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Existe uma modernidade brasileira? Reflexões em torno de um dilema sociológico brasileiro

Is there a brazilian modernity? Reflections on a brazilian sociological dilema

Existe-t-il une modernité brésilienne? Réflexions à propos d'un problème sociologique brésilien

Resumos

O presente artigo trata do problema da modernidade no Brasil a partir de uma análise crítica de duas das principais abordagens do pensamento social brasileiro, a saber, a sociologia da dependência e a sociologia da herança patriarcal-patrimonial. O autor parte em defesa de um referencial conceitual ampliado, capaz de apreender variações nos três pilares da sociabilidade moderna, quais sejam, a diferenciação social, a secularização, e a separação público/privado. Trata-se, em última instância, de preparar o terreno para lidar com a constituição da sociabilidade moderna como um processo contingente, que resulta do enfrentamento entre projetos, interesses e concepções de mundo díspares, em luta pelo controle do ordenamento do social.

Modernidade no Brasil; Teoria social; Pensamento social brasileiro


This article aims at providing a consideration of the issue of modernity in Brazil by means of a critical analysis of two of the main strands in the Brazilian social thought, namely the so-called dependency sociological approach and the patrimonial-patriarchal heritage strand. It argues in favor of a broadened conceptual framework capable of grasping variations in the three pillars of modern sociability, that is, social differentiation, secularization, and the public-private divide. The ultimate goal is setting the terrain for dealing with the constitution of modern sociability as a contingent process resulting from contentions among disputing projects, interests, and world views, which fight for the control of the social order.

Modernity in Brazil; Social theory; Brazilian social thought


Cet article aborde le problème de la modernité au Brésil. L’auteur propose une analyse critique des deux principaux courants existants au sein de la pensée sociale brésilienne : la sociologie de la dépendance et la sociologie de l’héritage patriarcale-patrimoniale. Il défend un référentiel conceptuel amplifié, capable d’appréhender les variations existantes dans les trois piliers de la sociabilité moderne, à savoir : la différentiation sociale, la sécularisation et la séparation entre le public et le privé. Son but est de préparer le terrain à l’abordage de la constitution de la sociabilité moderne, considérée comme un processus contingent issu de l’affrontement de projets, d’intérêts et de conceptions du monde totalement différents, qui rivalisent pour le contrôle de l’ordre social.

Modernité au Brésil; Théorie sociale; Pensée sociale brésilienne


Existe uma modernidade brasileira? Reflexões em torno de um dilema sociológico brasileiro* * O presente artigo é uma versão modificada do texto apresentado no XXVIII Encontro Anual da Anpocs. Agradeço aos organizadores e participantes do Seminário Temático "Da Modernidade Global às Modernidades Múltiplas" pelos valiosos comentários e sugestões, muitos dos quais me esforcei por incorporar na presente versão. Evidentemente, isento a todos de responsabilidade quanto às limitações do artigo.

Is there a brazilian modernity? Reflections on a brazilian sociological dilema

Existe-t-il une modernité brésilienne? Réflexions à propos d'un problème sociologique brésilien

Sergio B. F. Tavolaro

RESUMO

O presente artigo trata do problema da modernidade no Brasil a partir de uma análise crítica de duas das principais abordagens do pensamento social brasileiro, a saber, a sociologia da dependência e a sociologia da herança patriarcal-patrimonial. O autor parte em defesa de um referencial conceitual ampliado, capaz de apreender variações nos três pilares da sociabilidade moderna, quais sejam, a diferenciação social, a secularização, e a separação público/privado. Trata-se, em última instância, de preparar o terreno para lidar com a constituição da sociabilidade moderna como um processo contingente, que resulta do enfrentamento entre projetos, interesses e concepções de mundo díspares, em luta pelo controle do ordenamento do social.

Palavras-chave: Modernidade no Brasil; Teoria social; Pensamento social brasileiro.

ABSTRACT

This article aims at providing a consideration of the issue of modernity in Brazil by means of a critical analysis of two of the main strands in the Brazilian social thought, namely the so-called dependency sociological approach and the patrimonial-patriarchal heritage strand. It argues in favor of a broadened conceptual framework capable of grasping variations in the three pillars of modern sociability, that is, social differentiation, secularization, and the public-private divide. The ultimate goal is setting the terrain for dealing with the constitution of modern sociability as a contingent process resulting from contentions among disputing projects, interests, and world views, which fight for the control of the social order.

Keywords: Modernity in Brazil; Social theory; Brazilian social thought.

RÉSUMÉ

Cet article aborde le problème de la modernité au Brésil. L’auteur propose une analyse critique des deux principaux courants existants au sein de la pensée sociale brésilienne : la sociologie de la dépendance et la sociologie de l’héritage patriarcale-patrimoniale. Il défend un référentiel conceptuel amplifié, capable d’appréhender les variations existantes dans les trois piliers de la sociabilité moderne, à savoir : la différentiation sociale, la sécularisation et la séparation entre le public et le privé. Son but est de préparer le terrain à l’abordage de la constitution de la sociabilité moderne, considérée comme un processus contingent issu de l’affrontement de projets, d’intérêts et de conceptions du monde totalement différents, qui rivalisent pour le contrôle de l’ordre social.

Mots-clés: Modernité au Brésil; Théorie sociale; Pensée sociale brésilienne.

O presente artigo parte de uma constatação nada original, a saber, o fato de que toda a história do pensamento social brasileiro foi e continua sendo fortemente marcada pela tarefa de explicar, compreender e interpretar a modernidade no Brasil. Nossos mais renomados sociólogos, assim como as contribuições nacionais que alcançaram lugar de maior destaque dentro e fora do Brasil, foram exatamente aqueles que se debruçaram sobre tal tema. Parece-me legítimo, pois, afirmar que um dos principais dilemas da sociologia brasileira desde seus primórdios foi e continua sendo "qual o status da modernidade no Brasil? Existiria uma modernidade brasileira?". Evidência da atualidade e apelo de tais questionamentos em nosso contexto intelectual é a retomada da produção acadêmica em torno desse tema desde a primeira metade dos anos de 1990 por uma geração mais jovem de cientistas sociais brasileiros inspirada pela produção sociológica internacional.1 1 A esse respeito, ver Avritzer (1993); Avritzer e Domingues (2000); Costa (1994); Domingues (1999, 2002a e b); Neves (1996); Silva et al. (2002); Souza (2000, 2004). Sintomático, ainda, da efervescência dessa problemática em nossa recente produção sociológica é a existência de dois seminários temáticos em que tais questões foram tratadas de maneira mais explícita no XXVIII Encontro Anual da Anpocs, quais sejam, o supracitado "Da Modernidade Global às Modernidades Múltiplas" e o "Dilemas da Modernidade Periférica". Por fim, vale lembrar que elementos dessa mesma problemática se encontram difusos em outras áreas de pesquisa nas ciências sociais brasileiras, ainda que com diferentes designações, tais como, "formação do Estado", "religiosidade", "sociedade civil e movimentos sociais", "sexualidade e intimidade", entre outros.

Seguindo os passos da recente produção nacional, e igualmente sob a inspiração da teoria sociológica contemporânea, pretendo refletir em torno do tema da "modernidade no Brasil" a partir de uma consideração crítica de duas das principais abordagens do pensamento social brasileiro, a saber, a sociologia da dependência (cujas figuras nodais me parecem inquestionavelmente ser Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni) e nossa sociologia da herança patriarcal-patrimonial (cujos elementos mais influentes são Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto da Matta). Em ambos os casos, é patente a resistência de ver a sociedade brasileira contemporânea e as ditas "sociedades modernas centrais" em pé de igualdade. Por um lado, afirma-se que nosso passado diverge de maneira por demais substantiva do contexto cultural, normativo e simbólico em que emergiu e se consolidou o padrão de sociabilidade hoje predominante naquelas "sociedades centrais"; por outro, postula-se que nossa inalterada condição de dependência econômica estrutural jamais deixou de ser um obstáculo à total integração do Brasil no seleto clube dos países modernos centrais. A meu ver, essas duas abordagens são entrecortadas por uma tonalidade essencialista: aspectos num primeiro momento vistos como historicamente constituídos são sutilmente deslocados dos contextos dinâmicos e multidimensionais em que se originaram e transformados em "variáveis independentes", pretensamente capazes de explicar, em qualquer momento da história brasileira, o tipo de sociabilidade que aqui se consolidou.

