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Anatomia do medalhão

Anatomia do medalhão

Sergio MICELI. Intelectuais à brasileira. São Paulo, Companhia das Letras, 2001. 436 páginas.

André Botelho

As relações entre intelectuais e política no Brasil são objeto de debates e controvérsias, sobretudo no que diz respeito ao sentido de suas relações com o Estado. Ainda que este sentido não permaneça inalterado no curso da história, é possível dizer que, desde os reformistas liberais de finais do Império, passando pelos positivistas republicanos, pelos críticos conservadores ou radicais da República, pelos modernistas, bem como seus sucedâneos ou desafetos dos anos de 1930 e 1940, não foram poucos os intelectuais que procuraram justificar suas obras e ações num ethos de missão civilizatória ou nacional, como se fossem portadores especiais dos interesses gerais da sociedade. Auto-representação que parece relacionada a uma experiência social mais ampla, característica dos países marcados pelo desenvolvimento retardatário do capitalismo e, no plano cultural, pelo tema do atraso, além de muitas vezes corroborada nas análises das trajetórias e/ou das obras daqueles intelectuais. Afora a simpática afinidade eletiva, baseada talvez no preceito historicista da necessidade de se compreender um autor em seus próprios termos, tornando explícita sua identificação, essa continuidade não deixa, contudo, de indicar uma certa confusão entre método e objeto.

É mais do que oportuna, nesse sentido, a publicação de Intelectuais à brasileira, que reúne um conjunto significativo de trabalhos de Sergio Miceli publicados originalmente entre 1977 e 1999 na forma de livros, artigos e depoimento revistos para esta edição, cujo sentido é exatamente a crítica à prolixa representação de missão dos intelectuais brasileiros. Centrando sua abordagem nas relações entre origens sociais e posições nas estruturas de poder, sobretudo no âmbito do Estado, o autor questiona a tese da desvinculação social dos intelectuais demonstrando a lógica das regras cotidianas das estratégias de inserção e de viabilização das carreiras dentro dos marcos institucionais dominantes. Nesse sentido, a publicação de Intelectuais à brasileira representa uma oportunidade ímpar para a reavaliação de um dos programas metodológicos mais consistentes e polêmicos de análise sociológica do lugar social dos intelectuais brasileiros, tema que apresenta conseqüências as mais relevantes para a compreensão do processo social mais amplo.

O bom resultado da reunião de alguns dos principais trabalhos dispersos de Sergio Miceli alcançado em Intelectuais à brasileira, além da qualidade óbvia dos textos, deve-se, também, à disposição cronológica por gênero dos mesmos. O livro está dividido em três seções: na primeira, "Análises", encontramos Poder, sexo e letras na República Velha (estudo clínico dos anatolianos) (1977), Intelectuais e classes dirigentes no Brasil (1920-45) (1979) e "O conselho nacional de educação: esboço de análise de um aparelho de Estado (1931-7)" (1983); na segunda, "Artigos", "Biografia e cooptação (o estado atual das fontes para a história social e política das elites no Brasil)" (1980), "SPHAN: refrigério da cultura oficial" (1987) e "Intelectuais brasileiros" (1999); e na terceira, "Depoimento", "A construção do trabalho intelectual" (1992).

A visão de conjunto oferecida pela presente edição, cabendo ainda a Intelectuais e classes dirigentes no Brasil (1920-45) seu lugar central, permite que se acompanhe o desenvolvimento do programa metodológico do autor tanto no plano da pesquisa, quanto no plano teórico. Assim, por exemplo, o leitor ganha ao ler na seqüência Poder, sexo e letras na República Velha e Intelectuais e classes dirigentes no Brasil, na medida em que se evidenciam as alterações relativas ao recrutamento dos intelectuais pelo poder: até a Primeira República, esses intelectuais dependem fundamentalmente das redes de relações sociais e familiares, enquanto na década de 1930, exige-se que possuam outros distintivos, como os diplomas escolares, que acentuam não apenas a concorrência no campo intelectual, como também a diferenciação e a hierarquização das posições internas em relação às origens sociais dos recrutados.

