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Interpretando significados de ruas do passado

RESENHAS

Interpretando significados de ruas do passado

Heitor Frúgoli Jr.

Fraya FREHSE.O tempo das ruas na São Paulo de fins do Império. São Paulo, Edusp, 2005. 271 páginas.

Em resposta a críticas de Perry Anderson a seu livro Tudo que é sólido desmancha no ar (1986), Marshall Berman defendia a necessidade de um mergulho radical na reconstituição da vida cotidiana daqueles inseridos no torvelinho da modernidade, frisando uma especial atenção aos sinais que vêm das ruas (1987). Os ensaios densos de Berman, com ênfase nas mudanças socioculturais visíveis nos espaços públicos de metrópoles em distintos processos de modernização – Paris, Petersburgo, Nova York – repercutiam então em vários campos de estudo, embora se possa dizer que sua leitura dos bulevares parisienses muito tenha retomado do texto clássico de Walter Benjamin sobre a Paris oitocentista (1985 [1955]1 1 Escrito em 1935, mas publicado somente vinte anos depois, segundo Kothe (1985, p. 9). ).

Interessante lembrar que no Brasil, o escritor João do Rio (1881-1921) já havia assumido a própria condição de flanêur,2 2 Com a proposta de um "perambular inteligente" (p. 51), tal qual Charles Baudelaire, cuja ótica poética iluminou, como se sabe, a perspectiva de Benjamin sobre o contexto parisiense. a partir da qual produziu crônicas jornalísticas sobre a vida das ruas do Rio Janeiro da Belle Époque, traçando a fisionomia de seus tipos urbanos marginalizados, pobres, negros e mestiços, praticantes de um sem-número de "pequenas profissões", bem como de atividades festivas e religiosas, cujos artigos reunidos resultaram em A alma encantadora das ruas (1997 [1908]). Curiosamente, seus escritos sobre São Paulo, que visitou por várias vezes, caracterizam-se por cenários triunfantes que revelam muito mais de si (e de suas relações com o Partido Republicano Paulista) do que da própria cidade (Schapochnik, 2004, pp. 11-18).

Nesse campo de abordagens sobre os espaços urbanos e seus atores sociais como contextos peculiares para investigações sobre o moderno, a recente publicação do livro de Fraya Frehse, O tempo das ruas na São Paulo de fins do Império (baseado em dissertação de mestrado defendida na USP) oferece uma contribuição antropológica original, por meio de uma etnografia de fôlego de ruas situadas num passado singular – marcado a princípio pelo início da passagem de São Paulo à condição de cidade moderna –, cujo olhar de estranhamento desvela novos ângulos sobre o tema.

Isso começando pelo próprio conceito de modernidade, que, tantas vezes tomada como pressuposto intrínseco ao urbano, é aqui alvo de uma problematização sistemática, com base na contribuição teórica de autores como Marshall Sahlins, cujos enfoques situados nas dinâmicas de mediação entre estrutura e conjuntura levam-no a propor, sinteticamente, que a transformação de uma cultura é também o modo de sua reprodução (1990).

Tendo em vista tal objeto, cabe ressaltar certos diálogos estabelecidos entre antropologia e história (, bem como registrar interlocuções entre antropologia e sociologia, de forte tradição nos estudos sobre a cidade). Ao olhar para a diversidade cultural constitutiva dos contextos urbanos, a autora traduz a mesma numa diversidade de historicidades, o que lhe permite analisar os grupos sociais – situados de modo desigual e hierárquico no mesmo espaço público – como regidos ou informados por diferentes representações de temporalidade. Princípio esse que se exacerba nas ruas da época, marcadas por gradativas mudanças históricas em curso, impulsionadas pela economia do café, mas cujas alterações urbanísticas e arquitetônicas não podem se confundir com os modos pelos quais os habitantes se apropriavam e significavam tal experiência.

Trata-se, portanto, de captar uma determinada historicidade dessa urbanização – "uma história que segue um ritmo próprio" (p. 233) –, presente num (des)encontro de representações diversas e inseridas numa totalidade a ser parcialmente reconstituída pela antropóloga, que o faz inicialmente convidando o leitor para um passeio imaginário por ruas, becos, ladeiras, largos, várzeas e jardins da cidade (p. 95), nos quais se pode vislumbrar tanto os pobres, cuja maioria permanece aqui e ali, imersa em atividades de sobrevivência, como a figura do "transeunte" (abordada principalmente ao longo do capítulo 4), protagonista de um tipo específico de circulação pela cidade que o tornaria o símbolo central do moderno – dotado que era de atributos éticos e estéticos (p. 227).

O período enfocado pela autora – por volta de 1860 a 1889 – configura particularidades ao estudo, dados os abismos entre os processos de modernização urbana em São Paulo e os das metrópoles européias da época, bem como diferenças significativas mesmo com relação à capital federal – que tendo passado por várias mudanças advindas da vinda família real portuguesa no início do século XIX preparava-se então para as reformas "civilizatórias" de sua área central, que se dariam na passagem para o século XX, ainda que não com os resultados esperados por suas elites.

