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Clivagens ideológicas e empresas privadas nos investimentos públicos urbanos: São Paulo 1978-1998

Clivages idéológiques et entreprises privées dans les investissements publics urbains: São Paulo1978/1998

Ideological clevage and private companies in matters of urban public investments: São Paulo 1978/1998

Resumos

O presente trabalho discute a relevância de processos políticos para a explicação dos padrões de investimento público urbano. Para a pesquisa, utilizamos informações relativas aos investimentos em infra-estrutura urbana realizados pela Prefeitura Municipal de São Paulo de 1978 a 1998. Esse tipo de política tem sido tradicionalmente analisada à luz do marxismo estruturalista, de estudos neomarxistas de movimentos sociais, de uma versão atenuada do pluralismo norte-americano e de uma versão urbana da teoria das elites. Para essas literaturas, os processos internos ao Estado, assim como as dinâmicas do próprio processo de decisão, teriam uma importância menor que os atores localizados na sociedade e os elementos ligados às regras do jogo político. Os dados apresentados indicam a insuficiência das explicações correntes e destacam a importância de dois outros elementos pouco ou nada considerados pela literatura: de um lado, clivagens políticas e ideológicas, de outro, a presença e a influência das empresas privadas ligadas à própria produção da cidade.

Processo político; Políticas públicas; Intermediação de interesses; Infra-estrutura urbana; São Paulo


Ce travail discute l'importance de processus politiques pour expliquer les modèles d'investissement public urbain. Pour cette recherche, nous avons utilisé des informations relatives aux investissements en infrastructure urbaine entrepris par la commune de São Paulo entre 1978 et 1998. Ce genre de politique a été traditionnellement analysé à la lumière du marxisme structuraliste, d'études néomarxistes de mouvements sociaux, d'une version atténuée du pluralisme nord-américain et d'une version urbaine de la théorie des élites. Pour ces littératures, les processus internes à l'État, ainsi que les dynamiques du propre processus de décision, auraient moins d'importance que les acteurs placés dans la société et que les éléments liés aux règles du jeu politique. Les données présentées indiquent l'insuffisance des explications courantes et mettent en valeur l'importance de deux autres éléments peu ou pas considérés par la littératureÊ: d'un côté, clivages politiques et idéologiquesÊ; de l'autre, la présence et l'influence d'entreprises privées liées à la propre production de la ville.

Processus politique; Politiques publique; Intermédiation d'intérêts; Infrastructure urbaine; São Paulo


This article presents and discusses the importance of political processes on the explanation of patterns of urban public investments. For this purpose, we use primary data on the investments made by the Municipal Government of São Paulo on urban infrastructure equipments from 1978 to 1998. This type of public policy had been traditionally analyzed from the perspectives of structural Marxism, of neomarxist studies of social movements, of an attenuated version of North-American pluralism, and of an urban version the elite theory. For these literatures, the processes that occur inside the State, as well as the dynamics of the decision making processes would have less importance than actors located in society and elements related to the rules that regulate political processes. The information we present here indicates the insufficiency of current explanations and highlights the importance of two other elements not sufficiently considered by the literature: political and ideological cleavages, and the presence and influence of private companies related to the production of the city.

Politics; Public policies; Interest intermediation; Urban infrastructure; São Paulo


CLIVAGENS IDEOLÓGICAS E EMPRESAS PRIVADAS NOS INVESTIMENTOS PÚBLICOS URBANOS – SÃO PAULO 1978-1998* * Esse artigo foi apresentado inicialmente no Seminário Temático de Políticas Públicas do XXV Encontro Anpocs, realizado em 2001.

Eduardo César Marques

Renata Mirandola Bichir

Introdução

O presente trabalho discute a relevância de processos políticos para a explicação dos padrões de investimento público urbano. A literatura brasileira tem analisado este tipo de política à luz do marxismo estruturalista, de estudos neomarxistas de movimentos sociais, de uma versão atenuada do pluralismo norte-americano e de uma versão urbana da teoria das elites.

Para essas literaturas, os processos internos ao Estado, assim como as dinâmicas propriamente políticas, teriam muito menos importância do que os atores localizados na sociedade e os elementos ligados às regras do jogo político. As informações levantadas aqui indicam a insuficiência das explicações correntes e destacam a importância de dois outros elementos pouco ou nada considerados pela literatura: de um lado, clivagens políticas e ideológicas; de outro, a presença e a influência das empresas privadas ligadas à produção da cidade.

Analisamos a política de infra-estrutura urbana implementada pela Prefeitura Municipal de São Paulo entre 1978 e 1998. Esta política inclui obras e serviços de micro e mesodrenagem, pavimentação, abertura de viário novo, pontes, viadutos e túneis e, durante o período estudado, esteve a cargo da Secretaria de Vias Públicas Essa secretaria possui um papel importante na cidade de São Paulo, tanto pela sua histórica influência na estruturação do espaço paulistano,1 1 Ver Leme (1991 e 1999) e Simões (1991). quanto pela amplitude de sua ação.

As informações trabalhadas neste artigo foram obtidas a partir de uma pesquisa primária nos Diários Oficias do Município e de entrevistas com técnicos do setor, dando seqüência a um conjunto de trabalhos em que apresentamos os resultados desta pesquisa e problematizamos os enquadramentos tradicionais da literatura nas áreas de sociologia e política urbana sobre fenômenos e processos ligados às ações do Estado na cidade. Não pretendemos elaborar um modelo para a análise das políticas públicas, tarefa que vai além do âmbito de um artigo, mas destacar os elementos e os processos relevantes das políticas urbanas, quase completamente desconsiderados pela literatura.

Explicações correntes: conflitos, eleições e políticas do Estado

Uma parte significativa das análises sobre a questão urbana no Brasil enfoca o Estado e suas políticas, dada sua influência na construção e na transformação das cidades brasileiras. Embora tenha uma presença recorrente, o Estado nunca foi tema central desses estudos, ao contrário, na maioria das vezes, ele foi considerado de forma periférica ou subordinada a fenômenos ocorridos em outros lugares. Assim, as políticas estatais são explicadas como um produto de processos ou dinâmicas externas a ele, ora localizadas na sociedade, ora oriundas da economia. São basicamente três os mecanismos mobilizados pela maior parte da literatura para explicar as políticas públicas urbanas em período recente.

Segundo o primeiro mecanismo, que denominamos "modelo do conflito", os movimentos sociais dos anos de 1970 e 1980 teriam pressionado o Estado por investimentos e, obtendo sucesso, teriam alterado o seu modo de proceder. O exercício de pressão externa sobre o Estado seria o principal mecanismo de influência sobre as políticas estatais. Caso grupos populares não exercessem pressão, o Estado acabaria por realizar políticas em proveito dos grupos dominantes, que subordinam a lógica estatal por meio de mecanismos estruturais ou não.2 2 A herança marxista aqui é evidente e explícita. Para a discussão dos mecanismos mobilizados pelo marxismo para a compreensão das políticas, ver Marques (1997). Essa visão, presente em estudos como o de Gohn (1991), tornou-se um dos eixos centrais para a compreensão das políticas urbanas nas ciências sociais do Brasil, e foi predominante durante as décadas de 1980 e o início dos anos de 1990. Segundo esse modelo, a política produz políticas.

Em uma versão mais sofisticada deste modelo, autores como Jacobi (1989) e Sader (1988) destacaram a importância de outros atores como mediadores na construção de tais mobilizações, assim como ressaltaram as mudanças no ambiente político mais amplo ocorridas no período, em parte, produzidas e, em parte, produtoras de mobilizações e movimentos. De acordo com essa perspectiva, os movimentos não causaram apenas uma mudança no padrão de ação estatal, mas uma alteração no próprio cenário político. Eles teriam auxiliado a construção de uma qualidade nova na política, para usarmos as palavras de Castells (1980), uma das referências do deslocamento pós-estruturalista (e em larga medida antiestruturalista) da literatura urbana brasileira. Para esta variante, portanto, a política produz políticas, mas também influi na construção de uma nova política.

Sob o nosso ponto de vista, é inegável que alguns grupos da sociedade tenham mais recursos de poder do que outros e, portanto, condições diferenciadas de ter seus interesses representados nas políticas estatais. De forma similar, é também evidente que os resultados da luta política influenciam as políticas do Estado e, em especial, que os movimentos sociais podem alterar o padrão de políticas estatais através da sua pressão. Não podemos admitir, entretanto, que a esfera política esteja totalmente subordinada às pressões, ou que o Estado não tenha inércia, estratégias e interesses próprios, ou, ainda, que se apresente de maneira passiva no embate entre os diversos grupos. Assim, nem o Estado pode ser apenas ocupado por grupos da sociedade, apresentando-se como uma instituição heterogênea e complexa em si mesma, nem a política pode ser somente guiada por dinâmicas de outras esferas, como a economia. Considerar essas dinâmicas significa estudar os processos políticos de maneira integrada, analisando os processos internos ao Estado e as interfaces deste com a sociedade. Não se trata de desconsiderar os conflitos ressaltados pelos analistas dos movimentos sociais, mas de reintroduzi-los de forma complexa e mediada pelos demais processos e agentes presentes no cenário político. Voltaremos a este ponto mais adiante.

