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Ciências sociais: razões e vocações

Ciências sociais: razões e vocações

* * Aula inaugural proferida para os alunos do curso noturno do IFCH, em 11 de março de 1992.

Vilmar Evangelista Faria

Foi com orgulho e satisfação que aceitei, não sem vacilar, o convite de vocês, formulado através de seu Centro Acadêmico, para proferir a aula inaugural que, simultaneamente, dá início às atividades do ano letivo de 1992 e inaugura o curso noturno de graduação em Ciências Sociais, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Agradeço, sensibilizado, a honra dessa oportunidade que o Centro Acadêmico me concede.

Essa distinção, não posso deixar de acrescentar, tem para mim um significado ainda maior por duas circunstâncias particulares que a cercam.

Em primeiro lugar porque, como sabem, me coube a honra e a responsabilidade de me dirigir a vocês no lugar do professor Octávio Ianni, cujos compromissos acadêmicos no exterior o impediram de aceitar o convite inicial: presto a esse insigne mestre e colega, com quem tenho convivido há mais de vinte anos, primeiro no Cebrap, depois na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, mais recentemente, na Unicamp, meu tributo de respeito e de consideração.

Em segundo lugar, pessoalmente, a distinção que me concedem adquire significação especial pelo fato de tratar-se de uma aula que dá início ao curso noturno de Ciências Sociais na Unicamp. Essa oportunidade me faz lembrar, emocionado, a importância estratégica do ensino público, gratuito, universal e noturno na minha vida pessoal. Minha emoção, peço-lhes desculpas, é justificada e simples: não fosse pela existência desse tipo de ensino, eu não poderia, com toda certeza, hoje estar aqui. Aproveito a oportunidade, portanto, para fazer uma defesa meditada e serena ­ mas intransigente ­ não só do ensino universal e público em todos os níveis, mas também do princípio da gratuidade e até mesmo da remuneração, para que todos aqueles que, demonstrando disposição e aptidões, e não dispondo, por qualquer razão, dos meios adequados para realizar esse objetivo, possam fazê-lo.

Faço aqui, também, uma defesa intransigente, porém condicionada, da abertura de cursos noturnos nas universidades públicas brasileiras. Parece-me extremamente injusto que recursos públicos ­ poucos e cada vez menores, é verdade ­ investidos e gastos nestas universidades permaneçam ociosos quando existe a possibilidade de utilizá-los mais eficientemente. Contudo, condiciono essa expansão e difusão dos cursos noturnos ao cumprimento de pelo menos duas condições básicas.

Por um lado, é indispensável a existência efetiva de adequadas condições materiais, institucionais, funcionais e profissionais que permitam o funcionamento eficaz e eficiente desses cursos, sem sobrecarregar indevida, injusta e desigualmente professores, alunos e funcionários. Por outro lado, é também indispensável que sejam asseguradas as condições que garantam a excelência científica, acadêmica e profissional desses cursos. Quer por razões de eqüidade, quer por razões jurídicas formais, quer, sobretudo, por razões de justiça, é inaceitável oferecer títulos iguais para ensinos de qualidade diferente. Por isso, os cursos noturnos não podem ­ e garanto-lhes, na Unicamp não serão ­ cursos de segunda classe.1 1 Do meu ponto de vista, isso não significa que se deva oferecer, necessariamente, os mesmos cursos em diferentes turnos. Mas essa questão, seguramente passível de controvérsia e debate, nos afastaria dos temas que tenho a intenção de lhes apresentar hoje.

Somente o oferecimento de ensino universitário público, gratuito e noturno pode permitir a realização de um direito inalienável àqueles que ou por opção ou, como sói acontecer com mais freqüência, por necessidade, se vêem obrigados a exercer outra atividade.

Estou pessoalmente convencido de que a oferta de ensino público e gratuito em todos os níveis é mecanismo estratégico, necessário, embora não suficiente, para a realização do mais elementar dos princípios de igualdade, a igualdade de oportunidades. Sem pelo menos isso qualquer ideal de igualdade se torna retórica vazia e demagógica.