Entendo que avanços em relação à tarefa de compreender a modernidade no Brasil demandam, primeiramente, uma consideração crítica da episteme, no interior da qual operam as propostas dos clássicos de nossa sociologia.2 2 Por episteme entendo uma grade geral de conceitos e noções que delimita o terreno cognitivo no interior do qual operam determinadas teorias explicativas e interpretativas da "realidade". Tal episteme, responsável por demarcar o terreno cognitivo de um certo discurso da modernidade que veio a se tornar hegemônico na produção sociológica internacional, vislumbra o padrão de sociabilidade moderno como sendo estruturado em torno de três pilares fundamentais: 1) Diferenciação/complexificação social; 2) Secularização; 3) Separação entre público e privado.3 3 Guardadas as particularidades tão bem conhecidas, pode-se dizer que esse território cognitivo compõe o denominador comum de Karl Marx, Max Weber, Émile Durkheim, Georg Simmel e alguns dos mais influentes sociólogos contemporâneos, tais como Talcott Parsons, Niklas Luhmann e Jürgen Habermas. É a predominância dessa referência epistêmica nas produções sociológicas em escala global que me conduz a denominá-las elementos centrais de um "discurso sociológico hegemônico da modernidade". Procurei sugerir como elementos centrais das teorias de cada um deles internalizam as noções de diferenciação social, secularização e separação público/privado (Tavolaro, "Introdução", 2004). A fim de apontar caminhos para a superação de certas limitações embutidas em nossa sociologia da dependência e em nossa sociologia da herança patriarcal-patrimonial, chamarei atenção para algumas das armadilhas dessa episteme, que induzem empreendimentos interpretativos a, por um lado, negligenciar variações de sociabilidade experimentadas pelas próprias "sociedades modernas centrais" e, por outro, a atribuir a imagem de incompletude, imperfeição ou ainda distorção à experiência brasileira moderna. À luz do potencial crítico implícito na noção de modernidades múltiplas, farei um exercício de derivação da supracitada episteme, ressaltando as variações no padrão de sociabilidade que o discurso sociológico confere à modernidade. Além disso, defenderei a idéia de que cabe a um discurso da modernidade que se pretende sociológico por excelência em seus esforços explicativos e interpretativos lidar com as formas de sociabilidade que se consolidaram no Brasil contemporâneo e em outros contextos modernos como o resultado contingente do confronto entre projetos sociais, demandas, concepções de mundo e interesses. Por fim, aproveitarei a literatura já consolidada no debate sobre globalização para argumentar não ser possível pensar a modernidade no Brasil senão em um contexto tendencialmente global. A partir desses elementos, que na verdade abrem uma ampla agenda de pesquisa, procurarei indicar uma alternativa para esse dilema central de nosso pensamento social.

À sombra da inautenticidade

Sob o rótulo de "sociologia brasileira da inautenticidade", Souza (2000) procurou avaliar como o conjunto da produção intelectual de Freyre, Holanda, Faoro e Matta mostra-se incapaz de pensar o Brasil contemporâneo como uma exemplo acabado de modernidade. Ao superenfatizar nossa pretensa herança luso-ibérica, esses autores teriam atribuído demasiada importância a traços de sociabilidade pré-modernos – mais especificamente, personalismo e patrimonialismo –, como se fossem eles ainda determinantes da suposta peculiaridade brasileira. Daí a sombra de inautenticidade projetada sobre a imagem que eles constroem do Brasil contemporâneo: uma vez em débito com a cultura e o padrão portugueses de sociabilidade, não seríamos plena e autenticamente modernos. Para Souza, tal linha interpretativa mostrou-se presa fácil de preconceitos do senso comum.

Apesar de, conforme indicarei adiante, não entender que a noção de "modernização seletiva" introduzida por Souza seja capaz de superar um aspecto nuclear das limitações interpretativas por ele mesmo sugeridas, a expressão "sociologia da inautenticidade" parece apreender a reticência e, por que não dizer, extrema resistência dos principais nomes da produção sociológica nacional no sentido de atribuir o status de "modernidade plena" à sociedade brasileira contemporânea. Parece-me legítimo estender o predicado de "inautenticidade" aos diagnósticos elaborados por uma segunda abordagem ainda mais influente em certas instituições de pesquisa e ensino no Brasil nos últimos quarenta anos, cujos principais nomes são exatamente Prado Jr., Fernandes, Cardoso e Ianni, que chamo aqui de "sociologia brasileira da dependência". Por razões que em breve procurarei indicar, há também entre eles uma notável resistência em equiparar a sociedade brasileira contemporânea e as chamadas "sociedades modernas centrais". Reproduzem, ainda que a partir de um ponto de vista bastante diferente, aquela mesma imagem de "desvio" projetada pelos sociológos da herança patrimonial-patriarcal.

Freyre, Holanda, Faoro e Matta têm em comum o fato de atribuírem aos efeitos da herança patrimonial-patriarcal sobre o Brasil contemporâneo a razão das distorções de nossa sociabilidade moderna. Freyre (1990, 1996, 2000) e Holanda (1994) claramente convergem em direção à idéia de que certos códigos de sociabilidade típicos da família patriarcal e do pater familias teriam permanecido ativos na dinâmica social do Brasil contemporâneo para além do período colonial. Para Freyre, a extensão e a profundidade da disseminação do tipo patriarcal de sociabilidade seriam uma conseqüência, em última instância, do fato de que o latifúndio patriarcal, baseado no trabalho escravo e orientado à produção e à exportação de matérias-primas, veio a se tornar algo mais que uma simples unidade econômica: consolidou-se por muito tempo como locus político-administrativo, militar e jurídico, além de centro organizador da vida sexual, cultural e até mesmo religiosa. Naquelas circunstâncias, diferenciação social e impessoalidade teriam encontrado tremenda dificuldade para florescer. Tais características jamais teriam deixado de se fazer presentes, mesmo ao cabo da urbanização, da independência, da abolição da escravidão e da queda da monarquia.

Sérgio B. de Holanda, por sua vez, atribui à nossa herança lusitana, marcada por "aversão congênita a qualquer ordenação impessoal da existência" (1994, p. 75), a importância remanescente do patriarcalismo no tecido social do Brasil contemporâneo. O perfil da empresa colonizadora de portugueses, ancorada na ética da aventura em detrimento da ética do trabalho, revelaria a incompatibilidade de nosso passado ibérico com a racionalização característica de "terras protestantes". Com isso, estabilidade e segurança – atributos de uma ordem racionalizada – teriam sido postos em segundo plano em favor do desejo pela recompensa imediata. Naquele contexto, ao se estabelecer como autoridade máxima e inquestionável da ordem social, pater familias e família patriarcal teriam se tornado os disseminadores hegemônicos dos principais códigos e princípios de sociabilidade, emanando para a totalidade do corpo social idéias de poder, de respeitabilidade, obediência e de coesão social, moldando, assim, instituições as mais variadas.4 4 Isso explicaria a manutenção de traços pré-modernos nas instituições políticas brasileiras, em que "as facções são contituídas à semelhança das famílias, precisamente das famílias de estilo patriarcal, onde os vínculos biológicos e afetivos que unem ao chefe os descendentes, colaterais e afins [...] hão de ponderar sobre as demais considerações. Formam assim, como todo indivisível cujos membros se acham associados, uns aos outros, por sentimentos e deveres, nunca por interesses e idéias" (Holanda, 1994, p. 47). Tal condição explicaria, ainda, a proeminência do privado sobre o público e, conseqüentemente, a invasão do Estado por códigos sociais característicos do ambiente familiar.

Faoro (2001) toma caminho particular no interior dessa perspectiva interpretativa: em vez do "patriarcalismo", nossa peculiaridade moderna teria suas raízes no Estado patrimonial que se constituiu em Portugal desde os idos de sua formação. Num cenário como aquele, onde as fronteiras entre os domínios públicos e a casa real permaneceram marcadamente porosas, códigos impessoais teriam encontrado pouquíssimo espaço para permear o funcionamento do aparato estatal e para regular as relações entre o Estado e os súditos da Coroa. Ora, durante séculos, o Estado patrimonial português e sua burocracia estamental mantiveram o controle supremo de toda a dinâmica colonial, não só do ponto de vista politico-administrativo e militar, mas também do ponto de vista cultural, econômico e até mesmo religioso.5 5 Para Faoro, é exatamente isso que nos diferenciaria dos países que emergiram da experiência colonial anglo-saxônica: "Os ingleses transmigrados formaram sua própria organização política e administrativa [...]. Não os contaminou a presença vigilante, desconfiada e escrutadora, do funcionário reinol: por sua conta, guardadas as tradições de self-government e de respeito às liberdades públicas, construíram as próprias instituições. [...] O inglês fundou na América uma pátria, o português um prolongamento do Estado" (Faoro, 2001, pp. 145-146). Conforme Faoro, nem mesmo os chefes locais conseguiram impedir que, após a Independência, se estabelecesse no Brasil uma ordem bastante similar à do além-mar: com a Constituição de 1824, o imperador e sua burocracia institucionalizaram-se como fonte primordial de poder, sufocando por décadas a emergência de fontes paralelas de poder. Mesmo o controle das oligarquias estaduais no período de 1889a 1930 não teria representado mudanças tão substanciais, já que, com a queda da monarquia, teria prevalecido um tipo de relação autoritária entre as elites políticas (estaduais e locais) e suas bases, marcado por obediência pessoal e por extrema porosidade entre os domínios públicos e os âmbitos privados dos líderes mais proeminentes. Com a Revolução de 1930, teria voltado a se instalar no Brasil um Estado de tipo patrimonial gerido por uma burocracia estamental controladora de toda a dinâmica social e avessa à plena impessoalização e racionalização político-administrativas.

