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Política em tempos de mídia

RESENHAS

Política em tempos de mídia

Luis Felipe Miguel

Wilson Gomes. Transformações da política na era da comunicação de massa. São Paulo, Paulus, 2004. 451 páginas.

São muitas as qualidades que recomendam este livro de Wilson Gomes, professor de Comunicação da Universidade Federal da Bahia e uma das principais referências do país em sua especialidade. Obra de um pesquisador amadurecido, preocupado com o rigor conceitual, Transformações da política na era da comunicação de massa reúne e reelabora textos do autor publicados nos últimos dez anos, tendo a ambição de apresentar um quadro geral das relações entre a política e a mídia nas sociedades contemporâneas. Fluente, inteligente, redigido com clareza e muitas vezes instigante, o livro parece destinado a integrar o pequeno elenco de leituras obrigatórias para os pesquisadores da área no Brasil.

São dois os pólos entre os quais oscila boa parte da pesquisa sobre as relações entre a política e os meios de comunicação de massa – expressão que retenho aqui, por seu uso corrente, mas que o autor rejeita, com boas razões, por considerar que "a comunicação e a cultura de massa foram deixando de ser meios para se transformar em ambientes fundamentais para a política contemporânea" (p. 60). De um lado, os "hipermediáticos", na expressão de Gomes, julgam que a comunicação colonizou toda a política, que se teria transformado quase num ramo adicional do show-bussiness. De outro, os "hipomediáticos" acreditam que as transformações introduzidas pela mídia são epidérmicas diante das continuidades do fazer político e desprezíveis para o analista. Seu esforço (como, aliás, o de todos os melhores estudiosos da área, já há algum tempo) é encontrar um "justo meio" entre as duas posições simplificadoras, entendendo como se articulam permanências e mutações, sobrevivências e novidades, num jogo político que ao mesmo tempo é e não é o mesmo que se fazia antes da disseminação dos meios eletrônicos de comunicação.

Entre os muitos méritos que o autor acumula nesta tarefa – como a riqueza de leituras, de interpretações, de insights –, surgem alguns pontos problemáticos. O mais evidente é a fragilidade do argumento em tudo o que se refere mais propriamente à área disciplinar da política. Wilson Gomes transita com enorme familiaridade pela literatura do campo da comunicação, mas suas referências na ciência política, na sociologia política e mesmo na filosofia política são, em muitas passagens, insatisfatórias. Como seu projeto é trabalhar na interface, e como em vários capítulos o autor se aventura em descrições extensas do funcionamento do jogo político, o problema é sério.

O segundo capítulo, por exemplo, voltado a analisar as negociações políticas que ocorrem em geral fora da arena de visibilidade pública, pretende oferecer um entendimento global de quais são os agentes da luta política e quais as relações que estabelecem entre si. Sobre cada um dos temas ali abordados – relações entre Executivo e Legislativo, motivações dos legisladores, formação de alianças – existe uma vasta bibliografia, tanto nacional como estrangeira, que Wilson Gomes ignora. O resultado é uma percepção da política que pode ser interessante e perceptiva, mas que permanece no universo de um leitor crítico e bem-informado de jornais, por vezes coberta por um texto algo pomposo. Um exemplo, entre muitos:

Raramente, um universo político chega a um grau de cinismo tal que as partes que se aliam não precisam conferir dignidade à aliança invocando uma honesta e legítima sintonia programática, mesmo que no fundo o que realmente se deseje seja a distribuição dos privilégios do Executivo, a feudalização do poder com o estabelecimento de susseranias (sic) e vassalagens (p. 102).

Dizer que a retórica política recobre de "dignidade" acordos que muitas vezes são de um brutal pragmatismo, como faz o trecho citado, é muito pouco. Importa saber os ganhos diferenciais que tal pragmatismo tem em relação a uma postura mais "purista", o cálculo dos agentes que precisam prestar satisfações às suas bases de apoio, o incentivo que as estruturas políticas oferecem às fórmulas de acomodação. Como o livro não avança em nenhuma destas frentes, fica em grande medida prejudicada a acuidade da análise.

