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Nacional estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico em São Paulo

RESENHAS

Modernismo brasileiro: nada mais internacional

Gustavo Sorá

Sergio Miceli. Nacional estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico em São Paulo. São Paulo, Companhia das Letras, 2003. 280 páginas.

Nacional Estrangeiro apresenta uma etnografia histórica do mundo social que se formou em torno da vida artística em São Paulo nas primeiras décadas do século XX. Ainda que o modernismo, tanto em arte como em literatura e pensamento social, tenha imposto nos anos de 1920 e 1930 o autenticamente nacional, as razões de seu surgimento e de seu poder simbólico não podem ser compreendidas a não ser em relação com o mundo prévio a partir do qual se diferenciou. O livro compõe-se de dois atos: no primeiro entram os figurantes da elite social, econômica e política que tornaram possível a constituição de um mercado de arte: Adolfo Augusto Pinto, Altino Arantes, Francisco Ramos de Azevedo, José de Freitas Valle, Olívia Guedes Penteado. Mecenas e colecionadores oriundos de famílias ricas, barões do café ou membros de linhagens quatrocentonas ligados ao Império. Quase todos eles líderes políticos, profissionais liberais renomados e empresários bem-sucedidos da Primeira República que passavam a vida entre a capital da província e Paris, centro do cosmos. No segundo ato aparecem os protagonistas do modernismo, os artistas: Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Lasar Segall, os irmãos Gomide e John Graz. Alguns também filhos das elites tradicionais, mas outros imigrantes ou filhos de imigrantes. Esses artistas e seus pares escritores com os quais formaram casais, amizades e grupos viveram igualmente entre a Europa e o Brasil. Neste estudo, Europa e Brasil não representam terras tão distantes – dois mundos cortados por fronteiras físicas e mentais que às vezes entram em contato: São Paulo, Buenos Aires, México não se compreendem sem as metrópoles, assim como Paris não se compreende sem suas periferias. Em lugar de tratar as culturas nacionais como unidades auto-evidentes, como conjuntos fechados, Miceli toma como objeto as redes de relações sociais que unem essas distâncias; observa os efeitos da presença dos imigrantes, segue os artistas e colecionadores brasileiros em Paris, avalia as viagens e os deslocamentos sociais, leva a sério o tipo de atenção que os artistas metropolitanos, como Fernand Léger, prestam a seus clientes da periferia, mesmo quando fossem ultrapassados, como Paulo Prado. Após a demonstração de Sergio Miceli, o que a arbitrária classificação da história da arte e da cultura trata como o autenticamente nacional, obras geralmente consideradas produtos de uma independência consciente em face dos modelos europeus dominantes, passa a ser apreendido como objetos nacional-estrangeiros. O autor apela algumas vezes para a idéia de híbrido, mas a imprecisão desta noção, em voga nas ciências sociais dos anos de 1990, não chega a transmitir a singularidade deste tipo de práticas e objetos que, como a arte moderna, não se encaixam nas formas de classificação vigentes, naciocentradas. Miceli produz um novo enquadramento, propõe uma nova forma de ver o sagrado, o que parecia não precisar mais revisão. O livro vai acumulando elementos para ressaltar a amplitude geográfica e mental do nacional-estrangeiro. Realiza, assim, uma profícua contribuição sobre um tema sobre o qual sempre haverá resistência e que se enquadra em um programa de pesquisas no âmbito nacional e internacional de vigor cada vez maior: aquilo que é considerado a essência do nacional é, na verdade, fruto de um intercâmbio incessante e desigual entre pessoas e idéias, entre estilos artísticos e de pensamento, entre sensibilidades e gostos de um espaço internacional. Como disse Pascale Casanova, o nacional é definitivamente relacional.