Em Estados e redes sociais (Marques, 2000), analisamos a insuficiência desses mecanismos como elementos causais isolados das ações estatais locais e demonstramos a existência de investimentos significativos em saneamento nas periferias cariocas já no final dos anos de 1970. Tais investimentos não podem ser creditados a conflitos, já que precederam a organização da população na região. O caso carioca ganha sentido se considerarmos a dinâmica institucional da então concessionária estatal da política: a Cedae. Essa empresa tinha sido criada em 1975 pela fusão de três empresas estatais de saneamento distintas. O grupo que exerceu a hegemonia na fusão (originário da empresa de águas da Guanabara – Cedag), encarou a fusão como a incorporação de uma periferia totalmente desassistida (a Baixada Fluminense) ao território da sua antiga concessão (o município do Rio de Janeiro). Nos primeiros anos da concessão, uma das diretrizes da política disse respeito a elevar o patamar do seu atendimento ao das periferias já integradas aos sistemas da Cedag. Esses espaços eram servidos precariamente, com padrão tecnológico e operacional inferior, mas mesmo assim atendidos.

Na construção desse padrão inferior de atendimento merecem destaque duas dinâmicas. A primeira, desconsiderada pela literatura crítica, diz respeito à motivação que leva os técnicos estatais a expandir serviços públicos para as periferias. Como nos lembraram recentemente os neoinstitucionalistas, a reprodução simples ou ampliada dos burocratas depende do desdobramento das políticas implementadas por seus órgãos (Amenta e Skocpol, 1986). Assim, a expansão das políticas de infra-estrutura para novas fronteiras interessa não só às burocracias, mas também às agências em geral, se consideramos simplesmente suas motivações.3 3 Ver Watson (1992). Um contra-argumento poderia ser a afirmação de que os prestadores não expandiam os serviços pelo baixo poder aquisitivo da população periférica, o que tornaria os sistemas na periferia inviáveis economicamente. Essa hipótese, bastante difundida na literatura (e baseada em parte na literatura estruturalista) não encontra fundamento empírico. A partir do final dos anos1980, tanto as coberturas quanto as tarifas dos serviços urbanos foram sistematicamente aumentadas, e nem por isso os serviços enfrentaram problemas insolúveis de inadimplência nas áreas metropolitanas.

Por outro lado, o conteúdo e a qualidade das políticas desenvolvidas nas periferias nos anos de 1970 foram limitados por uma segunda dinâmica, também escassamente considerada pela literatura. Trata-se da "seletividade hierárquica das políticas" – elemento constitutivo da cultura técnica da comunidade profissional (Marques, 2000). Esse mecanismo não se origina nas estruturas da sociedade, como a "seletividade estrutural do Estado", conceito advindo do marxismo estruturalista, mas do "referencial" presente no setor, no sentido de Jobert e Muller (1987). Este expressa o conjunto de idéias, crenças e visões de sociedade, explícitas ou implícitas, compartilhadas pela maior parte dos membros da comunidade profissional das políticas urbanas. Esse conjunto de idéias influencia fortemente as políticas, fazendo com que os conflitos – definidores dos beneficiários das políticas – não se dêem apenas em torno das políticas propriamente ditas, mas também em torno das diferentes visões de mundo, do Estado e de suas políticas.

Acreditamos que de acordo com o referencial do setor e da sociedade, predominante entre os engenheiros dos setores de infra-estrutura urbana, as prioridades estatais devem seguir a estrutura social, oferecendo os serviços primeiramente (e com melhor qualidade) a grupos sociais mais ricos e escolarizados. Essa visão está certamente presente há muito tempo nos setores de política, mas foi reforçada durante o regime militar, quando as políticas estatais a tinham como ponto de partida. Nesse sentido, talvez o mais importante efeito das recentes mobilizações populares e movimentos sociais tenha sido alterar, através de suas lutas, os patamares de direitos reconhecidos socialmente. Este deslocamento no conjunto mínimo de serviços e bens, sancionado pela sociedade como justo, certamente influenciou o referencial dos engenheiros, mesmo que de maneira indireta. Entretanto, a seletividade hierárquica ainda está presente nas políticas, tanto por razões geracionais e pelo caráter relativamente conservador da comunidade dos engenheiros, quanto pela inércia das organizações estatais nas quais ela se inscreveu ao longo do tempo.

Como veremos ao longo deste artigo, no caso de São Paulo os investimentos nas periferias também precederam a constituição de patamares mais amplos de organização popular local. Ao contrário do Rio de Janeiro, já existiam movimentos, mas estes eram muito localizados e tinham como tema questões específicas, como creches, equipamentos de saúde e esgotamento sanitário, em sua grande maioria não relacionadas com as obras e serviços estudados aqui. Não é possível, portanto, explicar a descoberta de investimentos mais recentes nas periferias como conseqüência de mobilizações e conflitos. Não se trata de afirmar a irrelevância do estudo de tais mobilizações como forma de explicar as políticas estatais, mas de dizer que a relação entre a ação de tais atores e o campo das políticas não pode ser entendida de maneira mecânica. Na verdade, o mais importante efeito dos movimentos sociais se relaciona com a produção de descolamentos amplos no campo da política, agindo sobre a própria agenda pública e, potencialmente, deslocando todo o campo da política na direção da construção de ações mais redistributivas.

O segundo mecanismo mobilizado pela literatura diz respeito às decisões dos políticos imbuídos de cargos públicos. Estes seriam influenciados por vários processos, sendo o principal aquele relacionado com o ciclo das eleições. Denominamos este tipo de explicação "vínculo eleitoral" (Fizson, 1990 e Ames, 1995). De acordo com esta perspectiva, os níveis de investimento e, em especial, aqueles direcionados à população mais pobre, tenderiam a ser mais elevados nos momentos anteriores a eleições. Como, para esses autores, os políticos tenderiam a gastar mais em políticas de impacto, como as analisadas aqui, haveria um crescimento significativo dos gastos públicos, somente bloqueado pela disponibilidade de recursos no poder público. Em outras palavras, os investimentos aumentariam quando próximos às eleições, e seriam proporcionais aos níveis anuais do orçamento municipal.

Os autores que utilizam esse vínculo explicativo partem de dois pressupostos. O primeiro sustenta que o comportamento predominante dos políticos é a maximização de suas chances de reeleição, obtendo prestígio e recursos políticos, quando bem-sucedidos. O segundo vincula os interesses dos políticos às ações do Estado. Caso essa identidade não exista, não há como garantir que os interesses se transformem em ações. Nesse ponto, fica evidente a influência dos pluralistas, para os quais o Estado não existe como construção histórica, representando apenas um espaço vazio a ser ocupado pelos grupos de interesse vitoriosos. No caso específico do Brasil, o retorno das eleições para os executivos locais (governadores, em 1982, e prefeitos de capitais, em 1985) teria levado a um aumento dos investimentos.

Sob o nosso ponto de vista, mesmo que possamos aceitar o primeiro pressuposto, embora com ressalvas, não podemos concordar com o segundo. Políticas são implementadas por técnicos que, de um lado, retiram seu poder dos vínculos com políticos eleitos e, de outro, de seu conhecimento técnico e do funcionamento da máquina estatal. Os políticos precisam desses técnicos (e de seus saberes) para realizar bons governos, independentemente de suas posições políticas, pois mesmo o mais maximizador dos políticos depende das organizações do Estado e de seus funcionários para implementar algum projeto. Por essa razão, o modelo do vínculo eleitoral traz à tona a importância de um mecanismo presente no comportamento dos políticos, mas não consegue prever as ações do Estado.

Assim, mesmo em nível teórico, a existência de vínculos mecânicos entre eleições e investimentos deve ser afastada, e isso é corroborado pelas informações empíricas descritas a seguir. Entretanto, como veremos, podemos tirar proveito analítico do cálculo político dos governantes, assim como da mudança de regime político, se o associarmos a outros processos.

Com relação ao vínculo eleitoral, as políticas do Rio de Janeiro, estudadas por Marques (2000), apontaram resultados similares aos apresentados neste artigo. Naquela pesquisa não se encontrou uma relação estatística significativa entre anos de eleição – em vários níveis (ou anteriores a pleitos) – e volumes de investimentos em saneamento. A ausência de uma relação direta entre esses processos não significa que a existência de eleições livres e regulares não esteja correlacionada com níveis mais altos de gastos sociais, nem a uma maior responsabilização política dos governantes pelos governados, em um sentido mais geral. A questão do regime político, entendido como o conjunto de regras que estruturam a luta pelo poder, é extremamente importante, sobretudo pela conformação do ambiente político no qual estão inseridos os atores.