Estão portanto de parabéns todos aqueles ­ e são tantos que seria longo enumerá-los ­ que, dentro e fora da Unicamp, de uma forma ou de outra, tornaram possível essa iniciativa. Estão de parabéns, sobretudo, vocês, caros estudantes, que, por mérito, constituem nossa primeira turma. E, estão de parabéns os professores e funcionários do IFCH que, vencendo dificuldades que não são poucas nem pequenas, tudo farão, tenho certeza, para oferecer um curso noturno de Ciências Sociais digno de nossa universidade, de nossos alunos e de nosso tempo.

Em que consiste um curso de Ciências Sociais digno de nossa universidade, de nossos alunos e de nosso tempo é questão fácil de formular mas extraordinariamente difícil de responder. Foi por essa razão que lhes disse, no começo, que vacilei em aceitar a honrosa incumbência de lhes dirigir algumas palavras nesta aula: apesar das dificuldades, seria de minha responsabilidade pronunciar-me a esse respeito.

A honra e a distinção dessa incumbência, entretanto, não podem envaidecer-me o espírito a ponto de me fazer esquecer que outros colegas ­ com obra científica e didática mais importante do que a minha ­ talvez possuam idéias mais claras, mais amadurecidas, mais brilhantes e mais firmes do que as minhas nessa matéria. Assim, é com modéstia e espírito de diálogo que me arrisco a chamar sua atenção para alguns pontos.

Meus caros estudantes, vocês entram para a universidade num momento extraordinário da história da humanidade e, por isso mesmo, num momento particularmente fecundo das Ciências Sociais. Em que pesem as controvérsias, não creio caber dúvida que vivemos um tempo em que as promessas e os riscos da modernidade alcançam seu apogeu paroxístico. Não, como pensam alguns ou sonharam outros, no sentido de que a história chegou ao seu fim ou de que a humanidade se reconciliou consigo mesma: o crepúsculo de Minerva parece ainda distante. Mas no sentido bem mais completo e desafiante da "jaula de ferro" de que falava Max Weber.

Não sem problemas como veremos, nunca foi tão grande a massa de conhecimentos que a razão instrumental conseguiu acumular para a humanidade; em nenhum outro momento da história os princípios de liberdade, de tolerância, de respeito pela diversidade e de justiça tiveram hegemonia ideológica maior; nunca as possibilidades de expressão do belo e do sublime foram tão grandes, em nenhum outro momento da história recente foi tão aguda a consciência dos perigos de uma relação predatória com a natureza. Tudo isso abre horizontes insuspeitados para a realização dos homens na história.

Porém, nunca foram tão assustadoras as conseqüências negativas da dialética da modernidade.

Em nenhum outro momento a centralização e a concentração do controle dos meios de produção ­ aí incluídos o conhecimento científico e tecnológico ­ atingiram patamar tão elevado. Apesar do fim da Guerra Fria e da polarização ­ ou talvez por isso mesmo ­ nunca foi tão grande o volume e a capacidade letal dos meios de destruição e as incertezas quanto ao seu controle e à sua disseminação. Em nenhum outro momento a história, a sobrevivência futura da humanidade esteve tão comprometida quanto hoje pelos seus danos ecológicos provocados pelo progresso. Nunca os resultados negativos dos processos de racionalização e de burocratização foram tão intensos, suas forças respectivas e conjugadas de dominação tão poderosas e sua eficácia alienadora tão grande. Nunca foi tão grande a distância que separa as regiões, nações, grupos e pessoas que se beneficiam dos resultados positivos da modernidade daquelas e daqueles que só carregam o pesado fardo dos resultados negativos ­ materiais, psicológicos e simbólicos ­ do Iluminismo.

Numa palavra, nunca foi tão fundo e tão amplo o hiato entre o possível e o atual.