Em continuidade a essa abordagem, Matta (1980, 1995, 2000) defende a existência de um sistema dual pretensamente estruturando e orientando o Brasil contemporâneo: um código pessoal em coexistência com um sistema legal individualizante enraizado na ideologia burguesa liberal. Tal sistema dual expressar-se-ia na posição que "casa" e "rua" ocupariam na gramática social brasileira: a "casa", domínio privado por excelência, seria o território da intimidade, do familiar, das relações pessoais, do parentesco, da afeição e do descanso; a "rua" (mercado, Estado, tráfego, entre outros), domínio público por excelência, seria um ambiente vivido e percebido como "a dura realidade", esfera do trabalho, da luta, da disputa pela sobrevivência e, com bastante frequência, da punição (Matta, 2000). Enquanto "em casa" os brasileiros seriam "pessoas" submetidas a regras de conduta estabelecidas pelos códigos do amor e do parentesco, na "rua" seriam meros "indivíduos", sujeitos a regras impessoais comumente vivenciadas como injustas e imprevisíveis. O que faria o Brasil contemporâneo uma sociedade de tipo "semitradicional" seria precisamente o fato de que "casa" e "rua", nos termos acima considerados, conviveriam lado a lado.

Ainda que a partir de um viés um tanto diferente, os principais representantes de nossa sociologia da dependência revelam forte suspeição quanto à eqüidade entre Brasil e as chamadas "sociedades modernas centrais". Apesar de também voltar seu olhar para o período que antecedeu a independência política, Prado Jr. (1970, 1971, 1994) atém-se à natureza econômica da empresa colonizadora que deu início à nossa formação. Para se compreender o Brasil, argumenta, é necessário que se tenha em mente as particularidades daquela empresa em duas diferentes áreas da América: de um lado, os empreendimentos localizados na zona temperada do continente americano (que incluem boa parte do atual território dos Estados Unidos) e, de outro, aqueles que se desenrolaram nas zonas tropical e subtropical. O primeiro, a um só tempo concretizado em ambiente natural não tão diverso da Europa e impulsionado por ondas migratórias catapultadas por conflitos religiosos e políticos, teria sido orientado para a construção de um novo mundo. Resultou, pois, em algo consideravelmente similar à própria experiência societal da Europa ocidental. Algo bastante particular teria ocorrido nas zonas tropical e subtropical. Lá, o motivo essencialmente econômico do empreendimento – voltado fundamentalmente à exploração dos recursos naturais do território virgem – teria desencadeado resultados bem originais: a organização social e política do Brasil em moldes patriarcal e escravista, em ambos os casos sob o controle atento e centralizado de Portugal. Como bem demonstraram os termos de nossa independência política – que se deu sob a decisiva proteção da Inglaterra –, confirmou-se a condição de dependência externa do Brasil e, por conseguinte, sua incapacidade de se dinamizar a partir de dentro, por suas próprias forças e conforme objetivos próprios (Prado Jr., 1994). Daí a forte presença do aparato estatal diante da insuperada debilidade de nossa iniciativa privada.

Ao buscar explicações para nossa "tão peculiar modernidade", Florestan Fernandes (1975, 1976) sugere que a combinação inicial de grande lavoura, escravidão e expropriação colonial teria revitalizado algo que havia muito se esgotara no continente europeu, a saber, uma configuração social de tipo estamental. Já que toda a riqueza aqui produzida era sistematicamente absorvida por Portugal e outras nações que ocupavam posições centrais na ordem capitalista mundial, produtores locais eram totalmente tolhidos a dar início a um processo autônomo de inversão capitalista. Ao final da consolidação do capitalismo monopolista no Brasil, já na década de 1950, a sociedade brasileira teria internalizado os mesmos padrões sociais, políticos e econômicos vivenciados pelas sociedades capitalistas hegemônicas apenas em suas linhas mais gerais. Isso porque jamais teríamos conseguido nos livrar daquela condição de dependência estrutural e, conseqüentemente, de deixar para trás a zona periférica do sistema capitalista mundial: setores econômicos modernos e supermodernos, de um lado, e setores arcaicos, de outro, teriam se articulado de maneira consistente, razão pela qual uma porção significativa da população brasileira permanenceu alheia à universalização legal do trabalho-livre. Em tais condições, conforme Florestan, certas instituições políticas vivenciadas pelas sociedades capitalistas centrais não conseguiram vingar. Nossa modernização teria, então, permanecido "dissociada do modelo de civilização operante nas nações hegemônicas":

Ela negligencia ou põe em segundo plano os requisitos igualitários, democráticos e cívico-humanitários da ordem social competitiva, que operariam, na prática, como obstáculos à transição para o capitalismo monopolista. Na periferia, essa transição torna-se muito mais selvagem que nas nações hegemônicas e centrais, impedindo qualquer conciliação concreta, aparentemente a curto e longo prazo, entre democracia, capitalismo e autodeterminação (Fernandes, 1976, p. 256).

Octávio Ianni (1971, 1978), por sua vez, argumenta que os dilemas do Brasil contemporâneo resultam dos conflitos sociais, políticos, econômicos e culturais que teriam emergido ao longo do planejamento, da sucessão e da coexistência de quatro modelos de desenvolvimento no Brasil: 1) o modelo exportador; 2) o de substituição de importações; 3) o de desenvolvimento associado; e, ainda que de maneira limitada, 4) o socialista. As lutas e os conflitos em torno de cada um desses modelos jamais teriam deixado de depender, de maneira bastante acentuada, do resultado de contradições e crises que se desenrolaram no cenário internacional. Mesmo quando fatores internos tiveram algum peso em tais conflitos, isso só teria se dado depois que transformações exteriores fizessem valer seu impacto. Central para a compreensão do Brasil moderno seria, pois, a noção de dependência estrutural, que para Ianni ocorreria "sempre que relações e estruturas econômicas e políticas de um país estão determinadas pelas relações e estruturas de tipo imperialista" (1971, p. 33). Em meados dos anos de 1950, com o esgotamento do modelo de substituição, frustraram-se as ambições autonomizantes que ainda nos restavam. O golpe de 1964 teria sido a gota d’água para o engajamento definitivo do Brasil no modelo capitalista associado, agora sob hegemonia norte-americana. O aparato estatal teria, então, sido levado a assumir atribuições e um tipo de postura em relação à economia e às organizações civis em função das quais instituições democráticas não conseguiriam fincar pé. Daí não terem prevalecido no Brasil, de acordo com o autor, as mesmas condições que permitiram aos países capitalistas centrais consolidarem instituições e valores burgueses e extendê-los para a maior parte da população.

Fernando Henrique Cardoso (1972, 1980; Cardoso e Faletto, 1979) também refuta a tese segundo a qual tendências culturais profundas teriam aprisionado a sociedade brasileira em formas de sociabilidade de tipo patrimonial. Para ele, as principais estruturas da sociedade brasileira contemporânea deveriam ser compreendidas como decorrentes do reaparecimento do sistema externo de dominação capitalista em práticas nacionais de grupos e classes sociais. Em nenhum momento teria sido possível dar um salto em direção à almejada autonomização, pois as etapas finais de realização da produção capitalista permaneceram visceralmente dependentes da dinâmica do mercado internacional (marcada pela depreciação constante dos termos de troca comercial). Nessas condições, a industrialização só foi possível sob a tutela de um aparato estatal nacional-populista, o único verdadeiramente capaz de catapultar as diversas dimensões de nossa modernização. Ao final da Segunda Guerra Mundial, a necessidade de investimentos para a continuidade da industrialização teria feito com que se consolidasse um novo tipo de relação de dependência, a saber, a de tipo "associado", configurado no tripé multinacionais estrangeiras/setores modernos da economia nacional/aparato-estatal. Ora, em decorrência do desequilíbrio estrutural entre necessidade de investimento e disponibilidade de recursos para tal, a sociedade brasileira viu-se continuamente impossibilitada de satisfazer as demandas de parte significativa de sua população, mesmo após ter atingido consideráveis níveis de urbanização e atividade industrial. Diante de tantos constrangimentos e do alto potencial de instabilidade política decorrente de insatisfações generalizadas, o tipo associado de desenvolvimento exigiu um aparato estatal autoritário e centralizador, o único capaz de proporcionar condições ótimas para as decisões de investimentos tomadas nas matrizes das corporações estrangeiras (Cardoso, 1980). Assim é que democracia representativa, grupos civis e demais formas de sociabilidade vivenciadas plenamente pelas sociedades capitalistas centrais encontraram condições difíceis para se consolidar no Brasil.6 6 Prova disso seria a ausência de partidos políticos representativos das classes sociais, da divisão harmoniosa entre os poderes republicanos e de garantia efetiva de direitos individuais (Cardoso, 1972).