No caso de São Paulo, como discutido por nós em maior detalhe em Marques e Bichir (2001b), os investimentos precoces nas periferias parecem ser explicados pela associação entre as mobilizações incipientes e a mudança no cálculo político dos ocupantes de cargos públicos, com o crescimento da importância do vínculo eleitoral4 4 Embora, no Brasil, o vínculo eleitoral nunca tenha sido quebrado por completo, a sua importância no cálculo político das elites certamente foi reduzida durante o regime militar. e o aumento da relevância de políticas redistributivas na construção das carreiras políticas. A mudança do ambiente incide fortemente sobre a forma como se constrói a agenda da classe política e das elites burocráticas, assim como sobre o seu conteúdo. Como os cálculos desses atores são baseados em um referencial bastante conservador e hierárquico, abriu-se o caminho para a ocorrência de deslocamentos na ação estatal, mas não para a reversão completa da produção estatal de segregação socioespacial.

Portanto, ao contrário do elo causal freqüentemente considerado, o início dos anos de 1980 não assiste a um cenário onde política (mobilizações) produz políticas (ações do Estado). Em um ambiente político em transformação (e abertura), com a expectativa da expansão das eleições como forma de ascensão ao poder estatal, e sob pressão crescente de movimentos populares, as políticas geraram política que, por sua vez, gerou mais políticas, no sentido defendido por autores neoinstitucionalistas como Skocpol (1992).

Finalmente, vale destacar que a independência entre investimentos e eleições não impede a existência de obras realizadas com objetivos eleitorais, especialmente em bairros de baixa renda.5 5 Cf. Marques (2000) sobre o segundo programa carioca de favelas. Isso apenas indica que as obras "eleitorais" não são predominantes nas ações de organizações estatais complexas, como acontece em grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo.

O terceiro mecanismo presente na literatura é a teoria da "causação circular", formulada em Vetter (1975). Segundo esta teoria, tributária de uma visão do funcionamento do mundo político influenciada pela teoria das elites, há uma coincidência, nas sociedades capitalistas, entre os detentores da renda real e os detentores da renda monetária. A primeira seria definida pelo acesso a um conjunto heterogêneo de bens e serviços, que incluem educação, cultura, modo de vida, condições de habitação e reprodução em um sentido mais amplo, e a segunda corresponderia à posse de ativos econômicos. Para Vetter (1975), considerando as regras do funcionamento da política, os detentores de ambos os capitais são os grupos mais capazes de exercer influência sobre as políticas de governo. Em relação às políticas urbanas, eles atrairiam para os seus bairros, já mais valorizados dos que o restante da cidade, os investimentos públicos. Assim, as ações do Estado, em vez de reduzir os diferenciais de acesso a serviços e bens, aumentam as disparidades, concentrando condições cada vez melhores para ricos e condições estagnadas para pobres e despossuídos de poder. Este raciocínio, de grande parcimônia explicativa, parece descrever uma parte importante dos mecanismos em jogo nas ações do Estado no interior da esfera urbana. Entretanto, duas advertências graves devem ser feitas.

Observando de modo amplo, a causação não especifica as formas pelas quais a influência sobre o Estado se materializa. Isto é condizente com a visão da teoria das elites, já que, de acordo com esta, a influência se dá de inúmeras maneiras, muitas delas invisíveis e impossíveis de mapear. De forma mais específica, a teoria da causação despreza completamente a possibilidade de conflitos e lutas políticas de grupos que não detenham renda real (e monetária). Se os movimentos destacados pelo modelo do conflito não explicam tudo, também não podemos desconsiderar a sua ação e importância. Assim, ficam de fora do alcance explicativo da teoria da causação circular todas as políticas que sejam efetivamente distributivas. Além disso, esta perspectiva, assim como as anteriores, trabalha com uma visão de Estado totalmente esvaziada de conteúdo: o Estado simplesmente transforma em políticas os impulsos vindos de fora, como nos modelos marxista e pluralista.

Como veremos a seguir, a existência tanto de investimentos distributivos, quanto de importantes processos internos ao Estado e relativos à interface deste com grupos na sociedade tornam o modelo da causação incapaz de explicar os padrões encontrados em São Paulo. Este modelo descreve uma das estruturas colocadas pelas regras presentes em sociedades de economia capitalista e democracia representativa, mas, nem de longe, dá conta de todos os processos em curso nessas sociedades.

O problema mais geral que envolve os três mecanismos apresentados – "modelo do conflito", "vínculo eleitoral" e teoria da "causação circular" – é desconsiderar a importância das dinâmicas relativas ao funcionamento do Estado e às relações que o cercam. Gostaríamos de destacar dois elementos cruciais para o entendimento do processo em que se desenvolvem as políticas públicas: as clivagens ideológicas entre governantes e a presença de padrões de vínculo entre o Estado e o ambiente que o cerca. A primeira dinâmica diz respeito ao fato de que os políticos não têm apenas interesses gerais, mas compartilham e divergem em relação a projetos baseados na elaboração de políticas que apresentam conteúdos diferentes. Isto ocorre não só na política brasileira como um todo, mas também em nível local, ao contrário do que afirmam o senso comum e uma parcela significativa do debate acadêmico. Vale para a política brasileira uma máxima do arquiteto Carlos Nelson dos Santos sobre as favelas: "a desordem é uma ordem mais difícil de ver". O sistema partidário, assim como a dinâmica das eleições no Brasil podem aparentar desordem e imprevisibilidade, quando analisadas com os instrumentos analíticos e os padrões das democracias consolidadas dos países desenvolvidos, mas apresentam, em contrapartida, regularidade e previsibilidade singulares. Isto acontece tanto na arena eleitoral, como mostrou Soares (2000), quanto no interior do Congresso Nacional, como mostraram Figueiredo e Limongi (1999), para escolher apenas dois exemplos tematicamente extremos. Como veremos, isso também é verdadeiro nas políticas locais de infra-estrutura estudadas aqui: é possível prever os conteúdos das políticas implementadas pelos prefeitos por seu alinhamento ideológico. Considerando as evidências, não há razão alguma para supor que os eleitores não possam também fazer as mesmas previsões.

Além disso, outro importante elemento está completamente ausente do debate acadêmico sobre as políticas urbanas e deve ser analisado: as empresas privadas produtoras de obras e serviços de engenharia. Como já destacado para o caso do Rio de Janeiro (Marques, 2000), considerando as especificidades da sua posição estratégica no processo de produção das políticas, e principalmente as peculiaridades do Estado brasileiro, os capitais que agem em um determinado setor de política se constituem em atores importantes, cujo estudo se mostra fundamental para a compreensão das ações estatais em inúmeros aspectos. Como veremos, a sua presença e as suas posições na rede de relações da comunidade influenciam não apenas processos de contratação, como demonstrado em Marques (1999) para o Rio de Janeiro, mas o próprio padrão geral de investimentos.

Os investimentos em São Paulo

A pesquisa, cujos resultados serão discutidos a seguir, analisou os padrões de investimento estatal em infra-estrutura urbana no município de São Paulo entre 1978 e 1998. Analisamos as obras e os serviços contratados pela Secretaria de Vias Públicas – SVP – do município de São Paulo com empreiteiras e empresas de engenharia para a construção de micro e mesodrenagem, pavimentação, abertura de um novo viário, pontes, viadutos e túneis. A fonte das informações são os extratos dos próprios contratos entre a Secretaria e as empresas, pesquisados diretamente nos Diários Oficiais do Município. Essas informações foram posteriormente consolidadas em um banco de dados, atualizadas financeiramente e compatibilizadas, e representam a origem de todos os dados citados ao longo deste texto, salvo referência em contrário.

Seguindo uma ontologia relacional do social, consideramos que inúmeros fenômenos sociológicos e políticos podem ser analisados à luz dos padrões de relação entre indivíduos, grupos e organizações presentes em uma dada esfera da sociedade (e do Estado). Estes padrões constituem redes de diferentes tipos de vínculo em constante transformação, que se apresentam para os atores sociais tanto como constrangimento quanto como possibilidade, induzindo seu comportamento e suas estratégias, revelando seus projetos e suas visões sobre o setor e a sociedade. Em um sentido mais amplo, as redes estruturam a vida cotidiana. A metodologia de análise de redes sociais permite reconstituir analiticamente estas redes, iluminando sua influência sobre inúmeros processos.6 6 É já bastante extensa a literatura internacional de análise de redes sociais, mas infelizmente a perspectiva foi muito pouco explorada no Brasil. Para uma resenha da literatura de redes em ciência política e, até onde vai o nosso conhecimento, único estudo empírico de uma política no Brasil que utiliza essa metodologia, ver Marques (2000).

