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As cidades: história, razão, ruínas e utopias

RESENHAS

As cidades: história, razão, ruínas e utopias

Heitor Frúgoli Jr.

Bárbara FREITAG. Cidade dos homens. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2002 (Biblioteca Colégio do Brasil, vol. 3). 254 páginas.

A abordagem que toma as cidades como objeto central nas ciências sociais – principalmente na antropologia e na sociologia – quase sempre exige, pela natureza dos temas investigados, um diálogo com diversas áreas de fronteira, o que só é possível a partir da adoção de um claro eixo disciplinar, capaz de alinhavar e dar consistência a tal interlocução. Isso é diferente de uma abordagem claramente interdisciplinar, que às vezes pode oferecer panoramas inspirados, mas também generalizações problemáticas, já que certas mediações se tornam muito mais desafiantes. Desse ponto de vista, pode-se começar apresentando Cidade dos homens como um trabalho que, embora defenda um recorte sociológico, tende muitas vezes a estabelecer uma perspectiva interdisciplinar – incluindo a filosofia –, com as decorrências já apontadas.

Outro tópico essencial, à guisa de introdução, diz respeito ao desafio das instâncias de comparação, necessárias quando se trata de confrontar quadros urbanos diversos. O presente livro, nesse sentido, busca compreender, ainda que não exclusivamente, vários contextos à luz da referência de Berlim – cidade natal da autora, onde realizou sua formação acadêmica –, forte matriz dos pontos de vista urbano, histórico, sociológico e filosófico.

Após essas considerações iniciais, é possível analisar, dado o espaço disponível, alguns dos doze ensaios que compõem Cidade dos homens – escritos entre 1992 e 2002 –, cabendo ao leitor interessado preencher, posteriormente, as lacunas da presente resenha.

Em "Duas cidades entre a história e a razão" (1992), texto que abre o livro, são exploradas comparações entre Berlim e Brasília – a segunda, onde a autora atualmente trabalha –, a partir das quais se trava um diálogo sobretudo entre a sociologia – com base em clássicos como Simmel, Tönnies e Weber – e a antropologia – assentada aqui em Lévi-Strauss, tendo como uma das referências centrais suas reflexões sobre espaços urbanos brasileiros em Tristes trópicos (1955). A polaridade entre "cidade historicamente formada" – encarnada a princípio por Berlim – e "cidade racionalmente planejada" – consubstanciada inicialmente em Brasília – vai sendo relativizada e desconstruída ao longo do artigo, uma vez que vários fenômenos evidenciam a significativa "presença concomitante de história e razão nos dois espaços urbanos, em proporções que variam de época para época" (p. 26, grifos da autora). Na conclusão, entretanto, a autora recorre a reflexões fundadas em Interpretação dos sonhos, de Freud (1900), abrindo por demais, a meu ver, o leque interdisciplinar, pois a inclusão, nessa altura, da psicanálise freudiana e do conceito de inconsciente mereceria certas mediações com as demais correntes tratadas, a começar pelo modo como tal conceito foi relido pelo estruturalismo de Lévi-Strauss.

