Acessibilidade / Reportar erro

São Paulo: a metrópole e suas centralidades

São Paulo: a metrópole e suas centralidades

Heitor FRUGOLI JUNIOR. Centralidade em São Paulo: trajetórias, conflitos e negociações na cidade. São Paulo, Cortez/Edusp, 2000. 254 páginas.

Wagner Iglecias

Versão da tese de doutorado de Heitor Frúgoli Júnior, defendida em 1998 no Departamento de Sociologia da USP, Centralidade em São Paulo: trajetórias, conflitos e negociações na metrópole, o mais recente livro do autor, vem coroar o conjunto de pesquisas que ele tem desenvolvido ao longo dos últimos dez anos. Neste período, o trabalho de Frúgoli sempre teve como objeto privilegiado de reflexão a questão dos tímidos avanços e reiterados retrocessos na democratização do espaço público na capital paulista, através das dinâmicas de criação de espaços privados voltados às camadas economicamente mais ricas da população e do abandono de espaços públicos degradados à população de baixa renda.

Permeado por uma rigorosa reconstrução da discussão urbanística moderna e pós-moderna, sobretudo a partir da perspectiva dos arquitetos (e em especial daqueles que tiveram a oportunidade de intervir de forma concreta no espaço urbano), o livro parte da hipótese de que a cidade de São Paulo foi caracterizada, ao longo do século XX, não apenas por um processo de crescimento desmesurado em direção às periferias, mas também por um processo contínuo de criação e abandono de centralidades. Nestas teriam se concentrado as atividades de comando do grande capital em cada um dos períodos históricos que a cidade atravessou nas últimas décadas, do fordismo à acumulação flexível e à mundialização do capital, com seus desdobramentos em vocações econômicas variadas como pólo industrial, centro financeiro do país e cidade-sede do setor terciário avançado presente na economia brasileira.

Frúgoli identifica geograficamente as regiões do Centro Velho, Avenida Paulista e Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini como os três pólos do tripé de centralidades que se formaram ao longo do século passado na cidade de São Paulo, numa linha reta em direção à região sudoeste da capital paulista. Mais que isso, o autor correlaciona, de maneira muito oportuna, a sucessão de interesses do grande capital, sobretudo imobiliário, associados ao poder público e que resultam no fenômeno retratado na pesquisa, à realidade metropolitana mundial, caracterizada pelas políticas governamentais voltadas à atração de empresas, por meio das quais uma espécie de vale-tudo em termos de uso do espaço e dos recursos públicos parece tornar-se legítimo a partir do prisma da competição por investimentos. Sob essa perspectiva, surgem convergências de interesses que passam a pleitear, junto ao poder público, um tratamento privilegiado em relação às prioridades em termos de políticas urbanas.

Refazendo com muita competência toda a trama de interesses, estratégias e trajetórias dos atores sociais envolvidos na sucessão de centralidades que caracteriza São Paulo, o autor identifica em três associações empresariais a articulação dos grandes interesses econômicos em relação à cidade, umbilicalmente ligados ao poder público. Apesar de suas particularidades e formas de atuação distintas, é possível depreender da leitura que tanto a Associação Viva o Centro, capitaneada sobretudo pelo BankBoston, quanto a Associação Paulista Viva (Banco Itaú) e o pool de empresas que atuou pela criação do pólo Berrini-Marginal Pinheiros sempre buscaram, seja através da revitalização de espaços decadentes, seja através da criação de novas centralidades, um ideal de cidade que, embora não publicamente reconhecido, é excludente. A história recente mostra que a lógica dessas associações faz com que se abra mão, na maioria das vezes, da interlocução com outros segmentos da sociedade paulistana, especialmente os mais afetados pela transformação urbanística em curso, como no exemplo das populações de baixa renda situadas no caminho onde o grande capital faz sua marcha em São Paulo. Some-se a isso o fato de que ainda perdura entre os segmentos mais privilegiados da cidade, mesmo após decorrido um século, a mentalidade que associa pobreza à desordem e violência. Nisso talvez resida a justificativa, consciente ou não, para o pleito por intervenções urbanas saneadoras, que perpassa e transcende o interesse econômico puro e simples. Não deve ser uma simples coincidência o fato de que os bairros residenciais da elite paulistana caminharam, ao longo do século XX, em direção à região sudoeste da cidade, numa trajetória cronologicamente muito semelhante à das três centralidades do capital em São Paulo.