Nesse período, ainda eram muito visíveis em São Paulo as marcas do mundo rural ou "antigo", presentes, como mostra o livro, na paisagem campestre que circunda a ainda pequena cidade, na criação e na circulação de animais pelas ruas, nos hábitos de banhos e lavagem de roupas nas várzeas dos rios ou nas diversas festas populares – características da cultura popular e caipira da época.

Embora acelerada a partir de então, tal urbanização deu-se num contexto marcado por uma esfera pública debilitada pelas clivagens constitutivas da crise final da escravidão, estabelecendo-se, como mostra Fraya Frehse, um diálogo assimétrico entre "nós" (grosso modo, os "cidadãos") e "eles" (pobres, remediados, escravos e ex-escravos, empregados etc.).3 3 Ver mais detalhes ao longo do capítulo 4. Se para Georg Simmel (1987 [1902]) os contrapontos entre proximidade física e distância social, adotados como atitude recorrente pelos habitantes da Berlim da passagem de século, advinham de um anonimato e estranheza decorrentes de um espantoso crescimento populacional, no caso da São Paulo de então, tal elaboração passava, como evidencia a autora, pela tentativa de se repor antigas distâncias sociais em novos termos, dada a proximidade espacial e novas formas de interação entre indivíduos, cujos respectivos grupos de pertencimento ocupavam posições hierárquicas até então extremamente demarcadas.

Esses aspectos tornam-se visíveis por meio de uma etnografia sistemática do passado, que abrangeu e articulou, diga-se de passagem, materiais diversos como notícias, crônicas, cartas, editoriais jornalísticos, memórias e fotografias. Um tema bastante explorado é a classificação das inúmeras reclamações dos transeuntes sobre os novos equipamentos e serviços decorrentes da modernização, como no caso da emergência dos bondes de tração animal, a partir do qual se revela um considerável espectro de tópicos para análise: os sobressaltos com a instalação dos trilhos, a precariedade dos freios, o perigo dos descarrilhamentos, os inúmeros atropelamentos – presentes nas queixas endereçadas ao poder público –, bem como sobre "desrespeitos" ou "grosserias" dos condutores para com os passageiros (ao mesmo tempo em que os primeiros dirigiam galanteios às "mulheres de vida alegre"), preconceitos quanto à "italianidade" de vários desses condutores, ou a própria proximidade incômoda no interior dos veículos com os pobres (pp. 124-130 e 199-203) – protestos nesse caso sobre a "ausência de etiqueta" ou os "hábitos inadequados" daqueles situados no outro pólo da relação já citada – "eles" (sobre os quais, infelizmente, não há como reconstituir, no mesmo plano, falas e representações).

As já mencionadas marcas do mundo rural foram também alvo de inúmeras queixas endereçadas aos jornais, bem como tema de várias charges da época, nas quais as demandas pela "circulação ‘saudável’ do transeunte" (p. 173), articuladas à gradativa instalação de novos serviços de infra-estrutura (como água e esgoto canalizados) faziam com que diversos hábitos "não civilizados" fossem repudiados, sob argumentos que enfeixavam motivos higiênicos e morais, incidindo sobre os animais, os dejetos lançados nas ruas, certas atividades "ilícitas" em "locais perigosos" e assim por diante. Mesmo as festas de rua passaram a ser alvo de queixas, embora Fraya Frehse mostre que estavam, nesse caso, baseadas num sistema classificatório que demarcava entre as condenadas e as toleradas ou aceitas, a depender respectivamente da origem "rústica" ou "branco-européia burguesa" (pp. 186-188).

Se é possível dizer que posteriormente boa parte dessa tradição de festas populares nas ruas paulistanas veio a ser eclipsada por medidas de controle como essas,4 4 Cf. os argumentos de Tinhorão (2001, pp. 13-29). o mesmo não se pode afirmar com relação ao comércio ambulante, já presente naquele período, como bem mapeou a autora, e persistente, obviamente sob outras formas organizativas, até os dias de hoje. Nesse caso, são nítidos os conflitos ligados às oposições entre o "circular" (dos transeuntes) e o "permanecer" (dos vendedores de rua como quitandeiras, tropeiros, carreiros etc.), datando de 1867 a primeira tentativa de reorganizá-los territorialmente (tentou-se confiná-los na "Praça do Mercado", atual praça Fernando Costa),5 5 Vale a pena ver, ao final do livro, um generoso "Glossário dos lugares públicos mencionados", com a denominação atual de antigos logradouros da área central de São Paulo. com taxação de impostos e controle sobre os produtos, cujo efeito foi quase nulo (p. 147). Nesse e em outros casos, as queixas pedem a prática de uma fiscalização, sempre inoperante (em parte pela dimensão das próprias solicitações), o que antecipa outro tema, como se sabe, de forte permanência até os dias de hoje.

