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A sociedade civil se organiza na América Latina

A sociedade civil se organiza na América Latina

Sonia E. ALVAREZ, Evelina DAGNINO e Arturo ESCOBAR (orgs.). Cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos (novas leituras). Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001. 538 páginas.

Céli Regina Jardim Pinto

As grandes coletâneas são sempre bem vindas, mas ao mesmo tempo sempre vêm acompanhadas de um perigo eminente, que decorre da enorme dificuldade que este tipo de produção tem de reunir um conjunto coerente de textos, que além de um vago tema comum tenha uma proposta realmente integradora. O livro organizado por Alvarez, Dagnino e Escobar é uma dessas obras, que consegue manter ao longo de 538 páginas um claro fio condutor, fruto de um projeto comum de investigação, partindo de uma questão conceitual relevante.

A questão central ao redor da qual se organiza o livro é a da presença da dimensão cultural na luta política na América Latina, isto é, na constituição da cultura como um fato político e seus efeitos na luta por democratização, construção de esferas públicas e exercício de cidadania. Dessa forma, desde sua introdução o livro polemiza com o mainstream das análises sobre democracia na região: "as análises predominantes da democracia centram-se no que os cientistas políticos batizaram de 'engenharia institucional', requisito para a consolidação da democracia representativa no Sul das Américas" (p 33).

O livro organiza-se em três partes: a primeira trata das questões mais especificas de democracia e Estado; a segunda, de etnicidade, raça e gênero; e a terceira, de globalização e transnacionalismo. Os capítulos que dão conteúdo a cada uma delas trazem todos, de alguma forma, resultados de pesquisas que discutem a questão da cultura em relação a cada uma dos três grandes cortes.

Quatro artigos formam a primeira parte do livro, em que são discutidas questões de fundo sobre a organização dos movimentos sociais e seus enfrentamentos com a arena política e na luta por direitos. Dagnino examina a transformação dos discursos e das práticas da esquerda na América Latina e chama a atenção, com muita propriedade, tanto para a herança de uma cultura hierárquica (p. 82) quanto para a importância dada pelos movimentos sociais a uma nova cidadania igualitária. Conclui o artigo trazendo resultados de sua pesquisa sobre cultura, democracia e cidadania em São Paulo. Paoli e Telles discutem o paradoxo entre democracia e desigualdade social, afirmando que este "põe em foco as questões clássicas dos direitos, da justiça e da igualdade" (p. 104). Sublinham também a relevância do aparecimento dos pobres na esfera pública como sujeitos de direito reconhecido. Com referência ao Brasil, discutem a importância de uma cidadania politicamente construída e apontam algumas experiências que consideram de sucesso, como a da Câmara setorial automotiva.

Os dois outros artigos que compõem a primeira parte, apesar de examinar duas realidades muito distintas, trazem para a discussão a questão fundamental da relação entre os movimentos sociais e o Estado. Schild, tratando do movimento feminista no Chile, aponta para os efeitos da aproximação do feminismo profissionalizado em ONGs com o projeto de Estado neoliberal presente no país. Nesse encontro, o autor indica a existência de um novo tipo de discurso constituidor da cidadania: "uma nova chaveta ideológica é a ênfase nas responsabilidades da cidadania em oposição aos 'meros' direitos" (p. 164). Baierle, no outro artigo, parece fazer um contraponto a este cenário: ao analisar o orçamento participativo a partir da história dos movimentos sociais urbanos da cidade de Porto Alegre, ele mostra como um longo aprendizado na esfera pública torna qualitativamente distinta a relação de setores organizados da sociedade civil com as esferas governamentais.

A segunda parte do livro é composta por quatro artigos que tratam de movimentos de comunidades étnicas e sociais e discutem a questão da construção da diferença na luta política através da afirmação do cultural. Rubin, estudando o movimento mexicano CONCEI (Coalizão de operários, camponeses e estudantes no istmo), mostra o interessante paradoxo entre um discurso marxista radical, que prega a violência, e a presença de uma luta impregnada nos afazeres cotidianos das populações indígenas da região: "Mediante seu controle dos pátios familiares, do mercado central e das redes e feiras de bairros, as mulheres juchitecas desempenharam um papel chave no desenvolvimento da consciência política e da mobilização de base" (p. 242). O movimento Pan-maia na Guatemala é analisado por Warren em artigo altamente polêmico. Apesar da presença de um injustificável acerto de contas político em um trabalho desta natureza, a autor é muito feliz em mostrar, no cenário político guatemalteco, as dificuldades de uma luta a partir da etnia.