Na presente pesquisa, a exemplo de Marques (2000), o estudo da rede ajuda a analisar a relação entre as esferas pública e privada no desenrolar da política, assim como os padrões de relacionamento entre grupos no interior do Estado e entre este e o seu entorno imediato, aí incluídos políticos, empresas privadas e órgãos representativos da comunidade dos engenheiros. Estes elementos serão explorados em trabalhos futuros e não são enfocados aqui. Entretanto, alguns elementos da rede apresentam-nos dados interessantes para a compreensão dos fenômenos tratados aqui e serão utilizados, quando oportuno.

Em termos operacionais, para a reconstrução da rede da comunidade de política de infra-estrutura em São Paulo no período estudado, realizamos aproximadamente 25 entrevistas com técnicos e membros da comunidade dos engenheiros relacionada com a política da SVP. Foram entrevistados técnicos de carreira, assim como indivíduos que participaram da administração em alguns períodos determinados. Assim, elaboramos, para cada governo do período estudado, listas (matrizes) de pessoas e empresas conectadas por vínculos de diversos tipos. As matrizes foram submetidas à análise de redes sociais, o que permitiu recompor as redes de relações entre indivíduos, entidades e grupos no desenrolar da política. Esta parte do trabalho apoiou-se intensamente na pesquisa anterior, consubstanciada em Marques (2000).

Como já foi dito, as ações da Secretaria de Vias Públicas têm uma grande importância histórica na estruturação da cidade de São Paulo. Além disso, a secretaria consome um volume elevado de recursos, o que é compatível com a sua centralidade nos projetos políticos de várias administrações do período estudado, tanto pela realização de obras de visibilidade, quanto pelos elevados valores contratados que, como tem sido documentado pela imprensa, estão associados a financiadores de campanha e esquemas de corrupção. No período estudado, as intervenções da SVP consumiram em média 13% do orçamento municipal, chegando a totalizar 27% do gasto em 1993, o que correspondeu à cerca de 2,5 bilhões de reais (de dezembro de 1999).7 7 Essa é a data de referência da pesquisa (e desse artigo), para o qual foram transportados todos os valores, depois de convertidos e atualizados financeiramente utilizando as variações mensais do índice IGP – DI da Fundação Getúlio Vargas. Vale destacar que, ao contrário de políticas como educação e saúde, que também consomem parcelas expressivas do orçamento, mas incluem principalmente custeio, observam-se aqui apenas investimentos.

O padrão geral dos investimentos

Os investimentos analisados incluem 3.350 contratos, além de aditamentos, retificações e aprovações de preços, totalizando cerca de 4.900 documentos. Os contratos foram vencidos por 355 empreiteiras, somando um valor de 8,6 bilhões de reais. A variação anual dos investimentos é bastante grande, entre menos de 50 milhões nos anos de 1984, 1989, 1991 e 1992 e valores superiores a 1 bilhão de reais em anos com 1987, 1988 e 1996.

A concentração de vitórias nas mãos de um grupo pequeno de empresas também é muito grande: o mais importante vencedor (0,3% do universo) venceu mais de 10% do valor total, e apenas 23 empresas (6% do universo) abocanharam mais de 70% do total licitado. Uma importante particularidade da política é o fato de uma parcela significativa dos contratos (apenas seis contratos, mas que abrangem cerca de 42% do valor total) ter sido realizada por meio de repasses para a Empresa Municipal de Urbanização – empresa pública vinculada à Secretaria –, que contratou diretamente as empreiteiras, fiscalizou e recebeu as obras. Estes investimentos estão incluídos na análise que se segue, mas, sempre que for analiticamente relevante, serão destacados e discutidos em separado.

Iniciamos nossa análise pela investigação dos condicionantes gerais do ciclo anual de investimentos. Para testar os elementos relacionados com o nexo eleitoral, podemos analisar primeiramente a correlação entre anos de eleições e o volume geral de investimentos. Confirmando os resultados de Marques (2000) para o Rio de Janeiro, os dados mostram uma independência total dos investimentos em relação ao ciclo eleitoral, não havendo relação significativa estatisticamente, seja com eleições locais e nacionais, seja com os anos pré-eleitorais. Também não obtemos nada significativo quando consideramos os anos anteriores ou posteriores a eleições, sejam elas locais, nacionais ou quaisquer outras.8 8 Vários testes de médias entre anos com eleições municipais, não municipais ou eleições em geral não mostraram diferenças significativas entre os valores investidos nesses anos e nos demais. Da mesma forma, não encontramos significância estatística entre os investimentos anuais e os volumes gerais de investimentos, como seria de se esperar pela segunda parte do nexo eleitoral – os investimentos não crescem quando há um maior volume de recursos disponíveis no orçamento municipal, assim como não decrescem quando este se reduz.9 9 Neste caso, as correlações entre o orçamento da prefeitura no ano e o volume de gastos naquele ano não foram significativos, nem a 5%, nem a 1% de confiabilidade. É interessante observar que o resultado apresentava significância, embora a 10 %, quando ainda não tínhamos incluído os contratos assinados por meio da Emurb (ver Marques e Bichir, 2001a e b). O coeficiente desta relação, entretanto, era inconsistente, variando de -0,055 a 0,002, indicando que nada poderíamos afirmar sobre a existência da relação.

Além disso, constatou-se uma independência entre o padrão geral de gastos e os capitais médios das empresas vitoriosas em cada ano. O gasto anual da Secretaria não está correlacionado com o capital médio das empresas que venceram naquele ano, embora, como veremos mais adiante, os capitais médios sejam significativamente mais elevados em governos de direita do que em administrações de esquerda.

Em contrapartida, encontramos associação entre os investimentos da SVP, de um lado e, de outro, a inclinação ideológica do prefeito10 10 Consideramos de direita, Olavo Setúbal, Reynaldo de Barros, Salim Curiati, Jânio Quadros, Paulo Maluf e Celso Pitta, e, de esquerda, Mário Covas e Luíza Erundina. e a proporção do orçamento gasto na SVP. Ambas as variáveis indicam ou se relacionam com escolhas. A primeira é a do eleitorado que, ao votar em candidatos de direita ou de esquerda, pode prever o conjunto de políticas que eles implementarão, uma vez no poder. Restaria saber se as preferências dos eleitores são compatíveis com as políticas implementadas, o que foge ao escopo deste trabalho.11 11 Para isso seria necessário comparar as informações a respeito das preferências de política das parcelas do eleitorado que votam em candidatos de inclinações ideológicas diferentes e as políticas implementadas por esses, em uma linha mais próxima ao excelente artigo de Soares (2000). De qualquer forma, está comprovada a previsibilidade, por parte do eleitor, do conteúdo das políticas a partir dos posicionamentos políticos mais amplos dos candidatos na arena eleitoral, contrariamente ao que é sustentado por uma parte significativa da literatura e pelo senso comum. É interessante observar que, no caso do Rio de Janeiro (Marques, 2000), não foi encontrada nenhuma relação entre o perfil geral de investimentos e as clivagens político-ideológicas. Voltaremos a este ponto mais tarde, mas isso talvez se deva ao fato de o caso de São Paulo apresentar clivagens mais claras, além de uma política incentivada a partir "de fora" – não pelos usuários, como gostaria o modelo do conflito, mas pelas empresas construtoras que se constituem em um tipo de "usuário" especial das políticas estatais, como já destacado anteriormente.

A segunda relação observada demonstra a importância dos processos políticos de escolha no interior do executivo, não previsíveis a partir de posicionamentos ideológicos mais amplos, já que esta variável não está relacionada com a anterior. Assim, independentemente da clivagem esquerda/direita, a proporção do orçamento gasta na Secretaria influencia os valores absolutos do investimento, mesmo que haja controle pelo valor geral do orçamento. Isto indica a existência de processos de escolha internos à dinâmica da administração que levam a alterações nos volumes de investimento da Secretaria.