A tarefa essencial de um curso de Ciências Sociais digno de seu tempo é, sem sombra de dúvida, transmitir, criticamente, a seus alunos os conhecimentos acumulados através de pesquisa metódica e cuidadosa, os métodos e as técnicas disponíveis para corrigir e fazer avançar esses conhecimentos e, sobretudo, um ethos acadêmico e profissional que os capacite a compreender, explicar e agir nesse mundo perigoso e fascinante, para transformá-lo. Transformá-lo, esperemos, no sentido específico de contribuir para que as potencialidades positivas nele existentes de como se realizem e para que os efeitos negativos sejam, tanto quanto possível, minimizados.

Tarefa extraordinariamente complexa, abrangente e difícil, mesmo se os conhecimentos, métodos, técnicas, alternativas e tarefas estivessem clara e unanimemente delineados. Nessa perspectiva, qualquer ciência social digna desse nome possuiria, inextricavelmente ligadas, uma dimensão empírico-analítica ­ e, portanto, uma dimensão instrumental ­, uma dimensão hermenêutica e uma dimensão crítica, como bem tem mostrado Jürgen Habermas. Essa pluralidade de dimensões, vocês terão oportunidade de verificar, permite ­ ou talvez até mesmo exija ­ por um lado, o desenvolvimento de especialidades quer disciplinares, quer teórico-metodológicas, quer profissionais, que a Unicamp, dentro de suas limitações, terá a obrigação de lhes oferecer. Exige, por outro, relações mais orgânicas das ciências sociais com as outras áreas do conhecimento, seja com a filosofia e com as matemáticas, seja com os diferentes ramos das ciências da natureza, seja com as artes e com as humanidades. É por isso, caros estudantes, que um curso de Ciências Sociais digno de nosso tempo só é possível numa universidade, também ela digna do nosso tempo, onde a necessária especialização dos saberes não impeça o seu constante e fecundo diálogo.

Mas a tarefa de oferecer um curso de Ciências Sociais digno do nosso tempo se torna quase impossível numa situação em que, como veremos, a existência da universidade, a legitimidade desse ethos, a urgência dessas tarefas e até mesmo a possibilidade desse conhecimento se encontram seriamente ameaçadas.

Ameaçadas, se começamos pelos aspectos externos, pela precariedade da vida universitária no país e pela situação de crescente descaso com que são tratadas ­ com as exceções honrosas de sempre ­ as questões da cultura, do ensino e do desenvolvimento científico e tecnológico no país, seja pelas autoridades governamentais, seja pelo setor produtivo privado, seja até mesmo por segmentos específicos ­ isolados e minoritários, felizmente ­ da comunidade universitária. Teremos tempo de analisar esta triste ameaça mais de perto, ao longo de nossa futura convivência. Aqui e agora cabe registrar a nossa indignação e lavrar, mais uma vez, o nosso mais firme protesto contra esse estado de coisas.

Do meu ponto de vista, a possibilidade de um curso de Ciências Sociais sintonizado com os dilemas do nosso tempo se encontra também intrinsecamente ameaçada pelos rumos que, em parte, a reflexão sobre a sociedade e a história vem adquirindo nesse momento paroxístico da modernidade. Com uma breve reflexão sobre esse ponto ­ e que constitui apenas a promessa de um debate mais profundo e duradouro ­ convido-os a ingressar, como futuros profissionais, nesse mundo precário mas fascinante dos cientistas sociais.