Pode-se questionar a opção da autora, desenvolvida no capítulo 1, de classificar a produção intelectual sobre a São Paulo dessa época em termos da relação de cada estudioso com as significações predominantes atribuídas à historicidade, o que a princípio condicionaria suas obras, tratadas nesse plano, como tipos específicos de "interpretações nativas". Assim, se a inspiração no referencial de Lévi-Strauss (1976 [1952]) auxiliou de forma contundente no mapeamento das diversas historicidades no contexto das ruas, nesse último caso talvez tenha faltado lidar com outros fatores internos à confecção das obras, bem como as diversas mediações da produção desse campo – institucionais e políticas – com o contexto sociocultural mais amplo. Outro ponto que pediria aprofundamentos remete a certas relações entre os planos público e privado – ruas e casas, nesse caso – que, abordados na conclusão, provavelmente merecessem um cotejo mais claro com produções já feitas a respeito.

De todo modo, as dúvidas suscitadas quanto ao enquadramento das produções intelectuais não incidem, a meu ver, de forma problemática nas referências teóricas que norteiam o livro, e o desafio das relações entre público e privado, por sua vez, tem sido retomado em pesquisas e reflexões posteriores da autora, tema que ficará para resenhas de futuras publicações, ou seja, para uma outra história.

Após percorrer essas ruas do passado, que tanto têm de presente, pode-se frisar a contribuição especial desse trabalho para o campo da antropologia urbana, sobretudo daquela que toma a própria cidade e seus espaços como temas substanciais de reflexão, e que ao mesmo tempo o faz, pelos desafios que tal objeto apresenta, num diálogo proveitoso com ciências situadas em áreas de fronteira. Essa produção articula-se a outras que permitem esboçar princípios mais abrangentes ou mesmo estruturas de longa duração, possibilitando entender tanto a construção de discursos que se pretendem hegemônicos sobre a cidade, como formas de apropriação de espaços públicos densos e heterogêneos. No caso estudado, isso manifesta-se pela presença permanente de grupos populares nas ruas, contraposta a "cidadãos" ou "transeuntes" que aspiram demarcar o local como se a eles pertencesse – o que, portanto, relativiza a idéia difundida de que o Centro foi, nas primeiras décadas do século XX, um "espaço das elites", a não ser no plano de certa reinvenção (bem como ajuda a compreender as recorrentes tentativas desses grupos, sob distintas estratégias, de tentar "reordenar" o espaço público). E se as representações das próprias camadas populares são pouco acessíveis a pesquisas sobre o passado, de certo modo continuam praticamente invisíveis, apesar da enorme presença dessas nas ruas, o que constitui um desafio adicional para abordagens etnográficas que investigam tais grupos a partir do presente, quanto a identificar e analisar fatores que produzem e condicionam esse silêncio.

Notas

BIBLIOGRAFIA

BENJAMIN, Walter. (1985 [1955]), "Paris, capital do século XIX", in Flávio R. Kothe (org.), Walter Benjamin, São Paulo, Ática.

BERMAN, Marshall. (1986), Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad. de Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo, Cia. das Letras.

BERMAN, Marshall. (1987), "Os sinais da rua: uma resposta a Perry Anderson". Presença, 9: 122-138, Rio de Janeiro, fev.

LÉVI-STRAUSS, Claude. (1976 [1952]), "Raça e história", in _________, Antropologia Estrutural II, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro.

RIO, João do. (1997 [1908]), A alma encantadora das ruas. São Paulo, Cia. das Letras (org. de Raúl Antelo [Retratos do Brasil]).

SAHLINS, Marshall. (1990), Ilhas de história. Trad. de Bárbara Sette. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

SCHAPOCHNIK, Nelson. (2004), João do Rio: um dândi na Cafelândia. São Paulo, Boitempo (col. Paulicéia).

SIMMEL, Georg. (1987 [1902]), "A metrópole e a vida mental" in Otavio G. Velho (org.), O fenômeno urbano, Rio de Janeiro, Guanabara.

TINHORÃO, José Ramos de. (2001), Cultura popular: temas e questões. São Paulo, Editora 34.

HEITOR FRÚGOLI JR. é professor do departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e pesquisador do CNPq. E-mail: hfrugoli@uol.com.br

  • 1
    Escrito em 1935, mas publicado somente vinte anos depois, segundo Kothe (1985, p. 9).
  • 2
    Com a proposta de um "perambular inteligente" (p. 51), tal qual Charles Baudelaire, cuja ótica poética iluminou, como se sabe, a perspectiva de Benjamin sobre o contexto parisiense.
  • 3
    Ver mais detalhes ao longo do capítulo 4.
  • 4
    Cf. os argumentos de Tinhorão (2001, pp. 13-29).
  • 5
    Vale a pena ver, ao final do livro, um generoso "Glossário dos lugares públicos mencionados", com a denominação atual de antigos logradouros da área central de São Paulo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Abr 2007
    • Data do Fascículo
      Out 2005
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