O autor incorre também em dois deslizamentos constantes no texto, nem sempre bem sinalizados. O primeiro diz respeito ao aprofundamento da discussão. Gomes alterna passagens dedicadas a explicar o básico, como ao interpretar a dinâmica da relação entre governo e oposição (p. 100), dispensáveis para o leitor mais experiente, com outros mais intrincados, de difícil deglutição para um iniciante. Mais sério é o segundo deslizamento. Por vezes, o autor parece se referir à "política contemporânea" em geral; outras vezes, ao Brasil. Nem sempre é possível identificar o momento em que ocorreu a transição de um nível para o outro.

Um exemplo é a discussão sobre a "judicialização da política", presente no terceiro capítulo. Uma vez mais, o autor passa ao largo da ampla bibliografia sobre o tema, representada no Brasil pela obra de Luiz Werneck Vianna e muitos outros. À parte a fragilidade da tese da "judicialização da política midiática" (p. 134) e erros menores como a afirmação de que o Ministério Público é uma instituição do Poder Judiciário (p. 132), é discutível a forma como Gomes equipara o MP brasileiro aos procuradores independentes norte-americanos, todos integrantes da "parte não-política do Estado, o poder Judiciário" (p. 132). Há aí uma redução implícita do conceito de política que compromete significativamente a análise.

Um entendimento mais satisfatório das complexidades do jogo político serviria melhor ao projeto – que encerra todo um programa de pesquisa – de entender a influência da comunicação de massa também naqueles espaços que não se predispõem a estar sob o escrutínio público. Isto exigiria também a superação da definição redutora da "política midiática" como sendo "um sistema de habilidades, saberes e conhecimentos da política destinados à obtenção da atenção e do apoio públicos. O público é sua razão de ser" (p. 149). A definição deixa de fora todo o papel que a mídia cumpre como difusora de informações e mecanismo de interação dentro da própria elite política, que diversas pesquisas têm ressaltado (por exemplo, Cook, 1998).

Problemas similares aparecem na discussão sobre democracia. Gomes fornece uma definição sumária de democracia – "é basicamente uma forma de governo em que a esfera pública é recomposta periodicamente através de eleições e em que a decisão política parlamentar, consensual ou decorrente de apoio da maioria, realiza-se por meio da deliberação" (p. 96) – sem problematizá-la e, aparentemente, sem perceber quão discutível ela é. Além de exilar do conceito qualquer referência a um conteúdo mais substantivo da democracia, há a insustentável afirmação de que as eleições recompõem a esfera pública, como se esta estivesse limitada aos cargos públicos. A apoiar sua definição, um reduzidíssimo número de fontes, entre as quais a mais reluzente é o manual escolar de Robert Dahl, Sobre a democracia. Contrastada com a preocupação que Gomes demonstra, em outras partes do livro, com a robustez dos conceitos de que se serve, o tratamento dado à democracia (que se trata, afinal, do horizonte normativo de sua compreensão da política) é de uma ligeireza notável.

Enfim, chega-se à curiosa situação de uma discussão sobre os problemas da democracia contemporânea em que a questão da representação é tratada de forma absolutamente lateral. O fosso entre os sentidos normativos da democracia e sua efetivação em sociedades complexas reais se deve, em grande parte, ao fato de que a soberania popular nominal só se realiza por meio de representantes eleitos. A comunicação de massa, por sua vez, fornece ao público as representações da realidade social que subsidiam suas escolhas políticas. A polissemia da palavra é levada em conta nos estudos sobre a representação política, a começar pelo clássico de Hanna Pitkin (1967); e o impacto da mídia nas transformações dos mecanismos representativos é alvo de debate ao menos desde a publicação da importante obra de Bernard Manin (1997).

A mais grave deficiência, na interpretação que Wilson Gomes faz da política em sua relação com a mídia, no entanto, é a apresentação de um impacto uniforme, como se os "agentes políticos", indiferenciados, tivessem que adotar comportamentos similares para se adequar a um ambiente de disputa moldado pela comunicação de massa. Embora logo no primeiro capítulo faça um resumo eficiente do conceito de campo, de Pierre Bourdieu, aplicado ao jornalismo (pp. 53-55), abandona-o no restante do texto. Um campo, convém lembrar, é um espaço estruturado, hierarquizado. Os diferentes agentes no campo político possuem diferentes formas de relação com a mídia, são menos ou mais vulneráveis à sua influência, de acordo com a posição que ocupam. Um líder político importante, apto a orientar o noticiário com suas declarações, não está na mesma posição de alguém posicionado na borda externa do campo e que possui, portanto, uma baixa capacidade de produzir fatos políticos (Miguel, 2002). Ao deixar de lado tais diferenças, o autor simplifica seu argumento, mas também elimina parte da complexidade do seu objeto de estudo.