A utilização das informações obtidas a partir da recomposição da rede da comunidade ajudou a desvendar alguns desses processos internos à administração. As informações permitiram testar a hipótese, já discutida anteriormente, de que a política da Secretaria seria, em grande parte, incentivada a partir "de fora", por um conjunto de demandantes de políticas não considerados pela literatura – as empresas construtoras e produtoras de serviços de engenharia. Com a rede de relações entre pessoas e empresas por governo recomposta a partir das informações obtidas nas entrevistas, foi possível a elaboração de algumas estatísticas que permitiram caracterizar cada momento e testar tal hipótese. As mais simples medidas da presença de empresas na rede que podemos tomar são a quantidade de vínculos que as empresas tinham, em média, em cada governo (primários e secundários) e a distância que as separava dos principais detentores do poder institucional, no caso os secretários.12 12 Para simplificar o procedimento, incluímos a média das medidas das empresas correspondentes a 80% do valor gasto em cada governo, o que forneceu mais de 160 casos. As medidas utilizadas foram o grau – soma dos vínculos de um dado nó (vínculos primários) – e o poder – que considera, além destes os vínculos das pessoas às quais um nó está ligado, descontando uma certa proporção dos secundários. Utilizamos um desconto de 25%, o que equivale a considerar, para um dado nó, apenas um vínculo, a cada quatro secundários existentes. A distância é apenas a quantidade de passos entre pessoas na rede que uma determinada empresa tem de caminhar para chegar ao secretário, pelo menor caminho possível. Os resultados são bastante promissores. Em primeiro lugar, o valor total gasto em cada governo é proporcional ao conjunto de vínculos médios das empresas privadas presentes em cada governo, tanto secundários, quanto primários. Este resultado não se alterou quando incluímos a variável "governos de direita e de esquerda" como controle, embora, como veremos mais adiante, em governos de direita as empresas estivessem mais próximas do secretário.13 13 Todos estes resultados são significativos a 99%.

Além disso, e este é o ponto mais importante, a parcela do orçamento gasta na SVP é proporcional tanto à distância média das empresas em relação aos secretários, quanto ao total de vínculos das empresas presentes em um governo. Quando incluímos essas variáveis em um modelo de regressão, a variável da proporção da SVP no orçamento deixou de ser significativa, indicando que, na verdade, a sua presença estava representando as variáveis relacionais. É interessante observar que o conjunto médio de vínculos primários não é significativo, ao contrário dos vínculos secundários. Isto significa que o volume de gastos da SVP é proporcional, em uma medida razoável (a variância explicada pelo modelo ultrapassa 0,7, ver nota 16), à ligação de empresas privadas na rede da comunidade da política a pessoas com muitos vínculos, assim como da sua proximidade com os secretários. Esta informação confirma a hipótese inicial de que uma parte significativa da política é incentivada a partir "de fora", pelas empresas construtoras, e que estas empresas se constituem nas mais importantes "usuárias" da política.14 14 O conjunto de anos apresenta um outlier – ano de 1996 –,não por acaso ano da eleição de Celso Pitta. Neste ano, o conjunto do gasto foi muitíssimo elevado, e fugiu do padrão de explicação do modelo. Entretanto, exceto este caso, a regressão multivariada do total gasto, tendo como variáveis independentes a clivagem ideológica, a distância média ao secretário e o conjunto de vínculos secundários apresenta uma estatística F de 14, 76 (Sig a 0,000) e R quadrado de 0,723. Estas duas variáveis relacionais estão associadas à diferenciação esquerda/direita, mas exercem uma influência sobre o conjunto de gastos independente da clivagem ideológica.

Por fim, vale destacar que a influência dessas variáveis relacionais não depende dos capitais das empresas vencedoras, como gostariam o senso comum e certo argumento marxista de corte monopolista. Não importa se as empresas que se encontram conectadas ao núcleo do poder (ligadas a pessoas que têm muitos contatos e próximas do secretário) têm capitais elevados ou não, interessa a intensidade de seus padrões de vínculo.

Como o perfil político-ideológico do prefeito é um dos condicionantes dos investimentos, devemos acompanhar detalhadamente as características das administrações municipais. Os dados mostraram que prefeitos de direita – Maluf, Reynaldo, Jânio, Pitta e Setúbal, mesmo que controlados pela duração diferenciada dos mandatos, caracterizam-se por grandes volumes de investimentos concentrados em contratos de grande porte, aditados de maneira intensa, com valores elevados de aditamentos individuais, na sua maioria excedendo os limites legais e acompanhados de dispensas de licitação de valores muito elevados. O total anual médio gasto em governos de direita é cinco vezes superior ao de esquerda, e o total aditado é doze vezes superior. O aditamento médio mensal em governos de direita é de cerca de 3,30 milhões de reais, enquanto em governos de esquerda é de 0,37 milhões reais mensais, em média. O capital médio das empreiteiras vencedoras nas administrações de direita também é sistematicamente superior, sendo a média dos vencedores de 80% do valor gasto em cada administração próximo a 200 milhões de reais, enquanto a média do mesmo grupo em administrações de esquerda não ultrapassa 70 milhões de reais, segundo dados da Junta Comercial do Estado de São Paulo. Entre os governos de direita, o de Curiati apresenta particularidades advindas, talvez, de seu caráter efêmero (o fato de ter permanecido apenas doze meses no cargo).

No outro extremo, segundo as macrocaracterísticas das políticas implementadas, encontramos os governos Covas e Erundina, ambos com gastos anuais inferiores, volumes significativos de obras pequenas e médias, pouco aditadas, que foram vencidas predominantemente por empresas de menor porte. Pode-se afirmar, portanto, que prefeitos de direita e de esquerda se diferenciam bastante quanto ao modo de implementação de suas políticas, apesar das diferenças entre os administradores de cada grupo (Marques e Bichir, 2001a).15 15 Testes de médias entre direita e esquerda para todas as variáveis indicam um padrão de muita solidez, permitindo sustentar as afirmações com significâncias sempre superiores a 99,9%.

As informações relacionais confirmam a importância da clivagem esquerda/direita. Em administrações de direita, a distância média das empresas vencedoras é de dois passos, enquanto em governos de esquerda é cerca de 3,5 passos. De forma equivalente, o conjunto de vínculos primários e secundários das empresas vencedoras em governos de direita tendem a ser sistematicamente superiores aos vínculos das empresas em administrações de esquerda.

O mesmo tipo de clivagem pode ser observado na concentração das vitórias – governos de direita tendem a ter um padrão mais concentrado do que governos de esquerda, embora a diferença entre os dois campos, neste caso, seja menor, apesar de significativa. Os resultados permitiram também uma comparação direta com os obtidos por Marques (2000) no Rio de Janeiro. A política da SVP caracteriza-se por um padrão muito fechado de vencedores, ainda mais restrito que o já concentrado padrão carioca. No caso de São Paulo, a concentração nas 5 e 20% maiores vencedoras foi muito grande entre 1978 e 1993 (e sempre maior no primeiro grupo que no segundo), exceto pelos dois momentos em que a prefeitura foi ocupada por prefeitos não de direita. A partir de 1994 (com governos de direta), a concentração dos 5% maiores caiu, mas a fatia das 50% menores também caiu, apontando para uma elevação da concentração em empresas médias e grandes.

Assim como no caso do Rio de Janeiro, o padrão de concentração é atenuado apenas em momentos de grande oferta de recursos, quando a diversidade das empresas vencedoras aumenta. Isso indica que apenas quando os ganhos das maiores estão garantidos, as empresas da periferia do mercado de obras públicas conseguem aumentar a sua proporção de vitórias. Esse resultado é idêntico ao encontrado em Marques (2000), e confirma a hipótese desenvolvida naquele estudo com relação à existência de uma estruturação hierárquica do mercado de obras públicas, com frações dominantes que abocanham a maior parte dos contratos (e provavelmente apresentam maior lucratividade), e frações periféricas (quase certamente subordinadas no jogo do poder entre as empresas privadas), que sobrevivem das "sobras" do mercado, quando a oferta aumenta.

Isso explica por que a distância entre a concentração de vitórias de governos de direita e de esquerda é menor do que a diferença entre as demais características já citadas: as administrações onde houve uma maior concentração de vitórias foram as de Pitta, Curiati, Reynaldo e Jânio, e os governos de menor concentração foram os de Covas, Setúbal, Erundina e Maluf. Como são os governos de direita que mais investem, e é nos momentos de abundância de recursos que as empresas não centrais no mercado conseguem aumentar a sua fatia, governos de direita com padrão extremamente concentrado de política, como a administração Maluf (grandes investimentos em poucos contratos altamente aditados), aparecem em posição de maior dispersão de vitórias que seus pares.

Esses mecanismos são interessantes, não apenas analiticamente, mas em termos normativos, pois indicam a complexidade dos processos políticos que operam no setor e demonstram as dificuldades em se democratizar as vitórias em licitações. Não basta o interesse de desconcentrar vitórias por parte dos decisores públicos não de direita,16 16 Podemos aceitar a existência desse interesse pelo discurso "nativo" de técnicos de destaque de governos não de direita, mas também pela posição estratégica ocupada por tais decisores no jogo político: operando em um setor hegemonizado pela direita (e que representa em grande parte o apoio financeiro de suas campanhas), as administrações não de direita têm todo o interesse em transformar o campo de poder do setor à medida que operam a política. já que a concentração se define simultaneamente dentro do Estado e no interior do setor privado, entre os empreiteiros. Assim, alguns momentos podem ser marcados simultaneamente pela concentração de vitórias e pela implementação de mecanismos democratizadores das licitações, por exemplo, reduzindo capitais mínimos e outros "dirigismos".17 17 Para uma análise política dos vícios em licitações, ver Marques (2000, cap. 5) e Mukai (1995). Isto aconteceria sempre que houvesse um pequeno volume de recursos disponíveis para contrato, assim como quando os atores hegemônicos do setor privado jogassem contra a política. Estes momentos são característicos de administrações não de direita e podem ser marcados pela ocorrência de "greves do capital" contratista, no sentido proposto por Block (1981). Como atestaram algumas entrevistas, esta situação caracterizou o início da administração Erundina.