Razão, verdade e liberdade: a universidade como espaço público

Embora sujeito a controvérsias, que vocês conhecerão e das quais participarão, o seguinte diagnóstico serve como ponto de partida para essa breve reflexão. Como assinala o cientista social e filósofo alemão Jürgen Habermas, "o projeto de modernidade formulado no século XVIII pelos filósofos do Iluminismo consistiu em seus esforços para desenvolver a ciência objetiva, a moralidade e o direito universais e a arte autônoma de acordo com a lógica interna de cada uma dessas esferas" e expressando, através desse esforço, as "estruturas da racionalidade cognitivo-instrumental, da racionalidade prático-moral e da racionalidade estético expressiva", respectivamente. A partir daí, prossegue Habermas, "os pensadores do Iluminismo desejaram ­ (ou julgaram ser possível ou até mesmo inevitável) ­ utilizar essa acumulação de cultura especializada para o enriquecimento da vida cotidiana, isto é, para a organização racional da vida cotidiana". Pensadores mais otimistas chegaram a ter, inclusive, diz o mesmo Habermas, "a expectativa extravagante de que as ciências e as artes promoveriam não apenas o controle das forças naturais mas também o entendimento do mundo e do eu, o progresso moral, a justiça das instituições e até mesmo a felicidade dos homens", a "promessa de bonheur" de que falava Baudelaire.2 1 Do meu ponto de vista, isso não significa que se deva oferecer, necessariamente, os mesmos cursos em diferentes turnos. Mas essa questão, seguramente passível de controvérsia e debate, nos afastaria dos temas que tenho a intenção de lhes apresentar hoje.

Esse projeto encontrou, muito cedo, seus críticos e seus céticos. Mas é com o desenrolar do século XX que o lado negativo da "dialética do Iluminismo" terminou por implodir esse otimismo. Mais do que a crescente felicidade de todos os homens, nosso século foi marcado pela crescente hegemonia ou pela progressiva redução da Razão Iluminista à sua dimensão cognitivo-instrumental; pela expansão, o aperfeiçoamento e a concentração dos meios de dominação; pelo surgimento dos totalitarismos, dos universos concentracionários e de holocaustos; pelo acúmulo de meios insuspeitos de destruição, a persistência da injustiça, da desigualdade e da miséria. Pouco a pouco esmaeceram as esperanças.

Com isso, como vocês seguramente terão oportunidade de examinar mais detalhadamente em seus futuros cursos, a Razão ­ ou pelo menos sua realização mediante a hegemonia da razão cognitivo-instrumental ­ e sua possibilidade de servir como garantia para a conquista da Verdade, perdeu seu potencial emancipador. Ganharam expressão e profundidade as críticas que sempre viram ou que passaram a ver a Razão e a Verdade como fonte de alienação e de opressão. Razão e Verdade passam a ser entendidas como os mitos justificadores de um desejo e de uma possibilidade de poder opressivo e totalitário.

Quais são as conseqüências de semelhante crítica e de seus desdobramentos para as tarefas universitárias e, particularmente, para as Ciências Sociais no mundo de hoje?

Sei que estas questões são complexas, difíceis e passíveis de muita controvérsia. Seria um erro ignorar o vigor dessa crítica e a pertinência de muitos de seus aspectos. Tenho certeza de que uma parte ponderável de suas energias intelectuais serão gastas, daqui para a frente, no embate dos argumentos em torno dessas questões. Mas, saltando etapas, permitam-me colocar-lhes um problema e sugerir-lhes uma possível solução.

Shils argumenta, num precioso e desconhecido livrinho publicado há quase dez anos, denominado A ética acadêmica, que uma das conseqüências da radicalização da crítica que acabei de esboçar, tanto de parte dos anti-modernos como de parte dos pós-modernos, pode ser ou tem sido, por um lado, a "derrogação ou mesmo a dissolução da idéia de que verdades podem ser descobertas e ensinadas" e, por outro, a difusão em muitos centros acadêmicos influentes e respeitáveis de idéias que " negam a possibilidade de uma busca disciplinada e desinteressada do conhecimento, negam a possibilidade de um certo distanciamento, negam a possibilidade do conhecimento objetivo, verdadeiro independentemente das paixões, dos desejos ou dos interesses materiais dos que procuram buscar e transmitir a verdade".3 3 Edward Shils, The academic ethic, Chicago, The University of Chicago Press, 1984, p. 3.

Dessa atitude pode decorrer, no melhor dos casos, uma postura ultra-relativista segundo a qual, substancialmente, tudo vale e, metodologicamente, como afirma Feyerabend, vale tudo.