Semi-, Periférica, ou Singular? Para além do dilema sociológico brasileiro

Conforme pudemos verificar, para Freyre, Holanda, Faoro e Matta, elementos do tipo de sociabilidade que caracterizou a sociedade brasileira em seu período colonial ainda fazem-se presentes, impedindo a consolidação plena de instituições e valores da modernidade. Nessa vertente do pensamento social brasileiro, uma pretensa herança patrimonial-patriarcal acaba sutilmente assumindo o caráter de "variável independente", supostamente capaz de explicar, ao longo de toda a história brasileira, as formas e as configurações políticas e sociais que aqui se consolidaram. Conforme essa abordagem, ao aprisionar-nos entre o tradicional e o moderno, aquela herança seria responsável por nossa permanência numa espécie de limbo semimoderno. Mais ou menos explícita nas interpretações propostas por cada um daqueles autores encontra-se a idéia de que no Brasil contemporâneo, Estado, economia e sociedade civil jamais teriam sido capazes de se diferenciar plenamente e, dessa forma, de se dinamizar a partir de lógicas e códigos próprios. Em uma das variantes (Freyre, Holanda, Matta), os domínios públicos são vistos como tendo sido raptados e subjugados à lógica e aos propósitos das esferas de convívio familiar. Em outra (Faoro), é a burocracia estamental e sua dinâmica semi-racionalizada que são vistas como as grandes vilãs de nossa suposta peculiaridade social, política e cultural. Em ambas as variantes, afirma-se primeiramente que o aparato estatal no Brasil veio a se constituir de tal maneira a centralizar (em alguns momentos a monopolizar completamente) tarefas – dentre as quais a produção social da vida material, a reprodução cultural e a resolução de conflitos cotidianos – que em sociedades plenamente modernas teriam lugar em outras instituições e esferas sociais. Em segundo lugar, afirma-se que as esferas públicas permaneceram subsumidas aos, e delineadas por, códigos pessoais e privados, razão pela qual regras impessoais e racionalizadas seriam freqüentemente relegadas a segundo plano. Assim, de acordo com a imagem da sociedade brasileira contemporânea projetada por essa primeira abordagem, a despeito de ter passado por processos de complexificação e modernização, nossa sociedade jamais atingiu o grau e a extensão da diferenciação social, da secularização e da separação entre o público e o privado observados nas "sociedades modernas centrais". Tais características explicariam o status semimoderno da sociedade brasileira contemporânea.

Já para a abordagem em que Prado Jr., Fernandes, Ianni e Cardoso ocupam posições nodais, não se trata mais de acentuar resquícios ibéricos – sejam eles patriarcais ou patrimoniais – na dinâmica da sociedade brasileira contemporânea em seus mais variados âmbitos e dimensões. Para a sociologia da dependência, os processos de modernização experienciados nos últimos dois séculos tiveram intensidade e profundidade suficientes para varrerem de nossa gramática social elementos de ordem tradicional. Isso não significa, porém, que o Brasil tenha incorporado exatamente o mesmo padrão de sociabilidade das ditas "sociedades modernas centrais". É a insuperada condição de "dependência estrutural", marcando a economia brasileira desde os momentos primeiros de sua formação, que acaba por assumir o papel de "variável independente", supostamente capaz de explicar a pretensa particularidade do padrão de sociabilidade que se consolidou entre nós. É, pois, a relação subordinada e periférica ocupada pelo Brasil no sistema capitalista internacional que explicaria o porquê das principais instituições, dos valores e das formas de sociabilidade exclusivamente típicas dos "países centrais" jamais terem se enraizado entre nós na mesma extensão e solidez. Daí que, conforme este segundo viés interpretativo, o caminho tomado em direção à modernidade no Brasil não foi o mesmo da França, dos Estados Unidos e da Inglaterra: o aparato estatal brasileiro teria sido levado a adotar uma postura consideravelmente mais ativa em esferas sociais as mais variadas, a fim de superar insuficiências e catapultar o desenvolvimento nacional. Mais do que nos países centrais, pois, o Estado seria necessariamente chamado a intervir tanto na economia como na política a fim de fazer frente a deficiências estruturais e à incapacidade de setores da sociedade brasileira de executarem tarefas que deles se esperariam em condições de plena autonomia. Ao se tornar fonte autocrática de poder, o aparato estatal teria sufocado o florescimento de organizações civis independentes. Em tais circunstâncias, a normatividade corrente nos países centrais jamais teria vingado no Brasil na mesma extensão e intensidade: por um lado, parte considerável da população permaneceria alienada do mercado de trabalho-livre; por outro, garantias civis e políticas de cunho liberal não teriam encontrado ambiente propício para se enraizarem. Daí os altíssimos índices de desigualdade política, econômica e social, em razão dos quais alguns poucos seriam capazes de fazer valer interesses e demandas particulares em detrimento de outros. Nesse caso, em vez de semimoderno, o Brasil contemporâneo seria a cristalização de uma modernidade periférica.

Ora, quando consideradas do ponto de vista da episteme do discurso sociológico hegemônico da modernidade, as duas abordagens comumente tidas como diametralmente opostas chegam a um diagnóstico bastante similar, ainda que partam de perspectivas bastante diferentes: diferenciação social, racionalização da normatividade e separação entre o público e privado – os três pilares da sociabilidade moderna, de acordo com esse discurso – não teriam se consolidado no Brasil tal e qual o fizeram nos chamados "países modernos centrais". No interior desse terreno cognitivo, pois, nossa condição moderna não seria outra senão uma espécie de desvio em relação às ditas "sociedades centrais da modernidade". Mantendo-se intocada a episteme daquele discurso sociológico hegemônico, não parece restar oultra alternativa interpretativa para além de "semi-" e "periférica".

Parece-me, porém, já ser tempo para questionarmos a acuidade dessas referências cognitivas. É exatamente aqui, no meu entendimento, que é possível ao menos indicar uma possível solução para esse antigo dilema sociológico. Conforme havia apontado anteriormente, uma nova geração de sociólogos brasileiros vem lidando com esses problemas à luz de novos dados empíricos e propostas teóricas recentes. Sugeri, ainda, que Jessé de Souza não teria conseguido superar muitas das limitações daquilo que denomina "sociologia da inautenticidade". A meu ver, o fato de a noção de "modernização seletiva" trabalhada por Souza (2000) ter implícita a idéia de que a modernidade no Brasil é um arranjo moderno "singular", limitado a uma determinada configuração, acaba nos conduzindo à repetição, ainda que sob outra roupagem, da imagem de "desvio inequívoco" embutida nos diagnósticos das duas abordagens do pensamento social brasileiro acima discutidas. Uma saída para esse problema, acredito, é apontada nos trabalhos de José M. Domingues (1999) e Renato Ortiz (1999). Domingues defende a necessidade de se avançar em direção a uma concepção multifacetada de modernidade. Trata-se, para ele, de vislumbrar as instituições modernas em sua dimensão processual, ou seja, como o resultado contingente e historicamente variável dos confrontos entre projetos particulares levados adiante por subjetividades individuais e coletivas. É a partir dessa perspectiva que Domingues considera as formas de sociabilidade que se consolidaram no Brasil contemporâneo: como o resultado de disputas em que certas coletividades foram capazes de fazerem prevalecer seus projetos em detrimento de outros. Ortiz, por sua vez, agumenta que o Brasil contemporâneo deve ser interpretado tendo-se como pano de fundo a noção de "modernidade-mundo". Para ele, atravessamos um momento em que a modernidade deixou de estar confinada a fronteiras nacionais; ao deslocar-se do Ocidente, tal processo pôs em xeque a existência de uma "única matriz moderna". Parece-me, pois, que a modernidade vista como um tipo de sociabilidade histórico e contingente (já que fruto de disputas constantes entre projetos díspares), multifacetado e tendencialmente global abre-nos o caminho para uma alternativa àquele dilema sociológico.