As informações indicam ainda que a dinâmica da concentração das licitações da SVP também sofre a influência da legislação sobre licitações, como já verificado por Marques (2000). A concentração tendeu à estabilidade entre 1978 e 1986, havendo uma tendência nítida de desconcentração a partir daquele ano, quando se promulgou a primeira legislação federal sobre licitações. A próxima mudança do perfil de concentração ocorreu a partir de 1993, quando foi promulgado um novo quadro legal sobre licitações e contratos do setor público. O efeito desta vez foi o aumento da concentração, confirmando aparentemente a hipótese daqueles que sustentavam, à época, que o caráter muito restritivo da nova legislação tornaria o mercado mais elitizado. O impressionante paralelismo entre os casos do Rio de Janeiro e de São Paulo nos dois momentos de mudança do quadro legal não deixa dúvidas de que o fenômeno interveniente é de natureza nacional e institucional (Marques e Bichir, 2001a).

Padrão espacial e distributivo

Uma outra importante dinâmica dos investimentos não acontece no tempo, mas no espaço. Por meio de sua observação, para além dos impactos mais localizados em determinadas regiões da cidade, podemos analisar os padrões distributivos da política. Para tanto, necessitamos de uma organização prévia dos espaços da cidade que permita a visualização das inversões sem definir previamente os resultados. Utilizamos o artifício de construir uma base espacial a partir de informações socioeconômicas e distribuir, em seus agrupamentos, os investimentos da SVP. Como cada agrupamento da base diz respeito a um grupo social, podemos analisar facilmente as características mais ou menos distributivas da política ao longo do tempo e das administrações. O trabalho segue a metodologia discutida em Marques (1998) e aplicada em Marques (2000).

Para a construção da base espacial, partimos de informações socioeconômicas que foram colocadas à disposição pela pesquisa Origem-Destino, de 1997, realizada pelo Metrô. As informações da pesquisa foram agregadas nas chamadas "Zonas OD" que, no município de São Paulo, totalizam 393. Considerando que nossos investimentos não permitem uma localização detalhada, essas zonas foram reagrupadas nos 96 distritos censitários de 1991 do IBGE. Foram utilizadas variáveis relativas à escolaridade, à condição de ocupação, ao setor de atividade, à migração, entre outras. As informações das zonas foram submetidas à análise fatorial por componentes principais, sendo salvos os três primeiros fatores, que representam:18 18 Os autovalores dos três primeiros fatores representam 61,2% das variáveis originais. Riqueza (separa unidades com populações nos extremos da estrutura social); Consolidação do distrito (separa unidades consolidadas de unidades de ocupação recente, população jovem e em crescimento); Centralidade (separa as unidades do centro da cidade de todas as demais).

Os três fatores foram submetidos à análise de cluster, que agregou os distritos em seis grupos, além de uma unidade isolada. Esta unidade – Marsilac, mais ao sul do município – apresentou características muito diferentes das demais. Por ser totalmente atípica e não apresentar especial interesse para os investimentos e/ou para a política, a unidade foi retirada da análise. Os seis grupos foram caracterizados por seus fatores médios, representando:

Grupo 1 – Centro (quatro distritos e 150 mil habitantes). Único grupo construído não apenas a partir dos conteúdos sociais de suas unidades, mas também das atividades que lá ocorrem.

Grupo 2 – Ricos (treze unidades e 1 milhão de habitantes). Caracterizado por distritos de alta riqueza.

Grupo 3 – Pobres em bairros consolidados (28 unidades e 3 milhões de habitantes). Caracterizado pela estabilidade da ocupação e pela população pobre.

Grupo 4 – Classe média baixa (dezenove unidades e 1,5 milhão de habitantes). Inclui distritos consolidados e intermediários quanto à riqueza e à centralidade.

Grupo 5 – Pobres em bairros recentes (dezoito unidades e 2 milhões de habitantes). Caracterizado por ocupação recente e pobre.

Grupo 6 – Classe média (treze unidades e 1 milhão de habitantes). Inclui distritos acima da média de riqueza e intermediários quanto à centralidade e à ocupação.

O Mapa 1 apresenta os distritos por agrupamentos. Como podemos ver, a estrutura de distribuição dos grupos sociais apresenta um perfil geral radial-concêntrico, embora não de forma perfeita. É interessante observar que, entre as variáveis de entrada, não tínhamos nenhuma informação propriamente espacial. Os ricos localizam-se a sudoeste da área central e a classe média distribui-se ao seu redor. A classe média baixa tende a se posicionar a leste da área central, embora existam distritos com características similares a norte e a sul. Em uma coroa intermediária, observam-se os distritos que alojam prioritariamente pobres consolidados e, em uma coroa externa a esses, os pobres em áreas recentes.19 19 É quase certo que se passássemos para níveis de menor escala, como os bairros, as zonas OD ou os setores censitários, esta organização radial-concêntrica seria subvertida, em proveito de um padrão de mosaico, com várias regiões de mais alta e baixa renda, e mesmo "enclaves" no sentido forte da palavra. Se o nosso objetivo fosse estudar a estrutura social no espaço, esta base espacial não seria apropriada, mas como se trata apenas de um passo metodológico para distribuir investimentos de efeito não muito local sem introduzir viés algum, estamos na escala adequada. Neste sentido, não há bases espaciais ou modelos de organização do espaço "universais", mas apropriados para cada tipo de fenômeno e estudo. Sobre isto, ver Marques (1998).


Os investimentos foram então distribuídos por grupo de unidades espaciais por ano, e estes últimos foram agregados por governo, resultando no quadro dos investimentos apresentado na Tabela 1. Todas as informações dizem respeito a R$ por unidade de área, de forma a descontar a extensão territorial diferenciada dos diversos espaços da cidade.20 20 Preferimos trabalhar com área, e não população, pois, ao contrário de investimentos que geram benefícios individualizados, como abastecimento de água e energia elétrica, o impacto das obras e serviços da SVP é sobre territórios relativamente amplos do espaço construído urbano. Em um primeiro momento da pesquisa, utilizamos as populações como denominadores, o que resultou em números ligeiramente diferentes. Para os resultados obtidos, ver Marques e Bichir (2001b). Observemos, então, o comportamento de cada administração separadamente.

Como podemos observar, o governo Olavo Setúbal apresenta investimentos significativos no grupo de pobres em áreas consolidadas com cerca de 30% dos investimentos, seguidos de investimentos equivalentes para a classe média baixa e a classe média. Em termos comparativos, merece destaque a proporção dos seus recursos gastos em classes altas.

Podemos fazer duas observações retomando elementos da seção 2. Em primeiro lugar, a existência de investimentos expressivos e tão precoces neste governo, assim como em vários outros que se seguem, é impossível de explicar por meio do mecanismo da causação circular, ou por meio de um raciocínio baseado nos conflitos e na ação dos movimentos sociais, uma vez que, antes do final dos anos de 1980, eles tinham expressão muito localizada em termos temáticos e espaciais.

A administração de Reynaldo de Barros caracteriza-se pelo alto investimento em espaços de classe média, em áreas de pobres em bairros consolidados – ambos com quase 30%, e pelos investimentos em áreas de classe média baixa, com 19%. Reynaldo apresenta ainda baixos investimentos em áreas da classe alta e no centro tradicional.

As maiores proporções de investimentos por hectare da administração de Salim Curiati ocorrem nas áreas de classe média baixa, quase 30%, e em áreas de pobres em bairro consolidado (38%). Sua curta administração caracteriza-se também pelos investimentos em áreas de pobres recentes e de classe média (em torno de 15 %).

A administração Covas destaca-se por seu caráter redistributivo, com elevadas proporções de investimento destinadas às periferias. Nesse governo, cerca de 28% dos investimentos foram para áreas de pobres consolidados e para espaços de classe média baixa, e 27% para áreas de pobres em bairros recentes. Também merecem destaque os investimentos em áreas de classe média baixa, 36% do total investido. Assim como na administração Erundina, os valores relativos do governo Covas escondem os baixos investimentos absolutos.

O centro tradicional recebeu os seus maiores investimentos absolutos na administração Jânio Quadros: cerca de R$ 43 mil por hectare. Os demais investimentos do desse governo apresentam bastante equilíbrio, entre 15 e 20%, exceto pelas áreas de pobres recentes, com apenas 9%. O alto volume de gastos por área, entretanto, fazem com que esta administração apresente os maiores investimentos absolutos em áreas de classe média baixa e de pobres consolidados.