Frúgoli acerta o alvo ao apontar a Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini como o mais novo pólo da centralidade em São Paulo, mas poderia dar mais ênfase ao fato de que, se foi um marco histórico e geográfico do surgimento dessa nova centralidade, atualmente a Berrini é apenas uma subparte de uma região maior e mais complexa - a extensão da Marginal Pinheiros, entre a Avenida dos Bandeirantes e a Ponte João Dias, transformada, nos últimos anos, no maior distrito de negócios da América Latina. O autor apenas menciona de forma sucinta o fenômeno que atualmente se observa na Marginal Pinheiros, ao qual deveria retornar, talvez em um próximo trabalho, aprofundando sua reflexão sobre a região, de modo a enfocar as fronteiras além-Berrini que têm caracterizado a expansão do grande capital em direção ao bairro de Santo Amaro, antecipando as tendências de aumento da importância estratégica daquela região da cidade neste início de novo século. De fato, São Paulo possui atualmente uma paisagem bastante diferente da que a caracterizou no início do século passado. Pouco restou das atividades de ponta do capital no Centro Velho, exceção feita à Bolsa de Valores e à Bolsa de Mercadorias e Futuros. A própria Avenida Paulista, tradicionalmente conhecida como coração financeiro do país, passa por rápido processo de redefinição de sua vocação econômica em direção a atividades terciárias de pequeno porte e sedia hoje apenas dois dos dez maiores bancos em atividade no Brasil. O sistema financeiro, cada vez mais internacionalizado, tem suas sedes localizadas na Marginal Pinheiros e adjacências. A construção, ainda não concluída, da nova sede brasileira do BankBoston na Avenida das Nações Unidas pode ser um indicativo de que o Centro Velho, não obstante todas as recentes tentativas de revitalização econômica, tenha sido definitivamente relegado à condição de local pitoresco e até aprazível, porém desfuncional.

Para retratar a mais nova centralidade paulistana, Frúgoli utiliza os termos "quadrante sudoeste" e "vetor sudoeste", ora um, ora outro. O termo "vetor sudoeste" é relativamente recente em sua reflexão e obra, enquanto "quadrante sudoeste" já havia sido usado por ele antes. A palavra quadrante, que segundo o dicionário Aurélio significa "a quarta parte", nos diz pouco sobre o que está ocorrendo em relação à nova centralidade paulistana. O termo vetor parece mais apropriado, pois reveste-se de caráter político ao dar ao fenômeno das centralidades uma noção de direção e apontar em dois sentidos. O primeiro, mais óbvio, indica que as funções de comando do grande capital situadas em São Paulo deslocam-se para a porção sudoeste da metrópole. E o segundo, menos acessível a quem não conhece a realidade socioeconômica da região, diz respeito ao que a cidade pode vir a se transformar, dada a dinâmica que preside seu desenvolvimento e sua sucessão de centralidades, tendo em vista que esse novo centro se situa defronte à porção mais pauperizada, violenta e excluída da periferia paulistana, separando-se dela apenas pela calha do rio Pinheiros. Para além de uma simples questão semântica, a opção pelo termo "vetor sudoeste" parece mais cabível porque aponta não exatamente para uma cidade extremamente polarizada entre ricos e pobres, entre globalizados e excluídos, ou entre insiders e desconectados, mas mais propriamente para uma espacialidade caleidoscópica, profundamente dividida em territorialidades com lógicas econômicas e culturais particulares e muito distintas, contíguas umas às outras, a qual pode vir a caracterizar, nos próximos anos, não apenas a porção sudoeste, mas todo o espaço metropolitano da maior cidade do hemisfério Sul.

Calcado na ampla bagagem bibliográfica do autor, e também em vasto material publicado pela imprensa e em diversas entrevistas, Centralidade em São Paulo: trajetórias, conflitos e negociações na metrópole tem um belo projeto gráfico e retrata com esmero, através de fotografias e mapas, os três centros que caracterizaram a capital paulista no decorrer do século XX. O livro estabelece-se como obra referencial na frutífera tradição de estudos que retratam o crescimento da metrópole paulista no transcurso dos últimos decênios, com seus vãos e desvãos de progresso e exclusão, exemplificado nas várias formas de apropriação do espaço público a luta pela cidadania.

WAGNER IGLECIAS é doutorando do departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2002
  • Data do Fascículo
    Out 2001
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 - sala 116, 05508-900 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 3091-4664, Fax: +55 11 3091-5043 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: anpocs@anpocs.org.br