Nacional Estrangeiro é um livro iconoclasta. À ruptura dos limites estabelecidos entre o nacional e o estrangeiro, o livro acrescenta a ruptura contra a semiótica dos estilos, contra as classificações empobrecedoras dos gêneros. Mais que enfocar o modernismo, Miceli enfoca os modernistas, artistas de carne e osso, ambivalentes, contraditórios, que convivem com os mecenas e seus vícios oligárquicos, seus gostos barrocos, suas fugas mundanas, sua distribuição de privilégios – unem-se a estes por vínculos mercantis, políticos, de herança, de amizade, de inimizade e, em boa parte, de subordinação. As preferências acadêmicas e pré-modernas dos mecenas impõem limites às possibilidades vanguardistas que os artistas são capazes de importar. Os gostos dos primeiros e as disposições estéticas dos segundos gestavam-se em uma Europa onde a sobreposição de estilos de arte e de vida de artista era mais variada e confusa do que é capaz de enunciar a caracterização de épocas e de gêneros.

Em São Paulo, os salões, entre os quais se destacava o do senador Freitas Valle, materializavam os círculos de sociabilidade. A proximidade entre mecenas e artistas é trabalhada com base não na identidade, mas nas diferenças e nos contrastes, em um contínuo movimento de fusões e fissões impulsionado por amor, por idéias e por uma acelerada competição em busca da distinção social e artística. Os significados da arte não surgem do descobrimento de relações formais, teoricamente postuladas, entre os estilemas ou as unidades de significação estéticas, e sim de relações humanas, sociohistoricamente reconstruídas, entre pessoas que pintam e pessoas que apreciam, reconhecem, avaliam e compram. Porém Miceli se distancia definitivamente de qualquer sociologismo redutor: os panoramas sociais são panos de fundo para os alvos de atenção que são os quadros. Miceli os observa como faria o crítico, mas introduz um outro olhar. Utiliza termos e códigos descritivos da crítica, mas explica as obras não para os conhecedores de arte e sim para um público mas amplo, que o obriga a descrever cada quadro em detalhe e o leva a convencer como um etnógrafo traduzindo os costumes de um grupo indígena ou estrangeiro. O texto é intercalado com uma galeria de 160 reproduções mediante as quais o leitor aprende e comprova. Cada quadro é um mundo em si que nos convida não a uma classificação antecipada dos elementos de modernidade ou pré-modernidade presentes, mas a penetrar na configuração singular dos estilemas artísticos e nas relações sociais do qual é efeito e causa. Em outras palavras, pode-se afirmar que a gramática do livro alterna etnografía de quadros e desenho de práticas de sociabilidade; conduz o olhar desde a profundidade das telas até a superfície dos universos sociais traçados pelas biografias entrelaçadas dos artistas e dos colecionadores. Não há antecipações de marcos sociais, políticos e econômicos para em seguida inserir os efeitos da arte. Toda a demonstração recupera a especificidade dos produtos artísticos como lugar privilegiado para lançar nova luz sobre o problema da diferenciação das "classes dirigentes" e dos esquemas de pensamento e sensibilidade, que vividos como patrimônio de todos, da nação, são o produto das disputas entre alguns protagonistas poderosos, tão poucos que entram nos recargados salões da Vila Kirial.