Outro exemplo é a possibilidade de se reconstituir o debate travado pelo autor com seus críticos em "Intelectuais brasileiros", originalmente publicado na coletânea O que ler na ciência social brasileira (1970-1995), vol. 2, Sociologia, organizada pelo próprio Miceli. Nele, fazendo o balanço de 25 anos de produção sobre o tema intelectuais brasileiros, o autor responde diretamente às críticas de Daniel Pécaut, o qual, em Intelectuais e a política no Brasil (entre o povo e a nação), publicado no Brasil em 1990, considerou ambígua sua noção de "interesse" como explicativa das estratégias dos intelectuais dos anos de 1920-1940 em suas recorrentes relações com o Estado. Pécaut vê nessas relações não a promoção dos interesses próprios dos intelectuais, mas a expressão da sua "conversão" à ação política, deixando clara a sua identificação com o modo pelo qual esses atores interpretaram suas próprias vicissitudes nos termos da "missão" de que se sentiam investidos (Pécaut, 1990, p. 21). Em sua resposta, Miceli acerta, a meu ver, ao identificar como postulado central da análise de Pécaut o mecanismo de libertação dos intelectuais de

[...] quaisquer constrições sociais não conversíveis de pronto em pedágio político. A despeito dos seus laços com as elites, os intelectuais brasileiros se enquadrariam, como que por encanto, nos requisitos da definição de Mannheim de uma "camada social sem vínculos": livres da canga oligárquica do passado, de seu enraizamento clientelístico e dependente na estrutura social e, por esses motivos, aptos a formular e a assumir um "projeto" de comando do Estado (Miceli, 2001, p. 376).

Note-se, ainda nesse ponto, que o autor manteve na presente edição o prefácio de Antonio Candido a Intelectuais e classes dirigentes no Brasil, o qual sintetiza, de fato, as principais críticas ao método proposto por Miceli e suas conclusões, inclusive no que diz respeito a certa ambigüidade na apreciação desses dois termos nelas manifesta. Isto é, embora reconhecendo o caráter inovador e rigoroso de seu método de investigação, Candido questiona a validade geral de suas conclusões. Nesse sentido, enfatiza o

[...] perigo de misturar desde o começo do raciocínio a instância de verificação com a instância de avaliação. O papel social, a situação de classe, a dependência burocrática, a tonalidade política – tudo entra de modo decisivo na constituição do ato e do texto de um intelectual. Mas nem por isso vale como critério absoluto para os avaliar. A avaliação é uma segunda etapa e não pode decorrer mecanicamente da primeira. Apesar da cautela metodológica e do esforço para ver com clareza, Miceli incorre por vezes nessa contaminação hermenêutica (Candido, 2001, pp. 73-74).

Não deve ser minimizado, no entanto, o fato de a polêmica suscitada por Intelectuais e classes dirigentes no Brasil estar relacionada, em grande medida, à "devassa" nele operada nas relações dos autores canônicos do modernismo. Valendo lembrar que já em Poder, sexo e letras na República Velha Miceli questiona pioneiramente a tradição intelectual supostamente inaugurada pela Semana de Arte Moderna de São Paulo de 1922, que logrou impor a definição do próprio sentido do modernismo brasileiro a partir dos seus valores particulares. Perspectiva radicalizada posteriormente em Imagens negociadas: retratos da elite brasileira (1920-40) (1996) ao criticar o sistemático

[...] empenho em garantir ao movimento modernista a aura de um marco de ruptura, cujos efeitos teriam a virtude de se transferir do terreno do estético para os domínios do pensamento, dos costumes, das instituições, inclusive da política, ou então, o que dá no mesmo, em construí-lo como a prova irrefutável da entronização de uma nova era, razão última de uma história social de ponta- cabeça, semente de um futuro pós-instituído (Miceli, 1996, pp. 15-16).

Ficamos aguardando, nessa direção, seu novo estudo sobre o "modernismo artístico em São Paulo" anunciado na "Nota de esclarecimento" que abre Intelectuais à brasileira.

