante da escola durkheimiana.
Essas observações nos remetem novamente à questão da política. Na literatura especializada a relação entre religião e política tem sido geralmente pensada como algo antitético. A emergência do Estado moderno, secularizado, levou os autores a considerá-lo algo intrinsecamente associado à coisa pública enquanto a religião se restringiria ao domínio do privado. Marx adota essa perspectiva ao considerar a questão judaica. O conflito entre fé e consciência política estaria resolvido desde que os judeus confinassem sua religiosidade à esfera da vida privada. O princípio aplicar-se-ia ao catolicismo, ao protestantismo, enfim, a todas as crenças religiosas. Suas manifestações são legítimas quando distantes da res publica. A relação Igreja/Estado seria, nesse caso, homóloga a privado/público. Em parte essa premissa é verdadeira. A separação ensejada pela secularização coloca certamente em situações distintas o Estado e o público, a religião e o privado. Para que os princípios democráticos pudessem se afirmar foi necessário distingui-los dos universos religiosos. Igualdade perante a lei é um direito de todos, não apenas de alguns grupos de fé. Isso levou, entretanto, a se pensar a existência de uma "esfera pública" na qual a religião estaria inteiramente excluída (afinal, trazer questões desta ordem seria de uma certa forma privatizá-la). Talvez por isso a Ciência Política tenha sempre se ocupado dos fenômenos religiosos de maneira periférica. A rigor, essa forma de pensar tem algo de eurocêntrico. Bastaria confrontá-la a exemplos históricos concretos para se perceber como as crenças religiosas têm muitas vezes um papel decisivo na vida política. O caso do confucionismo no Japão é exemplar. A "esfera pública", construída em torno do Estado nacional foi, desde a revolução Meiji, trabalhada pelos valores de piedade filial, respeito à autoridade, conformismo às regras estabelecidas (o culto ao imperador antes da derrota de 1945; a submissão à autoridade sem questionamento por parte dos indivíduos).22 22 Ver o brilhante trabalho de Masao Maruyama, Essai sur l'histoire de la pensée politique au Japon, Paris, PUF, 1996. Consultar ainda Y. Shinichi, "Le concept de public-privé", in H. Yoichi e C. Sautter (orgs.), L'état e l'individu au Japon, Paris, École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1990. É impossível compreender a história política japonesa sem levar em conta esses elementos. O mesmo é válido para a Teologia da Libertação na América Latina. Trata-se de uma concepção religiosa que se insere diretamente no domínio público da ação política. Não quero me alongar, porém, nesse tipo de crítica (não é este meu objetivo no momento). Chamo a atenção para o aspecto marcadamente disjuntivo que a literatura nas Ciências Sociais estabelece entre religão e política. Não resta dúvida de que a dimensão de individuação, ou seja, do privado, intrínseca à modernidade, se aplica ao universo religioso. Nesse sentido, a aceleração da modernidade-mundo reforça alguns aspectos "privatizantes" do homem contemporâneo. Não é casual que o termo "religiosidade", utilizado para caracterizar uma fé individualizada, se contraponha ao de "religião" enquanto sistema coerente de crenças. Como se a inclinação pessoal sobrepujasse a coletiva (por exemplo, a existência de um "esoterismo" difuso entre as classes médias de países industrializados e de grandes centros urbanos). Porém, como bem observa Peter Beyer, o processo de globalização também favorece a religião, ampliando o campo de sua influência pública.
5. Um tema recorrente no debate sobre as religiões universais diz respeito à ética. Max Weber, em seu livro Ética protestante e espírito capitalista, caracteriza muito bem essa dimensão. Ele considera o protestantismo, particularmente na sua versão calvinista, uma interpretação capaz de validar uma ação com implicações econômicas específicas, no caso, capitalista. O caminho da "salvação" passaria assim pelo ajustamento do comportamento individual às regras ditadas pela mentalidade religiosa. Ética significa, portanto, ação, conduta ajustada a um conjunto de valores previamente prescritos. Não deixa de ser significativo constatar que nos últimos anos a discussão sobre a ética ressurja, e agora em termos planetários. Nos anos 90, a Unesco organizou dois debates sobre "ética universal" e sua relação com a temática da globalização (Paris, março de 1997; Nápoles, dezembro de 1997). O filósofo Karl Apel tem insistido sobre a necessidade dos problemas mundiais serem equacionados a partir de uma base comum de valores partilhados por "todos".