A idéia de uma modernidade multifacetada tem encontrado espaço cada vez maior em discussões recentes em torno da noção de modernidades múltiplas.7 7 Ver, por exemplo, Alexander (1995); Al-Azmeh (1996); Appadurai (1995); Berger e Huntington (2002); Eisenstadt (2000); Featherstone, Lash e Robertson (1995); Göle (2000); Knobl (2003); Wittrock (2000). Conforme sugere Nilüfer Göle, ao destacar inúmeros aspectos da modernidade ocidental que por muito tempo permaneceram reprimidos, marginalizados ou mesmo esquecidos, a noção de modernidades múltiplas acaba por converter-se em "um desafio a um só tempo histórico e intelectual a normas analíticas estabelecidas" (2000, p. 91). Isso porque, como salienta Eisenstadt, tal noção propõe-se a questionar o pressuposto – compartilhado, de um lado, pelas teorias sociológicas clássicas de Marx, Durkheim e Weber e, de outro, pelas teorias de modernização dos anos de 1950 – pelo o qual "o programa cultural da modernidade desenvolvido na Europa moderna e as constelações institucionais básicas que lá emergiram iriam inexoravelmente dominar todas as sociedades modernas ou em processo de modernização" (2000, p. 1). Eisenstadt salienta que, após os momentos mais incipientes da modernidade, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, foi possível observar uma considerável multiplicidade de variações institucionais e de padrões ideológicos em sociedades (ocidentais ou não) em processo de modernização. Ainda que os resultados fossem distintamente modernos, teriam contribuído sobremaneira para tais variações as tradições, as premissas culturais e as experiências históricas (muitas vezes até mesmo antiocidentais e antimodernas) das diferentes sociedades, para as quais, segundo Eisenstadt, o projeto ocidental original permaneceu sendo o ponto de referência crucial.

Se levarmos as críticas de Eisenstadt (2000) e Göle (2000) às últimas consequências, deveremos admitir que mesmo entre as chamadas "sociedades modernas centrais" – comumente vistas como "o berço da modernidade" – houve variações consideráveis nos padrões de sociabilidade que lá se institucionalizaram. A incapacidade daquela episteme de apreender tais variações foi tal que o discurso sociológico hegemônico silenciou-se diante delas. Ora, ao se referir à porção norte do continente americano e à Europa Ocidental, Wittrock nos lembra que

[...] não é verdade que todos esses países tiveram tipos similares de instituições políticas e econômicas [...]. Ao longo dos últimos dois séculos, ocorreram diferenças profundas entre os países ocidentais na maneira pela qual a sociedade, a economia de mercado e as formas políticas modernas melhor se organizaram (2000, p. 33).

É exatamente este ponto que gostaria de enfatizar, isto é, em vez de desconsideradas, essas diferenças devem ser salientadas por aqueles que têm como desafio compreender a modernidade no momento em que ela se torna elemento central da globalização.

A discussão em torno da noção de modernidades múltiplas revela-se, pois, promissora caso queiramos evitar estereótipos e retratos congelados das diversas experiências modernas e, ao mesmo tempo, tirar proveito do potencial analítico da episteme em que opera o discurso sociológico hegemônico da modernidade. O grande desafio, então, parece-me ser o de equipar aquela episteme, a fim de que ela tenha maior amplitude interpretativa e vigor comparativo. Vale lembrar uma vez mais que no discurso sociológico hegemônico da modernidade – no interior do qual Marx, Weber, Durkheim, Simmel e, mais recentemente, Parsons, Luhmann e Habermas ocupam posições nodais –– as chamadas "sociedades modernas centrais" são tidas como aquelas em que: a) Estado, mercado e sociedade civil ocupam necessariamente esferas plenamente diferenciadas entre si, reguladas exclusivamente por códigos próprios e dinamizadas por lógicas particulares; b) a normatividade que regula as relações entre indivíduos e deles com o Estado e o mercado são plenamente desencantadas além de protegidas de influências de concepções de mundo e sistemas normativos não-racionalizados; e c) os âmbitos público e privado, por sua vez, são também plenamente separados, cada um dos quais ordenado por códigos e lógicas particulares, comunicando-se apenas e tão-somente através de canais apropriados que mantêm inalterados os termos e as regras de cada um dos domínios.

Não creio que seja necessário descartar por completo essa estrutura conceitual. Contudo, à luz de evidências empíricas que se acumularam nos últimos anos e do debate em torno da idéia de modernidades múltiplas, penso ser necessária uma apropriação crítica: ao pressupor que esses três pilares da sociabilidade moderna são invariavelmente experienciados pelas chamadas "sociedades modernas centrais", tal episteme revela-se incapaz de codificar variações em cada um dos pilares. Trata-se de um problema central na medida em que essas variações são vivenciadas não só pelas chamadas "sociedades modernas tardias", como também pelas próprias "sociedades centrais". Ao operar no interior desse território epistemológico, as versões nacionais do discurso sociológico hegemônico da modernidade são conduzidas a interpretar e classificar a sociedade brasileira como invariavelmente "peculiar" em relação às supostas "sociedades centrais" – seja sob o rótulo de "semimoderna", "periférica", ou mesmo "singular" –, uma vez que: a) Estado, mercado e sociedade civil são tidos como estruturalmente entrelaçados; b) a normatividade que as permeia é vista como passível de influências de concepções de mundo e sistemas de normas apenas parcialmente racionalizados; e finalmente, c) seus âmbitos de ação público e privado são, por sua vez, percebidos como interconectados. Todos esses traços seriam a prova cabal de nosso "desvio". A sociologia clássica e a nossa sociologia da inautenticidade operam, então, como professias que se auto-realizam: ao tentar explicar o "centro", confirma-se a "margem" como um desvio do primeiro e vice-versa, sem qualquer espaço para questionamentos.

Como disse, penso que soluções para tais dificuldades cognitivas demandam um esforço de derivação daquelas referências conceituais. A versão ampliada que defendo acentua a existência de: a) padrões variados de diferenciação/complexificação social; b) padrões variados de secularização; e c) padrões variados de separação entre domínios públicos e privados. É aqui que se soma à presente consideração crítica a dimensão contingente da sociabilidade moderna: esses padrões variados devem ser considerados configurações passíveis de serem assumidas por diversas sociedades, em momentos históricos diferentes, não como resultado de tendências (sejam elas culturais, sejam econômicas) invariáveis, mas sim do confronto entre projetos sociais, demandas, interesses e visões de mundo díspares que disputam entre si a liderança na organização da sociedade. Dessa maneira, configurações sociais históricas e contingentes, por excelência, deixarão de correr o risco de serem ossificadas e projetadas tanto no passado como no futuro e no presente da sociedade brasileira e de outros contextos modernos.

No tocante aos padrões variados de diferenciação/complexificação social, inspiro-me no estudo de Michael Mann (1996) a respeito das cinco diferentes estratégias de construção da cidadania: a liberal, a reformista, a monárquica, a autoritária socialista e a fascista. Em decorrência do foco particular de meu interesse, proponho a transmutação dessas rotas para cinco cenários-ideais de complexificação social: 1) padrão de diferenciação liberal-capitalista; 2) padrão de diferenciação social-democrático; 3) padrão de diferenciação capitalista-corporativo; 4) padrão de diferenciação autoritário (socialista ou capitalista); e 5) padrão de diferenciação totalitário (socialista ou fascista). Apesar de esses cinco cenários não esgotarem todas as possibilidades teóricas e empíricas de diferenciação social, eles nos permitem vislumbrar o amplo escopo de configurações Estado/mercado/sociedade civil que, ao menos em princípio, todas as sociedades modernas são passíveis de experimentar. É notória a existência de uma espécie de gradiente de diferenciação entre eles: configurações liberal-capitalistas são aquelas em que Estado, mercado e sociedade civil se encontram mais marcadamente desvinculados entre si, ao passo que configurações totalitárias são aquelas em que se observa maior entrelaçamento entre cada uma dessas esferas sociais. Duas observações importantes devem ser feitas aqui: primeiramente, não se pode qualificar nenhum desses cenários como mais ou menos representativo da modernidade; em segundo lugar, nenhuma sociedade moderna está fadada a se estruturar, ao longo de sua história, conforme apenas um desses padrões de diferenciação social.