Há que se ressaltar a inclusão na presente edição do artigo "Biografia e cooptação (o estado atual das fontes para a história social e política das elites no Brasil)", no qual o autor apresenta os passos fundamentais de sua metodologia de pesquisa – cuja designação "métodos prosopográficos" não deve inibir o leitor, já que também nele a narrativa de Miceli é, como sempre, clara sem simplificar a complexidade das idéias desenvolvidas. Um último exemplo – interessante pela revisão e embate do pesquisador com suas fontes – é o texto do memorial preparado por Miceli para o concurso de professor titular de sociologia da USP em 1992: "A construção do trabalho intelectual". Trata-se inclusive de um momento curioso, algo Dr. Jekyll e Mr. Hide, já que nele o autor encontra-se impelido a narrar sua própria trajetória intelectual, ao final da qual confessa:

[...] jamais poderia imaginar quão sutis e veladas são as armadilhas com que se deixam enredar os falantes compulsórios de qualquer segmento da vida intelectual, como que confirmando os laços entre biografia, sociedade e produção científica. Só que desta vez eu vesti a pele da fonte, sem volta (Miceli, 2001, p. 416).

Resta observar, do ponto de vista metodológico, duas críticas mais resistentes aos trabalhos de Sergio Miceli. A primeira refere-se ao caráter problemático da aplicação das noções de "campo" e habitus intelectuais tomadas à sociologia de Pierre Bourdieu – orientador da pesquisa que originou Intelectuais e classes dirigentes no Brasil – a um contexto social de pequenas institucionalização e autonomização dos campos culturais decorrentes do processo tardio, incompleto e particular da revolução burguesa no Brasil. Se não faltam aplicações mecânicas da proposta metodológica do sociólogo francês, não se pode perder de vista, contudo, que as análises de Miceli surpreendem a expectativa da sempre difícil, mas às vezes fecunda, aclimatação das chamadas idéias "importadas" ao contexto brasileiro. Valendo como exemplo da síntese operada em suas análises, a noção de "substituição de importações no mercado de bens culturais" para dar conta da crescente produção no gênero romance a partir da década de 1930. Não por acaso, a perspectiva de Miceli centra-se na relação entre intelectuais e Estado, apontando justamente para a recorrente ausência de distinção entre as esferas pública e privada no Brasil. E isso mesmo quando, a exemplo dos mesmos anos de 1930, começavam a se materializar algumas condições preliminares para a constituição de um campo intelectual mais integrado como parte da emergência de uma classe média urbana e sua luta pela hegemonia política, e de um certo processo de racionalização.

Vale lembrar ainda que, no horizonte da sua abordagem, estão não apenas as sugestões de Bourdieu – influência recorrentemente enfatizada – como também, num certo sentido, as de Maria Isaura Pereira de Queiroz sobre as relações entre posição social e estrutura de poder no Brasil e, particularmente, de Florestan Fernandes sobre a questão do vínculo social das idéias e dos intelectuais. Em "Desenvolvimento histórico-social da sociologia no Brasil", por exemplo, analisando o caráter pragmático assumido pela análise histórico-sociológica nos círculos intelectuais conservadores da Primeira República, Florestan observara que esta orientação resultava "do receio e do ressentimento que as perspectivas de prejuízos na posição dominante dentro da estrutura de poder instavam no ânimo dos descendentes das antigas famílias senhoriais" (Fernandes, 1980, p. 35). Questões também desenvolvidas por Miceli nos seus próprios termos metodológicos.