Os dois outros artigos desta parte examinam movimentos negros. O primeiro, de Grueso, Rosero e Escobar, estuda a organização da comunidade negra na Costa Meridional do Pacífico na Colômbia. Por se constituir uma região estratégica em termos de biodiversidade, o movimento apresenta uma complexidade que lhe confere um interesse especial. Os autores destacam a "perspectiva do efeito que a política cultural do movimento está tendo ou pode ter sobre noções e práticas de identidade coletiva, cultura política, biodiversidade e desenvolvimento alternativo" (p. 313). O segundo artigo, de Cunha, trabalha com o movimento "Grupo Cultural Afro-Reggae" do Rio de Janeiro, mostrando como a cultura negra se constitui em um instrumento de conscientização. Os dois artigos são especialmente interessantes na medida em que analisam com muita propriedade o tema central da coletânea - o estabelecimento da cultura como uma esfera política.

A terceira e última parte traz um tema novo e central para a discussão da organização política da sociedade civil: a noção de globalização e do transnacionalismo. Os quatro artigos contêm análises sofisticadas que passam ao longe de posições tão comuns de entusiasmo ingênuo ou de rechaço ideológico quando se trata de questões relativas à globalização. Alvarez analisa o movimento feminista na América Latina partindo de um contraponto observado na 4ª. Conferência Mundial da Mulher em 1995, na China. Notava-se, por um lado, um feminismo calcado na expressão cultural das mulheres latino-americanas (as barracas do encontro alternativo das ONGs) e, por outro, um feminismo altamente profissionalizado de mulheres, na maioria das vezes, ligadas a poderosas ONGs, que assessoravam a Conferência Mundial da ONU. Alvarez conclui: A ONGuização e transnacionalização do campo feminista latino americano levou um número crescente de feministas a privilegiar alguns espaços da política feminista, tais como o Estado e as arenas políticas internacionais, em relação aos esforços de transformar as representações predominantes de gênero, enfatizar as mudanças de consciência e promover a transformação cultural por meio de atividades de organização e mobilização das bases locais" (p. 414). Yúdice trata do movimento Zapatista de Chiapas, trabalhando com a noção de "recontextualização cultural" presente em uma política progressista de comunicação. Aponta também para um cenário onde aquela dissociação do movimento feminista vislumbrada por Alvarez dá lugar a uma nova maneira de caracterizá-lo. O artigo evidencia um aspecto realmente novo, que as análises correntes do movimento zapatista tendem a deixar em um discretíssimo segundo plano em favor de uma interpretação que associa o movimento à guerrilha clássica: "Mais do que combate armado, eles travaram um luta pela definição do bem público, tanto nacional como transnacional, e demonstraram um uso habilidoso dos recursos globais, em especial dos meios de comunicação e Internet" (p. 444).

Os dois últimos artigos do livro exploram o tema da desterritorialização ou de um novo tipo de território. Ribeiro aponta para a possibilidade de uma cidadania global e mostra com clareza a fragilidade e a volatilidade presente em algo que chamou de "uma nova comunidade imaginada" (p. 469). Oportunamente, o autor chama a atenção para o fato de esses cyber cenários engendrarem "uma perda relativa de homogeneidade dos sujeitos políticos resultantes que, em geral, existem como coalizões, que visam atingir objetivos muitos definidos e que são desmontadas uma vez realizada a tarefa" (p. 479). O artigo que fecha o livro parece ter tido a difícil missão de comentar todos os outros, escritos ao longo de mais de 500 páginas. Retomando a discussão acerca do universo cultural, político e global, Slater toma a questão da territorialidade em termos de fronteira e indica como ela é apresentada nos variados textos do volume.

Trata-se, portanto, de uma coletânea exaustiva, cuidadosamente estruturada, cuja tradução para o português, já que originalmente foi publicado em inglês, constitui um importante ponto de referência para os estudos sobre cultura e política, tanto de uma perspectiva teórica, quanto da análise de resultados de pesquisas.

Céli Regina Jardim Pinto é professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2002
  • Data do Fascículo
    Out 2001
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