No ensaio "A cidade brasileira como espaço cultural" (1999), Barbara Freitag explora várias relações entre cidade e cultura com base na interpretação dos escritos de Vilém Flusser [1920-1991], filósofo que nasceu e morreu em Praga, e que morou por 32 anos em São Paulo – onde se refugiara da perseguição nazista –, numa espécie de condição de outsider entre a intelectualidade paulistana. Em sua obra de dez volumes publicada em alemão – Flusser Schriften [1992-1998], produzida após seu retorno à Europa e cada vez mais conhecida em círculos intelectuais europeus –, há um artigo sobre São Paulo no qual o autor, com base numa teoria dos códigos – centrada na análise de inúmeras linguagens da palavra e da imagem, abarcando literatura, poesia, pintura, fotografia, cinema, TV, até as novas linguagens digitais –, defende o controvertido argumento de que tal metrópole poderia ser considerada, no máximo, um "conglomerado urbano" ou um "assentamento", mas não uma "verdadeira cidade, termo que implicaria uma vida urbana 'civilizada'" (p. 127, grifo da autora). Isso porque, apesar do forte crescimento econômico e de um decorrente domínio político, seus habitantes seriam incapazes, segundo Flusser, de criar um verdadeiro espaço cultural próprio – leia-se aqui "produção cultural" –, resultante da maturação de processos históricos que envolvem um amálgama entre culturas, línguas e etnias, configurando nesse sentido uma cidade ainda "sem história", ao contrário, segundo o autor, de centros urbanos como Salvador, Rio de Janeiro e, estranhamente, até Brasília... (pp. 127-133). Em sua análise, Barbara Freitag entende que essa visão sobre São Paulo seria também fruto de uma decepção, tal qual a de um pai severo que espera muito mais do próprio filho – apesar das façanhas da Semana de 22 e dos concretistas (pp. 132-133). Além disso, pondera a autora que realizações artísticas paulistanas mais recentes – como, por exemplo, as últimas bienais de Arte Moderna, o projeto "Arte e Cidade" e a presença da literatura brasileira nas últimas Feiras de Livro (nacionais e internacionais) – indicariam um pleno uso de "novos códigos" vislumbrados por Flusser. De todo modo, os padrões de medida europeus – principalmente Praga, cidade "histórica" que na época de Kafka reuniria, para o autor, os atributos de uma "verdadeira" cidade – teriam em parte turvado, segundo Freitag, a capacidade de o filósofo compreender as peculiaridades e as potencialidades da produção cultural paulistana.

Um dos projetos de intervenção do já mencionado "Arte e Cidade" (coordenado por Nelson Brissac Peixoto), o "Brasmitte" – o qual confronta as realidades das áreas operárias do Brás (São Paulo) e da Mitte (Centro Antigo de Berlim, mais precisamente o bairro Prenzlauer Berg) –, é, por sinal, um dos temas de reflexão do artigo "Memórias e ruínas urbanas", escrito pouco depois da queda do Muro. Nessa ocasião, a autora, alemã ocidental, percorreu de bicicleta todo o trajeto outrora controlado pelas patrulhas da Alemanha Oriental para impedir que fugitivos do leste conseguissem adentrar no lado capitalista da cidade. Com base em todas as memórias reavivadas por essa experiência, a autora tece reflexões sobre o tema das ruínas – tanto as da Segunda Guerra, como as do próprio Muro de Berlim após sua queda –, captando seus profundos significados simbólicos no contexto berlinense e alemão. Essa seria uma das razões, entre outras, pelas quais Barbara Freitag vê com reservas a possibilidade de aproximação da realidade dos dois bairros sugerida pelo "Arte e Cidade", já que, embora com certas similaridades – paisagens urbanas extremamente segregadas e deterioradas –, teriam passado por processos históricos muito distintos, sobretudo porque o abandono da Mitte estaria entrelaçado às especificidades da história urbana da construção e da manutenção do Muro de Berlim.

Abordagens dotadas de grande erudição permitem à autora enfocar certos temas urbanos sob uma nova perspectiva, como é o caso do Estatuto da Cidade – lei sancionada pelo governo federal em 2001, que estabelece diretrizes gerais da política urbana, com especial atenção ao direito à terra, à moradia, ao saneamento, aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer. Nesse caso, procura-se compreender os conteúdos da lei, de teor altamente progressista, à luz de sua dimensão utópica, o que leva a autora a analisar os significados históricos assumidos pelas "utopias urbanas" (título do ensaio [2002]), como o famoso tratado de Thomas Morus, os falanstérios de Charles Fourier ou "La ville radieuse", de Le Corbusier. Por meio desses casos, Barbara Freitag mostra que, embora o destino da maioria das utopias seja sua decomposição e fragmentação, partes constitutivas das mesmas vêm a ser parcialmente realizadas, além de representarem, de toda forma, princípios norteadores das ações sociais (pp. 188-189).

Nem todos os ensaios, entretanto, chegam a bons resultados, talvez porque se tente abranger, sem o fôlego necessário, um conjunto muito amplo de questões. Um exemplo disso é o artigo "Sociedade informacional e convivialidade urbana" (2002), muito baseado nas formulações das obras mais recentes de Manuel Castells – o qual analisa um conjunto de mudanças territoriais, identitárias e societárias acarretadas a princípio pelas novas tecnologias informacionais, que marcariam o processo de globalização –, sem maiores críticas ou questionamentos. Muitos desses temas carecem, na minha opinião, de fundamentos sociológicos ou antropológicos mais consistentes, e alguns deveriam passar pelo crivo de extensas pesquisas. Outro ensaio que me pareceu um tanto genérico é "Cidade e violência" (2002), justamente por tentar abarcar um conjunto muito amplo de facetas desse fenômeno em relação à cidade – como cenário da violência, como sede do poder, como matriz da violência ou que sofre uma violência (p. 195). Abrindo demais o leque de problemas e indagações, a autora acaba por abranger fenômenos muito distintos, como brigas de gangues, práticas criminosas, aparatos repressivos e até os atentados de 11 de setembro.