Quanto às variações nos padrões de secularização da normatividade, beneficio-me dos estudos de José Casanova (1994, 2001) a respeito dos papéis públicos e privados de organizações e concepções de mundo religiosas em diversas formações sociais contemporâneas. Ao refutar a noção comumente aceita de que a modernidade fez-se necessariamente acompanhar do desaparecimento total e completo de visões de mundo religiosas, ou ao menos de seu recolhimento em domínios privados, Casanova chama a atenção para três caminhos históricos observáveis no mundo moderno: 1) configurações em que associações religiosas têm papel ativo na vida pública; 2) arranjos em que concepções religiosas se mantêm vivas e atuantes fundamentalmente em âmbitos sociais privados; e, finalmente, 3) casos nos quais associações e concepções religiosas não têm peso marcante tanto em esferas sociais públicas como em âmbitos privados. Também aqui não há por que afirmar categoricamente que qualquer um dos cenários indicados seja mais ou menos moderno que seus pares.

Por fim, no tocante aos variados padrões de separação entre o público e o privado, baseio-me no estudo de Bryan Turner (1990) em relação às diferentes definições e papéis dos dois domínios na dinâmica social moderna: a) o privado como âmbito de ação de indivíduos movidos pela busca de interesses subjetivamente definidos; b) o privado como domínio de códigos familiais de sociabilidade; c) o público entendido como resultante da vontade geral; e d) o público como esfera de sociabilidade controlada e definida pelo Estado. De maneira semelhante, nenhum dos tipos assinalados por Turner é tido como representativo da modernidade em maior ou menor grau.

Ao menos em princípio, essas variações em cada um dos pilares da sociabilidade moderna são passíveis de se combinarem e de adquirirem as configurações mostradas na Figura 1.


A idéia central implícita no quadro acima delineado é a seguinte: não há por que descartar a possibilidade de todas as combinações às quais me referi serem, ao menos em princípio, experienciáveis por toda e qualquer formação social moderna. Ao descartarmos a existência de uma lógica imanente ao social pretensamente capaz de "determiná-lo em última instância" e de conduzi-lo a esta ou àquela configuração em favor da idéia da constituição do social como um processo contingente (e não aleatório) (Laclau e Mouffe, 1985; Laclau, 1996), não há por que não abrir o discurso sociológico da modernidade para a possibilidade de várias combinações dos elementos acima sugeridos. Vale a pena indicar, ainda que superficialmente, algumas dessas combinações vivenciadas em diferentes contextos por algumas formações modernas8 8 Para traçar esse quadro esquemático, baseei-me na seguinte literatura: Agh (1994); Brubaker (1992); Finn (1991); Fraser e Gordon (1994); Gohn (1997); Gorjanicyn (2000); Holston e Caldeira (1998); Hughey (1984); Johnston (1992); Kalberg (1993); Krieken (2000); Marshall e Bottomore (1992); Soysal (1994); Somers (1993); Turner (1993); Verral (2000). (Figuras 2, 3 e 4).




Mas há ainda algo que gostaria de enfatizar uma vez mais, a saber, a necessidade de se evitar quaisquer traços "essencializantes" em esforços intepretativos e explicativos de contextos modernos. Não me parece haver nada de mais anti-sociológico do que apostar na existência de uma lógica que condiciona o social "em última instância". Ao entender a constituição do social como um processo contingente decorrente de disputas entre forças sociais, penso ser necessário conceber contextos modernos como o resultado de conflitos entre projetos, demandas, interesses e concepções de mundo que lutam entre si pelo controle de seu ordenamento. Dessa forma, descarta-se a idéia de que a sociedade brasileira moderna seja, em suas várias dimensões, a manifestação de uma pretensa herança cultural peculiar ou de sua imutável condição de dependência econômica (em ambos os casos, espécies de "determinantes em última instância"). Suspende-se, por conseguinte, a imagem pela qual um único tipo de configuração teria marcado a sociedade brasileira desde sua entrada na modernidade. De fato, um breve olhar sobre alguns dos diferentes períodos de nossa recente história (1889-1930, 1930-1945, 1946-1964, 1964-1985, 1985-2005) é facilmente capaz de nos revelar diferentes arranjos políticos, institucionais, normativos e econômicos. Torna-se concebível, pois, a um só tempo falar de modernidade no Brasil e deixar para trás a noção da suposta presença invariável de traços ou elementos que teriam orientado coerente e continuadamente o devir histórico da sociedade brasileira a despeito da existência ocasional e marginal de contra-tendências. Em vez de coerência e inexorável continuidade – vale lembrar, sutilmente embutidas em expressões como "a singular modernidade brasileira" –, é preciso que reconheçamos que a definição daquelas várias configurações foi e permanence sendo fruto de disputas e confrontos entre projetos, interesses, demandas e visões de mundo díspares às vezes passíveis de serem combinadas, outras vezes completamente incompatíveis.9 9 Como bem nos lembra Eisenstadt (2000), antinomias internas e contradições estiveram presentes na modernidade desde seu início no Ocidente, daí continuamente emergindo discursos críticos e contestações políticas que se enfrentraram para definir as instituições a serem cristalizadas. Ora, como sugere Eisenstadt, a multiplicidade institucional e os diferentes padrões ideológicos que caracterizam o mundo moderno

[...] são levados adiante por atores sociais específicos fortemente conectados com ativistas sociais, políticos, intelectuais e movimentos sociais em busca de diferentes programas de modernidade, portadores de visões diferentes a respeito daquilo que faz modernas as suas sociedades (2000, p. 2).

É, pois, a idéia de contingência que deve orientar esforços interpretativos, não da suposta "semi-", "periférica" ou "singular modernidade brasileira", mas sim da "modernidade no Brasil". Assim sendo, a alternativa que proponho para o dilema sociológico brasileiro demanda, antes de tudo, um esforço analítico por meio do qual as diversas combinações e transformações por que passou (ou por ventura poderá vir a passar) a sociedade brasileira (tanto quanto as chamadas "sociedades modernas centrais") sejam devidamente apreendidas e consideradas. Demanda, em segundo lugar, a consideração de tais transformações não como derivações de uma suposta herança cultural ou posição econômica no cenário econômico internacional, mas, sim, como decorrentes de disputas entre projetos e demandas que competem entre si pela direção da organização social, política, econômica e normativa e que trazem em seu seio concepções variadas do padrão de sociabilidade a ser institucionalizado.

Para finalizar, gostaria de salientar um último ponto que indiquei na introdução e que me parece fundamental para a discussão em torno do status da modernidade no Brasil. Trata-se do argumento segundo o qual a modernidade veio a se tornar um tipo de sociabilidade tendencialmente global. Um número crescente de pesquisas10 10 Ver nota 8. tem salientado que mesmo em seus momentos incipientes o tipo moderno de sociabilidade jamais se consituiu única e exclusivamente no interior de fronteiras nacionais fixas e por meio de uma rota coerente e linear. Historicamente, experiências modernas as mais variadas (inclusive as das chamadas "sociedades centrais") surgiram e se firmaram ao longo de trocas (por vezes pacíficas, outras consideravelmente conturbadas) com outras formas de sociabilidade (não tão diferenciadas, não tão secularizadas, e nas quais público e privado não se encontravam separados de forma tão acentuada) e mediante conflitos envolvendo projetos políticos, econômicos, normativos e culturais divergentes, cujas origens múltiplas freqüentemente trascendiam fronteiras nacionais e mesmo continentais. Nesse exato sentido, a hipótese da existência de "rotas nacionais em direção à modernidade"11 11 Vale lembrar, dois dos estudos clássicos que se apoiaram em tal hipótese foram Bendix (1996) e Moore (1966). tem se mostrado cada vez mais problemática mesmo quando referida única e exclusivamente aos momentos iniciais da experência moderna. Torna-se ainda mais questionável quando se leva em consideração o fato de que as instituições, os valores, as noções normativas e os produtos culturais portadores de componentes-chave da sociabilidade moderna se expandiram em escala global. Não se trata de afirmar que modernidade e globalização se tornaram um único e mesmo fenômeno. Globalização, entendida como a condição na qual "o mundo se tornou parte de uma mesma humanidade e em que todas as sociedades se tornaram parte de um mesmo sistema mundial",12 12 Ver, a esse respeito, entrevista de José Casanova em Kumar e Makarova (2002, pp. 91-108). Para uma definição formal de globalização na direção apontada por Casanova, ver Held et al., segundo os quais a globalização é "um processo (ou conjunto de processos) que corporifica uma transformação na organização de relações sociais e de transações - passível de ser avaliada em termos de sua extenção, intensidade, velocidade e impacto -, geradora de fluxos transcontinentais e interregionais e de redes de atividade, interação e exercício de poder" (1999, p. 16). é, por certo, conceitualmente mais ampla do que a noção de modernidade: a globalização refere-se a um cenário em que coexistem, ainda que de maneira assimétrica, formas diversas de sociabilidade além da moderna.13 13 Ver Pieterse, segundo o qual a globalização, entendida como a intensificação de relações sociais por todo o mundo, deve ser vista "para além do raio da modernidade/ocidentalização" (1995, p. 48). Mas também é verdade que as formas societárias modernas têm se expandido e feito valer o seu ímpeto globalizante,14 14 A esse respeito, concordo mais uma vez com José Casanova, para quem "a globalização é contígua à modernidade, ao sistema capitalista mundial e ao sistema mundial de estados-nações" (Kumar e Makarova, 2002, p. 92). tornando-se cada vez mais capazes de penetrar os mais diversos territórios e experiências sociais para além de fronteiras locais e nacionais.15 15 Wittrock (2000) caracteriza o cenário atual da modernidade como sendo o de "uma condição global", em que, por mais variadas que sejam, formas institucionais e construções conceituais típicas da modernidade não só se tornaram globalmente relevantes, como também se tornaram princípios estruturantes por detrás de projetos institucionais em escala global.