Discutir em termos de ética global significa levantar a questão da ação em âmbito planetário. Sabemos que toda identidade é uma construção simbólica que se faz em relação a um referente. Há certamente uma multiplicidade de referentes: étnicos, nacionais, de gênero etc. As religiões universais para construírem suas novas identidades necessitam de um referente global. Daí a íntima relação que se estabelece com a problemática ecológica. Cito, por exemplo, os argumentos de um estudioso budista: "o budismo nos ajuda a abrir nossos olhos espirituais e abarcar o ciclo ecológico e global. Ele nos ensina como manter nossas vidas sem gastar os recursos preciosos, e como controlar nossos desejos, o que é possível de acordo com o princípio budista do comportamento espiritual equilibrado, aplicável tanto à produção quanto ao consumo".
Os textos de Leonardo Boff são também exemplares.
Diante do processo de globalização, um pensador protestante propõe uma releitura da noção de "ecumenismo".
Tem-se assim que determinada proposta de universalidade se choca com outras, de igual alcance, mas de natureza diversa. Um exemplo seria o antagonismo entre islamismo e consumismo. Um autor como Akbar Ahmed, a partir de seu ponto de vista islâmico, capta muito bem esse aspecto ao contrapor o shopping à mesquita. O shopping seduz, estimula os sentidos, imerge o indivíduo no reino das coisas oferecendo-lhe a sensualidade das oportunidades.
É comum percebemos o consumo como algo exclusivo ao reino material, uma mera apropriação dos bens, escolhidos segundo o gosto e as inclinações de cada um. Na verdade, ele pressupõe uma ética, uma disposição alimentada pelo imaginário coletivo. A publicidade não é apenas uma técnica de venda, ela o foi no passado; nas sociedades contemporâneas, é fonte permanente de exemplaridade, estilos de vida, normas de conduta. Como as religiões, o consumo é um universo repleto de signos e de mitos, um "mundo" com particularidades e exigências próprias. Trata-se de um universo de abrangência planetária que constitui uma verdadeira cultura "internacional-popular", graças aos meios de comunicação, à indústria cultural, às corporações transnacionais, aos ídolos da música pop e às estrelas de cinema. Como nos diz Baudrillart, o consumo é uma "moral", requer uma forma de conduta, ao que eu acrescento, contrapondo-se a outras moralidades de envergadura mundial.
A discussão sobre o universal é sempre difícil e controversa. Muitos filósofos e pensadores religiosos acreditam na existência de um "ser humano", substrato transcendente ao espaço e ao tempo, às culturas e à história. Uma vez aceito este postulado, pode-se evidentemente indagar sobre sua natureza e seu destino. Desconfio porém desta perspectiva, prefiro alinhar-me entre aqueles que pensam o "universal" como algo historicizado, imerso nas situações concretas das organizações sociais e das relações de poder. Nesse sentido, não há "o" ser humano, mas sociedades distintas nas quais homens e mulheres encontram-se inseridos. A temática do universal, enquanto sinônimo de democracia, igualdade e cidadania (valores que pessoalmente prezo muito) é, portanto, uma problemática "particular" do "universal" da modernidade. Dificilmente poderíamos projetá-la no passado (Moses Finley critica a impropriedade de certos estudos históricos quando aplicam à sociedade grega o conceito de democracia), e se o fazemos em relação ao futuro, de uma certa forma utopicamente, é porque o imaginamos relativamente próximo às formas que conhecemos. Porém, independentemente do partido que se toma, a reflexão sobre as religiões nos permite compreender como esse debate, longe de ser algo ultrapassado, como pensa uma certa literatura pós-moderna, é pertinente e atual. O advento da globalização reinsere a legitimidade dos "grandes relatos" no contexto contemporâneo, invertendo um pouco os prognósticos feitos por Lyotard. Um mundo global, para ser compreendido, e para se constituir num espaço de ação política, leva necessariamente à elaboração de um entendimento "universal", abrangente, totalizador. A afirmação das "diferenças", embora importante, não é suficiente para dar conta da situação presente. Certamente os "relatos" produzidos, por forças e interesses distintos, muitas vezes antagônicos, não são análogos nem coincidentes. Há diferenças substanciais entre a perspectiva neoliberal - uma apologia do mercado -, a proposta ecológica (talvez fosse mais correto dizer "as propostas", no plural), as visões religiosas e um eventual neo-socialismo. Entretanto, cada uma dessas narrativas se articulam enquanto "universalidade", isto é, sua amplitude é mundial. Utilizando uma expressão de Foucault eu diria: elas são "regimes de verdade" que planetariamente buscam afirmar sua validade. Seus universais historicizados coexistem, se complementam, e certamente competem entre si. O mundo é o cenário de sua materialização.