Ora, a tarefa específica da universidade, como bem argumenta o mesmo Shils, é a busca metódica e a transmissão serena e crítica das verdades sobre questões importantes e estratégicas que essa busca metódica produz, acompanhada de um esforço no sentido de que professores e alunos aumentem sua capacidade de julgamento crítico e suas habilidades para submeter suas crenças e valores a esse julgamento, de modo a que possam agir de acordo com eles, livres, tanto quanto seja humana e historicamente possível, de erro.

Parece-me, caros estudantes, que esse é o problema: uma "suspeição totalizante e generalizada do conceito de Verdade", para usar a expressão de Peter Dews, constitui uma ameaça séria, porque intrínseca, não só à possibilidade de um curso de Ciências Sociais digno do nosso tempo como também à universidade, pelo menos tal como a concebemos até aqui. Entretanto ­ e especialmente para um curso de Ciências Sociais ­ os argumentos da crítica anti e pós-moderna não podem, pura e simplesmente, ser descartados: é preciso conhecê-lo e avaliar, com seriedade e cuidado, sua força.

Felizmente, pelo menos do meu ponto de vista, passível, é claro, de contestação, existem razões e condições que permitem manter ­ e aprofundar ­ a idéia de uma universidade centrada na tarefa de buscar e de transmitir a Verdade.

Nos últimos quinze ou vinte anos, os resultados da pesquisa e da reflexão nas mais diversas áreas do conhecimento humano ­ da biologia à crítica literária, passando pela filosofia da ciência, pela lingüística e pela psicologia cognitiva ­ têm convergido, não sem controvérsias profundas, no sentido de colocar a questão da Razão e da Verdade ­ e, por isso, a questão do conhecimento científico ­ em novos termos. Esse entendimento convergente, permite, na minha opinião, ultrapassar os dilemas constituídos pelo abraço paralisante entre um estreito objetivismo positivista e um ultra-relativismo que leva ao extremo sua suspeição do conceito de verdade.

Mais um vez sou obrigado, pelos limites do tempo, a acenar-lhes apenas com a promessa de que sua formação em Ciências Sociais aqui na Unicamp lhes permitirá conhecer, pouco a pouco, a história e os resultados dessa convergência. Vocês verão como pesquisadores situados de forma tão heterogênea no espectro intelectual, como Popper e Foucault, Rorty e Lyotard, Kuhn e Adorno, Piaget e Gadamer, Hannah Arendt e Lacan, para citar apenas alguns, vêm contribuindo para a delimitação de um novo espaço teórico-metodológico no interior do qual é possível, com argumentos razoáveis, liberar os conceitos de Razão e de Verdade da "suspeição totalizante e radical" a que me referi. Nesse novo espaço, sugiro-lhes, talvez possamos resolver o problema.

Essas são questões difíceis e complexas, mesmo para pesquisadores experientes, e é preciso tempo e dedicação para compreender o seu verdadeiro alcance. O que importa, no momento, é indicar que essa convergência consagra a idéia de verdade como erro provisório ou como erro retificável, lembrando Bachelard. Consagra, também, a idéia de que é constitutivo do conversar humano ­ se me perdoam a redundância e ignoramos os golfinhos ­ a disposição de sempre apresentar razões que justifiquem o que se diz e se afirma, isto é, se dispor a conversar ­ especialmente para buscar o entendimento ­ pressupõe a disposição de dar, o direito de pedir e a obrigação de ouvir as razões que sustentam o que é dito. Consagra, ainda, a idéia de que podem existir ­ ou que devem existir porque é possível ­ situações que facilitam essa conversa baseada no fornecimento de razões. E consagra, por último, a idéia de que a verdade, contigente e falível, resulta sempre, embora provisoriamente, do consenso que a conversa produz com base na força racional dos argumentos que a sustentam.