A exemplo do governo Covas, a administração Erundina destaca-se por baixos valores absolutos, e aqui também o padrão é distributivo, com os maiores investimentos relativos em áreas habitadas por pobres em bairros consolidados (41%). Os investimentos em espaços de classe média baixa (12%), assim como em áreas de ricos (10%) também foram bastante expressivos. O maior destaque, entretanto, vai para os gastos relativos na área central, explicados principalmente pelos investimentos na esplanada do Anhangabaú, com 27%.

Os maiores investimentos proporcionais e por hectare em espaços de ricos encontram-se na administração Maluf (25%, R$ 33,6 mil por hectare). Essa administração apresenta percentagens equilibradas de investimentos em áreas de classe média (25%), e de pobres consolidados (22%), seguidos pelas áreas de classe média baixa e de pobres recentes (respectivamente 14 e 11%). Em termos espaciais, grande parte dos investimentos localizam-se no chamado vetor sudoeste, ocupado predominantemente por ricos e classe média (ver Mapa 1), daí as proporções elevadas de investimentos para esses grupos.

Por fim, a administração Pitta é caracterizada pelos maiores investimentos relativos em áreas habitadas pela classe média: 32%, R$ 10,4 mil por hectare. Também são destacados os espaços de pobres em bairros consolidados, com cerca de 29% do total, seguidos da classe alta, com cerca de 20%.

Para melhor visualizar as características distributivas das políticas de cada governo, criamos dois grupos polares socialmente, reorganizando alguns dos agrupamentos anteriores: classes altas – reunindo os investimentos nos espaços de ricos e da classe média – e classes baixas – reunindo os investimentos nos espaços periféricos de ocupação recente e em áreas consolidadas (ver Gráfico 2).


Podemos observar que nas administrações Jânio, Maluf e Pitta as áreas que receberam os maiores investimentos foram as das classes altas. Nas administrações Setúbal e Reynaldo os espaços das classes baixas superaram um pouco os das classes altas, embora tenham recebido quase a mesma proporção. Entretanto, se considerarmos também os recursos para o espaço da classe média baixa, o perfil levemente redistributivo desaparece. As gestões Curiati, Covas e Erundina, por fim, investiram muito mais em espaços habitados pelas classes baixas do que em espaços das classes altas.21 21 Se considerarmos os investimentos per capita, e não por hectare, apenas as administrações Covas e Erundina investiram mais de 50% em áreas de classes baixas. Cf. Marques e Bichir (2001b e c).

As proporções de investimentos nos espaços, portanto, demonstram mais uma vez a importância do perfil político-ideológico do prefeito, exceto na administração atípica de Curiati. A análise estatística confirma a tendência observada no gráfico. Em termos desagregados, com os grupos originais, nada se pode afirmar a respeito da clivagem ideológica em relação aos investimentos em áreas de pobres recentes e consolidados, assim como no centro e na classe média baixa: testes de médias com investimentos anuais em governos de direita e esquerda não permitem sustentar diferenças entre os dois tipos de governos. Entretanto, existem diferenças entre governos de direita e esquerda quando se trata de investimentos em áreas de ricos e de classe média. Os testes sustentam que os governos de direita investem muito mais, em termos proporcionais, nessas áreas (15% e 25%, respectivamente) do que os de esquerda (6 e 5%,, respectivamente).

Por outro lado, e isto é ainda mais interessante, quando submetemos as proporções de investimentos nos espaços polares de anos de governos de esquerda e de direita, obtemos um resultado ainda mais conclusivo: os governos de direita tendem a investir mais em espaços de classes altas ao contrário dos governos de esquerda, em um padrão nítido de diferenciação ideológica em termos distributivos. Testes de médias sustentam a solidez desse padrão a 95% de confiabilidade. Isso confirma e complementa a descrição dos investimentos por governo apresentada anteriormente, além de corroborar a importância da clivagem ideológica para a explicação dos conteúdos de políticas e a busca de equidade.

Conclusão

Este trabalho analisou a influência, sobre os padrões gerais de investimento público, de clivagens ideológicas e da presença de empresas privadas de construção e serviços de engenharia em uma política urbana. Esses dois elementos são quase sempre desconsiderados pela literatura das políticas públicas e aos estudos urbanos, que tentam explicar as políticas do Estado se concentrando apenas em atores presentes na sociedade e em processos econômicos. Como vimos, o padrão geral de investimentos em políticas de infra-estrutura em São Paulo não pode ser explicado pelo ciclo eleitoral ou pela oferta geral de recursos para o gasto público, como gostaria a literatura de influência pluralista que mobiliza o nexo eleitoral. Os aspectos espaciais dos investimentos tampouco podem ser explicados pelo "modelo do conflito" ou pela teoria da "causação circular", seja pela precocidade dos investimentos nas periferias, seja pela existência de investimentos importantes nesses espaços em quase todo o período.

Ao contrário de variáveis e processos tão gerais, encontramos um padrão de investimentos explicado, em primeiro lugar, pela inclinação político-ideológica do prefeito, que torna previsível para os eleitores o encaminhamento das políticas públicas a serem implementadas. Esta dinâmica é confirmada pela existência de uma clara diferenciação entre o padrão de investimento de governos de direita e de esquerda. Os primeiros caracterizam-se por volumes mais elevados de investimentos, concentrados em grandes contratos com empreiteiras de capital mais elevado, altamente aditados, inclusive superando os limites legais e, por fim, com elevados valores médios de dispensas de licitação. Esse quadro adquire mais consistência com a análise espacial e o estudo das características distributivas das políticas públicas: os governos de esquerda tendem a implementar um padrão de inversões mais redistributivo socialmente, contrapondo-se aos de direita, que implementam uma política mais regressiva.

Em segundo lugar, pudemos confirmar a importância da presença e da inserção de empresas privadas na comunidade do setor. Essas empresas estabeleceram-se como um dos principais "usuários" das políticas urbanas que envolvem obras públicas. Nesse sentido, os dados demonstraram que o volume geral de investimentos é diretamente proporcional à intensidade da presença das empresas na rede, assim como à sua proximidade com os detentores do poder institucional. Em outras palavras, quanto mais vínculos as empresas privadas tiverem na rede da comunidade, assim como quanto mais próximas estiverem do secretário de vias públicas, mais recursos serão gastos pela Secretaria. Este padrão manifesta-se tanto em governos de direita quanto de esquerda, embora o patamar seja mais elevado nos primeiros. Além disso, em administrações de direita as empresas tendem a ter mais vínculos e se posicionam mais próximas aos secretários. Por fim, a importância relacional das empresas na rede não depende de seu capital, embora tenha sido constatado que ele tende a ser mais elevado em administrações de direita.

NOTAS

BIBLIOGRAFIA

CLIVAGENS IDEOLÓGICAS E EMPRESAS PRIVADAS NOS INVESTIMENTOS PÚBLICOS URBANOS – SÃO PAULO 1978/1998

Eduardo César Marques e Renata Mirandola Bichir

Palavras-chave

Processo político; Políticas públicas; Intermediação de interesses; Infra-estrutura urbana; São Paulo.

O presente trabalho discute a relevância de processos políticos para a explicação dos padrões de investimento público urbano. Para a pesquisa, utilizamos informações relativas aos investimentos em infra-estrutura urbana realizados pela Prefeitura Municipal de São Paulo de 1978 a 1998. Esse tipo de política tem sido tradicionalmente analisada à luz do marxismo estruturalista, de estudos neomarxistas de movimentos sociais, de uma versão atenuada do pluralismo norte-americano e de uma versão urbana da teoria das elites. Para essas literaturas, os processos internos ao Estado, assim como as dinâmicas do próprio processo de decisão, teriam uma importância menor que os atores localizados na sociedade e os elementos ligados às regras do jogo político. Os dados apresentados indicam a insuficiência das explicações correntes e destacam a importância de dois outros elementos pouco ou nada considerados pela literatura: de um lado, clivagens políticas e ideológicas, de outro, a presença e a influência das empresas privadas ligadas à própria produção da cidade.

IDEOLOGICAL CLEVAGE AND PRIVATE COMPANIES IN MATTERS OF URBAN PUBLIC INVESTMENTS – SÃO PAULO 1978/1998

Eduardo César Marques and Renata Mirandola Bichir

Keywords

Politics; Public policies; Interest intermediation; Urban infrastructure; São Paulo.

This article presents and discusses the importance of political processes on the explanation of patterns of urban public investments. For this purpose, we use primary data on the investments made by the Municipal Government of São Paulo on urban infrastructure equipments from 1978 to 1998. This type of public policy had been traditionally analyzed from the perspectives of structural Marxism, of neomarxist studies of social movements, of an attenuated version of North-American pluralism, and of an urban version the elite theory. For these literatures, the processes that occur inside the State, as well as the dynamics of the decision making processes would have less importance than actors located in society and elements related to the rules that regulate political processes. The information we present here indicates the insufficiency of current explanations and highlights the importance of two other elements not sufficiently considered by the literature: political and ideological cleavages, and the presence and influence of private companies related to the production of the city.