Outro ponto discutível na abordagem de Gomes diz respeito à visão normativa sobre a política e a discussão política. Embora o autor tenha se tornado cada vez mais crítico em relação à obra de Habermas, a ilusão do "debate livre entre iguais", isto é, de uma política que se descreve sem alusão a conflitos irreconciliáveis de interesses, ainda se faz presente, sobretudo no capítulo 4. É o que explica, também, sua recusa cabal à obra de Gramsci, baseada numa leitura singularmente plana de sua teoria, cujo pecado principal seria, com o conceito de hegemonia, recusar espaço à busca desinteressada pela comunicação verdadeira (pp. 194-195).

É o que explica, ainda, a assimilação incompleta de Maquiavel, ao qual dedica, porém, toda uma subseção do nono e último capítulo. O pensador florentino é apresentado como um teórico da política como aparência (pp. 372-385). A fonte, naturalmente, é o trecho d'O príncipe em que são destacadas as virtudes que o governante deve aparentar diante do mundo, mesmo que não as possua. A leitura de Maquiavel, ainda que apenas sob esta perspectiva, ganharia com a absorção de outras obras, em especial os Discorsi, que tematizam a questão da imagem pública em ambiente republicano, e também a comédia A mandrágora, que mostra como uma fachada de respeito aos costumes (ou, dito de forma mais crua, a hipocrisia) é fundamental para a vida em sociedade.1 1 Há uma vasta literatura secundária sobre Maquiavel que destaca a questão; limito-me a citar o excelente estudo de Ruth Grant (1997). De forma mais geral, o pensamento maquiaveliano, em que pesem os quase cinco séculos de distância, ainda poderia servir de antídoto às ilusões que cercam a "esfera pública discursiva" desinteressada.

Independentemente das críticas que se façam, Transformações da política na era da comunicação de massa é sempre uma leitura proveitosa. O primoroso capítulo 6, dedicado à "política da imagem", é revelador da habilidade do autor para desfazer nós conceituais e trazer um pouco de ordem a campos de estudo em que os abusos de linguagem ou o excesso de metáforas geram uma confusão permanente. Assim, a desvinculação radical entre "imagem pública" e imagem visual (pp. 246-247), tornada óbvia após a leitura do texto, resolve uma inconsistência que compromete muitas pesquisas da área. A seção dedicada à revisão da idéia de "espetáculo político", no último capítulo, também é um guia seguro para a compreensão de um termo com um uso tão dilatado que chegou a comprometer sua utilidade.

Ganham com a leitura do livro, em especial, os muitos estudiosos dos fenômenos políticos contemporâneos que ainda julgam que questões relacionadas à comunicação são periféricas. Na era da comunicação de massa, não há nenhum recanto do jogo político que tenha permanecido imune às transformações, quaisquer que sejam as formas que elas tenham tomado.

Notas

BIBLIOGRAFIA

COOK, Timothy E. (1998), Governing with the news: the news media as a political institution. Chicago, The University of Chicago Press.

GRANT, Ruth W. (1997), Hypocrisy and integrity: Machiavelli, Rousseau, and the ethics of politics. Chicago, The University of Chicago Press.

MANIN, Bernard. (1997), The principles of representative government. Cambridge, Cambridge University Press.

MIGUEL, Luis Felipe. (2002), "Os meios de comunicação e a prática política". Lua Nova, 55-56: 155-184.

PITKIN, Hanna F. (1967), The concept of representation. Berkeley, University of California Press.

LUIS FELIPE MIGUEL é professor do Instituto de Ciência Política e do Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas, ambos da Universidade de Brasília, e pesquisador do CNPq.

  • 1
    Há uma vasta literatura secundária sobre Maquiavel que destaca a questão; limito-me a citar o excelente estudo de Ruth Grant (1997).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Abr 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2005
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