A condição para a produção permanente desse "erro corrigido" ­ corrigido pela força superior de novos argumentos racionais ­ é a constituição de espaços públicos onde as pessoas possam, livre e autonomamente, conversar. Conversar sem a interferência de qualquer força, senão a força do melhor argumento racional.

A universidade, no meu entendimento, é, virtualmente, potencialmente, um desses espaços.

Nós da Unicamp ­ e aqui espero poder falar em nome de todos ­ queremos fazer, no curso de Ciências Sociais, desse espaço virtual, um espaço atual.

Esse desiderato, caros estudantes, tem, entretanto, significado, exigências e conseqüências profundas quer para a natureza da universidade como instituição, quer para o sentido de sua missão, quer, ainda, para o conteúdo dos deveres e obrigações daqueles que fazem da vida universitária sua profissão, ou, se preferem, sua vocação.

A necessidade da universidade constituir-se em espaço público é, por assim dizer, transcendental, e situa a questão de suas formas institucionais particulares num terreno distinto daquele em que discutimos, normalmente, os papéis respectivos do Estado e do mercado. De qualquer maneira, é este caráter público que define e é deste caráter público que depende, no sentido forte, a indispensável autonomia da universidade.

Posta dessa forma, a autonomia da universidade não se circunscreve, embora o pressuponha, a um mero estatuto jurídico-administrativo. Ela se garante, cotidianamente, através do trabalho de todos que nela exercem as suas funções. Isso significa, além do mais, que o caráter público da universidade ordena e subordina todos os demais aspectos de sua vida institucional. Não faltarão situações em que vocês, meus caros estudantes, deverão meditar com serenidade e trazer a sua indispensável colaboração para a construção e a defesa da universidade como espaço público.

Mas o caráter público da universidade significa, sobretudo e por princípio, que nos múltiplos diálogos que aqui se travam qualquer interlocutor tem o direito de apresentar os seus pleitos. Mas é igualmente legítimo que qualquer interlocutor pergunte pela validade desses pleitos. Como o sentido desses diálogos é a busca do entendimento e a produção da verdade como "erro retificável", a validade de qualquer pleito depende apenas das razões que são aduzidas para sustentá-lo.

Isto quer dizer, caros estudantes, que aqui na universidade, não vale, automaticamente, nem a força da autoridade nem o argumento da força. Ao contrário, a autoridade, aqui, só pode resultar da força racional do melhor argumento.

Como toda aula comporta exemplos e problemas, permitam-me apresentar-lhes um, bastante polêmico, e que ilustra a complexidade e a importância do ponto que acabo de mencionar.

Max Weber, ao se dirigir a seus alunos alemães no dramático inverno revolucionário de 1919, dizia-lhes no contexto de sua defesa da ciência como vocação: "Se afirma ­ e eu subscrevo essa afirmação ­ que política não tem lugar na sala de aula". Em primeiro lugar, segue afirmando Weber, "não devem fazer política os estudantes. [...] Mas tampouco devem fazer política, na sala de aula, os professores, especialmente e menos ainda quando devem se ocupar da política de um ponto de vista científico". Isto porque, continua Weber,

[...] as tomadas de posição e análise científica dos fenômenos políticos são duas coisas bem distintas. Se se fala de democracia numa assembléia popular não é para se fazer segredo da própria atitude; o que é moralmente obrigatório é, pelo contrário, precisamente tomar partido. As palavras que aí então se utilizam não são instrumentos de análise científica e sim de propaganda política frente aos demais. Não são lâminas de um arado para lavrar o terreno do pensamento contemplativo e sim espadas para acossar o inimigo, são meios de luta.

Por isso, acrescenta Weber, "utilizar a palavra deste modo na sala de aula ou numa conferência seria um sacrilégio". E Weber prossegue, fornecendo suas razões para posição tão radical e discutível:

Qual é a razão de não proceder dessa forma? [...] Certamente não cabe demonstrar a ninguém, cientificamente, qual é o seu dever como professor. O único que se pode exigir dele é que tenha probidade intelectual para compreender que existem dois tipos de problemas perfeitamente heterogêneos: de uma parte, a constatação dos fatos, a determinação dos conteúdos lógicos, matemáticos [sic!] ou da estrutura interna dos fenômenos culturais; de outra, a resposta à pergunta a respeito do valor da cultura e de seus conteúdos concretos e, dentro dela, de qual deve ser o comportamento dos homens na comunidade cultural e nas associações políticas.