A segunda crítica refere-se ao caráter "sociologizante" do seu método de explicação dos nexos entre as biografias dos autores e a dinâmica político-cultural da sociedade brasileira em detrimento da apreciação formal das suas obras, um dos temas do memorial que fecha Intelectuais à brasileira. A esse propósito, talvez tenha razão Nicolau Sevecenko, que observou no texto "Intelectuais brasileiros" uma maior abertura metodológica de Miceli (Sevcenko, 2001). Neste balanço da produção sobre o tema, de fato, o autor afirma os

[...] ganhos heurísticos trazidos pela confluência de uma gama diversificada de disciplinas e tradições intelectuais – desde a sociologia e a antropologia, passando pela história social, intelectual e das mentalidades, pela crítica literária, pela filosofia, até as diversas orientações teóricas no interior da história da arte – bem como pelo reconhecimento das vantagens metodológicas associadas à exploração de fontes, modelos, conceitos e abordagens, de enfoques disciplinares complementares (Miceli, 2001, p. 395).

Nesse sentido, também a antítese entre as abordagens chamadas textualistas e contextualistas que se apresentam, em grande medida, como concorrentes no debate metodológico contemporâneo, talvez possa ser, em parte, relativizada. É claro que se trata de um problema controverso, não apenas porque todo discurso ou narrativa sobre intelectuais é, num certo plano, normativo, como também porque ambas as posturas podem acarretar ordenações que, ao lado de inegáveis méritos, não deixam também de apresentar certos limites simplistas. Assim, mesmo reconhecendo as diferenças entre aquelas perspectivas, é possível sugerir que no lugar da escolha exclusiva entre texto e contexto, o estudo de autor também exige que se reconheça e se qualifique a tensão existente entre estes termos, na medida em que ela é constitutiva da própria matéria que cumpre à análise sociológica ordenar.

Difícil mesmo é fugir da constatação de que, seja tomando-o pelos laços familiares, pessoais ou sociais, seja pelas obras, o intercâmbio entre as forças sociais que se organizam no Estado e o trabalho dos intelectuais acaba por circunscrever a própria identidade desse atores, bem como suas possibilidades efetivas ou veleidades. Esse intercâmbio, ainda que em medidas diferentes (que devem ser qualificadas) criou historicamente uma situação de dependência tanto para o intelectual que "serviu", quanto para aquele que "se vendeu" ao poder, recorrendo à conhecida distinção de Antonio Candido (Candido, 2001, p. 74).

Em suma, mesmo aos interessados no estudo sociológico das idéias, e não exatamente dos intelectuais, as pesquisas de Sérgio Miceli alertam para o fato de que as ações dos intelectuais não são sempre motivadas pelos princípios por eles usados para racionalizá-las. Em Intelectuais à brasileira o leitor encontrará os elementos, a organização e o funcionamento internos das estratégias de inserção social da elite cultural brasileira da primeira metade do século XX. Estratégias que guardam afinidade de sentido com a "teoria do medalhão" do conto homônimo de Machado de Assis: um pai zeloso orienta o filho recém-chegado à maioridade a cultivar o "habitus de medalhão", o qual, oferecendo a incrível vantagem de não se deixar ser "afligido de idéias próprias", lhe asseguraria uma posição social neutra e segura entre as correntes ideológicas em disputa pela hegemonia cultural e política. Conselho que, segundo estima o experiente pai, valeria a leitura de O príncipe de Maquiavel (ASSIS, 1962, p. 295).

BIBLIOGRAFIA

ASSIS, J. M. M. de. (1962). "Teoria do medalhão", in Obra Completa, Rio de Janeiro, Aguilar.

CANDIDO, A. (2001). "Prefácio", in Sergio Miceli, Intelectuais à brasileira, São Paulo, Companhia das Letras.

FERNANDES, F. (1980). "Desenvolvimento histórico-social da sociologia no Brasil", in A sociologia no Brasil, Petrópolis, Vozes.

MICELI, S. (1996). Imagens negociadas: retratos da elite brasileira (1920-40). São Paulo, Companhia das Letras.

PÉCAUT, D. (1990). Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo, Ática.

SEVCENKO, N. (2001). "A república dos mandarins". Caderno Mais/Folha de S. Paulo, 24 jun.

ANDRÉ PEREIRA BOTELHO é doutor em

Ciências Sociais (Unicamp), membro do Centro de Estudos Brasileiros (IFCH/UNICAMP) e professor da Universidade Católica de Petrópolis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2002
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