Quero encerrar, entretanto, comentando dois ensaios da coletânea sobre Lisboa, que contém um conjunto de contribuições significativas para vários tipos de estudos. O primeiro deles, "Lisboa e Eça de Queiroz" (1997), traz elementos para uma reflexão sobre as relações tensas e intrincadas entre tradição e modernidade urbana naquele contexto, sobretudo após o trágico terremoto de 1755, que além dos milhares de mortos, causou a destruição completa de seu centro histórico. Esse evento levou à posterior adoção de um conjunto de reconstruções coordenadas pelo poderoso Marquês de Pombal. Houve todo um reordenamento do traçado das ruas e a construção de novos edifícios que, no conjunto, levaram à reinvenção da área central de Lisboa, com certos impactos na vida pública, além de influências posteriores até em padrões de arruamentos e edificações de algumas cidades brasileiras. Retomando a clássica distinção estabelecida por Sérgio Buarque de Holanda entre os "semeadores" e os "ladrilheiros" em Raízes do Brasil (1936), cujas metáforas aludiriam a dois tipos distintos de urbanização presentes nas cidades coloniais latino-americanas, a reconstrução de Lisboa teria levado, segundo Barbara Freitag, a um novo padrão sincrético que superaria, do ponto vista dialético, essa tipologia, sem entretanto invalidá-la (p. 67). Parte desse padrão revelar-se-ia quando então a autora busca "acompanhar os personagens queirozianos [de variadas origens e orientações] em suas 'flâneries' por Lisboa, partilhar os seus dramas e suas emoções e visualizar a cidade [décadas após as reformas pombalinas] a partir de suas experiências e percepções" (p. 69), principalmente aquelas narradas nos livros O primo Basílio (1878) e Os Maias (1888), que compõem um quadro romântico, irônico e sarcástico da Lisboa do final do século XIX.

Em seguida, o ótimo ensaio "Urbanização no Portugal de hoje: o caso de Lisboa" (1998) consolida o quadro acima delineado e fornece, por meio de uma pesquisa bastante detalhada, um amplo panorama da dinâmica urbana lisboeta ao longo do século XX, relativamente pouco conhecida na Europa e no Brasil, que contrapõe planos urbanísticos e processos sociopolíticos que imprimiram marcas significativas em sua fisionomia urbana. O procedimento analítico, baseado na dialética entre história e razão, está aqui subjacente. O panorama desdobra-se até o final dos anos de 1990, revelando tanto as realizações urbanísticas mais recentes, como as concepções contemporâneas presentes na agenda do Plano Estratégico e Diretor de Lisboa, quando da realização da última exposição industrial mundial da Europa – a Expo-98 –, ali ocorrida. Esse painel fornece pistas importantes aos interessados nos fenômenos de gentrification ou reabilitação urbana, ensejando a reconstituição dos conflitos que muito provavelmente permeiam esses planos e projetos, reveladores de tramas e mudanças socioculturais urbanas mais amplas. Isso permite aflorar, a meu ver, uma das principais contribuições da análise crítica da sociologia sobre o urbanismo, contrapondo-se, assim, à profusão de estudos urbanísticos sobre a sociedade e a cidade, calcados muitas vezes apenas nos projetos em si, ou então produzidos por arquitetos comprometidos com sua execução.

Assim, ante os vários desafios para a compreensão e a interpretação das cidades e também das concepções urbanísticas na ótica das ciências sociais – sem me aprofundar aqui nas ressalvas já esboçadas quanto a enfoques marcados pela interdisciplinaridade –, o livro Cidade dos homens dá, sem dúvida, uma contribuição de profundidade e erudição a essa empreitada.

HEITOR FRÚGOLI JR. é professor do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. E-mail: hfrugoli@uol.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2004
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