Com base nesta distinção, Weber finaliza:

Se alguém pergunta por que é que não se pode tratar na sala de aula dos problemas deste segundo gênero é preciso responder-lhe que é pela simples razão de que não cabe na sala de aula o papel de demagogo ou de profeta.

Para entendermos a posição expressa por Weber e com ela concordar ou dela discordar, seria preciso inscrevê-la no conjunto de seu pensamento. Vocês terão, certamente, diversas oportunidades para realizar esse trabalho. Aqui ­ e provisoriamente ­ cabe apenas avançar um pouco mais nas razões que sustentam o seu argumento. Diz ele, na mesma conferência:

Para uns e para outros [Weber refere-se aqui aos demagogos e profetas] foi dito: "Ide por ruas e praças e falai ali publicamente". Quer dizer [interpreta Weber] vá ali onde podes ser criticado. Na sala de aula [afirma ainda Weber] é o professor quem fala e os que escutam hão de permanecer calados; para fazer sua carreira, os estudantes estão obrigados a assistir às aulas do professor e nelas a ninguém é permitido fazer críticas.

E, com base, nesta característica da universidade alemã de seu tempo, e por isso, contingente, conclui Weber:

Parece-me de uma absoluta falta de responsabilidade que o professor aproveite essas circunstâncias para marcar os estudantes com suas próprias opiniões políticas, em lugar de limitar-se a cumprir sua missão específica, que é a de ser útil a seus estudantes com seus conhecimentos e com sua experiência científica.

4 4 Max Weber, La ciencia como vocación", in El politico y el científico, Madri, Alianza Editorial, 1967, pp. 211-213, minha tradução.

Essas opiniões, de um mestre da estatura e da probidade intelectual de Weber, são merecedoras de cuidadosa reflexão e debate. De minha parte, concordo com o sentido mais profundo das recomendações de Weber para poder justificar, racionalmente, minha profunda discordância quanto à validade atual de suas afirmações. Ali, onde as condições para o diálogo visando ao entendimento se encontram distorcidas, o abuso da verdade só pode ser instrumento de manipulação e de coerção. Mas ali onde preponderam as condições para um diálogo que vise ao entendimento e aos pleitos podem ser contestados com base em argumentos racionais ­ "vá ali onde podes ser criticado", recomenda Weber ­ a verdade como erro retificável pode emergir. Posso, por isso, discordar radicalmente e por um imperativo racional da aplicação das recomendações de Weber nas condições de produção e de transmissão da verdade e nas condições de caráter institucional da universidade que, seguindo uma "tradição", aqui procuro defender e que estão bem distantes daquelas descritas por Weber. Na universidade que defendo, ninguém ­ embora possa ­ deve permanecer calado; ninguém ­ embora queira ­ está protegido da crítica desde que esta se baseie, repito, na força racional dos argumentos.

Mas, para que existam, concretamente, as condições estruturais que permitam esse diálogo crítico, e especialmente para que se possa oferecer um curso de Ciências Sociais digno do nosso tempo, a universidade tem a obrigação de proporcionar a seus alunos, no limite de sua capacidade, a oportunidade de uma formação pluralista e diversificada, abrigando e discutindo diferentes pontos de vista, diferentes tradições disciplinares, múltiplas abordagens teóricas e diversas estratégias metodológicas, que a dinâmica do debate se encarregará de precisar os limites e os potenciais respectivos.

Significa, também, que no contexto mais amplo das Ciências Sociais deve haver lugar e possibilidade, não só para diferentes especializações temáticas e disciplinares, mas também para o aprendizado de diferentes vocações profissionais.