Os mecenas são conservadores, preferem ser retratados por pintores acadêmicos como Oscar Pereira da Silva, José Ferraz de Almeida Júnior, o italiano Antonio Rocco, o espanhol Juan Pablo Salinas. Porém, os meios institucionais criados por eles (pensionato artístico, bolsa de estudos na Europa, exposições e prêmios) beneficiam as viagens de formação dos jovens que virão a importar alguns dos elementos da vanguarda, como Anita Malfatti. O gosto cada vez maior pelas adaptações locais de uma linguagem pictórica moderna foi possível devido às experiências singulares de reconversão de certos personagens típicos da aristocracia amante da arte como Olívia Guedes Penteado (1872-1934). Tendo enviuvado em 1914, aproximou-se dos círculos de escritores e artistas da primeira geração modernista. Em 1923, em companhia de Tarsila do Amaral e de Oswald de Andrade, ela comprou em Paris a primeira coleção de quadros de artistas modernistas brasileiros e estrangeiros. Mais tarde encarregaria o imigrante lituano Lasar Segall da decoração de um pavilhão de sua mansão dedicado à arte moderna. Entre os artistas, alguns como Tarsila do Amaral também eram herdeiros da aristocracia antiga. Sua atração pela vanguarda explica-se por uma trajetória marcada pelas freqüentes viagens ou experiências de vida no exterior; por crises como a ruptura precoce de um casamento prescrito por condição social; pelo estilo sofisticado gerado na convivência com o grupo dos cinco (Menotti del Picchia, Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Anita Malfatti) e, especialmente, a relação amorosa com Oswald de Andrade, responsável pela eclosão da fase antropofágica. Esta ocorre entre 1927 e 1929, poucos anos durante os quais Tarsila traduz inventos modernos, como os propostos por Fernand Léger, em motivos ressaltados pelos líderes literários do grupo como as manifestações profundas de uma cultura nacional, com suas figuras populares, as mitologias indígenas, novos temas e estilos para uma arte autenticamente brasileira. Contudo, o estilo consagrado em Abaporu nem foi prefigurado desde a Semana de Arte Moderna nem subsistiu a uma década dos anos de 1930, em que o triunfo do modernismo se adaptou aos padrões esperados pela política cultural oficial.

A diferença decisiva para o estabelecimento do modernismo artístico foi finalmente estabelecida pela experiência imigrante. Durante as décadas de 1910 e 1920 instalaram-se em São Paulo artistas já formados em círculos de vanguarda. Lasar Segall, por exemplo, antes de chegar ao Brasil, conviveu com círculos expressionistas de Berlim e Dresden. Russo de ascendência judia, ao chegar ao Brasil casou-se com uma mulher pertencente ao clã Klabin. Esse e outros grupos de imigrantes empresários bem-sucedidos criaram em meados dos anos de 1920 outros círculos de sociabilidade, nos quais se expandiu o universo de gostos e escolhas culturais possíveis. Por outro lado, os imigrantes levaram ao limite a expressão de motivos tipicamente brasileiros, como num esforço de compreender a fatalidade do desligamento de suas raízes em um ambiente nacional estrangeiro, um lugar diferente, com seus próprios problemas sociais, étnicos e políticos. Os imigrantes, ou os estrangeiros em geral, foram o problema inventado nos anos de 1930 para terminar de acomodar as realizações do modernismo como plataforma da estética nacional. Ao mesmo tempo eles não entraram – nessa condição – na história nacional da arte e da cultura. Este livro restitui o peso e o significado das contribuições dos imigrantes. Porém os imigrantes aqui manifestam um tipo de experiência transformadora e não uma essência marcada pelo nascimento em terras distantes. Se os estrangeiros no Brasil redobraram a interpretação do tipicamente nacional, os brasileiros também realizaram esse movimento em experiências migrantes, em deslocamentos transatlânticos decisivos para imaginar uma arte nacional estrangeira. Somente a realização dessa condição mista explica a possibilidade de que o modernismo haja sido reconhecido internacionalmente como uma arte (e uma literatura) original, representativa do Brasil.

As palavras nacional (e) estrangeiro, finalmente, se conjugam com as palavras artístico (e) sociológico. Miceli não focaliza o mundo da arte com as lentes frias do sociólogo, nem utiliza em terreno sociológico códigos esotéricos da arte que poucos leigos poderiam decifrar. Em síntese, pode-se afirmar que a força deste livro vem da conversão do olhar que obriga tanto a artistas como a sociólogos a visualizar unidades de análises distintas, internacionais, para compreender problemas locais universais.

GUSTAVO SORÁ é pesquisador do Conicet no Museo de Antropología da Universidad Nacional de Córdoba.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Abr 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2004
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