Esse conjunto de idéias tem implicações importantes para os diagnósticos de nossa "sociologia da inautenticidade". Uma vez entendida como um tipo de sociabilidade cuja dinâmica é marcadamente contingente ao mesmo tempo em que tendencialmente global, tal noção de modernidade ajuda a pôr em xeque a hierarquia centro/periferia, implícita no discurso hegemônico da sociologia da modernidade. Isso porque, em condições globais, mesmo que as chamadas "sociedades modernas centrais" possam ainda ser rotuladas como "iniciadoras históricas" da modernidade, não podem mais serem tidas como propagadoras e disseminadoras exclusivas da sociabilidade moderna. Conseqüentemente, torna-se inapropriado atribuir às "sociedades modernas tardias" o título de receptoras passivas e imperfeitas de formas de vida e concepções de mundo modernas. Não se trata de negligenciar os contextos específicos em que a experiência moderna deu seus primeiros passos. Mas me parece bastante "essencializar" tais contextos, congelando-os no tempo e espaço e vinculando-os única e exclusivamente a certos aspectos culturais e/ou econômicos pretensamente determinantes em última instância e irreprodutíveis. Torna-se fundamental, então, a noção pela qual o processo de difusão desse tipo peculiar de sociabilidade se fez acompanhar de imediato de um processo de decentralização de sua produção e disseminação. Tornam-se, assim, substancialmente contestáveis correspondências do tipo iniciadores da modernidade (centro) = disseminadores "autênticos" e "sociedades modernas tardias" (periferia) = receptores "inautênticos", implícitas no discurso hegemônico e em nosso pensamento sociológico clássico. Essas correspondências entram em colapso quando se aceita, primeiramente, a idéia elementar segundo a qual nenhuma recepção de valores, de referências normativas ou de padrões político-institucionais, entre outros, foi ou ainda é um processo passivo; em segundo lugar, caem por terra quando se reconhece que, a despeito da existência de relações de poder assimétricas no cenário internacional, aqueles aos quais freqüentemente se atribui o rótulo de receptores inautênticos foram e continuam sendo centros dinâmicos geradores e transformadores da modernidade, capazes de impactar o padrão de sociabilidade experienciado pelos supostos iniciadores da modernidade. Uma vez mais: não se trata de negar o caráter assimétrico da globalização, mas daí para se atribuir um status moderno privilegiado a um número restrito de sociedades parece-me, antes de tudo, negligenciar variações consideráveis de configurações, mesmo entre as (no meu entender problematicamente) chamadas "sociedades centrais da modernidade". Parece-me, ainda, reforçar noções lineares e "essencializantes" da constituição do social.

É precisamente nessa direção que as disputas em torno do padrão de sociabilidade no Brasil contemporâneo devem ser pensadas. Não há por que lidar com os projetos e as demandas em confronto como momentos de nossa "semimodernidade" ou ainda de nossa "modernidade periférica". Caso aceitemos o argumento de que a vinda da família Real portuguesa ao Brasil-colônia é o marco simbólico de nossa modernidade – momento de emergência de uma economia de mercado entre nós além da implementação de regras político-administrativas impessoais e da adoção do individualismo moral como código de valores dominante (Souza, 2000) –, pode-se então afirmar que os principais projetos de sociedade, as várias demandas, as concepções de mundo e os interesses que, desde aquele momento, brigaram pela liderança no processo de organização da sociedade brasileira, operaram, desde então, dentro de um universo cognitivo e prático-moral moderno por excelência.16 16 Por universo cognitivo entendo um conjunto de conceitos e instrumentos interpretativos que ajudam a compreender e codificar a "realidade". De maneira geral, o tipo de universo cognitivo moderno é aquele em que a ciência e outras concepções de mundo e sistemas explicativos desencantados ocupam os lugares mais privilegiados em esforços interpretativos e demais tentativas de se definir o que é a "realidade". Quanto à noção de universo prático-moral, refiro-me ao conjunto de preceitos e códigos normativos que ajudam a conceber como a "realidade social" deve ser. Genericamente, na modernidade, tais preceitos são vistos não como emanações de Deus ou qualquer ordem supernatural, mas, sim, como construções humanas racionalmente justificáveis e passíveis de serem modificadas pela sociedade aos quais se referem. Por conseguinte, seria também equivocado pensar tais projetos, demandas, interesses e concepções de mundo em confronto como componentes em potencial de um "tipo de sociabilidade moderna singularmente brasileira". Ora, sendo a modernidade uma forma de sociabilidade com ímpeto globalizante, disputas "locais/nacionais" são, elas mesmas, perpassadas por processos e ideários globais.17 17 Vale lembrar aqui que a literatura em torno do fenômeno da globalização freqüentemente acentua os impactos "locais" de processos globais. A esse respeito, ver, por exemplo, Beck (2000). Ao mesmo tempo em que chama a atenção para o caráter multidimensional e multifacetado da globalização e de seus impactos (econômicos, políticos, institucionais, normativos, culturais, ambientais, entre outros), Beck argumenta que "a globalização sempre envolve um processo de localização" ( Idem, p. 47). Uma perspectiva ainda mais radical no tocante aos impactos locais de processos globais pode ser encontrada em Hannerz (1996). Daí que, em condições modernas, apenas em sentido muito restrito é legítimo atribuir às disputas "locais" em torno de padrões de sociabilidade origens e dinâmicas peculiarmente nacionais. Não se trata de afirmar que, na modernidade, essas disputas se tornam meros reflexos de processos tendencialmente globais. Não se trata, ainda, de negar que cada nível de experiência, seja ele "local", "regional", seja ainda "nacional", apresenta certo grau de autonomia. Contudo, uma vez estruturados e organizados por meio de configurações político-institucionais e normativas modernas, todos aqueles níveis permanecem determinantemente interconectados a processos e imaginários que transcendem suas restritas fronteiras. Afinal de contas, as próprias maneiras como tais problemas e questões são definidos, conceituados e tratados se dão por meio de sistemas explicativos e normativos cujas origens e dinâmicas transcendem as escalas em que se manifestam e se desenrolam. Não podem, pois, eles mesmos serem vislumbrados como meras manifestações locais e, conseqüentemente, elementos singulares de um tipo de sociabilidade nacional.

Comentários finais

A idéia de modernidade entendida como um tipo de sociabilidade multifacetada, constituída ao longo de disputas contingentes entre projetos, interesses e visões de mundo num contexto crescentemente globalizado, ajuda-nos a encontrar uma possível alternativa para o dilema que há muito intriga duas das principais abordagens no interior do pensamento social brasileiro. Em vez de reduzir as diversas configurações políticas, econômicas, institucionais e sociais experienciadas ao longo da recente história brasileira a um supostamente único tipo de configuração moderna (pré-determinado por tendências culturais e/ou econômicas), abre-se caminho alternativo para que se considere como as disputas que se desenrolaram entre nós vieram a se traduzir em padrões variados de diferenciação/complexificação social, de secularização e de separação público/privado no decorrer de nossa história. Acima de tudo, procurei mostrar que lidar com o Brasil contemporâneo como um exemplo de "semimodernidade", de "modernidade periférica", ou ainda como um "caso singular de modernidade" (termos que trazem em si a imagem de "desvio") implica reforçar imagens congeladas e "essencializantes" não só da própria experiência brasileira, como também da dinâmica de sociedades tidas como inequivocamente localizadas no "centro da modernidade".

Por fim, o presente artigo sugere uma ampla agenda de pesquisa. Primeiramente, aponta para a necessidade de se comparar os vários momentos de nossa história recente à luz da versão ampliada da episteme do discurso sociológico hegemônico da modernidade que procurei aqui desenvolver. Caberia, pois, reconstruir quais projetos, interesses e visões de mundo na República Velha, na Era Vargas, na República Populista, na Ditadura Miliar e no pós-1985 se confrontaram na definição da configuração de cada um dos pilares da sociabilidade moderna e como tais disputas se desenrolaram. Em segundo lugar, caberia levar adiante um esforço comparativo envolvendo as várias configurações brasileiras e as de outras sociedades, pensando-as num contexto cada vez mais global.