CLIVAGES IDÉOLÓGIQUES ET ENTREPRISES PRIVÉES DANS LES INVESTISSEMENTS PUBLICS URBAINS – SÃO PAULO1978/1998

Eduardo César Marques et Renata Mirandola Bichir

Mots-clés

Processus politique; Politiques publique; Intermédiation d'intérêts; Infrastructure urbaine; São Paulo.

Ce travail discute l'importance de processus politiques pour expliquer les modèles d'investissement public urbain. Pour cette recherche, nous avons utilisé des informations relatives aux investissements en infrastructure urbaine entrepris par la commune de São Paulo entre 1978 et 1998. Ce genre de politique a été traditionnellement analysé à la lumière du marxisme structuraliste, d'études néomarxistes de mouvements sociaux, d'une version atténuée du pluralisme nord-américain et d'une version urbaine de la théorie des élites. Pour ces littératures, les processus internes à l'État, ainsi que les dynamiques du propre processus de décision, auraient moins d'importance que les acteurs placés dans la société et que les éléments liés aux règles du jeu politique. Les données présentées indiquent l'insuffisance des explications courantes et mettent en valeur l'importance de deux autres éléments peu ou pas considérés par la littératureÊ: d'un côté, clivages politiques et idéologiquesÊ; de l'autre, la présence et l'influence d'entreprises privées liées à la propre production de la ville.

Eduardo Marques, mestre em planejamento urbano e doutor em ciência política, é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). É autor de Estado e Redes sociais: coesão e permeabilidade nas políticas urbanas do Rio de Janeiro (Ed. Revan, 2000), além de artigos na área de políticas públicas, em especial urbanas. Publicou nesta revista o artigo “Redes sociais e instituições na construção do Estado e da sua permeabilidade” (RBCS No 41).

Renata Bichir, bacharel em ciências sociais, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Tem como temas de interesse políticas públicas e teoria democrática e autora de artigos na área de políticas públicas urbanas.

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  • WATSON, G. (1992). Water and sanitation in São Paulo, Brazil: successful strategies for service provision in low-income communities Dissertação de mestrado, Cambridge, MIT, USA.
  • 1
    Ver Leme (1991 e 1999) e Simões (1991).
  • 2
    A herança marxista aqui é evidente e explícita. Para a discussão dos mecanismos mobilizados pelo marxismo para a compreensão das políticas, ver Marques (1997).
  • 3
    Ver Watson (1992). Um contra-argumento poderia ser a afirmação de que os prestadores não expandiam os serviços pelo baixo poder aquisitivo da população periférica, o que tornaria os sistemas na periferia inviáveis economicamente. Essa hipótese, bastante difundida na literatura (e baseada em parte na literatura estruturalista) não encontra fundamento empírico. A partir do final dos anos1980, tanto as coberturas quanto as tarifas dos serviços urbanos foram sistematicamente aumentadas, e nem por isso os serviços enfrentaram problemas insolúveis de inadimplência nas áreas metropolitanas.
  • 4
    Embora, no Brasil, o vínculo eleitoral nunca tenha sido quebrado por completo, a sua importância no cálculo político das elites certamente foi reduzida durante o regime militar.
  • 5
    Cf. Marques (2000) sobre o segundo programa carioca de favelas.
  • 6
    É já bastante extensa a literatura internacional de análise de redes sociais, mas infelizmente a perspectiva foi muito pouco explorada no Brasil. Para uma resenha da literatura de redes em ciência política e, até onde vai o nosso conhecimento, único estudo empírico de uma política no Brasil que utiliza essa metodologia, ver Marques (2000).
  • 7
    Essa é a data de referência da pesquisa (e desse artigo), para o qual foram transportados todos os valores, depois de convertidos e atualizados financeiramente utilizando as variações mensais do índice IGP – DI da Fundação Getúlio Vargas.
  • 8
    Vários testes de médias entre anos com eleições municipais, não municipais ou eleições em geral não mostraram diferenças significativas entre os valores investidos nesses anos e nos demais.
  • 9
    Neste caso, as correlações entre o orçamento da prefeitura no ano e o volume de gastos naquele ano não foram significativos, nem a 5%, nem a 1% de confiabilidade. É interessante observar que o resultado apresentava significância, embora a 10 %, quando ainda não tínhamos incluído os contratos assinados por meio da Emurb (ver Marques e Bichir, 2001a e b). O coeficiente desta relação, entretanto, era inconsistente, variando de -0,055 a 0,002, indicando que nada poderíamos afirmar sobre a existência da relação.
  • 10
    Consideramos de direita, Olavo Setúbal, Reynaldo de Barros, Salim Curiati, Jânio Quadros, Paulo Maluf e Celso Pitta, e, de esquerda, Mário Covas e Luíza Erundina.
  • 11
    Para isso seria necessário comparar as informações a respeito das preferências de política das parcelas do eleitorado que votam em candidatos de inclinações ideológicas diferentes e as políticas implementadas por esses, em uma linha mais próxima ao excelente artigo de Soares (2000).
  • 12
    Para simplificar o procedimento, incluímos a média das medidas das empresas correspondentes a 80% do valor gasto em cada governo, o que forneceu mais de 160 casos. As medidas utilizadas foram o grau – soma dos vínculos de um dado nó (vínculos primários) – e o poder – que considera, além destes os vínculos das pessoas às quais um nó está ligado, descontando uma certa proporção dos secundários. Utilizamos um desconto de 25%, o que equivale a considerar, para um dado nó, apenas um vínculo, a cada quatro secundários existentes. A distância é apenas a quantidade de passos entre pessoas na rede que uma determinada empresa tem de caminhar para chegar ao secretário, pelo menor caminho possível.
  • 13
    Todos estes resultados são significativos a 99%.
  • 14
    O conjunto de anos apresenta um
    outlier – ano de 1996 –,não por acaso ano da eleição de Celso Pitta. Neste ano, o conjunto do gasto foi muitíssimo elevado, e fugiu do padrão de explicação do modelo. Entretanto, exceto este caso, a regressão multivariada do total gasto, tendo como variáveis independentes a clivagem ideológica, a distância média ao secretário e o conjunto de vínculos secundários apresenta uma estatística F de 14, 76 (Sig a 0,000) e R quadrado de 0,723.
  • 15
    Testes de médias entre direita e esquerda para todas as variáveis indicam um padrão de muita solidez, permitindo sustentar as afirmações com significâncias sempre superiores a 99,9%.
  • 16
    Podemos aceitar a existência desse interesse pelo discurso "nativo" de técnicos de destaque de governos não de direita, mas também pela posição estratégica ocupada por tais decisores no jogo político: operando em um setor hegemonizado pela direita (e que representa em grande parte o apoio financeiro de suas campanhas), as administrações não de direita têm todo o interesse em transformar o campo de poder do setor à medida que operam a política.
  • 17
    Para uma análise política dos vícios em licitações, ver Marques (2000, cap. 5) e Mukai (1995).
  • 18
    Os autovalores dos três primeiros fatores representam 61,2% das variáveis originais.
  • 19
    É quase certo que se passássemos para níveis de menor escala, como os bairros, as zonas OD ou os setores censitários, esta organização radial-concêntrica seria subvertida, em proveito de um padrão de mosaico, com várias regiões de mais alta e baixa renda, e mesmo "enclaves" no sentido forte da palavra. Se o nosso objetivo fosse estudar a estrutura social no espaço, esta base espacial não seria apropriada, mas como se trata apenas de um passo metodológico para distribuir investimentos de efeito não muito local sem introduzir viés algum, estamos na escala adequada. Neste sentido, não há bases espaciais ou modelos de organização do espaço "universais", mas apropriados para cada tipo de fenômeno e estudo. Sobre isto, ver Marques (1998).
  • 20
    Preferimos trabalhar com área, e não população, pois, ao contrário de investimentos que geram benefícios individualizados, como abastecimento de água e energia elétrica, o impacto das obras e serviços da SVP é sobre territórios relativamente amplos do espaço construído urbano. Em um primeiro momento da pesquisa, utilizamos as populações como denominadores, o que resultou em números ligeiramente diferentes. Para os resultados obtidos, ver Marques e Bichir (2001b).
  • 21
    Se considerarmos os investimentos
    per capita, e não por hectare, apenas as administrações Covas e Erundina investiram mais de 50% em áreas de classes baixas. Cf. Marques e Bichir (2001b e c).
  • *
    Esse artigo foi apresentado inicialmente no Seminário Temático de Políticas Públicas do XXV Encontro Anpocs, realizado em 2001.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Out 2002
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