NOTAS
RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS
ANOTAÇÕES SOBRE RELIGIÃO E GLOBALIZAÇÃO
Renato Ortiz
Palavras-chave
Religião; Mundialização; Globalização; Modernidade; Ética.
O texto analisa a relação entre religião e globalização. O autor parte da noção de religião "universal" procurando compreender como seu significado se transforma ao longo da história. Com o processo de globalização, rompendo o elo entre Estado-nação e modernidade, a religião é redefinida enquando fenômeno social. Sua abrangência, devido à sua "universalidade" e acoplada aos novos meios tecnológicos, ultrapassa as fronteiras nacionais, permitindo que sua atuação se desenvolva em escala planetária. Nesse contexto, as religiões universais devem competir não apenas com outros credos religiosos, mas também com outras propostas mundializadas de orientação da conduta, por exemplo o universo do consumo. A relação entre religião e política também se modifica, na medida em que as religiões universais se consideram instituições privilegiadas para as quais uma ética de ação no mundo seria definida. Reinterpretando o passado, as religiões conseguem definir um novo campo de atuação, distinto da relação restritiva que existia anteriormente, com o advento da modernidade e o confinamento das relgiões à esfera privada.
NOTES ON RELIGION AND GLOBALIZATION
Renato Ortiz
Keywords
Religion; Globalization; Modernity; Ethics.
The text analyzes the relationship between religion and globalization. The author departs from the "universal" notion of religion, trying to understand how its meaning changes throughout history. With the globalization process, breaking the link between the Nation-State and modernity, religion is redefined as a social phenomenon. Its scope, due to its "universal aspect" and its connection to the new technological means, surpasses national borders, allowing a performance in a planetary scale. In this context, universal religions should compete not only with other religious credos, but also with other worldwide proposals of conduct orientation, such as the universe of consumption. The relationship between religion and politics has also been modified, in the sense that universal religions are considered to be privileged institutions for which ethical actions in the world could be defined. Rethinking the past, the religions can define a new field of action, distinct from the restrictive relationship that existed previously to the advent of modernity and the confinement of religions to the private sphere.
NOTES SUR LA RELIGION ET LA GLOBALISATION
Renato Ortiz
Mots-clés
Religion; Mondialisation; Globalisation; Modernité; Étique.
Le texte analyse la relation entre la religion et la globalisation. L'auteur part de la notion de religion "universelle", et cherche à comprendre comment sa signification se transforme tout au long de l'histoire. Avec le processus de globalisation, qui rompt le lien entre l'État-nation et la modernité, la religion est redéfinie en tant que phénomène social. Son étendue, due à son "universalité" et accouplée aux nouveaux moyens technologiques, dépasse les frontières nationales, permettant que son rôle se développe sur une échelle planétaire. Suivant ce contexte, les religions universelles doivent concourir non seulement avec d'autres croyances religieuses, mais aussi avec d'autres propositions mondialisées d'orientation de la conduite comme, par exemple, l'univers de la consommation. La relation entre la religion et la politique se modifie également, dans la mesure où les religions universelles se considèrent des institutions privilégiées pour lesquelles une étique d'action dans le monde serait définie. Les religions, en réinterprétant le passé, arrivent à établir un nouveau champs d'action, distinct de la relation restrictive qui existait antérieurement. Ceci est dû à l'avènement de la modernité et au confinement des religions dans la sphère privée.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Abr 2002 -
Data do Fascículo
Out 2001