Notas

BIBLIOGRAFIA

Artigo recebido em novembro/2004

Aprovado em agosto/2005

Sergio B. F. Tavolaro é doutor em sociologia pela New School for Social Research e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Foi pesquisador-visitante na Universidade do Texas (Austin) e Fellow no Transregional Center for Democratic Studies (New School). É autor de Movimento ambientalista e modernidade: sociabilidade, risco e moral (São Paulo, Annablume/Fapesp, 2001). E-mail: TavoS972@newschool.edu.

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  • 1
    A esse respeito, ver Avritzer (1993); Avritzer e Domingues (2000); Costa (1994); Domingues (1999, 2002a e b); Neves (1996); Silva
    et al. (2002); Souza (2000, 2004). Sintomático, ainda, da efervescência dessa problemática em nossa recente produção sociológica é a existência de dois seminários temáticos em que tais questões foram tratadas de maneira mais explícita no XXVIII Encontro Anual da Anpocs, quais sejam, o supracitado "Da Modernidade Global às Modernidades Múltiplas" e o "Dilemas da Modernidade Periférica". Por fim, vale lembrar que elementos dessa mesma problemática se encontram difusos em outras áreas de pesquisa nas ciências sociais brasileiras, ainda que com diferentes designações, tais como, "formação do Estado", "religiosidade", "sociedade civil e movimentos sociais", "sexualidade e intimidade", entre outros.
  • 2
    Por
    episteme entendo uma grade geral de conceitos e noções que delimita o terreno cognitivo no interior do qual operam determinadas teorias explicativas e interpretativas da "realidade".
  • 3
    Guardadas as particularidades tão bem conhecidas, pode-se dizer que esse território cognitivo compõe o denominador comum de Karl Marx, Max Weber, Émile Durkheim, Georg Simmel e alguns dos mais influentes sociólogos contemporâneos, tais como Talcott Parsons, Niklas Luhmann e Jürgen Habermas. É a predominância dessa referência epistêmica nas produções sociológicas em escala global que me conduz a denominá-las elementos centrais de um "discurso sociológico hegemônico da modernidade". Procurei sugerir como elementos centrais das teorias de cada um deles internalizam as noções de
    diferenciação social, secularização e separação público/privado (Tavolaro, "Introdução", 2004).
  • 4
    Isso explicaria a manutenção de traços pré-modernos nas instituições políticas brasileiras, em que "as facções são contituídas à semelhança das famílias, precisamente das famílias de estilo patriarcal, onde os vínculos biológicos e afetivos que unem ao chefe os descendentes, colaterais e afins [...] hão de ponderar sobre as demais considerações. Formam assim, como todo indivisível cujos membros se acham associados, uns aos outros, por sentimentos e deveres, nunca por interesses e idéias" (Holanda, 1994, p. 47).
  • 5
    Para Faoro, é exatamente isso que nos diferenciaria dos países que emergiram da experiência colonial anglo-saxônica: "Os ingleses transmigrados formaram sua própria organização política e administrativa [...]. Não os contaminou a presença vigilante, desconfiada e escrutadora, do funcionário reinol: por sua conta, guardadas as tradições de
    self-government e de respeito às liberdades públicas, construíram as próprias instituições. [...] O inglês fundou na América uma pátria, o português um prolongamento do Estado" (Faoro, 2001, pp. 145-146).
  • 6
    Prova disso seria a ausência de partidos políticos representativos das classes sociais, da divisão harmoniosa entre os poderes republicanos e de garantia efetiva de direitos individuais (Cardoso, 1972).
  • 7
    Ver, por exemplo, Alexander (1995); Al-Azmeh (1996); Appadurai (1995); Berger e Huntington (2002); Eisenstadt (2000); Featherstone, Lash e Robertson (1995); Göle (2000); Knobl (2003); Wittrock (2000).
  • 8
    Para traçar esse quadro esquemático, baseei-me na seguinte literatura: Agh (1994); Brubaker (1992); Finn (1991); Fraser e Gordon (1994); Gohn (1997); Gorjanicyn (2000); Holston e Caldeira (1998); Hughey (1984); Johnston (1992); Kalberg (1993); Krieken (2000); Marshall e Bottomore (1992); Soysal (1994); Somers (1993); Turner (1993); Verral (2000).
  • 9
    Como bem nos lembra Eisenstadt (2000), antinomias internas e contradições estiveram presentes na modernidade desde seu início no Ocidente, daí continuamente emergindo discursos críticos e contestações políticas que se enfrentraram para definir as instituições a serem cristalizadas.
  • 10
    Ver
    nota 8 8 Para traçar esse quadro esquemático, baseei-me na seguinte literatura: Agh (1994); Brubaker (1992); Finn (1991); Fraser e Gordon (1994); Gohn (1997); Gorjanicyn (2000); Holston e Caldeira (1998); Hughey (1984); Johnston (1992); Kalberg (1993); Krieken (2000); Marshall e Bottomore (1992); Soysal (1994); Somers (1993); Turner (1993); Verral (2000). .
  • 11
    Vale lembrar, dois dos estudos clássicos que se apoiaram em tal hipótese foram Bendix (1996) e Moore (1966).
  • 12
    Ver, a esse respeito, entrevista de José Casanova em Kumar e Makarova (2002, pp. 91-108). Para uma definição formal de globalização na direção apontada por Casanova, ver Held
    et al., segundo os quais a globalização é "um processo (ou conjunto de processos) que corporifica uma transformação na organização de relações sociais e de transações - passível de ser avaliada em termos de sua extenção, intensidade, velocidade e impacto -, geradora de fluxos transcontinentais e interregionais e de redes de atividade, interação e exercício de poder" (1999, p. 16).
  • 13
    Ver Pieterse, segundo o qual a globalização, entendida como a intensificação de relações sociais por todo o mundo, deve ser vista "para além do raio da modernidade/ocidentalização" (1995, p. 48).
  • 14
    A esse respeito, concordo mais uma vez com José Casanova, para quem "a globalização é contígua à modernidade, ao sistema capitalista mundial e ao sistema mundial de estados-nações" (Kumar e Makarova, 2002, p. 92).
  • 15
    Wittrock (2000) caracteriza o cenário atual da modernidade como sendo o de "uma condição global", em que, por mais variadas que sejam, formas institucionais e construções conceituais típicas da modernidade não só se tornaram globalmente relevantes, como também se tornaram princípios estruturantes por detrás de projetos institucionais em escala global.
  • 16
    Por
    universo cognitivo entendo um conjunto de conceitos e instrumentos interpretativos que ajudam a compreender e codificar a "realidade". De maneira geral, o tipo de universo cognitivo
    moderno é aquele em que a ciência e outras concepções de mundo e sistemas explicativos desencantados ocupam os lugares mais privilegiados em esforços interpretativos e demais tentativas de se definir o que é a "realidade". Quanto à noção de
    universo prático-moral, refiro-me ao conjunto de preceitos e códigos normativos que ajudam a conceber como a "realidade social" deve ser. Genericamente, na modernidade, tais preceitos são vistos não como emanações de Deus ou qualquer ordem supernatural, mas, sim, como construções humanas racionalmente justificáveis e passíveis de serem modificadas pela sociedade aos quais se referem.
  • 17
    Vale lembrar aqui que a literatura em torno do fenômeno da globalização freqüentemente acentua os impactos "locais" de processos globais. A esse respeito, ver, por exemplo, Beck (2000). Ao mesmo tempo em que chama a atenção para o caráter multidimensional e multifacetado da globalização e de seus impactos (econômicos, políticos, institucionais, normativos, culturais, ambientais, entre outros), Beck argumenta que "a globalização sempre envolve um processo de
    localização" (
    Idem, p. 47). Uma perspectiva ainda mais radical no tocante aos impactos locais de processos globais pode ser encontrada em Hannerz (1996).
  • *
    O presente artigo é uma versão modificada do texto apresentado no XXVIII Encontro Anual da Anpocs. Agradeço aos organizadores e participantes do Seminário Temático "Da Modernidade Global às Modernidades Múltiplas" pelos valiosos comentários e sugestões, muitos dos quais me esforcei por incorporar na presente versão. Evidentemente, isento a todos de responsabilidade quanto às limitações do artigo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Abr 2007
    • Data do Fascículo
      Out 2005

    Histórico

    • Aceito
      Ago 2005
    • Recebido
      Nov 2004
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    E-mail: anpocs@anpocs.org.br