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Arrogantes, anônimos, subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira

A luta pelos direitos autorais na música brasileira

Rita de Cássia Lahoz MORELLI. Arrogantes, anônimos, subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira. Campinas, Mercado de Letras, 2000. 456 páginas.

Roberto S. C. Moreira

O mundo dos direitos autorais é pouco ou nada freqüentado pelas ciências sociais. Aparece mais nos debates jurídicos ou nas páginas da imprensa onde, com certa regularidade, músicos, compositores e intérpretes reclamam seus prejuízos ou criticam a desorganização das instituições envolvidas com o setor. Pois foi neste mundo que Rita Morelli encontrou um objeto próprio à investigação de um lado obscuro da tão festejada música popular brasileira.

A rigor, a música é a expressão artística que mais tem recebido a atenção de cientistas sociais, perdendo, talvez, apenas para a literatura. No plano dos grandes autores clássicos, basta lembrar de Weber, Elias ou Adorno. Entre nós é fácil a constatação do grande número de trabalhos de sociólogos e antropólogos que têm analisado diversos aspectos da produção musical, como também se servem da música como material para a compreensão da própria sociedade brasileira.

De fato, a música no Brasil é um campo fértil para diferentes tipos de estudos. Por meio dela têm sido explorados temas como o da identidade nacional, as relações de gênero, a ética do trabalho e o ethos da malandragem, as relações entre cultura e política, a formação do gosto, a indústria cultural e a cultura popular, a especificidade da cultura produzida pelas transformações da vida urbana.

Certamente não é por mero acaso que autores de momentos fundamentais do pensamento brasileiro dedicaram-se à música. Sílvio Romero, ao recolher os Cantos populares brasileiros, e Mário de Andrade escrevendo, Ensaio sobre a música brasileira; Música, doce música; Pequena história da música; Música de feitiçaria no Brasil; Danças dramáticas do Brasil, são apenas dois exemplos.

Em Arrogantes, anônimos, subversivos: interpretando o acordo e a discórdia na tradição autoral brasileira, Rita Morelli insere-se nesta vertente, um caminho que a autora já havia começado a percorrer em trabalho anterior, o seu Indústria fonográfica: um estudo antropológico, editado pela Unicamp em 1991.

Numa abordagem derivada do interpretativismo de Clifford Geertz e apoiada em farta documentação, Morelli percorre a trajetória das lutas pelos direitos autorais no Brasil, recuperando cerca de cinqüenta anos de história (1950 a 1998), desde o surgimento das primeiras associações de autores musicais até a situação atual.

Transita pelo discurso "arrogante" dos grandes nomes da música popular que dirigiram as primeiras associações de direitos autorais na fase pioneira de 1934 a 1960. Observa as duas décadas seguintes, um período intermediário, em que predomina o discurso "anônimo" dos compositores carnavalescos de São Paulo. E chega ao período de 1980 a 1998, mostrando um discurso "subversivo", herdeiro da politização dos anos de 1970. Nessa análise, a autora relaciona os papéis desempenhados pelas sociedades de direitos autorais com as condições de mercado e de produção musical de cada momento.

Apesar de o livro ­ apresentado inicialmente como tese de doutorado em ciências sociais ao Departamento de Antropologia da Unicamp ­ permanecer nos quadros da análise antropológica, ele oferece uma análise propriamente política da organização dos trabalhadores musicais brasileiros, seus interesses, conflitos, acordos e disputas. As alianças, os grupos, as ideologias, as contradições e os interesses, bem como o debate público de questões mais específicas sobre o tema, as ambíguas relações com o Estado, são temas desvelados pela sua análise.

Além disso, o livro mostra como as sucessivas modernizações tecnológicas ­ a chegada das gravadoras, a implantação do star system para os intérpretes, o entrelaçamento dos diversos meios de divulgação da música (cinema, disco, rádio, televisão) ­ foram afetando as relações econômicas e jurídicas no campo da fonografia.

Esse aspecto remete à própria implantação e consolidação da indústria cultural no Brasil, que modifica gradativamente o panorama do nosso cenário cultural a partir da década de 1920, e sobretudo depois dos anos de 1960. O que nos faz recordar alguns textos de autores da Teoria Crítica sobre as transformações da arte provocadas pela possibilidade de sua reprodução técnica ou sobre a degradação do gosto. Penso especialmente no Benjamin de A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, em Adorno e Horkheimer de A indústria cultural, e em Marcuse no Sobre o caráter afirmativo da cultura.

A propósito, é curioso notar que há décadas se fala em degradação do gosto e, ao mesmo tempo, observar a produção musical brasileira neste início de século. Sem má vontade para com a maioria dos autores atuais, é de se dar razão às análises daqueles autores. Na verdade, não é necessário recorrer aos frankfurtianos. Mário de Andrade, em Música doce música (1939), já observava a transformação da nossa música popular, com forte perda de qualidade, "para alimento de rádios e discos, elemento de namoro e interesse comercial, com que fábricas, empresas e cantores se sustentam, atucanando a sensualidade fácil de um público em via de transe".

Outro ponto a destacar é que o trabalho de Morelli fornece uma contribuição objetiva para a discussão da sempre presente questão da indústria cultural versus cultura de massa versus cultura popular. Em outras palavras, pode-se perceber como a revelação dos bastidores da história do direito autoral ilumina a discussão sobre autonomia do campo da arte e seus dilemas correlatos, tais como: arte e mercadoria, cultura nacional e influência estrangeira, bom gosto ou mau gosto, popular ou vulgar. Além disso, o livro permite uma reflexão mais profunda sobre os apelos à alma popular, a pretensão de certos artistas de que sua produção seja a expressão legítima da brasilidade, a reivindicação de estarem expressando o que o Brasil e os brasileiros teriam de mais genuíno.

Liga-se a isto o tema do colonialismo cultural, não só em relação ao aspecto propriamente estético da questão, mas também ao seu lado político, já discutido em outros momentos como quando se debateu a respeito do estabelecimento de percentuais de música brasileira nas emissoras de rádio, da reserva de dias por ano para exibição de filmes brasileiros, da lei que obrigava passar um curta metragem brasileiro junto a um longa estrangeiro etc. Hoje esses temas ainda estão em discussão, como no caso da atualíssima questão da pirataria de CDs.

Por fim, chama a atenção no livro o exercício de interpretação do material empírico que, utilizando de maneira eficaz a contribuição teórica de autores como Clifford Geertz, Paul Ricoeur e Roberto Cardoso de Oliveira, entre outros, revela as ritualizações, as trocas simbólicas, as metáforas e os discursos que veiculam o sentido das ações dos personagens que compõem a história do direito autoral brasileiro, evidenciando a eficácia analítica do método interpretativista.

ROBERTO S. C. MOREIRA é professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Fev 2003
  • Data do Fascículo
    Fev 2002
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