Cabe-nos formar tanto futuros cientistas políticos quanto antropólogos, tanto futuros historiadores quanto sociólogos, para mencionar as especialidades canônicas; cabe-nos dar igual e dedicada atenção tanto àqueles que pretendem seguir uma carreira universitária, preparando-os para ingressar nos cursos de mestrado e de doutorado, como àqueles que optem por concluir a formação universitária sistemática com o curso de graduação; cabe-nos cuidar tanto do cientista social que pretende se dedicar ao ensino e à pesquisa quanto daquele que pretende se dedicar à aplicação dos conhecimentos aqui adquiridos nos diversos campos de trabalho que se abrem, no mundo de hoje, para o cientista social.

Cabe, para concluir, assinalar um aspecto central do compromisso da universidade, como espaço público, e do papel do acadêmico, como acadêmico, nesse espaço.

Uma universidade pública digna desse nome e digna de nosso tempo não pode ignorar a sociedade específica na qual ela se insere e os dilemas, também específicos, que essa sociedade enfrenta. Por isso, e sem perder a necessária visão comparativa, a sociedade brasileira constitui o objeto privilegiado de atenção e análise no curso de graduação em Ciências Sociais do IFCH. Nesse particular, creio ser de meu dever assinalar uma preocupação e compartilhar uma esperança.

A preocupação diz respeito ao caráter profundo e persistente da atual crise brasileira, cuja solução passa por profundas transformações estruturais que não podem ser minimizadas. Superar essa crise exigirá determinação, esforço e luta. A universidade ­ e nós que somos profissionais das ciências ­, no meu entendimento, temos obrigação de dar nossa contribuição ativa para o diagnóstico dessa crise brasileira e para as alternativas para superá-la.

Minha esperança ­ e quero poder compartilhar com vocês ­ é que uma adequada e criativa articulação das dimensões crítica, hermenêutica e empírico-analítica ­ e, portanto instrumental ­ da Ciência Social poderá ser de extraordinário valor na difícil conjuntura que atravessamos.

Quanto ao papel específico de nós, os professores, posso falar por mim. Sem renunciar ao meu papel de cidadão, como acadêmico tomo para mim a tarefa e a advertência de Foucault, enunciadas numa entrevista a François Ewald, em 1984: "a tarefa de dizer a verdade é um trabalho infinito: respeitá-lo em sua complexidade é uma obrigação que nenhum poder pode dispensar, exceto através da imposição do silêncio da servidão".

Eu os convido, meus caros estudantes, a participar comigo e conosco desse infinito trabalho de dizer a verdade.

Muito obrigado.

Campinas, primeiro semestre de 1992.

NOTAS

  • 1
    Do meu ponto de vista, isso não significa que se deva oferecer, necessariamente, os mesmos cursos em diferentes turnos. Mas essa questão, seguramente passível de controvérsia e debate, nos afastaria dos temas que tenho a intenção de lhes apresentar hoje.
  • 2
    Peço desculpas por utilizar uma longa citação. Mas, como vocês também aprenderão, o desenvolvimento das Ciências Sociais ­ ou, na verdade, de qualquer ciência ­ consiste em seguir e explorar uma tradição. Sigo, aqui, muito de perto e de forma simplificada, a tradição expressa por Jürgen Habermas e uso, entre outros, seu texto "Modernity ­ an incomplete project",
    in Hal Foster (org.),
    The anti-aesthetic: essays on post-modern culture, Seattle, Fay Press, 1991, pp. 3-15.
  • 3
    Edward Shils,
    The academic ethic, Chicago, The University of Chicago Press, 1984, p. 3.
  • 4
    Max Weber, La ciencia como vocación",
    in El politico y el científico, Madri, Alianza Editorial, 1967, pp. 211-213, minha tradução.
  • *
    Aula inaugural proferida para os alunos do curso noturno do IFCH, em 11 de março de 1992.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Fev 2003
    • Data do Fascículo
      Fev 2002
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